Artigo sobre autonomia feminina

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AUTONOMIA FEMININA NA OBRA TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA – LIMA BARRETO Cinthia Guimarães da Silva

Resumo Este trabalho objetiva analisar o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (2007), e traz a discussão sobre a posição da mulher na sociedade entre o fim do século XIX e início do século XX, buscando dar uma maior ênfase sobre a autonomia da mulher na obra de Lima Barreto. Pra tanto, utilizamos como aporte teórico o texto de Virginia Wolf(1929) e Jean-Jacques Rousseau (1762) acerca das representações da mulher na sociedade.Para compreender a presença de questionamentos sobre a condição feminina presente no romance, a análise reflete sobre a representação e a relação estabelecida entre três personagens do romance: Olga,Major Quaresma, e Ismênia. A partir dos estudos do teórico francês René Girard em Mentira Romântica e Verdade Romanesca (2013) refletiremos sobre o potencial agregador do desejo mimético, como meio de contribuição para entendermos os questionamento da condição feminina presente no romance. Palavras-chave: Lima Barreto; Autonomia Feminina; DesejoMimético; René Girard.

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INTRODUÇÃO No romance Triste Fim de Policarpo Quaresma vemos alguns assuntos de destaque que chamam a atenção do leitor, como o nacionalismo e o patriotismo da época. O autor da obra, Lima Barreto documenta as lutas pela consolidação da Republica, retratada a partir de um povo oprimido e suburbano. Porém, esse não será nosso foco nessa análise. O presente trabalho traz a discussão sobre a posição da mulher na sociedade da época entre o fim do século XIX e início do século XX, naquela época as mulheres não eram consideradas cidadãs, pois seus direitos não eram respeitados; havia uma enorme inferioridade destas em relação aos homens. A preparação e a importância atribuída ao casamento eram características das imposições sociais que direcionavam a existência feminina a um único futuro possível, seu objetivo final, casar. A educação recebida pela família e as expectativas da Burguesia idealizavam uma mulher respeitável que vivia em função do lar. Para a burguesia eram considerados verdadeiros tesouros ter um ambiente familiar sólido, lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicadacompanheirana vida social junto ao marido. Sendo assim, percebemos que as mulheres presentes no romance de Lima Barreto viveram momentos de repressão que fizeram, ou não, alguma diferença em suas formas de ser, assumindo papéis impostos pela sociedade burguesa e aproveitando este enfoque para então descrever estas personagens femininas, observando suas características, suas personalidades e como a sociedade molda a mulher, apresentamos uma proposta de evolução das identidades e construção do verdadeiro eu (selfie), por meio das intervenções da cultura machista do final do século XIX, usando como exemplo duas personagens da obra Olga: filha de Vicente Coleoni, afilhada de Policarpo, que vivia com o pai num palacete em Real Grandeza e Ismênia: filha do coronel Albernaz, vizinho de Policarpo, e que como suas irmãs tem como único objetivo o casamento. Ambas as moças se encontram na idade de casar, entretanto na medida que a primeira não o super valoriza e não chega a se opor, a segunda jovem faz dessa um móvel para sua vida. Com isso, pretende-se enfatizar um outro ponto que colabora para entendermos os questionamentos femininos representados no romance, o desejo despertado e condicionado pelas relações estabelecidas. Neste ponto recorre-se ao texto teórico de René Girard: Mentira Romântica e Verdade Romanesca(1961) para relacionar Olga com o protagonista da narrativa (Major Quaresma), cuja principal característica é o nacionalismo exacerbado, e que nesta análise o destaque se dá ao fato que podemos tirar considerações acerca de sua relação com Olga.

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I.

