PRADEAU, J. Historia da filosofia.pdf

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Ficha Técnica Título: História da Filosofia Título original: Histoire de la Philosophie Autor: Jean-François Pradeau Tradução de Jorge Pereirinha Pires Revisão: Rita Almeida Simões ISBN: 9789722049320 Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © 2009, Éditions du Seuil © 2010, Publicações Dom Quixote Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.dquixote.leya.com www.leya.pt

Nota sobre o tradutor: Jorge Pereirinha Pires é licenciado em Filosofia pela FCSH/UNL, onde posteriormente desenvolveu estudos de Filosofia Contemporânea e de Estética. Desde meados da década de 1980 traduziu algumas dezenas de obras, a partir de diversas línguas, maioritariamente relacionadas com a filosofia, a literatura e a estética.

Prefácio

Embora exista efectivamente uma história da filosofia, no singular, a sua unidade não assenta na identidade e na permanência das teses ou dos argumentos, nem tão-pouco na perpetuação de um único género literário ao longo dos séculos. Os filósofos, desde o século VI a.C. até hoje, nem sempre disseram a mesma coisa. O poema de Lucrécio, os aforismos de Nietzsche, os diálogos de Platão ou as meditações de Wittgenstein não foram redigidos na mesma língua, porque não eram destinados a um mesmo leitorado ou porque não tinham os mesmos objectos. Em compensação, todos os objectos da tradição filosófica encontram, ao seu modo, na sua língua e com os utensílios do seu tempo, as mesmas questões. Questões pelas quais Michel Foucault pôde dizer que a filosofia «problematizava», retornando incessantemente a elas no decurso da sua história, e retomando-as em novos moldes para as tomar como problemas a resolver de uma outra maneira, segundo as urgências, as exigências e os meios de cada época. Os cinquenta e quatro capítulos que aqui estão compilados cronologicamente são de dois tipos, segundo apresentem um filósofo e a sua obra, ou antes examinem de maneira sintética o desenvolvimento de uma questão ou de um saber, apresentando então, num dado contexto histórico, as obras de diferentes autores. Estas sínteses relevam da história das ideias, e mais exactamente de uma história contextual das ideias. Elas observam a maneira como a filosofia pôde responder às questões do seu tempo, confrontada como estava com a emergência de novos saberes, ou até com alterações políticas ou religiosas que lhe cabia avaliar, tal como cabia aos filósofos tomarem parte em debates e em reflexões que eram alheias à filosofia. O conhecimento desse contexto e a restituição desses debates são hoje em dia indispensáveis à compreensão do que foi a história da filosofia e a maneira muito particular como esta foi prosseguida no contacto com os saberes e as ciências, através deles, neles se imiscuindo enquanto os procurava definir e pensar. A filosofia nem sempre disse a mesma coisa, é certo, mas fala sempre da

mesma coisa: da realidade e do conhecimento que dela podemos ter; do sentido da nossa existência e da maneira como a podemos conduzir. Esta História colectiva reúne colaboradores de dez nacionalidades, entre os melhores especialistas de uma tradição filosófica que se prolonga e que amanhã terá o futuro de que a sua história é condição. JEAN-FRANÇOIS PRADEAU

O nascimento da filosofia

Quando? A tradição pretende que a filosofia ocidental haja tido início nos anos 580 a.C., com um homem chamado Tales. É sem dúvida Aristóteles (384-322) que está na origem dessa tradição1, e no entanto o próprio Aristóteles não teria reconhecido a ausência de «busca da sageza» antes de Tales. Existem diferentes formas de sageza, e nem todas são filosóficas. O próprio Tales, como veremos, tinha bastos outros objectos de interesse. As histórias da filosofia seguem com frequência Aristóteles ao começarem por Tales, e nós faremos o mesmo. Essas histórias buscam igualmente elementos precursores da filosofia na poesia arcaica ou nas culturas vizinhas mas estranhas à cultura grega. A tal assunto dedicaremos algumas observações. Onde? Tales viveu em Mileto, uma cidade costeira da Ásia Menor onde se cruzavam rotas comerciais provenientes das ilhas do mar Egeu, da Grécia continental, do Egipto e do Médio Oriente. Anaximandro e Anaxímenes viveram igualmente em Mileto, pelo que, se estes filósofos «milésios» foram os verdadeiros pioneiros da filosofia, esta começou então em Mileto. No seu início, a filosofia exibe uma espantosa geografia. Surgem grupos de pensadores na Jónia – em Mileto, Éfeso, Samos ou Colófon –, depois outros a oeste, nas cidades costeiras do Sul da Itália e da Sicília. Certos pensadores, como Pitágoras, emigraram com toda a evidência de este para oeste, pelo que os grupos não estão inteiramente isolados, mas nem por isso os seus estilos de pensamento deixam de testemunhar importantes diferenças. Estas últimas permitem distinguir aquilo a que as histórias da filosofia de inspiração hegeliana dos séculos XIX e XX chamam os momentos «dórico» e «jónico» da filosofia. Nessa época, a Grécia interior parece haver permanecido inculta, até à chegada a Atenas de Anaxágoras, em meados do século V. Atenas era então o

retiro dos sofistas, ainda que estes ministrassem o seu ensino noutras cidades, satisfazendo assim as necessidades de uma rede cada vez mais complexa de comunidades políticas. De onde? Terá a filosofia caído do céu? Ou ter-lhe-á uma actividade mais antiga aberto o caminho? Tratar-se-á de um fenómeno exclusivamente grego, ou apropriouse das descobertas que terá furtado a culturas que lhe eram alheias? Eis perguntas que poderão dar lugar a diversas controvérsias relativas a eventuais desvios culturais. Supondo-se que os gregos conseguiram efectivamente algo de extraordinário, do que se trata ao certo? Em que é que a filosofia contribuiu para a cultura ocidental? Para detectar eventuais influências não gregas, convirá que nos voltemos para as culturas com as quais as cidades jónicas tinham o costume de comerciar, como o Egipto, a Babilónia (no actual Iraque) ou a Fenícia (a leste do Mediterrâneo). Terão essas prestigiosas culturas antigas produzido a centelha de onde nasceu o fogo da filosofia ocidental? Poderá um dos factores determinantes nesta matéria ser a invenção da escrita alfabética, em lugar dos hieróglifos e da escrita silábica? Esta última conquista a Grécia no século VII a.C. A escrita poderia ter induzido o desenvolvimento da filosofia, visto permitir que os leitores se confrontem de maneira crítica com os pensamentos expostos por outros, mas também por as leis escritas possibilitarem a existência de instituições legais, no seio das quais os debates dos tribunais se substituem ao juízo de um soberano autocrata. E contudo, antes da escrita, já existiam leis e regras orais, muitas vezes versificadas, que se recitavam de memória. Da mesma maneira, os antigos filósofos ensinavam oralmente, e pouco ou nada escreviam. A filosofia, no seu início, releva essencialmente de um género poético que se poderia dizer didáctico, e que saiu de sociedades orais. Eis o que tornaria a filosofia herdeira da transmissão oral das narrativas, desenvolvida numa sociedade anterior à escrita. Sem dúvida que a diversidade cultural e religiosa é, por seu turno, factor de mudança. É lícito pensar-se que, navegando os gregos ao encontro de outras línguas, de deuses estrangeiros, de normas morais diferentes, de vestes ou de usos espantosos, tenham achado nisso ocasião para se interrogarem sobre os seus próprios costumes. Xenófanes (século VI a.C.) já havia encontrado na variedade das representações dos deuses argumentos para desacreditar o antropomorfismo religioso2. Encontramos em historiadores como Hecateu e

Heródoto um fascínio semelhante pela diversidade cultural. Certas civilizações do Próximo Oriente tinham registado por escrito dados astronómicos e desenvolvido investigações matemáticas. Ter-se-á Tales servido dos dados astronómicos babilónicos para prever um eclipse solar? Terá Anaximandro recorrido a cálculos egípcios ou babilónicos quando formou hipóteses sobre o tamanho do universo? Podemos supor que assim foi. Mas ainda que tal hipótese se revelasse exacta, os dados então obtidos não passariam do material de partida do filósofo. Ela continua a não estabelecer que outras culturas antigas se teriam podido consagrar à filosofia antes de a transmitirem aos gregos. Mas se tais culturas dispunham da matemática, dos arquivos astronómicos, da escrita e da experiência de um certo relativismo cultural, porque não colocaram elas as questões que caracterizam o início da filosofia? Porque não procuraram elas o porquê? O nascimento da filosofia parece exigir outras explicações. Para além da influência das outras culturas, é preciso levar em conta a herança da cultura grega, essencialmente oral e difícil de reconstituir. Tem de mencionar-se por um lado a tradição épica, Homero, Hesíodo e os mitos tradicionais dos deuses olímpicos; e por outro lado o conjunto assaz desconhecido de tudo o que tem a ver com as religiões dos mistérios, a poesia órfica e o culto ctoniano. Por exemplo, podemos comparar a representação pré-socrática do mundo à da epopeia homérica. Em Homero, a terra é um disco plano dominado por uma abóbada celeste; as terras habitadas estão rodeadas pelo rio Oceano3. O Sol ergue-se a partir do Oceano e atravessa o céu durante o dia, antes de mergulhar à noite no mar do Oeste4. Os tremores de terra e os arco-íris são o reflexo das emoções divinas. Sob a terra encontra-se o reino das sombras que é a morada do Hades, onde vivem os mortos. Hesíodo (século VII) precisa algumas das dimensões deste, quando explica que são precisos nove dias para que uma bigorna de bronze caia do céu até à terra, e outros nove dias para atingir o Tártaro a partir da Terra5. A Teogonia de Hesíodo descreve a origem dos deuses e do cosmos, imputando-a no essencial a um duplo processo: 1) a relação sexual de duas divindades engendra uma nova entidade, e depois 2) a progenitura apodera-se violentamente do poder paternal. É tentador pensar-se que tais mitos serviram ao mesmo tempo de inspiração e de alvo aos primeiros filósofos, os quais teriam substituído os caprichos divinos pelas explicações naturais do processo cósmico. Ainda que tal hipótese comporte a sua dose de verdade, nem por isso

os filósofos descrevem menos frequentemente como «divinas» as causas naturais. Não se contentam eles apenas em substituir a «separação» ou a «emergência» a partir de elementos primevos ao «nascimento», tal como este é descrito nos mitos antigos? Os mitos órficos interessavam-se pelo destino da alma humana. Conhecemolos mal, já que os dados textuais são frequentemente escassos e aqueles de que dispomos são difíceis de datar. Todavia, eles lançam alguma luz sobre a concepção pitagórica da reincarnação e sobre as imagens que Parménides empregou. Como sempre, os filósofos herdam temas próprios da mitologia local, antes de fazerem uso destes e de explorarem a metafísica neles implícita. Quem? São uma vintena, os pensadores de primeira linha anteriores a Platão que mencionaremos. No século VI, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, Pitágoras, Xenófanes; cerca do ano 500 a.C., Parménides e Heraclito; no século V, os antigos pitagóricos, entre os quais Filolau, Zenão de Eleia e Melissos (os discípulos de Parménides), Empédocles, Anaxágoras, os dois atomistas Leucipo e Demócrito, bem como Diógenes de Apolónia, e depois os principais sofistas, como Protágoras, Górgias, Pródico, Hípias e Antifonte. Esta lista segue em geral a cronologia, mas tais pensadores podem ser reagrupados de diversas maneiras. Passaremos a propor um esboço do seu pensamento, apresentando-os segundo diferentes temas. Como conhecemos? Reconstituir a obra dos filósofos pré-socráticos não é uma tarefa fácil. Não existe deles quase nenhum texto completo. Em lugar disso, temos de nos remeter às apresentações (aos «testemunhos») que encontramos nos autores posteriores, muitas vezes em vários séculos, bem como às citações que figuram nesses textos. Essas citações, a que se chama «fragmentos», estão muitas vezes compiladas por editores modernos, que tentam reconstituir o aspecto das obras originais dispondo os fragmentos numa certa ordem. Nesta matéria, a edição mais autorizada é a de Diels-Kranz (doravante DK) que contém simultaneamente os testemunhos e os fragmentos de todos os pensadores présocráticos. As edições mais recentes seguem em geral a mesma via. Elas deveriam inspirar bastas dúvidas quanto à pertinência e à exactidão da reconstrução que propõem das teses dos autores antigos.

Uma terceira fonte é-nos oferecida pela descoberta fortuita de papiros, como os de Afrodísia e de Herculanum. Tais textos são em geral cópias romanas, frequentemente em muito mau estado, que contêm os erros de seis séculos ou mais de transmissões; no entanto, por vezes ensinam-nos algo de novo. Cosmologia Admitimos comummente que a filosofia começa com questões cosmológicas relativas à origem e à composição material do mundo, bem como ao funcionamento deste. É a Tales que se deve a famosa iniciativa de haver começado, quando afirmou que era a água o princípio elementar de todas as coisas, e que a terra flutuava sobre a água6. Todavia, já na época de Aristóteles, ninguém compreendia nem o que Tales quisera dizer ao certo, nem o que dissera ele ao certo, tal como não se sabia quais as palavras que empregara. Mas Tales interessava-se igualmente por outras questões. Exprimiu-se acerca da natureza da vida ou da alma7, e os geómetras posteriores atribuíram-lhe a paternidade de cinco teoremas, dos quais ele talvez haja feito uso para fins práticos, por exemplo para calcular a distância dos navios no mar8. Encontramse em Heródoto algumas narrativas acerca de Tales – como ele possibilitou que o exército atravessasse o rio Thalys sem qualquer ponte, ou como preveniu os jónicos do risco de um eclipse solar antes de uma batalha9. Era reputado pela sua sabedoria política10 e por hábeis investimentos baseados na previsão de um excelente ano para a colheita de azeitona11. Semelhante variedade de interesses vai muito para além daquilo a que hoje em dia chamamos «filosofia»; mas é certo que a definição do que cabe à filosofia se restringiu desde a Antiguidade. O contributo de Anaximandro para a cosmologia inclui a tese segundo a qual a matéria do mundo se desenvolve a partir de um material indeterminado, ao qual ele acabará por retornar. Esse material primordial é o «ilimitado» (o apeiron, aquilo que é sem limite ou indefinido), o que aparentemente significa não se tratar nem de água (como pensava Tales), nem de qualquer outra matéria conhecida, mas de algo que é absolutamente desprovido de qualidades12. Outro ponto importante: Anaximandro sustentava que as coisas advêm e desaparecem de modo sucessivo. Uma frase que descreve esse equilíbrio parece ter sobrevivido nos próprios termos que haviam sido empregues por Anaximandro: As coisas que dão o seu nascimento às realidades são também aquelas para onde elas tendem na sua destruição, segundo o que deve ser; pois elas se tornam justiça e castigo, umas às outras, da sua

injustiça, segundo a ordem do tempo13.

Anaximandro usa aqui imagens algo desusadas e arcaicas para sugerir que, onde um elemento ganha terreno durante um certo tempo e um outro se retira, terá lugar um «castigo» no momento oportuno, quando o segundo retornar e o primeiro for destruído, por uma duração de tempo igual. O que Anaximandro diz da forma do cosmos é notável para a sua época. A Terra continua a ser plana, no centro do universo, mas é agora um pequeno cilindro espesso, dotado de duas superfícies planas: o nosso lado já não é o único «cimo14». Com uma abóbada de céu em cada extremidade, ela forma uma esfera no centro de rodas que transportam o Sol, a Lua e as estrelas. Em lugar de se perguntar o que sustenta a Terra, Anaximandro faz notar que aquilo que se mantém a igual distância do que o rodeia não tem motivo algum para se deslocar para um ou outro lado, pelo que a pergunta «Porque é que ela não cai?» está mal colocada. O equilíbrio é a chave da física, tal como da química. Ao redor da Terra, os círculos concêntricos são como os contornos de umas rodas de carroça. Jactos de fogo que brotam de orifícios nos cilindros sombrios fazem aparecer o Sol, a Lua e as estrelas. Atribuindo aos diâmetros medidas que são múltiplos exactos de uma mesma medida (na ocorrência, a espessura da Terra15), Anaximandro adopta o princípio científico de que a natureza tem um significado matemático, ao ponto de as teorias cosmológicas serem demonstradas pela matemática, e não pela observação. Após Anaximandro, Anaxímenes parece bem menos sofisticado; a sua Terra é um disco. Mas dotado de um único «cimo», o nosso, orlado por uma abóbada de céu. O Sol e as estrelas percorrem a abóbada do céu e giram ao redor dela, mas não passam abaixo do solo16. Ele recusa a tese de Anaximandro segundo a qual a Terra se manteria sem suporte algum, para afirmar que ela «flutua nos ares», por ser plana. Será isso ingenuidade? Talvez não, se compreendermos que «flutuar nos ares» (epocheisthai) significa que, se uma corrente de ar vier de baixo, o disco plano que é a Terra não poderá descer contra o vento17. Além disso, a corrente de ar que rodeia as extremidades da Terra desvia os outros discos, os do Sol, da Lua e dos astros, e projecta-os através da abóbada celeste tal como as folhas vogam ao vento. Para Anaxímenes, é o ar o elemento primordial. Para ele os outros materiais não são mais do que formas de ar de diferentes densidades. Quando o ar se condensa, produz primeiramente o nevoeiro, depois a água, a terra e as pedras sólidas. O ar rarefeito dá o fogo18. Do ponto de vista metafísico, trata-se de

uma doutrina parcimoniosa. Os sólidos, os líquidos e os gases não se distinguem senão pela sua densidade – ou seja, do ponto de vista físico, e não do da composição química. As mudanças de densidade resultam do aquecimento ou do arrefecimento físicos, sem que para tal seja exigido qualquer outro elemento além do ar19. Em apoio da sua teoria, ele parece haver sustentado que se pode expirar um sopro frio através de lábios fechados, e um sopro quente através de uma boca mais aberta20. Encontram-se aqui elementos de observação científica em apoio da hipótese, bem como um recurso a efeitos susceptíveis de serem observados. As teses cosmológicas de Xenófanes, Parménides, Heraclito e Empédocles serão mencionadas mais adiante, quando apresentarmos as suas teses metafísicas e psicológicas. A cosmologia torna-se um objecto em si mesma no século V, com Anaxágoras, os atomistas e Diógenes de Apolónia. Anaxágoras partilha com os mais célebres atomistas, Leucipo e Demócrito, a ideia de que existe uma pluralidade de elementos primordiais permanentes. Todos os três reduzem além disso todas as mudanças observáveis ao movimento desses elementos constitutivos microscópicos, demasiado pequenos para poderem ser percebidos. Mas enquanto Anaxágoras defendia que os elementos primordiais eram infinitamente divisíveis, de modo a não existir limite para a pequenez de uma gota de água, os atomistas, pelo seu lado, concebiam-nos como elementos corpóreos indivisíveis. As variadas combinações desses átomos (que são de diferentes tipos) explicam a variedade dos compostos de que nos apercebemos. Este resumo, no entanto, não retém mais do que o parentesco entre Anaxágoras e os atomistas. Devemos considerar com maior atenção o que Anaxágoras se propunha realizar. Um dos seus objectivos, ao que tudo indica, era oferecer uma explicação para a alteração química que respeita o velho adágio segundo o qual «nada vem de nada21». Anaxágoras explica que, em toda a mudança aparente, o material de origem, que parece puro, é na realidade uma mistura, de modo que o material ao qual a mudança dá lugar estava na realidade já presente nessa mistura: ele não faz mais do que aparecer, como quando a água se evapora de um copo e deixa um resíduo calcário. Uma explicação semelhante pode ser dada para todo o tipo de mudanças: Anaxágoras sustenta que tudo, mesmo o depósito calcário assim deixado no fundo do copo, contém minúsculas combinações de todas as espécies de materiais22. Para explicar como o mundo nasceu de uma primeira mistura, Anaxágoras apela ao «Intelecto», uma forma de inteligência ordenadora que é a única

realidade não composta23. O «Intelecto» parece designar igualmente a inteligência inerente a cada coisa viva24. Tais teses podem ser distinguidas das de Leucipo e Demócrito. A cosmologia destes dispensa qualquer recurso a um intelecto divino; em vez disso, os átomos deslocam-se ao acaso no vazio. Os átomos não têm, ao que parece, nenhum movimento natural, mas ricocheteiam de algum modo uns nos outros, suscitando assim novos movimentos25. Além disso, um efeito de turbilhão faz com que se formem estruturas cósmicas em certos pontos do espaço: para formar não só este mundo, mas uma multidão de mundos possíveis26. Algumas destas proposições foram retomadas pelos epicuristas na época helenística e serviram de inspiração tanto a cientistas como a filósofos no início da modernidade. Diógenes de Apolónia rejeita este mecanismo causal e a separação da matéria e do intelecto. Concebe um princípio que é ao mesmo tempo ar e inteligência, um princípio material inteligente que justifica o universo material, a origem da vida ou ainda a razão por que os seres dotados de inteligência respiram. As mudanças que afectam a inteligência devem-se às variações da temperatura. Eis uma teoria cosmológica que se apoia numa filosofia do intelecto27. Metafísica, epistemologia e teologia Dois indícios assinalam o aparecimento da metafísica: 1) a distinção entre a «realidade» e a aparência, e 2) a concepção de um ser incorpóreo. A concepção aferente de um deus todo-poderoso surge igualmente no período pré-socrático. Devemos começar por Xenófanes, cuja longa existência abrange quase todo o século VI. A maior parte do seu contributo concerne a teologia e a epistemologia. Em teologia, ele fez a crítica das representações antropomórficas dos deuses, e sustentou a existência de uma divindade única que não necessita de olhos para ver nem de corpo para realizar os seus projectos. Pelo contrário, como diz Xenófanes: Ele permanece sempre no mesmo local, inteiramente imóvel. Não lhe convém aliás mover-se de um local para outro. Mas, sem esforço, ele mexe todas as coisas, somente pelo pensamento do seu intelecto28.

No fragmento 34, Xenófanes interessa-se pelo que nós, humanos, podemos conhecer. Distingue aquilo a que chama dokos, ou «conjectura», do que ele

estima ser o «conhecimento» (oide, eidôs, iden): de certos temas, nenhum ser humano pode ter conhecimento. Em si mesmo, o fragmento 34 não diz exactamente o que não podemos conhecer. Trata-se de tudo, ou simplesmente dos objectos a que se referia a obra de Xenófanes (tratar-se-ia porventura da natureza dos deuses e da origem do mundo)? Em todo o caso, Xenófanes introduz uma camada de cepticismo, e mesmo uma certa forma de humildade intelectual, no discurso filosófico. Ele inaugura uma tradição de questionamento do como da ciência, e da maneira pela qual podemos provar o que pensamos conhecer. A distinção que introduz entre a conjectura e a recta opinião29 prefigura uma distinção que dentro em pouco iremos encontrar em Parménides. O nosso próximo metafísico é Pitágoras, cujo nome é célebre mas a respeito do qual não sabemos afinal quase nada. Era contemporâneo de Anaxímenes e de Xenófanes, nasceu em Samos cerca de 570 a.C, mas foi em Crotona, no Sul da Itália, que passou a maior parte da sua vida30. São diversas as tradições relativas tanto à sua pessoa como ao seu ensino. Elas referem antes de mais um ensino místico e práticas cultuais, às quais regressaremos; depois, um empenhamento e actividades políticas em Crotona, que serão recordadas no parágrafo 9; finalmente, a prática das ciências exactas, nomeadamente da matemática, da astronomia e da harmonia, de que falaremos aqui. A maioria das fontes antigas são relativas ao ensino místico, e o ponto de vista mais comummente partilhado sustenta ser essa a única coisa que se pode atribuir com certeza a Pitágoras31. Contudo, Pitágoras ter-se-á aparentemente interessado pela matemática da harmonia musical, e dedicava um culto particular ao número 10 e ao triângulo dos números 1, 2, 3 e 4 (cuja soma é 10). Eis algo que tinha um nome técnico (a Tetraktys); os seus discípulos tinham de prestar juramento sobre esse número (ou então perante Pitágoras, que lho transmitia)32. Atribui-se aos pitagóricos das gerações seguintes o desenvolvimento de uma investigação matemática e científica. O principal entre eles é Filolau, um pitagórico do século V a.C., a respeito do qual dispomos de informações um pouco mais numerosas. Um dos temas que ele abordou foi o do ilimitado. Segundo Filolau, o mundo é estruturado pelo agenciamento de «limitantes», que impõem um limite ao «ilimitado». Segundo alguns intérpretes, esta teoria prefigura uma parte das teses que serão defendidas por Platão acerca da forma e da matéria33. Os trabalhos de Filolau acerca do número, da geometria, da harmonia e da astronomia mostram as premissas de uma viragem metafísica

que irá ter uma influência determinante nas gerações seguintes. Parménides e Heraclito estiveram ambos activos cerca do ano 500 a.C.; Heraclito em Éfeso, na costa da Ásia Menor, e Parménides em Eleia, no Sul da Itália. Parménides é associado à tese de que existe apenas uma única realidade (monismo), que nunca se altera. Pelo seu lado, Heraclito é associado à que estabelece a existência de uma mudança permanente, pois «tudo se esvai», sendo a «unidade dos contrários» o que sustenta o mundo. Estas asserções filosóficas parecem tão distantes quanto os locais em que foram pronunciadas, mas ambas são teses metafísicas relativas à natureza fundamental da realidade e à possibilidade da mudança. Não se sabe ao certo se Parménides e Heraclito conheciam as obras mútuas, ou se polemizavam um contra o outro34. Estes dois autores distinguem-se pelo seu estilo. Parménides escreve em hexâmetros (o que, na época, é norma nos escritos épicos e didácticos), mas inventa um vocabulário novo para exprimir a necessidade lógica e dar força aos argumentos. O estilo de Heraclito é muito diferente. É feito de frases misteriosas, boa parte das quais são sem dúvida voluntariamente ambíguas. Conservam-se alguns fragmentos do poema de Parménides, cerca de trinta versos que pertencem com toda a evidência a um mesmo argumento. Do livro de Heraclito, conservou-se uma multidão de extractos truncados, na maior parte dos casos sob a forma de uma única frase, por vezes desprovida de qualquer verbo. Nada se assemelha aqui a um argumento construído. É tentador pensar-se que, uma vez introduzido por Parménides, o hábito de fornecer argumentos se impôs seguidamente a todos os pensadores; é de resto por esse motivo que os filósofos da tradição analítica frequentemente estimam que Heraclito, ao parecer ignorar a necessidade de qualquer argumentação, teria vivido antes de Parménides. Ao invés, os filósofos da Europa continental não consideram que a reflexão filosófica deva revestir-se de uma única forma. Pelo que lhes parece plausível que Heraclito tenha conhecido a obra de Parménides sem no entanto conceder que as verdadeiras provas sejam o critério de uma boa teoria. Pois a filosofia poderia muito bem mostrar-nos dessa maneira coisas que de outro modo permaneceriam desconhecidas, ou, para usar os termos de Heraclito, ela poderia revelar-nos o logos, ou seja a estrutura racional do mundo, por meio de frases bem talhadas. A obra de Parménides constava de três partes, das quais as duas primeiras são as mais bem conservadas. A introdução35 descreve um jovem que partiu ao encontro de uma deusa, para além das portas da noite e do dia. No resto do poema, o jovem relata as palavras da deusa. O significado dos elementos