UM OLHAR SOBRE O SUJEITO FEMININO NO ROMANCE

A obra triste fim de policarpo Quaresma foi publicada em 1915, mas o autor apresenta a sociedade carioca em 1893, o que nos faz destacar o papel que era atribuído a mulher na Primeira República. Sem pretensão de aprofundar o assunto a respeito da configuração do sujeito feminino na história, convêm mostrar que o que predominava no final do século XIX e início do século XX era uma ideologia difundida pela sociedade burguesa, caracterizada por um projeto que visava transformar o país em uma nação culta, sem nenhum resquício de “atraso”, um dos meios empregados foi a importação dos costumes europeus, como referência para “modernizado”. Nesse sentido, a família foi uma peça nesse projeto de normatização, para tanto, era tarefa construir um modelo ideal de mulher. Os deveres naturais da mulher eram: obedecer ao marido, ser lhe fiel, cuidar dos filhos, esse modelo forja uma representação simbólica da mulher: a mulher passiva destinada à satisfação do marido e a prostituta. Um dos instrumentos para a manutenção dessa sociedade patriarcal era o casamento, que permanecia como valor social, entre famílias burguesas era usado como degrau de ascensão social, de modo que ainda menina era ensinada a ser uma “boa mãe” e uma “esposa exemplar”, sua educação compreendia aprender a cozinhar, a bordar, costurar, ler e escrever, atividades que lhe permitiriam uma boa desenvoltura no espaço da casa. A posição da mulher é frente a uma condição de sujeição imposta pelos costumes, em que crescia submissa ao pai, e continuava a vida toda submissa ao marido, de fato, a educação da mulher visava a obediência ao esposo, sem outras pretensões pessoais. A figura da mulher nos respectivos séculos,foi condicionada e julgada sempre como um ser frágil, se analisarmos o contexto histórico percebemos que a mulher não tinha um papel social definido, não possuindo direito ao voto e nem ao trabalho remunerado dedicando-se única e exclusivamente a família. Jean-Jacques Rousseau grande filosofo do século XVIII buscou na sua obraEmílio ou da Educação, aponta o tipo ideal de mulher, citando que: As mulheres devem aprender a serem mães e esposas, essa é a lei da natureza. Devem ter pouca liberdade e isso é necessário ensinar desde tenra idade. A mulher deve desde cedo conhecer para amar a vida doméstica e tranquila de um lar, para que esta possa ter uma vida dentro da moralidade que lhes cabe. Assim tornar-se-á mais bela e encantadora (ROUSSEAU, 1995,p.521).

O que se tem atrás desse rótulo de bela e encantadora é na verdade uma vida de submissão completa a figura masculina e, desse modo, a ausência da autonomia, coloca a mulher numa posição comparável à de um objeto de arte a ser contemplado sem ação. Considerando as circunstâncias sócio históricas surge a “Crítica Feminista” que utiliza os princípios feministas e ideologia para criticar a posição das personagens femininas nas obras literárias, e acaba gerando de uma forma indireta

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debates acerca do espaço relegado á mulher na sociedade. Essa escola de pensamento tem como umas das principais representantes a escritora Virginia Wolf. Virginia denuncia na sua principal obra “Um teto todo seu” publicada em 1929, a opressão vivida pelas mulheres do seu tempo, combatendo-a fortemente. Diferente de Rousseau, a escritora cita a mulher ideal como um ser forte, capaz de ser base de sustentação da família moderna, e tendo uma posição mais que definida na sociedade, mulher essa que no romance de Lima Barreto é representada pela personagem Olga, afilhada de Policarpo Quaresma. Mesmo sendo uma mulher doce e delicada, Olga conseguiu ter um grande destaque na obra por manter um perfil de mulher obstinada, com pensamentos, determinação e opinião própria. Podemos perceber que ela não se enquadra nos padrões destinados as mulheres da época: A menina vivaz habituada a falar alto e desembaraçadamente, não escondia a sua ficção tanto que se sentia confusamente nele alguma coisa de superior, uma ousadia de ideal, uma tenacidade em seguir um sonho, uma ideia, um vôo. Enfim para as altas regiões do espírito que ela não estava habituada a ver em ninguém no mundo que frequentava. Essa admiração não lhe vinha da educação. Recebera a comum ás moças de seu nascimento. Vinha de um pendor próprio, talvez das proximidades europeias do seu nascimento, que a fizeram um pouco diferente das nossas moças, a sua natureza inteligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que seu espirito fazia. (BARRETO,2007, p.21).

Podemos dizer que ela seja a representação da busca da liberdade feminina, de viver seus próprios anseios e não pelo o que é imposto pela sociedade. Contudo mesmo com seus ideias, objetivos e seu jeito de ser, Olga se vê submetida a política matrimonialista, mesmo não possuindo vontade em casar. A partir desse pensamento, ela acaba se casando com um homem que não gostava, mas, como o matrimonio era uma espécie de ritual que precisava passar, ela não poderia fugir à regra de submeter-se a esse papel social: ser esposa: E tinha razão em se casar, em obedecer à sua concepção. É tão difícil ver nitidamente num homem de vinte a trinta anos, o que ela sonhara que era bem possível tomasse a nuvem por Juno... casava por habito da sociedade um pouco por curiosidade e para alarga o campo da sua vida e aguçar a sua sensibilidade. (BARRETO, 2007, p.120).