mitológicos, entre os quais a revelação divina, é objecto de interpretações. A segunda secção («Rumo à verdade») é a mais célebre. A deusa afirma que uma certa «via de pesquisa» é a única que conduz à verdade. Essa via faz da afirmação «é» a única premissa apropriada do inquérito que conduz à verdade, já que qualquer outra premissa formulada negativamente («não é») conduz a um impasse. Os enunciados do tipo «é e não é» parecem conduzir-nos «às arrecuas»,36 talvez porque cada progresso em direcção à verdade que seja autorizado pela forma positiva se acha anulado pela forma negativa. Esta tese assenta sem dúvida na ideia de que a verdade é o que é assim, quando a falsidade é o que não é assim. Para dizer a verdade, devemos então dizer o que é, não o que não é. Ao afirmar que não podemos pensar o que não é nem falar dele, e que «nada» jamais pode existir, a deusa de Parménides sugere que a realidade é uma coisa imutável, sem princípio nem fim, sem passado nem futuro. Podemos ser levados a duvidar das suas conclusões, mas a deusa exige que ajuizemos os seus argumentos por meio da razão; é pelo menos essa a leitura óbvia do convite que ela faz ao jovem para «ajuizar pela razão um argumento aguerrido por múltiplas controvérsias37». No seguimento deste inapelável monismo, a terceira parte do poema («Rumo à opinião») tem algo de espantoso. A deusa «terminou», diz ela, «a sua explicação digna da confiança da verdade», e doravante o jovem deve descobrir as opiniões dos mortais. Mas porquê? A deusa prossegue, em benefício de uma narrativa complexa, cujo estilo é o das cosmologias antigas, invocando então um par de princípios chamados o «fogo» e a «noite». Essa narrativa baseia-se em alguns avanços científicos, como a descoberta de que a Lua reflecte a luz solar38. Porque expõe Parménides tal cosmologia se ela não é conforme à verdade? Tratar-se-á da melhor explicação possível do mundo da sensação? Mas então, como se refere ela à «verdade» da realidade imutável? Parménides só muito raramente faz precisões acerca da sua cosmologia, e a maioria dos intérpretes sustenta que o discurso «Rumo à verdade» continua a ser o seu maior contributo para a filosofia. Os argumentos contra a mudança e a multiplicidade, que se encontram em «Rumo à verdade», tiveram com efeito uma influência considerável em Platão, e para além dele, ao encorajarem a distinção entre a «realidade» metafísica e o mundo físico das «aparências». Voltando a Heraclito, mencionaremos brevemente as teses já evocadas (o fluxo universal, a unidade dos contrários, a ordem subjacente à mudança). O

tema do fluxo aparece nas célebres fórmulas sobre o rio. Estas estão conservadas por diferentes autores: a) Não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, segundo Heraclito, e não podemos também apreender duas vezes no mesmo estado uma realidade mortal. As mudanças vivas e rápidas dispersam-lhes os elementos, e depois reúnem-nos de novo; ou antes, não é de novo, nem mais tarde, é simultaneamente que ela se constitui e se desfaz, aparece e desaparece39. b) Sobre aqueles que entram nos mesmos rios, escorrem outras e outras águas40. c) Entramos e não entramos nos mesmos rios. Somos e não somos41.

Podemos ler estas frases como observações sobre os rios e o fluxo permanente das suas novas águas, mas também como proposições sobre o fluxo permanente que, na natureza, faz com que as coisas e as pessoas nunca estejam no mesmo estado, ainda que as vejamos como sendo as «mesmas». Devemos por isso não apenas pensar ser falso dizer-se que elas são as «mesmas», como admitir que «o mesmo» não implica a mesma constituição física. Se aceitarmos a segunda interpretação, podemos dizer que um rio exige um fluxo constante de água nova. É isso que significa ser um rio. E se a coisa for igualmente verdadeira na natureza, o «mundo» será então um ambiente dinâmico, no seio do qual as coisas têm lugar. Todavia, esses eventos não terão lugar ao acaso nem de maneira caótica: tal como a água do rio obedece a regras, ao escorrer num só sentido e ao mudar de curso segundo uma certa medida, também os processos da natureza e da linguagem obedecem a regras. Existem meios pelos quais reconhecemos os «mesmos» objectos: essas leis são determinantes para compreender o mundo. Tal é o sistema (ou logos) que, segundo Heraclito, aparece claramente aos que o procuram, mas que permanece ignorado por aqueles que estão demasiado adormecidos para o perceberem42. Esse logos pode ser igualmente a ligação entre os contrários. Os contrários são mencionados em diversas frases heraclitianas: A estrada que sobe e a estrada que desce são uma e a mesma43. O mar é a água mais pura e a mais conspurcada: para os peixes, ela é potável e salutar, mas não é potável e é mortal para os homens44. Hesíodo é o mestre dos mais numerosos, dele se deve crer que sabe a maioria das coisas, embora nem sequer conheça o dia e a noite; pois eles são um45. A doença torna a saúde agradável e boa, a fome a saciedade, a fadiga o repouso46.

Cada uma destas frases indica como os contrários estão ligados, sem que todavia se distinga claramente o que determina ou estrutura o conjunto desses contrários. Conservámos assim mais de uma centena de frases obscuras, que não acompanham análise ou explicação elaboradas, a tal ponto é difícil reconstituir com certeza a doutrina de Heraclito. Nas duas gerações seguintes, a investigação metafísica enriquece-se com a contribuição de dois discípulos de Parménides, Zenão de Eleia e Melisso de Samos. Ambos adoptam a opção de Parménides em favor da razão, mas Zenão distingue-se pela maneira como demonstra uma hipótese provando a impossibilidade do seu contrário. Assim, para provar que o espaço e o tempo não podem ser cindidos, ele procura dividi-los e mostrar a absurdez dos resultados então alcançados. Eis o aspecto que toma o seu primeiro paradoxo sobre o movimento. Imagine-se um corredor na linha de partida do estádio. Poderá ele atingir a linha de chegada? Não, jamais, afirma Zenão. E eis porquê: antes de a atingir, ele tem de percorrer metade do caminho; depois, após ter percorrido metade da distância restante (ou seja, três quartos da distância total), tem ainda de cobrir metade da distância residual, e assim sucessivamente até ao infinito. Ele nunca cessa portanto de ultrapassar a metade da distância restante, mas terá sempre a outra metade por percorrer. Este paradoxo pressupõe que a pista de corrida pode ser infinitamente dividida em porções cada vez mais pequenas. O conjunto do percurso é então concebido como uma série infinita de distâncias cada vez mais curtas, e, uma vez que não existe nenhuma distância última, a tarefa parece não ter fim. Se admitirmos que o espaço é infinitamente divisível (em teoria, pelo menos), como resolver o enigma de Zenão? Existe um meio de resolver parcialmente a dificuldade se notarmos que o tempo é, também ele, infinitamente divisível. Se o corredor correr sempre à mesma velocidade, ele percorrerá distâncias cada vez mais curtas em períodos de tempo cada vez mais breves; quanto mais pequenas forem as distâncias restantes, mais rapidamente elas serão transpostas. Pois o tempo necessário ao percurso total da corrida não se torna mais longo somente por o havermos dividido em pequenas partes. Zenão apresenta diversos argumentos do mesmo tipo. São concebidos com o fito de arruinar a nossa crença no facto de o espaço e o tempo poderem ser facilmente divididos em segmentos, quer estes sejam em número finito ou infinito, e forçar-nos a admitir, de acordo com Parménides, que a

multiplicidade é impossível. Poderá pensar-se que a matemática moderna resolveu estes paradoxos, mas nem por isso a possibilidade de concluir uma série infinita de tarefas é menos irracional e difícil de conceber. Melisso propunha-se, também ele, demonstrar que a realidade é permanente, imutável e indivisível. Diferentemente de Parménides, para o qual a realidade era eterna e finita, Melisso afirma que ela dura no tempo e é ilimitada em grandeza47. É inovador e sofisticado o argumento por ele desenvolvido contra a confiança que temos nos sentidos, embora a razão mostre que eles são erróneos48. Devemos concluir esta secção notando que o atomista Demócrito, cuja cosmologia já evocámos, dedica ao conhecimento algumas observações importantes. Ele estima que o conhecimento pela razão leva a melhor sobre a percepção sensorial, explicando que a experiência dos sentidos permanece subjectiva e é tributária do estado do corpo e do que o rodeia. Reconhece porém que esta crítica dos sentidos se condena a si mesma, visto a razão necessitar do apoio dos sentidos para afirmar que estes últimos não são fiáveis49. A alma e o intelecto O inquérito sobre a natureza da alma e do intelecto começa com Tales. Ele pensava (segundo Aristóteles) que «tudo está cheio de deuses» e que o amante tem uma alma50. A segunda afirmação sugere que a alma é uma aptidão para mover as coisas que mais convêm, mas que ela nada nos ensina sobre a psicologia da alma humana. Com o pitagorismo, a alma torna-se o lugar do «si». Encontram-se menções à reincarnação como doutrina pitagórica em Xenófanes, Empédocles e Íon de Quios51, bem como em duas passagens de Heródoto52. Para além de duas menções obscuras em Heraclito, é esse o essencial das fontes antigas sobre Pitágoras53. Em Empédocles, no século V, a reincarnação figura igualmente em primeiro lugar. Este último instituiu os quatro elementos54, movidos pelo amor e o ódio55, bem como a ideia de selecção natural56. Com efeito, ele é autor de uma narrativa cosmológica, mas essa narrativa está ligada a uma outra que trata da causa intencional e das escolhas que fazem os seres inteligentes. A alternância do «amor» e do «ódio» não é somente uma metáfora. Em Empédocles, os «elementos» são também deuses ou espíritos (daimones), que experimentam atracção ou repulsão uns pelos outros, ou seja que amam ou

odeiam. Uma célebre passagem descreve os espíritos exilados longe do deus e condenados a vaguearem pelo mundo, incarnados em diferentes meios elementares, durante trinta mil estações. Esse exílio é a punição de um crime, porventura o assassinato57. Isso concorda com a maneira como Empédocles condena o sacrifício e o consumo da carne, considerados pecados por os animais serem a reincarnação dos seres queridos58. As obras de Empédocles reúnem análises científicas (sobre a sensação e a respiração, por exemplo59) e explicações profundamente religiosas (sobre o nosso lugar no mundo e os meios de obtermos a nossa salvação). A questão de saber se o conjunto desses ensinamentos pertence a um único poema ou antes a dois (sendo um deles científico, e o outro moral e religioso) continua em disputa. Esta controvérsia foi reavivada, nos anos 1990, pela descoberta de um papiro fragmentário, que junta novos elementos aos que até aí nos ofereciam duas tradições distintas de testemunhos antigos60. Concluiremos esta secção recordando a existência das teses de Anaxágoras e de Diógenes de Apolónia sobre o papel cósmico da alma, bem como o contributo de Demócrito em prol de uma explicação materialista da percepção e do conhecimento. O pensamento político e ético Diz-se muitas vezes que a ética foi inventada por Sócrates, mas semelhante afirmação não faz justiça aos pré-socráticos. A maneira como se deve viver já era objecto de estudo para Pitágoras, cuja hetaireia foi, durante pelo menos vinte anos, o primeiro partido político em Crotona. Segundo a tradição, os pitagóricos renunciaram à vida política após o incêndio do seu quartel-general cerca do ano 500 a.C.61; mas, ao longo de todo o século VI, os governantes de Crotona parecem efectivamente ter sido aqueles que haviam adoptado o «modo de vida pitagórico». Sem dúvida, era possível abraçar tal «modo de vida» em diferentes graus. Mais tarde, distinguiram-se duas maneiras de se ser pitagórico: segundo Jâmblico, podia-se pertencer aos acousmatici ou aos mathematici62. O critério de distinção era o estudo da matemática e das ciências exactas, que estava reservado aos mathematici. Os acousmatici adoptavam uma atitude devota em relação à palavra de Pitágoras, e recitavam uma lista de fórmulas obscuras, bem como instruções, entre as quais: «não remexas o fogo com uma faca», «apaga a marca da marmita nas cinzas»; «não uses anel», «cospe sobre os teus

despojos de cabelos ou de unhas»63; ou ainda enigmas deste tipo: «Pergunta: que são as Ilhas dos Bem-Aventurados? Resposta: o Sol e a Lua»; «P.: o que é o mais justo? R.: oferecer um sacrifício»; «P.: Qual é a coisa mais sábia? R.: o número»64. O papel destas fórmulas não era muito claro na época a que as nossas fontes as atribuem. Certos autores falam, a propósito delas, de «sumbola» ou de penhor; talvez servissem como palavras de passe que permitissem aos membros da mesma sociedade secreta reconhecerem-se. Uma dessas fórmulas é a que pronuncia a célebre interdição de consumir favas. Já desde a Antiguidade, inquiria-se se ela deveria ser entendida literalmente, se se trataria de uma forma de proibição sexual, ou ainda de uma prevenção contra a actividade política65. Como vimos, os argumentos de Empédocles acerca da reincarnação, contra o consumo da carne ou das favas, são da mesma laia66. É toda uma outra tradição a que surge nos fragmentos éticos que circulam sob o nome de Demócrito. Estes textos definem a vida boa como um estado de quietude da alma, sendo esta última uma realidade material, afectada pelos átomos que a rodeiam67. Demócrito antecipa assim a procura da «tranquilidade», por meio de prazeres moderados, que iremos encontrar nos atomistas posteriores da escola epicurista. Certos intérpretes detectam aqui uma semelhança entre Demócrito e Sócrates, nomeadamente por ambos sustentarem que é vantajoso ser-se bom, mas trata-se de argumentos que em Demócrito permanecem alusivos, talvez por as nossas fontes continuarem a ser fragmentárias. A época dos principais sofistas, que abrange igualmente o período durante o qual viveu o verdadeiro Sócrates, é sobretudo a do debate ético. Os sofistas eram professores itinerantes, que ofereciam as suas lições privadas a jovens empenhados em desenvolverem uma carreira política ou profissional. Uma das missões deles era a de ensinar ao aluno como levar a melhor nos debates, pelo que mestres como Górgias e Pródico inscreviam no seu programa o domínio da linguagem. O debate sobre o costume e a natureza (o nomos contra a phusis), que se desenvolve na obra de Protágoras, de Antifonte, o Sofista e de algumas das personagens descritas por Platão (Cálicles e Trasímaco), era de ordem meta-ética: será a moral mais do que uma convenção humana? Deveremos viver em conformidade com ela? Deveremos pelo contrário seguir as leis da natureza? Os sofistas pertencem a uma época de intensa actividade intelectual e cultural. Temas semelhantes surgem na tragédia (nomeadamente em Sófocles), na comédia e na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides. Ao que

parece, na segunda metade do século V, a filosofia estava bem nascida e exercia já uma influência considerável na vida intelectual, cultural e política das cidades gregas, particularmente de Atenas. Facilmente se compreende como, num tal contexto, os sofistas podiam ganhar a vida ensinando a filosofia a jovens ávidos de ideias inovadoras, mas também como o povo ateniense se inquietaria com a possibilidade de esse livre-pensamento vir a corromper os modos e os comportamentos dos jovens. Tal inquietação constitui o nexo das Nuvens, a comédia de Aristófanes; está na origem da condenação de Anaxágoras por impiedade, cerca de 450, e, sem dúvida, do processo que levou à execução de Sócrates, em 399. Eis, não sem ironia, o reverso da medalha que celebra o modo como a filosofia atingiu a sua maturidade, e como ela desde então exerce uma influência real sobre as pessoas vulgares. CATHERINE OSBORNE 1 Por exemplo no seu tratado Do Céu, 294a 28-31. 2 Xenófanes, fragmento 16. 3 Homero, Ilíada, XXI, 194-197. 4 Ibid., VII, 422. 5 Hesíodo, Teogonia, 720-725. 6 Aristóteles, Metafísica, A, 3, 983b 18-27. 7 Id., Da Alma, 405a 19-21. 8 Proclus, Comentário aos Elementos de Euclides, 352. 14-18 (DK 11A20); ver 157.10; 250.20; 299.1. 9 Heródoto, I 75 (DK 11A16), I 74 (DK 11A5). 10 Id., I 170; Diógenes Laércio, I 24. 11 Diógenes Laércio, I 24. 12 Simplício, Comentário à Física de Aristóteles, 24.13 (DK 12A9). 13 DK 12B1. 14 Hipólito, Refutação de Todas as Heresias, I.6.3 (DK 12A11). 15 Ibid. I.6.5 (DK 12A11).

16 Ibid., I.7.6 (DK 13A7). 17 DK 13A20. 18 Simplício, Comentário à Física de Aristóteles, 24.26 (DK 13A5). 19 Hipólito, Refutação de Todas as Heresias, I.7 (DK 13A7). 20 Plutarco, O Princípio do Frio, 7, 947F (DK 13B1). 21 DK 59B17. 22 DK 59B6. 23 DK 59B1, B12. 24 DK 59B11, B12. 25 Simplício, Comentário à Física de Aristóteles, 42.10-11 (DK 68A47). 26 Diógenes Laércio, Vidas, 9, 31 (DK 67A1). 27 Ver DK 64B5. 28 DK 21B26 e 25. 29 Ver DK 21B35 e B18. 30 Jâmblico, Vida de Pitágoras, 248-249 (DK 14.16). 31 W. Burkert, Weisheit und Wissenschaft. Studien zu Pythagoras, Philolaos und Platon, Nuremberga, H. Carl, 1962. Cf. a tradução inglesa por E. L. Minar, Love and Science in Ancient Pythagoreanism, Cambridge, Harvard University Press, 1972. 32 Sexto Empírico, Contra os Sábios, 7. 94-96. Hipólito, Refutação de Todas as Heresias, VI, 23. 33 C. Huffman, Philolaus of Croton (Cambridge, Cambridge University Press, 1993). 34 Cf. D. W. Graham, «Heraclitus and Parménides», in V. Caston e D. W. Graham (eds.), Presocratic Philosophy: Essays in Honour of Alexander Mourelatos, Aldershot, Ashgate, 2002; A. Nehamas, «Parmenidean Being/Heraclitian Fire», in Presocratic Philosophy: Essays in Honour of Alexander Mourelatos, op.cit.; C. Osborne, «Was there an Eleatic Revolution?», in R. Osborne e S. Goldhill, Rethinking Revolutions, Cambridge, Cambridge University Press, 2006. 35 Em B1. 36 B6.9. 37 B7.5. 38 B14.

39 DK 22B91. 40 DK 22B12. 41 DK 22B49a. 42 DK 22B1. 43 DK 22B60. 44 DK 22B61. 45 DK 22B57. 46 DK 22B110. 47 En B2. 48 B8. 49 Os textos principais são DK 68B8, B9, B11 e B125. 50 Aristóteles, Da Alma, 405a19; Diógenes Laércio, I 27. 51 DK 21B7, 31B129, 36B4. 52 Heródoto, II, 123 e IV, 95 (DK 14.1 e 14.2). 53 DK 22B40, 22B129. 54 DK 31B6, 31B21. 55 DK 31B17. 56 DK 31B57-61; Aristóteles, Física, 198B29; Simplício, Comentário à Física de Aristóteles, 371.33. 57 DK 31B115. 58 DK 31B136 e B137. 59 DK 31B84, B88, B89 e B100. 60 A. Martin e O. Primavesi, L’Empédocle de Strasbourg. Introduction, édition et commentaire, Berlim, de Gruyter, 1999. 61 Jâmblico, Vida de Pitágoras, 248.8-251.3 (DK 14A6). 62 Idem, 81-6 (DK 18.2; 58C4). 63 Extractos de Jâmblico, Protréptico, 21 (DK58C6).

64 Extractos de Jâmblico, Vida de Pitágoras, 82 (DK 58C4). 65 Diógenes Laércio, Vidas, VIII 4-5 (DK 14.8). 66 DK 31B141. 67 DK 68B189, B191 e B235.

Platão

Platão (428-348), que pertencia a uma família ateniense de alta linhagem, é antes de mais um escritor que ainda hoje se lê com prazer. As suas primeiras obras foram constituídas pela narrativa – sob a forma de diálogo, e para que se conservasse a sua memória – dos episódios da vida e da morte do seu mestre Sócrates, essa personagem inclassificável que, além de Platão, atraía para junto de si personagens tão diferentes quanto Alcibíades, Xenofonte e Antístenes. Para compreender o Oráculo de Delfos que respondera negativamente à pergunta «Há alguém mais sábio que Sócrates?», Sócrates percorre as ruas de Atenas e refuta todos aqueles que pretendem possuir um saber: homens políticos, poetas ou artesãos. Tal prática apresenta um desenvolvimento lógico determinado: o respondente defende uma tese, e depois Sócrates consegue que esse respondente lhe conceda uma certa quantidade de proposições que contradizem a tese de partida. E como o verdadeiro saber exige que se diga sempre a mesma coisa sobre os mesmos assuntos, aquele que sobre um dado assunto mantém declarações contraditórias revela a sua ignorância. É muito provavelmente o descontentamento dos notáveis de Atenas que explica o processo e a condenação à morte, em 399, de um Sócrates que, pelo seu lado, considerava tal envergonhamento salutar, na medida em que permitia denunciar os falsos saberes que haviam sido admitidos pela alma de um ou de outro. Mas, diálogo após diálogo, o pensamento de Platão aprofunda-se, e deixa aflorar um novo modo de pensamento, que ele é o primeiro a chamar «filosofia». Platão defende uma doutrina filosófica que se caracteriza por uma dupla inversão. Primeira inversão: as coisas percebidas pelos sentidos, entre as quais vivemos, não passam de imagens das realidades inteligíveis separadas, ou Formas, que são os modelos das coisas sensíveis e constituem a verdadeira realidade; diferentemente das coisas sensíveis, as Formas possuem em si o seu princípio de existência. Segunda inversão: o homem não se reduz ao seu corpo, e a sua verdadeira identidade coincide com aquilo que designamos pelo termo «alma». Este último justifica, não somente no homem, mas também no universo, todo o movimento material (crescimento, locomoção, etc.) ou

imaterial (sentimentos, percepção sensível, conhecimento intelectual, etc.). É esta dupla inversão que, ao longo de toda a história da filosofia, permite definir a especificidade do platonismo, e justifica as posições de Platão nos domínios da epistemologia, da ética e da política. O inteligível Platão propôs a hipótese da existência de realidades inteligíveis, simultaneamente distintas das coisas sensíveis e em relação com estas. Não se trata, no caso, de um gesto paradoxal destinado a fazer crer que seria possível a um pequeno número de privilegiados refugiarem-se num alhures ideal; ela explica em que é que este mundo, onde tudo está em constante mudança, oferece não obstante suficiente permanência e estabilidade para que o homem o possa conhecer, falar dele e agir nele. Convencido de que essa estabilidade e essa permanência não se poderiam encontrar no sensível, Platão declarou que deveria existir uma realidade de outro tipo que respondesse a tais exigências, e que explicasse porque, em toda essa mudança, há algo que não muda. A hipótese da existência de Formas separadas das coisas sensíveis é efectivamente admitida nos diálogos, nomeadamente a partir do Fédon68. Ela constitui até o objecto de uma obra que se baseia na distinção entre intelecto e opinião69. Se distinguirmos no ser humano duas faculdades cognitivas distintas, teremos de admitir a existência dos seus respectivos objectos, que deverão pertencer a níveis de realidade diferentes: o sensível e o inteligível. As coisas sensíveis devem no entanto manter alguma relação com as formas inteligíveis que orientam a acção do homem, asseguram a organização da cidade e se situam até, segundo o Timeu, no princípio do universo. Essa relação é assemelhada a uma imitação, pois o sensível mantém com o inteligível a relação que a cópia tem para com o modelo. No quadro dessa relação, o inteligível tem o papel de causa e o sensível o de efeito. Por conseguinte, a relação entre sensível e inteligível não é simétrica, pois para a sua existência e para a sua constituição o sensível depende do inteligível, o qual, por seu turno, existe em si. Somente o reconhecimento desta assimetria, indissociável de uma separação radical entre o sensível e o inteligível, permite escapar às consequências do argumento do «terceiro homem», o qual implica a existência de um termo que englobe o sensível e o inteligível, e assim sucessivamente até ao infinito. Sendo imagens delas, as coisas sensíveis devem assemelhar-se às formas

inteligíveis. Mas a noção de semelhança tem um duplo aspecto: ela implica ao mesmo tempo conformidade e disparidade. No Timeu, é a intervenção do demiurgo que assegura a conformidade das coisas sensíveis às Formas de que elas participam; e é a khôra, ou «meio espacial», que dá conta da disparidade delas em relação às Formas. Todas as coisas sensíveis, que delas são feitas, ali aparecem múltiplas e distintas e ali se transformam70. Se Timeu pode dizer da khôra que «ela participa do inteligível de uma forma particularmente desconcertante», isso não significa que haja uma forma inteligível da khôra, mas que esta apresenta diversos aspectos que a aparentam ao inteligível; é um princípio, é imutável, não é perceptível pelos sentidos, etc. No Timeu, Platão distingue portanto não dois, mas três géneros: para além das formas inteligíveis e das coisas sensíveis, ele evoca a existência da khôra, na qual se acham as coisas sensíveis e a partir da qual elas são constituídas71. A alma Na tradição que Platão conhece e que remonta pelo menos à Ilíada e à Odisseia, a questão da «interioridade» humana transforma-se, mas não de maneira radical. Ela passa do corpo para uma entidade quase corpórea, sempre ligada a um elemento corpóreo. Essa entidade quase corpórea é a alma, que se encontra no interior do corpo segundo duas modalidades: como seu motor e como seu hóspede provisório. O interesse da posição de Platão prende-se com o facto de, na sua representação da alma, esses dois modelos se acharem associados. O modelo da alma ligada ao corpo que ela anima a partir do interior impõe-se sempre que se fala de seres vivos, ao passo que o modelo de alma como hóspede temporária de um corpo aparece sempre que se evoca a reincarnação. Convém ainda situar esta posição num determinado contexto filosófico. A alma, definida como «origem e princípio de movimento para tudo o que é movido72», pode ser associada a um corpo que ela anima e para o qual ela procura um movimento espontâneo, estabelecendo assim uma oposição entre vivo e não vivo. Além disso, ela é invisível porque se situa num nível intermédio entre o sensível e o inteligível, como dá a entender Platão em duas passagens do Timeu em que se encontra descrita a mistura de onde todas as almas brotaram: a alma do mundo, as dos deuses, dos demónios, dos homens ou dos animais73. E como o invisível e o imaterial andam a par, compreende-se que a alma possa exercer essa actividade imaterial que é o conhecimento, quer