Olga casara com o Doutor Armando Borges, que demostrava ser inteligente devido a sua formação universitária. Isso é o que tinha chamado a atenção dela, porém logo percebeu que ele não era como imaginava e se desencantou. Contudo achou melhor casar com ele, pois achava que se não fosse com ele, seria com outro igual ou pior. Olga mesmo depois do casamento, mantinha sua personalidade, sua independência de pensamento em relação ao marido. Ela pensa reflete e atua sobre

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a realidade ao seu redor, contrapondo-se ao estereótipo da mulher passiva, subordinada ao marido, Olga desafia sua autoridade: - Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os fuzilamentos, toda a série de violências que se vêm cometendo, aqui e no Sul? - Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor, fechando a discussão. Ela não deixava de ser. A simpatia dos desinteressados, da população inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre aconteceu em toda parte, como particularmente, no Brasil, devido a múltiplos fatores, há de ser assim normalmente. (BARRETO, 2007, p.134).

No final deste romance, percebemos que Olga assume uma posição corajosa e superior quando não concorda com as vontades de seu marido e quando ele a questiona sobre a sua intenção de ir ao socorro de seu padrinho, Policarpo. Na visão de Armando, havia o medo de que isso comprometesse seu futuro profissional de médico: Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com seus grandes olhos cheios de escárnio; mirou-o um, dois minutos; depois, riu-se um pouco e disse: - É isto! “Eu”, porque “eu”, é só “eu” para aqui,” eu” para ali... Não pensas em outra coisa... A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora digo “eu” também) não tenho o direito de me sacrificar, de provar a minha amizade, de ter na minha vida uma traço superior? É interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma coisa como um móvel, um adorno, não tenho relações, não tenho amizades, não tenho caráter? Ora! - É que te digo: vou e vou, por que devo, por que quero, por que é do meu direito. (BARRETO, 2007, p.201).

Podemos perceber que esse ato foi um grande passo de sua independência, em tomar uma atitude sem consentimento de seu marido. Mesmo em uma sociedade conservadora e machista em relação à mulher, Olga se superou demostrando confiança de si mesma. Podemos dizer que ela é a evolução da mulher na sociedade, uma mulher pré-modernista e revolucionária que atuou na sua época. Para compreendermos esses questionamento feitos por Olga sobre a posição do sujeito feminino no contexto de época, e que a coloca em contradição com as outras personagens femininas na obra, delineamos a relação entre os três personagens: Olga, Ismênia e Major Quaresma, como instrumento para aguçar nossa percepção sobre a autonomia feminina presente na obra.

II.

O DESEJO SEGUNDO O “OUTRO”

Com a leitura mimética Girardiana percebe-se a ênfase que o autor dá em relação ao mecanismo do desejo mimético, mostrando que o desejo autônomo é uma farsa e que a relação entre Sujeito-objeto não é uma construção linear, mas que sempre há um mediador e que para a construção de identidades deve-se

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recorrer ao “outro”. O desejo é uma característica essencialmente humana, pois como coloca Girard em Mentira Romântica e Verdade Romanesca, “[...] que o ser humano não tem desejo próprio, e que para desejarmos verdadeiramente temos que recorrer ao homens a nossa volta[...].” (GIRARD,2013, p.32). O sujeito deseja intensamente, mas não sabe exatamente o que deseja e precisa do “Outro” para lhe mostrar o que deve ser desejado. Girard questiona a “positividade” do desejo, pois segundo ele o conceito de desejo é sem consistência, ao contrário do instinto que é determinado e tem um objeto específico. A partir disso, é pertinente considerar que Girard não nega que o sujeito é dotado de interesses e intenções, mas sim que essa intencionalidade não é determinada. O que torna-se determinante é o modelo: "[...] a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo[...]" (GIRARD,2013, p. 84). O outro lado da moeda seria que o desejo mimético é também o grande responsável pelas rivalidades e pela violência individual e coletiva. Se por um lado o desejo mimético é natural e bom, por outro lado é a principal fonte de violência entre os homens, o que Girard classifica como sendo a rivalidade mimética. Na sua dimensão mais problemática, o mimetismo do desejo torna os homens competitivos e rivais, e aí estaria o núcleo da violência e da agressividade de uns com os outros. Levando em consideração o primeiro enfoque de Girard sobre o desejo mimético, apesar de se configurar apenas a ponta do iceberg, discutiremos como configura-se o sujeito feminino no romance,portanto, ofoco inclui refletir sobre o potencial agregador do desejo mimético, como meio de contribuição para entendermos os questionamento da condição feminina presente no romance. No romance, as relações estabelecidas a priori, entre o personagem título (Major Quaresma) e sua afilhada Olga, mostram que embora os desejos dos personagens no decorrer da narrativa se configurem distintos, ambos partilham de um mesmo ideal: a emancipação. Major Quarema um patriota, que idealizava um país igual aos dos livros que gostava, e que achava que conhecendo o seu país poderia libertá-lo dos males que o assolavam (se não ao menos remediar), Olga que talvez seja a representação da busca da liberdade feminina, de viver seus próprios anseios, e não os impostos pela sociedade, contudo, mesmo com seus ideais e objetivos, Olga não está isenta do casamento como ideal de vida. O romance mostra a grande afeição que existe entre os dois, Quaresma era reservado e em questão de demonstrações afetuosas se mostrava econômico, em relação a afilhada adivinhava-se que a moça ocupava em seu coração o lugar dos filhos que não tivera. Já Olga: Não escondia a sua afeição, tanto mais que sentia confusamente nele alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma tenacidade em seguir um sonho, uma ideia, um voo enfim para as altas regiões do espírito que ela não estava habituada a ver em ninguém no mundo que frequentava (BARRETO,2007, p.21).