se trate de perceber as coisas sensíveis ou de captar as realidades inteligíveis. Por outro lado, a alma não se reduz a um processo ou a uma actividade; é uma entidade autónoma que, enquanto hóspede provisória de um corpo, tem uma personalidade e uma história. Deve portanto levar-se a sério a «descrição» da mistura obrada pelo demiurgo no Timeu74 e da qual provêm a alma do mundo e a alma dos outros seres vivos, pois, para que seja possível um sistema retributivo como o que é proposto por Platão, é preciso que uma entidade autónoma subsista após a morte, quando a alma se separa do corpo, e que essa entidade passe de um corpo a um outro, em função da qualidade da sua existência anterior num corpo. Para Platão, é portanto a alma o que de mais precioso há no homem – nomeadamente quando ela exerce a sua função mais elevada –, que permite definir o que determinado homem é verdadeiramente. Contudo, o corpo mantém relações muito fortes com a alma cuja qualidade ilustra. Os corpos Como foi fabricado o corpo em que vive a alma? Se estimarmos que uma cosmologia deve propor uma representação simples mas coerente e rigorosa do universo, cujas propriedades surjam como as consequências logicamente deduzidas de um conjunto limitado de pressupostos, então o Timeu de Platão representa uma verdadeira cosmologia, a primeira efectuada com o auxílio da linguagem matemática, e não somente da linguagem vulgar, como é o caso em Aristóteles, por exemplo. Conformando-se a uma opinião tradicional, que remonta provavelmente a Empédocles e se iria perpetuar até ao século XVIII, Platão toma por adquirido que o corpo do universo foi fabricado exclusivamente a partir de quatro elementos: o fogo, o ar, a água e a terra75. Mas vai muito mais longe. Por um lado, avança um argumento matemático para justificar o número desses elementos. Por outro lado, está consciente de dar provas de uma grande originalidade76 ao estabelecer uma correspondência entre esses elementos e os quatro poliedros regulares, ou seja ao transpor em termos matemáticos o conjunto da realidade física e as mudanças que o afectam. Com efeito ele associa o fogo ao tetraedro, o ar ao octaedro, a água ao icosaedro e a terra ao cubo. Estes quatro poliedros são por seu turno construídos a partir de dois tipos de superfícies, elas próprias resultantes de dois tipos de triângulos rectos: o triângulo isósceles, que é a metade de um

quadrado, e o triângulo escaleno, que é a metade de um triângulo equilátero de lado x. Estes dois triângulos rectos elementares entram na construção de dois tipos de superfície, o quadrado e o triângulo equilátero: um quadrado resulta da reunião de quatro triângulos isósceles77; e um triângulo equilátero da reunião de seis triângulos escalenos78. Os triângulos equiláteros servem para construir esses três poliedros regulares que são o tetraedro79, o octaedro80 e o icosaedro81, associados respectivamente ao fogo, ao ar e à água. Por outro lado, seis quadrados servem para constituir o cubo82 associado à terra. Todas as propriedades dos poliedros a que estão associados os quatro elementos permitem explicar matematicamente a transformação dos três primeiros elementos entre si. No corpo do mundo, que apresenta o aspecto de uma gigantesca esfera – uma vez que, enquanto cópia de um original perfeito, também esse corpo deve ter a forma mais perfeita, e portanto a mais simétrica –, os elementos repartem-se em quatro camadas concêntricas, entre as quais há intercâmbio: o fogo encontra-se na periferia, depois vêm o ar, a água e a terra, no centro. Entre os corpos, alguns podem mover-se por si mesmos – são os vivos – e outros não. Entre os vivos, devem contar-se os deuses, além do mundo, dos demónios, dos homens, dos animais e das plantas. É no anel ocupado pelo fogo que se encontram os corpos celestes regidos por um sistema astronómico83 que apresenta uma espantosa simplicidade, pois baseia-se exclusivamente em movimentos circulares cuja regularidade é determinada por três tipos de relações matemáticas: geométrica, aritmética e harmónica. A extraordinária complexidade dos movimentos que afectam todos os corpos celestes acha-se reduzida a dois elementos de ordem matemática: círculo e relação matemática. E, muito naturalmente, é o movimento da esfera do mundo sobre si mesma que explica todos os movimentos relativos às trocas entre os elementos, que passam de uma camada concêntrica para uma outra e por vezes se transformam até uns nos outros: a água no ar, o ar em fogo, e vice-versa. A epistemologia A divisão de ordem ontológica entre modelos que constituem a realidade verdadeira e cópias que só comportam uma realidade derivada implica uma distinção estritamente paralela ao nível do conhecimento e do discurso, como se constata ao ler Timeu, onde o intelecto, que tem por objecto as formas inteligíveis, se opõe à opinião verdadeira, a qual tem por objecto as coisas

sensíveis percebidas pelo corpo84. E esta oposição de ordem epistemológica e argumentativa vê-se ainda apoiada por esta outra, de ordem sociológica: «[na opinião verdadeira] todo o homem toma parte, há que dizê-lo, enquanto na intelecção são os deuses [que tomam parte] e, entre os homens, uma pequena classe apenas85». Essa muito pequena classe de homens é evidentemente a dos filósofos. Este paralelo entre realidade, conhecimento e discurso é ilustrado n’A República por meio de uma linha:

A linha comporta duas secções principais: uma representando o que releva dos sentidos, a outra o que releva do intelecto. A descrição da secção inferior da linha86, aquela que corresponde ao sensível e portanto à sensação, compreende por seu turno duas partes; uma representa as coisas sensíveis e a outra as imagens dessas coisas. Essas duas realidades, que fazem intervir a noção de claridade visual, não se distinguem portanto senão pelo seu estatuto ontológico: de um lado as coisas sensíveis e do outro as suas imagens. Mas enquanto a parte mais baixa da secção inferior (imagens, reflexos, etc.) é descrita de forma assaz exaustiva, a outra parte não é objecto de um inventário completo; só são levados em consideração os viventes e os produtos artesanais fabricados pelo homem. A secção superior da linha comporta, também ela, duas partes, uma correspondendo ao domínio da matemática, a que se liga o pensamento discursivo (dianoia), e a outra ao das Formas, que são objectos do intelecto (nous). O domínio do pensamento discursivo (dianoia) equivale ao da dedução considerada como um sistema formal axiomatizado. A partir de proposições tidas como válidas a priori, procura-se deduzir, aplicando as regras da inferência, pouco numerosas e admitidas por todos, proposições verdadeiras chamadas «teoremas». Ainda que se não possa atribuir um estatuto particular às realidades matemáticas ou geométricas enquanto tais, é forçoso admitir que

o estudo destas permite à alma ascender do sensível ao inteligível, pois a estrutura geométrica dos elementos e as relações matemáticas que eles mantêm entre si permitem asseverar a presença do inteligível no sensível. Pelo seu lado, as Formas são objectos da dialéctica que, por meio do processo de reunião, ascende primeiramente de Forma em Forma, em direcção ao Bem, e depois, por meio do processo de divisão, torna a descer de Forma em Forma para atingir uma definição embora se mantenha no domínio do inteligível87. A dialéctica, assim compreendida, descreve portanto as relações que as Formas mantêm entre si; ela permite de certo modo traçar o mapa do domínio do inteligível. E suscita a evidência que, quando a actividade intuitiva do intelecto (nous) se liga às Formas e finalmente ao Bem, serve de fundamento ao processo dedutivo. Embora continue a ser impossível definir o que é uma Forma para Platão, por este meio consegue-se discernir qual o papel que lhe é atribuído. A ética Nesta perspectiva, é a sua alma e não o seu corpo que constitui o que de mais importante há para o homem; a alma é o que um homem tem de próprio. É pela sua alma, que lhe concede uma certa imortalidade, que o homem se pode assemelhar a deus, característica totalmente estranha à anterior tradição grega baseada na oposição entre mortais (homens) e imortais (deuses). É este princípio que vai governar a ética e a política em Platão. Se considerarmos a moral como um sistema de comportamentos admitidos e encorajados numa sociedade, podemos definir a ética como a avaliação racional da moral. Uma tal definição supõe portanto que, nessa sociedade, certos comportamentos são admitidos e favorecidos, e outros interditos e condenados; este sistema implica a ideia de sanção. Porquê adoptar tal comportamento admitido, ou pelo contrário privar-se de um outro que é condenado? Porque daí resultará para o agente, cujo fito é atingir a excelência (aretê), uma vantagem ou inconveniente num dado plano. A avaliação e a sanção não dependem porém de si mesmas, pois implicam uma representação prévia do que é um ser humano. É para dar conta da relação dessa alma imortal com um corpo perecível que Platão, a partir d’A República, distingue na alma três espécies, cuja primeira é imortal em si, ao passo que as duas restantes só fruem da imortalidade na condição de o corpo que elas regem ser indestrutível. A espécie imortal da alma, o intelecto (nous), contempla as realidades inteligíveis de que as coisas

sensíveis são meras imagens. Por intermédio dela, o homem aparenta-se a um deus, ou antes a um daimôn. As duas outras espécies só são imortais em certas condições. Trata-se por um lado do ardor (thumos) que permite ao vivente mortal defender-se, e por outro do apetite (epithumia) que lhe permite assegurar a sua subsistência e a sua reprodução. Enquanto, no caso dos deuses – com corpo indestrutível –, elas podem ser ditas imortais, essas duas espécies são declaradas mortais quando se acham associadas a funções que permitam assegurar a sobrevivência do corpo sensível ao qual a alma está provisoriamente ligada. Mas, tal como o corpo que ela move, a alma do ser humano pode ser objecto de desregulamentos que não se devem a ela: embora ela conheça o bem, não consegue conformar-se a este. Tais desregulamentos devem portanto ter causas exteriores. Essas causas são em número de duas: o mau funcionamento do corpo88 e as más instituições que originam uma educação má89. Não se podem evitar as doenças da alma ou sará-las a menos que se aplique o duplo princípio seguinte. Instaurar uma justa proporção entre um corpo e uma alma aos quais se atribuirá exercício, tomando como modelo não só os movimentos da alma do mundo, mas também os do seu corpo. E velar no interior da alma por uma justa proporção entre as partes desta, atribuindo sistematicamente a preeminência ao intelecto90. O problema da responsabilidade da alma não pode ser adequadamente resolvido, na medida em que não se encontra em Platão uma vontade que, face à razão, frua de uma verdadeira autonomia. Esse problema não deixa de ser colocado, pois o Timeu conclui-se com a descrição de um sistema retributivo que supõe uma falta real e por conseguinte a consideração de uma certa responsabilidade91. Diferentemente das dos deuses e dos demónios, toda a alma humana é susceptível de passar pelos corpos de seres vivos diferentes, homem, mulher ou animal, em função da qualidade das suas vidas anteriores. Para evitar decair, ou para ascender na escala dos seres vivos, o ser humano deve guardar uma justa proporção entre o seu corpo e a sua alma: é esse o fito da educação. O intelecto deve igualmente permanecer dominante na alma. Ora, como esse intelecto não é mais do que um resíduo da alma do mundo, a contemplação das revoluções dos corpos celestes propiciar-lhe-á não só a ciência, mas um modelo de bom funcionamento92. Assim sendo, a contemplação do universo sensível constitui um preâmbulo indispensável à contemplação das formas inteligíveis, a única que permite determinar o valor moral de uma existência humana. Platão retoma aí uma

convicção de Sócrates que se baseia em dois postulados93: 1) O mal e o erro são indissociáveis; o reino do bem coincide com o da verdade, o qual se instala quando, no homem, domina o movimento do círculo do mesmo que é o lugar do conhecimento racional. 2) O desejo segue necessariamente o pensamento; eis porque é impossível desejar outra coisa senão o bem que se impõe à razão. Esta posição, igualmente posta na boca de Sócrates por Xenofonte94, encontrase em muitas passagens dos diálogos. Para lutar contra o mal que o homem não pode cometer cientemente e que em última análise resulta da ignorância, a melhor arma é a educação dispensada pela cidade boa. A política Para os contemporâneos, a política consiste em gerir os conflitos que nascem forçosamente numa comunidade onde os grupos tomam por bons diferentes objectivos. Platão, pelo seu lado, quer simplesmente eliminar o conflito (stasis) na cidade. A causa do mal na cidade, ou seja a causa de todo o conflito, externo ou interno, é a competição (agôn) que move a inveja ou o ciúme (phthonos) e que conduz à avidez (pleonexia), ou seja à ambição de ter sempre mais. No exterior, isso leva a cidade a querer incessantemente aumentar o seu território fazendo guerras sem cessar. E, no interior, leva cada cidadão a querer aumentar o seu domínio (oikos) invadindo o dos outros ou muito simplesmente apoderando-se destes pela astúcia ou pela violência: daí a guerra civil. Para fazer desaparecer todo o conflito, Platão ataca a causa última deste, a saber a família em sentido lato, o oikos, que abrange ao mesmo tempo uma população e o território em que vive essa família com os seus bens. N’A República, Platão proíbe aos guardiões – ou seja àqueles que devem manter a lei e a ordem e fornecer os dirigentes que são igualmente filósofos – a posse de qualquer bem que seja. E, mais fundamentalmente, recomenda que se atribua a esse grupo funcional a comunidade das mulheres e das crianças. Deste modo, uma família não poderá acumular as riquezas transmitindo-as de geração em geração. Enfim, os dirigentes saídos desse grupo serão escolhidos não em função da sua riqueza ou do seu poder, mas em função do seu saber. Uma vez que a ética e a política se fundam em última instância na ciência, entendida como conhecimento da realidade inteligível, as constituições propostas n’A República e n’As Leis insistem na necessidade de uma educação que toque não só os dirigentes mas também os cidadãos. Não se trata de

subordinar os esforços de uma cidade à criação de uma casta de intelectuais que se contentem em prosseguir os seus estudos, mas de utilizar a ciência possuída pelos melhores para modelar o corpo e a alma dos outros cidadãos; é por isso que, n’A República, aqueles que saíram da caverna (segundo a célebre comparação que descreve o homem ainda não educado como um prisioneiro acorrentado no fundo de uma caverna) são forçados a regressar a ela. Nesta perspectiva, pode dizer-se que a política é a prática de cuja ciência se faz a teoria. O que Platão repete n’A República, n’O Político e n’As Leis não é mais do que essa dupla necessidade: colocar à frente da cidade governantes sábios, que além do mais tenham por fito modelar o corpo e a alma dos outros cidadãos. E isto, em função da ciência que é a deles e que deve dirigir todas as outras, impondo regras estritas aos dois fundamentos da educação: o exercício físico (gumnastikê) e a cultura (mousikê), que asseguram o desenvolvimento harmonioso das duas partes de todo o ser. É para atingir esse fim que, no final do Livro III d’A República, Platão propõe uma organização na qual os indivíduos se repartem entre grupos funcionais hierarquizados, segundo a predominância neles de uma ou outra espécie de alma: intelecto, ardor ou apetite. O grupo mais numeroso, encarregado de assegurar a produção de alimentos e de riquezas, é composto por agricultores e artesãos. Este grupo é protegido por guardiões, os guerreiros encarregados de velarem pela manutenção da ordem no interior e no exterior da cidade. Na medida em que não podem possuir nem bens nem dinheiro, os guardiões estão completamente separados dos produtores, que, em troca da protecção recebida, devem alimentá-los e garantir a sua manutenção. É neste grupo funcional que é escolhida uma muito pequena quantidade de indivíduos destinados a uma educação superior e ao governo da cidade. N’As Leis, reencontra-se o mesmo projecto, mas num quadro ainda mais constrangedor, uma vez que as parcelas de terreno (klêroi) não são possuídas, mas administradas pelos cidadãos. A maneira como todos os cidadãos, libertados do trabalho e do negócio, participam na vida cívica, distingue As Leis d’A República. Aqui, Platão não separa os cidadãos em grupos funcionais: opta pela distinção de quatro classes censitárias, que agrupam os cidadãos segundo o seu património. Com a precisão notável de que a riqueza e a pobreza não podem exceder certos limites: o cidadão mais pobre nunca desfrutará de menos do que uma das 5040 parcelas do terreno cívico, e o mais rico nunca de mais de quatro vezes o valor de uma parcela95.

No primeiro livro d’As Leis encontra-se uma definição da lei como decreto comum da cidade (dogma poleôs), decisão tomada pela cidade após um cálculo racional e considerador dos sentimentos que são a confiança ou o temor, explicando-se respectivamente pela expectativa de dores ou de penas96. Esta definição, que subordina a moderação e até a coragem à razão, acha o seu fundamento numa outra definição da lei como «distribuição do intelecto» (tên tou nou dianomên), que atribui ao legislador uma dupla tarefa. Estabelecer uma ordem proporcional entre as faculdades da alma do indivíduo, o que significa fazer reinar o intelecto e fazer do cidadão um ser razoável que sabe dominar-se perante o prazer e a dor, perante a confiança ou o temor, e isso designadamente por meio da educação. Estabelecer uma ordem proporcional entre os cidadãos, assegurando o reino dos mais meritórios e dos mais virtuosos, ou seja daqueles que fazem melhor uso da faculdade mais elevada da sua alma, o intelecto (nous), sobre aqueles que o são menos, reservando-lhes as honrarias e as magistraturas. Ora, a legislação d’As Leis distingue-se de todos os outros códigos de leis gregas que chegaram até nós por um aspecto essencial, descrito no Livro IV: cada texto de lei que compreende a formulação da lei propriamente dita e um inventário das penas em que incorre aquele que não se submeter a elas é precedido por um preâmbulo destinado a persuadir cada cidadão, cujo comportamento teria sido previamente modelado nesse sentido, a obedecer à lei sem sequer pensar nela. Ora esses preâmbulos são por um lado mitos e por outro exortações retóricas que fazem intervir o elogio e a censura, com uma excepção porém: o Livro X, no qual se desenvolve uma demonstração destinada a convencer os jovens ateus, que não foram persuadidos nem pelos mitos nem pelas exortações retóricas. Mesmo se ela tem por auxiliar o mito, que desempenha um papel essencial no domínio da ética e no da política, é em definitivo à lei escrita que na cidade cabe o papel principal. Mas a própria lei escrita depende de um princípio superior, o intelecto (nous), representado na cidade pelo Colégio de vigília e agindo no universo como a alma do mundo, que dá regularidade e permanência à marcha dos corpos celestes. É aliás por esse fundamento na cosmologia que a ética e a política se unem. O homem, a cidade e o mundo constituem um conjunto comum onde intervém uma alma cuja actividade superior é guiada pela contemplação da realidade verdadeira. Em 387 a.C., no regresso da sua primeira viagem à Grande Grécia (sul de Itália) e à Sicília – onde se apresentou na corte de Dionísio, O Antigo, tirano de Siracusa, e travou conhecimento com Dion –, Platão estabeleceu a expensas

próprias a sua escola, a Academia, no parque do herói Academos. A Academia, que após a morte de Platão teve como primeiros chefes Speusipo e Xenócrates, conheceu rapidamente um grande sucesso, e depressa entrou em conflito com a escola de Isócrates, onde se ensinava sobretudo a retórica. Com Arcésilas de Pitano, que sucedeu a Crates em 268-264, a Academia tornou-se uma «Nova Academia». O epíteto «nova» justifica-se a vários títulos. Aí se recomenda a suspensão universal do juízo por oposição ao dogmatismo estóico, e o ensino permanece essencialmente oral, tomando assim o exemplo de Sócrates. No início do Império, fez-se sentir entre os platónicos a necessidade de um pensamento livre da interpretação estóica e aristotélica que havia conhecido Cícero, e mais religioso, centrado nos meios dados à alma humana para aceder a uma outra ordem, a do Deus cujas Formas são os pensamentos que organizam a matéria. E com Plotino, que instaura o Uno para além do ser, ou seja para além do Intelecto e do Inteligível, é inaugurada a última corrente de interpretação da doutrina platónica, o neoplatonismo, que durará até 529. Durante cerca de um milénio, os textos de Platão foram lidos, recopiados, meditados e cuidadosamente transmitidos por pessoas de alta cultura; eis o que explica a excepcional qualidade dos nossos manuscritos dos diálogos e a imensa difusão do pensamento platónico. LUC BRISSON 68 100c-d. 69 Timeu, 51d3-e6 70 Ibid., 52c2-d1. 71 Ibid., 51e6-52c1. 72 Fedro, 245c-d. 73 Timeu, 35a-b e 41d. 74 Ibid., 35a-b. 75 Ibid., 56b-c. 76 Ibid., 53e. 77 Ibid., 55b. 78 Ibid., 54d-e.

79 Ibid., 54e-55a, quatro triângulos equiláteros. 80 Ibid., 55a, oito triângulos equiláteros. 81 Ibid., 55a-b, vinte triângulos equiláteros. 82 Ibid., 55b-c, seis quadrados. 83 Ibid., 38c-39e. 84 Ibid., 51d-e. 85 Ibid., 51e. 86 A República, VI, 509e-510a. 87 Ibid., VI, 511b-c. 88 Timeu, 86b-87a. 89 Ibid., 87a-b 90 Ibid., 87c-89d. 91 Ibid., 90e-92c. 92 Ibid., 89d-90d. 93 Ibid., 86d-e. 94 Memoráveis, III, 94 e Iv, 6, 6. 95 As Leis, V, 744a-d. 96 Ibid., I, 644c-d.

Aristóteles

Aristóteles nasceu em Estagira, no Norte da Grécia, em 384 a.C. O seu pai, Nicómaco, era médico de Amintas III, rei da Macedónia. Em 367, aos dezassete anos de idade, Aristóteles entrou para a Academia de Platão, em Atenas, e aí ficou durante vinte anos. Foram os anos durante os quais escreveu diálogos (hoje em dia perdidos), segundo o modelo dos diálogos platónicos; os mais célebres são o Eudemo, sobre a imortalidade da alma, o Protréptico, pleito em favor da filosofia, e o diálogo Sobre a Filosofia, estudo dos primeiros princípios de todas as coisas. Escreveu igualmente um tratado Sobre o Bem, no qual expunha a doutrina dos princípios que Platão havia apresentado oralmente à Academia, bem como um tratado Sobre as Ideias, que retomava a doutrina platónica das Ideias e procedia à sua crítica. Destas obras restam somente fragmentos, constituídos por citações ou excertos retomados por autores mais tardios. É provável que Aristóteles tenha dado, na Academia, cursos de retórica e de dialéctica, dos quais se encontram vestígios nas partes mais antigas das obras conservadas. Aquando da morte de Platão (348), Aristóteles deixou a Academia e partiu para Assos, cidade grega da Ásia Menor, onde foi hóspede de Hermias, senhor de Atarneia, com cuja sobrinha Pítias se casou, e em honra do qual redigiu o Hino à Virtude. Dois anos depois, partiu para Mitilene, na ilha de Lesbos, onde, com o seu discípulo Teofrasto, se dedicou a investigações sobre os animais. Em 343 foi chamado pelo rei Filipe II da Macedónia para ser preceptor do seu filho Alexandre, para o qual escreveu os diálogos Sobre o Reino, bem como Alexandre ou a Propósito das Colónias, duas obras perdidas. É provável que tenha obtido, dos reis da Macedónia, privilégios a favor da cidade de Atenas; razão pela qual os atenienses erigiram mais tarde uma estela em seu nome. Na morte de Filipe, quando Alexandre decidiu a expedição contra a Pérsia que lhe valeu o título de Alexandre, o Grande, Aristóteles retornou a Atenas (334), onde fundou uma escola no jardim dedicado a Apolo Lício, e que por isso se chamou Liceu; nesse local existia também um espaço para deambular chamado peripatos, o que mais tarde permitiu usar a designação de escola

«peripatética». Na sua escola, Aristóteles deu cursos de dialéctica, de física, de filosofia primeira, de ciência política, de retórica e de poética: deve acrescentar-se ainda que esteve na origem de uma recolha de 158 constituições e de obras que reuniam outros materiais. Em 323, aquando da notícia da morte de Alexandre na Pérsia, Aristóteles foi acusado de insultar as crenças religiosas e, para escapar ao processo, deixou Atenas e partiu para Cálcis, na ilha de Eubeia, onde morreu em 322. Aristóteles nunca publicou por si mesmo os textos dos seus cursos; estes só foram editados mais tarde, na segunda metade do século I a.C., por Andrónico de Rodes, provavelmente em Roma. Esses textos constituem o corpus aristotelicum, e chegaram até nós através da tradição manuscrita. Esse corpus compreende obras: – de lógica (Categorias, Da Interpretação, Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Tópicos, Refutações Sofísticas); – de física (Física, Do Céu, Da Geração e da Corrupção, Meteorológicos); – de psicologia (Da Alma, Pequenos Tratados de História Natural); – de biologia (História dos Animais, Do Movimento dos Animais, Da Marcha dos Animais, Das Partes dos Animais, Da Geração dos Animais); – de filosofia primeira (Metafísica); – de ética (Ética a Nicómaco, Ética a Eudemo, Grande Moral); Devem acrescentar-se ainda as obras seguintes: Política, Retórica, Poética. Por fim, convém mencionar a Constituição dos Atenienses, que chegou até nós num papiro e cujo autor foi Aristóteles. Lógica e dialéctica Aristóteles é considerado o inventor da lógica, compreendida como a ciência que estuda as leis do pensamento (logos). Foi com efeito este o nome que foi dado à doutrina por ele exposta nas obras que a tradição reúne na compilação intitulada Organon, ou seja «instrumento», considerando que a lógica é um instrumento utilizado pelas diferentes ciências. Primeira obra, o tratado das Categorias distingue as realidades que existem em si mesmas, por exemplo o homem, daquelas que existem noutras realidades, como o branco; Aristóteles chama às primeiras «substâncias» e às segundas «acidentes». Entre as substâncias, Aristóteles distingue seguidamente as «substâncias primeiras», que são os sujeitos individuais, por exemplo um dado homem, e as «substâncias segundas», que são as espécies universais de que fazem parte os sujeitos, tais

como o homem em geral, ou os géneros de que fazem parte tais espécies, como por exemplo o animal. As espécies e os géneros são os «predicados» dos indivíduos, no sentido em que indicam as características gerais destes. As substâncias primeiras são a condição de existência de todas as coisas, quer se trate das substâncias segundas ou dos acidentes. Elas não têm nem contrário, nem graus, mas, em momentos diferentes, podem acolher acidentes contrários. Na categoria dos acidentes, há igualmente indivíduos (por exemplo um certo branco) e universais (por exemplo o branco em geral, ou a cor). Enquanto as substâncias pertencem ao género supremo chamado justamente «substância» (ousia), os acidentes comportam nove outros géneros, que são: a quantidade, a qualidade, a relação, o lugar, o momento, a posição, a possessão, a acção e a paixão. Estes dez géneros supremos são chamados «categorias», ou seja tipos de predicados. No tratado Da Enunciação (De interpretatione), Aristóteles afirma que as palavras, que formam a linguagem, são os signos convencionais dos conceitos ou, mais geralmente, que eles são conteúdos do espírito, sendo estes por seu turno imagens das coisas: entre a linguagem, o pensamento e a realidade existe portanto uma relação de significação. As palavras principais são os nomes e os verbos; a reunião delas constitui a proposição ou logos (tendo o nome a função de sujeito e o verbo a de predicado). A proposição pode enunciar um estado de coisas ou não passar de expressão, como é o caso da oração. A proposição enunciativa pode ser uma afirmação, quando liga dois nomes, ou uma negação, quando os separa. Além disso, pode ser verdadeira ou falsa: é verdadeira quando liga palavras que indicam coisas realmente ligadas ou quando separa palavras que indicam coisas realmente separadas; a proposição é falsa quando estabelece o contrário. A afirmação e a negação do mesmo predicado a propósito do mesmo tema constituem a contradição: elas não podem ser ambas verdadeiras ao mesmo tempo (princípio da não-contradição), mas é necessário que uma das duas seja verdadeira e a outra falsa (princípio do terceiro excluído). As proposições podem também ser universais, quando têm um tema universal (por exemplo, todos os homens), ou particulares quando têm um tema particular (por exemplo, um dado homem). Nos Primeiros Analíticos, Aristóteles expõe a sua famosa descoberta do «silogismo» (dedução): trata-se de um raciocínio segundo o qual duas proposições universais, chamadas «premissas», conduzem necessariamente a uma terceira proposição chamada «conclusão». Por exemplo: se todos os homens são mortais (premissa maior, ou seja a mais universal) e se todos os