Percebe-se que o Major Quaresma desperta em Olga um ideal, algo que transcende aquilo que ela estava habituada a presenciar, são ideais que de certa forma Quaresma alimenta em Olga emergindo um desejo que é colocado em

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oposição às outras figuras do romance, pois Olga mostra-se com disposição para tentar compreender os motivos que levam Policarpo Quaresma a escrever o requerimento sobre a institucionalização da língua tupi como língua nacional, tão cheio de repercussões hilariantes e sofridas. Não concordando com a visão estreita do pai, Olga compreende a atitude de Policarpo Quaresma naquele momento. Não só como afilhada, aberta sentimentalmente para tentar entender os atos do padrinho e para revelar o seu idealismo ingênuo e grandioso, transita Olga pelo romance. Essa mulher, com razoável nível de educação, amante da literatura de Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, picada também pelo idealismo, é quem vai perceber com maior agudeza as causas que bloqueiam o desenvolvimento agrário do país e explicar a miséria em que vive a população rural: “[...] e todas essas questões [existentes no campo] desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber e também a sua piedade e simpatia por aqueles parias maltrapilhos mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos![...]” (BARRETO, 2007, p.137). Ambos mutuamente se influenciam, o peso maior recai sobre Olga que tem simpatia pelas atividades de Quaresma, e lança mão de seus ideais. Olga internaliza esse ideal presente na figura do Major Quaresma, o que lhe dá a possibilidade de questionar a realidade, não somente com uma visão nacionalista, mas voltando-se também para o papel social da mulher no determinado contexto. Vemos estimulado um desejo segundo o Outro. Olga se contrapõe á Ismênia na medida que sua identidade não é modelada em função da manutenção da atuação feminina no final do século XIX. Ismênia foi tão modelada que é a personificação da mulher totalmente subjugada e trancada em uma sociedade que impõe uma política patriarcal. A única perspectiva para Ismênia é o matrimônio, nela não havia outro desejo, e nenhuma outra perspectiva. De acordo com Martins(2001, p.107) “[...] a personalidade resulta de relações dialéticas entre fatores externos e internos sintetizados na atividade social do indivíduo[...] ". Por fatores externos a autora entende as condições sociais (materiais) do indivíduo, desde suas relações mais imediatas com outros indivíduos àquelas que se estabelecem com o gênero humano. Os fatores internos (as condições subjetivas) se referem à materialidade biológica e psicológica do indivíduo, que se desenvolveram em decorrência da atividade social deste. Olga ao longo da trama, torna-se mais madura, e com um caráter mais sólido, na medida que expressa a possibilidade de superar uma consciência ingênua da realidade. Nessa relação dialética a personagem constrói um olhar crítico que capta a essência do contexto social, a partir disso a personagem abre caminho para se constituir como sujeito autônomo (processo de subjetivação)ao passo que se contrapõe ao estereótipo da mulher passiva, subordinada ao marido. Olga em determinadas situações mostrava-se desafiadora: “[...]-você, no fundo, é uma revoltosa(...) Ela não deixava de ser” (BARRETO, 2007.134). Ismênia (“ela, tão incapaz de um sentimento mais profundo, de uma aplicação mais séria de energia mental e física”) representa o oposto: a impossibilidade de

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superação e de um olhar crítico sobre a realidade, de tal forma que após ser abandonada pelo noivo, se desestabiliza vindo a falecer. Dessa forma, essa construção da identidade, e do modo de perceber o mundo, não é anterior ás ações das personagens, mas se constrói no decorrer do processo de interação que elas realizam,e em relação à Ismênia vemos o engendramento social, simbolicamente imposto à mulher. Charles Taylor no texto Multiculturalismo examinando a política do reconhecimento(1998) aborda o caráter dialógico do ser humano, explica Taylor que: Tornamo-nos agentes humanos plenos, capazes de nos compreender a nós mesmos e, por conseguinte, de definir nossa identidade, mediante a aquisição de ricas linguagens humanas de expressão. E somos apresentados a essas linguagens por meio da interação com outras pessoas que têm importância para nós. A gênese do espirito humano, é nesse sentido não monológica, não algo que cada pessoa realiza por si só, mas dialógica. (TAYLOR, 1998, p.246).