atenienses são homens (premissa menor), então todos os atenienses são mortais (conclusão). Vemos que as duas premissas têm um termo em comum, qualificado de «médio», que ocupa – no esquema mais simples – a função de predicado na premissa maior e de sujeito na premissa menor. Os dois outros termos, qualificados de «extremos», constituem a conclusão. Se as premissas são particulares e a conclusão geral, já não se trata de uma dedução, mas de uma indução (epagogê); porém, em tal caso, a conclusão não decorre necessariamente das premissas. Nos Segundos Analíticos, Aristóteles examina um tipo particular de silogismo, chamado silogismo científico ou demonstração. É o caso quando as premissas são verdadeiras e delas deriva necessariamente uma conclusão: essa conclusão é necessariamente verdadeira. Quando as premissas da demonstração são primeiras (não sendo a conclusão de outras demonstrações), chama-se-lhes então «princípios». Os princípios são de dois tipos: particulares, quando concernem realidades de natureza particular, formando o objecto de uma ciência particular (por exemplo os números, no caso da aritmética, e as grandezas, no caso da geometria). Os princípios podem igualmente ser gerais, quando concernem diversos tipos de objectos (por exemplo o princípio segundo o qual «ao subtrair partes iguais de objectos iguais se obtêm objectos iguais»). Tais princípios são também chamados «axiomas». Os princípios comuns a todas as ciências são o princípio da não-contradição e o do terceiro excluído. Pode demonstrar-se igualmente uma tese ao deduzir de premissas verdadeiras uma conclusão que contradiga a proposição inversa àquela que pretendemos demonstrar. Nesse caso, trata-se de uma demonstração por absurdo. Nos Tópicos, Aristóteles ilustra um outro tipo de silogismo a que chama silogismo dialéctico; as suas premissas são «endoxais» (endoxa), ou seja admitidas por todos, ou pela maioria, ou pelos peritos, ou pela maioria destes. Tais premissas não são verdadeiras em todos os casos, mas na maior parte deles. O silogismo dialéctico é assim chamado por ser o tipo de argumentação que se emprega nas discussões dialécticas, quando dois interlocutores debatem uma questão e um dos dois se esforça por refutar a tese defendida pelo outro. A refutação é um silogismo dialéctico cuja conclusão contradiz uma dada tese. Em geral, quem se opõe a uma tese visa, por perguntas apropriadas, conseguir que o seu interlocutor admita premissas endoxais, a partir das quais possa deduzir a conclusão que pretende. Os meios de obter tais premissas são os «locais» (topoi, daí o título do tratado), ou seja os tipos de argumentação que

cada um admite. Por fim, nas Refutações Sofísticas, Aristóteles ensina a desmascarar as refutações justas na aparência (visando em particular as que se baseiam, não em silogismos dialécticos, mas em silogismos erísticos ou sofísticos, ou seja que parecem decorrer de premissas endoxais ou têm a aparência de silogismos), mas que na realidade comportam um artifício (por exemplo uma homonimia). Física e cosmologia Segundo Aristóteles, a primeira forma de conhecimento do homem é a percepção dos objectos sensíveis, de onde proveio a recordação, e é graças a um conjunto de recordações do mesmo objecto que se constitui a experiência. Trata-se do conhecimento do «quê», ou seja do próprio estado das coisas. Quanto à ciência, ou filosofia, ela é o conhecimento do «porquê», ou seja das razões pelas quais as coisas se acham, necessariamente ou na maior parte dos casos, num dado estado. O primeiro objecto ou conjunto de objectos que Aristóteles procurou conhecer foi a natureza (phusis), ou seja o conjunto dos corpos em devir que possuem uma evolução totalmente autónoma; é aliás o que os distingue das produções da actividade humana, ou seja dos objectos artificiais. Aristóteles defende que os objectos podem relevar de quatro categorias de causas: as causas motrizes (o que produz a transformação de um objecto), as causas materiais (a matéria – hulê – de que um objecto é constituído), as causas formais (a forma – eidos ou morphê – que estrutura um objecto), e as causas finais (a finalidade – telos – em vista da qual um objecto existe ou se transforma). Na Física, Aristóteles mostra que é possível determinar as causas da natureza, e, por conseguinte, aceder a uma ciência da natureza, que é justamente a física. As causas materiais dos objectos naturais são, em última análise, os quatro elementos dos corpos terrestres: a água, o ar, a terra e o fogo, associados de diferentes modos segundo as formas dos objectos de que eles constituem a matéria. As causas formais são precisamente essas formas, ou ainda o modo segundo o qual os elementos nelas estão misturados; no caso dos corpos vivos (plantas e animais), a forma é a sua alma, ou seja a sua capacidade para viver. As causas finais são, para os seres inanimados, o seu «lugar natural» (a terra para os corpos pesados, o céu para os corpos leves); para os seres animados, as causas finais são a sua realização perfeita e a sua reprodução. As causas motrizes imediatas dos corpos naturais são diferentes segundo o tipo de

transformação que eles conheçam e Aristóteles distingue quatro: o movimento local ou translação, a alteração, o aumento e a diminuição, a geração e a corrupção. Em geral, a causa destas transformações é a própria natureza, enquanto princípio interno de movimento e de repouso; mas, por seu turno, a natureza está submetida à acção motriz suscitada pelo movimento dos céus (principalmente do sol, que determina a sucessão das estações e, por conseguinte, a alternância do calor e do frio). No tratado Do Céu (De caelo), Aristóteles explica que os céus são esferas concêntricas, no centro das quais se acha a esfera terrestre; a matéria delas é um elemento diferente dos elementos terrestres, graças ao qual elas não conhecem nem geração nem corrupção e permanecem eternas: o éter, ele próprio, não conhecendo geração nem corrupção e sendo eterno. Cada céu se desloca segundo um movimento circular, girando sobre si mesmo e deslocando na sua rotação os diversos planetas que a ele estão ligados. O movimento aparentemente irregular dos planetas explica-se (segundo a hipótese do astrónomo Eudoxo de Cnido, adoptada e parcialmente corrigida por Aristóteles) como resultado dos movimentos dos grupos de esferas, unidas pelos seus pólos mas girando sobre eixos diferentes. Deve ainda acrescentar-se que todos os céus estão englobados numa esfera extrema, que contém o universo inteiro; ela arrasta na sua rotação todos os outros céus e receberá mais tarde o nome de esfera das estrelas fixas. Cada movimento de rotação, definido como eterno, requer necessariamente uma causa motriz possuindo em si mesma uma potência infinita, não beneficiando de qualquer intervenção exterior, e sendo portanto ela própria imóvel: é a razão pela qual existem tantos motores imóveis (ou seja, substâncias imateriais exteriores aos próprios céus) quanto céus. O motor imóvel da esfera extrema é o primeiro motor imóvel; é ele que põe em movimento o universo inteiro, graças à esfera das estrelas fixas. Toda a transformação supõe um substrato, ou seja uma matéria subjacente, que passa de um estado sem forma (estado de «privação») a um estado em que possui uma forma, quer se trate de um lugar (movimento local ou translação), ou de uma qualidade (alteração), de uma dimensão (aumento e diminuição), ou ainda da forma de uma nova substância (geração e corrupção). Aristóteles chama «potência» (dunamis) – por outras palavras, capacidade para tomar uma dada forma – à condição em que se encontra o substrato sem forma; chama «acto» (energeia ou entelekheia) à condição do substrato quando tomou uma forma; é por isso que a mudança se define igualmente como a actualização

(passagem ao acto) de uma potência. A matéria é constituída, em última análise, pelos quatro elementos terrestres; estes, por seu turno, transformam-se e passam de um estado a outro: a água transforma-se em ar sob o efeito do calor (evaporação) ou em gelo, que é sólido como a terra, sob o efeito do frio (congelação), e a terra transforma-se em fogo sob a acção do calor (combustão). Estas transformações significam que existe uma matéria comum aos quatro elementos terrestres, a que se pode chamar «matéria primeira», a qual não pode porém existir fora desses elementos. Em compensação, não existe uma forma única à qual se liguem todas as outras, nem finalidade única para a qual tendam todos os seres. Todos os seres tendem a realizar perfeitamente a sua própria forma. Aristóteles tem portanto uma concepção global da natureza que se pode qualificar como finalista, ou teleológica; mas essa concepção corresponde a um finalismo particular, não resultando da acção de uma inteligência externa e não implicando uma finalidade única e exterior. Pelo contrário, tal finalismo é devido à acção de um princípio inconsciente e interno, como a natureza justamente: é esse finalismo que se manifesta na tendência dos indivíduos vivos para se alimentarem e se reproduzirem, assegurando assim a perpetuação infinita da sua espécie. Psicologia e zoologia A parte da natureza mais estudada por Aristóteles é a que é formada pelos seres vivos, plantas, animais e homens. Estes seres têm em comum uma alma (psukhê), o que explica que esta ciência da alma (a que hoje em dia chamamos psicologia) faça parte da física; Aristóteles estuda-a no tratado Da Alma (De anima). Para ele, a alma não é uma entidade separada do corpo vivo; ela é na verdade a capacidade de viver própria de um corpo, ou seja a sua forma de estar vivo; ela é o «acto primeiro» da sua potencialidade de ser vivo, no sentido em que a possui efectivamente. A vida realiza-se segundo diferentes níveis de actividade (chamada mais tarde «acto segundo»). Estes níveis são, para as plantas, a nutrição e a reprodução, às quais se deve acrescentar para os animais o movimento e a percepção. Por fim, para os homens, os níveis compreendem igualmente o pensamento e as actividades conexas. Encontram-se portanto três categorias de alma: vegetativa, sensitiva, intelectiva. Porém, a categoria superior contém sempre, potencialmente, a categoria inferior; é por isso que há uma única alma em cada ser vivo, vegetativa nas plantas, nutritiva nos animais (mas incluindo as funções da alma vegetativa), intelectiva nos homens (mas

incluindo as funções da alma vegetativa e as da alma sensitiva). Os seres vivos têm em comum a reprodução, que exprime a tendência de cada um para deixar atrás de si um outro ser semelhante a si, assegurando assim a perpetuação da espécie. Nos seres animados em geral, sub-humanos e humanos, a percepção (aisthêsis), ou conhecimento sensível, é a primeira forma de conhecimento possível; ela consiste na actualização da capacidade de perceber (própria de todo o órgão dos sentidos) e, simultaneamente, da possibilidade de ser percebido (própria de todo o objecto sensível). Esta actualização resulta da acção de uma causa já actuante, como por exemplo a luz para a visão ou a vibração do ar para a audição. Graças a ela, o órgão do sentido respectivo toma a forma do objecto mas não a sua matéria. É pela percepção e graças à imaginação (phantasia) que se forma a imagem (phantasma), conservada na memória enquanto recordação. Nos seres humanos, é pela imagem, ou pela recordação, que o intelecto (nous) assume a forma inteligível do objecto que nela está contido e da qual ele se apropria, no sentido em que a integra como forma própria, evidentemente sem matéria. É desta maneira que a alma intelectiva é o lugar de todas as formas inteligíveis. Também neste caso, a capacidade para se apropriar de uma forma, ou seja a intelecção, é simultaneamente a actualização da faculdade que permite compreender – própria do intelecto (por este motivo qualificado como potencial ou passivo) – e a da faculdade de ser compreendido – própria da forma. Ainda aí, a actualização deve resultar de uma causa já actuante, a que Aristóteles chama intelecto activo, ou produtivo; e por esse intelecto estar sempre actuante, ele parece separado da alma intelectiva, e eterna. Todavia, Aristóteles muito pouco diz a esse respeito para que se possa compreender se ele é individual e se, como tal, implica a imortalidade da alma intelectiva de cada homem. À capacidade de conhecer da alma, acrescenta-se a sua capacidade para desejar, ou desejo (orexis), tendo por objecto um bem que pode ser sensível, isto é particular, ou inteligível, isto é universal. Quando um bem inteligível é reconhecido como tal pelo intelecto, o desejo desse bem toma o nome de «vontade»; esse desejo leva o homem a apropriar-se desse bem, pela acção (praxis), e daí o qualificativo de «prático» que nesse caso se dá ao intelecto. Aristóteles dedicou uma atenção particular aos animais; descreveu a anatomia e a psicologia de cerca de cinco centenas deles, na História dos Animais, estudando as partes dos seus corpos na obra Das Partes dos Animais e