Se entendermos o indivíduo, de alguma forma, como constituído pelo outro, podemos afirmar que o sujeito é uma construção do seu meio, ou seja, em alguma medida é constituído e formado pelo contexto. Nesse sentido podemos falar de uma subjetividade "exteriorizada" e, em alguma medida, "objetivada" pelo outro, pela cultura, e que pode ser resumida na afirmação de Pontalis sobre o conceito de self como "[...] um espaço aberto nas duas pontas, sobre o ambiente que o nutre inicialmente e que, em retorno, ele cria[...]" (PONTALIS, 2001, p. 98) . Issoé notado na forma como o contexto e as relações sociais influencia e moldam o caráter das personagens, para Olga o casamento representava apenas uma formalidade, e para não ser censurada preferia casar, e com o padrinho aprendera (Major Quaresma) que uma ideia, um desejo, por mais absurdo que pareça significa uma fonte de liberdade. Ismênia fora condicionada a considerar que toda sua existência apontava unicamente para o casamento. Considerando a teoria de René Girard sobre o desejo mimético, convêm destacar que se o desejo não fosse mimético, não existiria cultura, nem linguagem, nem sociedade, nem aprendizado: "[...] se o desejo não fosse mimético, não seriamos abertos ao humano[...]” (GIRARD, 2013, p.33). Com isso, podemos dizer que a construção de vínculos está em sintonia com a própria natureza desejante do homem, e que se adoto X como meu modelo, ao imitá-lo, amplio meu repertório social. Na narrativa, a personagemOlga passa por um alargamento dos próprios horizontes culturais em relação ao papel social da mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto(2007) relacionamos três personagens chaves: Olga, Major Quaresma, e Ismênia, para entendermos como o sujeito feminino se delineia no âmbito das relações estabelecidas, e que estão presentes no romance.

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A partir da análise de cada personagem, com foco maior nas personagens femininas, consideramos que a obra desponta como um discurso que questiona a condição da mulher, traço presente na personagem Olga, que foge ao modelo de mulher da época ao passo que constrói sua identidade não sob a égide da sociedade que impõe papéis fixos a mulher, mas que com um olhar crítico, questionador, e aberto para as influências que respondiam as demandas do seu caráter, foge aos estereótipos femininos historicamente engessados. Se havia alguma essência na personagem Ismênia, ela a perdeu, pois internalizou as vontades e expectativas da sociedade da época sobre o que é ser mulher, sem identidade, sem desejos ou ambições, ela não vê nenhuma razão para a sua vida e acaba sucumbindo, refletindo uma mulher que mostra-se como destituída de desejos, sem apresentar nenhuma perspectiva a não ser o casamento. Já Olga, apesar das influências mediadas pelas relações sociais na constituição de sua identidade, é aquela que não fica presa ao que é esperado pela sociedade e que percebe o seu papel social, indo além disso, se percebe como sujeito, que sabe o que fazer. A jovem Olga não foge, quanto á educação ao comportamento das heroínas românticas, pois também obteve á maneira antiga” [...]comum ás moças de seu nascimento[...]”. No entanto, eram suas ideias a respeito das relações entre as pessoas que a rodeavam, que a faziam diferente. Toda a luta de Quaresma na narrativa por um país organizado, fora percebida por Olga, que além disso, vê a necessidade de se alimentar muito mais do que de ideias, mas de uma práxis, experiências concretas, e nisso o major Quaresma semeou o caminho de Olga.

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REFERÊNCIAS GIRARD, R. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. Trad. Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações editora, 2013. LAPLANCHE&PONTALIS.Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. (2001). MARTINS, L. M. Análise sócio histórica do processo de personalização de professores. Tese de doutorado. Unesp-Marília, São Paulo.2001 ROUSSEAU, J.J. Emílio ou Da Educação, R. T. Bertrand Brasil, 1995. TAYLOR, CHARLES. Multiculturalismo examinando a política do reconhecimento. Lisboa, instituto Piaget.1998 WOOF, Virginia.Um Teto Todo Seu. Londres: Penguin,2004.

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