a sua reprodução em Da Geração dos Animais. Tais investigações fizeram com que fosse considerado o pai da zoologia (embora ele pense que esta faz parte da física). Segundo as suas particularidades anatómicas e fisiológicas, Aristóteles classificou os animais em duas categorias, os que têm sangue e os que o não têm, e entre os «sanguíneos» distingue os vivíparos dos ovíparos. No seu estudo das partes dos corpos, distingue as partes homogéneas (como os tecidos) e as partes heterogéneas (como os órgãos) e analisa a função de cada órgão. O tipo de explicação que ele adopta com maior frequência é de tipo finalista: um tecido é feito para um órgão, um órgão para uma função e uma função para a vida do organismo, globalmente compreendida. Para compreender a anatomia e a fisiologia dos animais, Aristóteles utiliza muitas vezes a analogia, observando que órgãos diferentes têm a mesma função em animais diferentes (por exemplo os pulmões nos mamíferos e as guelras nos peixes). Quanto à reprodução animal, Aristóteles considera que ela resulta da transmissão da alma (ou seja, da forma) pelo progenitor masculino e da matéria (ou seja, do sangue menstrual) pelo progenitor feminino. O vector da forma é aquilo a que o filósofo chama o pneuma (sopro), contido no sémen, que transmite ao ser engendrado o calor vital e que, por uma sucessão de impulsos mecânicos, leva a matéria do embrião a organizar-se de maneira a dispor os órgãos nos seus lugares. Estes formam-se um após o outro, começando pelo coração, segundo um processo a que se chamará mais tarde «epigénese», seguindo um plano pré-estabelecido e organizado pela forma. O termo e o fito de todo o processo é o indivíduo integralmente formado. «Filosofia primeira» ou metafísica Na Metafísica – título dado à obra pelos editores para significar que ela se coloca após as obras de física – Aristóteles apresenta a sua «filosofia primeira», assim chamada porque investiga as causas primeiras de toda a realidade (Metafísica, A). O método próprio desta ciência é o método aporético; este consiste em formular «aporias» (problemas), em considerar para cada uma delas hipóteses de soluções contraditórias, em estudar as consequências dessas hipóteses e em reter as que melhor resistirem às objecções (Metafísica, B). Para que a filosofia primeira conserve a sua unidade e se distinga das outras ciências, Aristóteles faz observar que todas as causas aqui examinadas são as do ser considerado enquanto tal, ou seja de maneira universal, ao passo que as outras ciências examinam as causas ou os princípios de uma variante particular do ser. O ser enquanto tal (ou seja, todos os seres) está submetido aos

princípios de todas as demonstrações, tanto o da não-contradição como o do terceiro excluído, e por conseguinte cabe à filosofia primeira submetê-los a exame. Esses dois princípios não podem ser demonstrados, mas podem ser defendidos pelo expediente da refutação das suas negações (Metafísica, ). O termo «ser» é empregue segundo múltiplas acepções, sendo a primeira a de substância (ousia), e estabelecendo-se todas as outras por relação com ela. Isso significa que todo o objecto é qualificado como ser, ou porque é substância, ou então porque tem uma relação com a substância. Por isso, a filosofia primeira terá por tarefa investigar as causas primeiras das substâncias, e como algumas delas (os corpos celestes) são consideradas divinas, as suas causas serão divinas com mais razão ainda; daí o nome de ciência «teológica» (Metafísica, E) atribuído à filosofia primeira. Do ponto de vista da causa material, a causa das substâncias é a matéria sensível, a saber os quatro elementos para os corpos terrestres, e o éter para os corpos celestes. Aristóteles fala igualmente de uma matéria inteligível que poderia ser o espaço como matéria dos objecto da matemática, que no entanto não são substâncias (embora o fossem para Platão). Do ponto de vista da causa formal, a causa das substâncias é a forma de cada uma delas, ou seja a sua essência, expressa enquanto tal pela sua definição. Razão pela qual Aristóteles chama à forma «substância primeira», segundo uma acepção diferente da das Categorias, ou seja enquanto causa da substância. No caso das substâncias vivas, essa substância primeira é a alma, que também é a causa final das substâncias, uma vez que cada uma delas tende a cumprir plenamente a sua forma e a exercer as funções das quais é princípio (Metafísica, Z). Aristóteles considera que a matéria e a forma fazem um só com a potência e o acto, pois a transformação não é mais do que a passagem da matéria, que possui a forma em potência, à posse da forma em acto (Metafísica, H). Por conseguinte, para o indivíduo, a potência precede o acto (por exemplo, o sémen precede o indivíduo adulto); pelo contrário, dado que a transformação requer uma causa motriz já actuante, para a espécie, o acto precede a potência (por exemplo, o genitor precede o gerado) (Metafísica, Θ). O Uno e o múltiplo, ou o Uno e a Díade indefinida, não são portanto os princípios de todas as coisas, como sustentavam os platónicos. Com efeito, para Aristóteles, o Uno não é mais do que uma unidade de medida ou um predicado tão universal quanto o ser (Metafísica, I). Enfim, do ponto de vista da causa motriz, as causas das substâncias são os diversos motores terrestres, ou os genitores («Peleu é o princípio de Aquiles; o

teu pai é o teu princípio»), mas também os corpos celestes, em particular o Sol, cujo calor torna possível a vida sobre a Terra. Deve acrescentar-se ainda que os motores das esferas que deslocam os corpos celestes são as suas causas motrizes e que, para produzirem um movimento eterno, esses motores têm de agir em permanência (não serem mais do que acto), ou seja permanecerem imóveis. O modo como esses motores imóveis põem em movimento cada esfera não é claro: a interpretação tradicional, segundo a qual eles causam movimento porque são objectos de amor e portanto de imitação, é de origem platónica. Sendo o pensamento a única actividade que não implica movimento, os motores imóveis são substâncias que pensam e estão portanto vivas, eternas e perfeitamente felizes, ou seja são deuses. O primeiro deles, a saber o motor das estrelas fixas, não tendo acima de si nada em que pensar, só pensa em si mesmo, ou seja ele é «pensamento de pensamento». Ele é também o bem supremo, que põe em movimento o universo inteiro, tal como um general comanda um exército, como um amo organiza o seu lar e como um rei governa o seu reino (Metafísica, Λ). Para Aristóteles, só existem estas substâncias imóveis, ao passo que as Ideias reconhecidas por Platão não existem enquanto substâncias, não sendo os universais mais do que predicados; as entidades matemáticas, que os platónicos estimam serem substâncias, só existem nos corpos, dos quais constituem os aspectos quantitativos, como os limites (Metafísica, M). Os princípios de todas as coisas não são portanto o Uno e a Díade infinita, mas a matéria e a forma (ou seja, a potência e o acto), bem como os motores imóveis, ou seja o acto puro (Metafísica, N). Ética e política A física e a filosofia primeira são ciências «teoréticas», pois têm por fito o conhecimento puro (theôria), tal como a matemática, mas Aristóteles considera que existem também ciências práticas, as quais têm por fito a acção (praxis), a acção justa, o bem. Como o bem de um indivíduo é uma parte do bem da cidade (polis), a ciência – ou filosofia – prática que as engloba a todas é a «ciência política», apresentada por um lado nas Éticas (a Nicómaco e a Eudemo), que têm por objecto o bem do indivíduo, e por outro lado na Política, que tem por objecto o bem da família e da cidade. À ciência do que é o bem para a família chama-se também ciência económica (de oikia, «casa» ou «família»), mas a obra dedicada a esse tema no corpus aristotelicum, a saber a Económica, é provavelmente apócrifa. Para Aristóteles, o bem supremo, tanto para o indivíduo como para a cidade, é a felicidade (eudaimonia); ela define-se

pela efectivação, da melhor maneira possível, das capacidades próprias ao homem, que as exerce com virtude (aretê), isto é ao seu mais alto nível. Essas virtudes serão dianoéticas e éticas, já que com efeito o homem não só é feito de razão (dianoia), mas também possui outras capacidades que formam o seu carácter (êthos), quando são efectivadas ao seu melhor nível. As virtudes éticas acham-se no justo meio entre dois defeitos opostos, o qual é determinado pela razão: por exemplo, a coragem é o justo meio entre a cobardia e a temeridade, a moderação é o justo meio entre o excesso e a insensibilidade, a generosidade situa-se entre a avareza e a prodigalidade, e assim sucessivamente. Entre as virtudes éticas, a justiça tem uma importância particular pois concerne as relações entre as pessoas. Quando para ela se trata de distribuir honrarias ou poderes, a justiça (o justo meio) deve saber proporcionar as honrarias e os méritos (justiça distributiva); mas quando se trata de trocar vantagens ou penalizações, ela deve repartir a sua atribuição respeitando a igualdade (justiça comutativa). As virtudes dianoéticas são a perfeição da razão «científica» (ou teorética), isto é a sabedoria (sophia), que se assemelha ao intelecto (nous), como conhecimento dos princípios, e a ciência (epistêmê), como capacidade para demonstrar a partir dos princípios; elas compreendem igualmente a perfeição da razão prática e «calculadora», ou prudência (phronêsis), capacidade para decidir com justeza, para escolher a boa maneira de agir, para si mesmo, para a sua família e para a sua cidade. A prudência é superior à arte (tekhnê), considerada como capacidade para produzir bens, porque a acção é superior à produção (poiêsis), não se achando a finalidade da produção nela mesma, mas no objecto produzido. Porém, a prudência é inferior à sabedoria, que é a virtude da melhor parte do homem; para alcançar a sabedoria, é portanto a prudência que indica quais as acções a cumprir e quais a excluir. Segundo Aristóteles, a felicidade compreende igualmente o prazer; este não é o bem supremo, mas sendo a felicidade definida como exercício da actividade perfeita, o prazer decorre da sua realização. A felicidade compreende também a amizade, que é em si mesma uma virtude quando esse sentimento aproxima pessoas de qualidade. Contudo, mesmo na hipótese de serem reunidas todas as qualidades, às quais se acrescentariam algumas vantagens como a saúde, um certo bem-estar, um físico agradável, uma boa família e bons amigos, Aristóteles considera que a felicidade reside essencialmente na vida teorética, ou seja numa vida inteiramente consagrada à investigação, ao estudo, às actividades que têm por fito o conhecimento. Esse tipo de vida, com efeito, é

finalidade em si. É uma vida auto-suficiente e semelhante à que é conduzida pelos deuses. Alguns especialistas consideram que Aristóteles limita a felicidade à vida teorética; outros sustentam que ele inclui nela a prática de todas as virtudes. Na realidade, a vida teorética não seria possível sem as outras virtudes. Além disso, Aristóteles estima que a pessoa que conduza uma tal vida, a saber o filósofo, deve igualmente mostrar aos homens políticos a maneira de realizar o bem para a cidade e definir para ela a melhor constituição; e isso confirma que só esse tipo de vida engloba o conjunto das virtudes. A cidade é a sociedade perfeita, ou seja auto-suficiente e não tendo por fim a vida material dos cidadãos (que é o fito da família), mas o de lhes dar a possibilidade de viverem bem, em suma a felicidade. Ela engloba a família, sociedade natural que compreende marido e esposa, pais e filhos, senhor e escravos. A cidade é também uma sociedade natural porque o homem é por natureza um «animal político», no sentido em que é feito para viver na pólis. O signo dessa natureza política do homem é que ele possui a palavra (logos), graças à qual pode discutir com os outros acerca do que é útil e do que é justo. No entanto, a «natureza» do homem não é definida pelo seu nascimento mas pelo seu fim, pelo seu cumprimento, ou seja pela sua felicidade. E o homem não pode alcançar essa felicidade senão na cidade. Na família estão reunidas as condições necessárias à vida material, incluindo a presença de escravos, inevitável, uma vez que «os teares não tecem sozinhos», e a aquisição de riquezas, chamada «crematística». Todos os que são escravos não o são por natureza; em compensação, são escravos aqueles que não conseguem prover às suas necessidades por si mesmos; é por isso que precisam de um amo. Nem todas as riquezas são naturais, mas são naturais todas as que são necessárias para a satisfação das necessidades. É na cidade, sociedade de homens livres e iguais, que se pode viver plenamente e bem. Para aí chegar, há que se dotar de uma boa constituição, ou seja de uma boa organização dos ofícios públicos, ou ainda de um governo instituído como deve ser. Quando examina as seis constituições tradicionais, as três que são boas (monarquia, aristocracia e politeia) e as três que são pervertidas (a tirania, a oligarquia e a democracia), Aristóteles exprime a sua preferência pela politeia, para a qual não dispõe de nome particular, o que lhe vale ser mencionada sob o vocábulo geral de «constituição» (politeia); ela parece-lhe ser a que melhor se adequa a uma sociedade de homens livres e iguais. De facto, a politeia é definida como sendo o justo meio entre duas perversões opostas, a oligarquia e

a democracia; é por isso que ela ganha o nome de constituição «intermediária», onde é a classe média que exerce o poder. Mas, dado que não podem todos simultaneamente governar e ser governados, é justo que todos governem e sejam governados por sua vez, pondo-se ao serviço dos outros quando governam e beneficiando dos serviços de outrem quando são governados. A cidade pode assim garantir a cada um a possibilidade de consagrar um período da sua vida a actividades que são um fim em si, como a música, a poesia e a filosofia. Retórica e política As duas primeiras obras do corpus aristotelicum, a Retórica e a Poética, são dedicadas à apresentação de duas «artes» (ou técnicas), respectivamente a arte de construir discursos persuasivos e a arte de escrever poesia. A retórica ensina a encontrar instrumentos de persuasão (pisteis) de tipo técnico, ou seja argumentações. É por isso que ela acompanha, de modo «especular» (antistrophos), a dialéctica, técnica da argumentação geral, com a qual tem em comum o facto de argumentar sobre tudo, partindo de pontos de vista opostos; diferencia-se dela por se dirigir a um auditório que permanece mudo mas nem por isso deixa de ajuizar. Aristóteles distingue três tipos de argumentações retóricas: as que são deliberativas (visando persuadir uma assembleia política e debater uma dada decisão), as que são judiciárias (visando defender ou acusar uma pessoa inculpada), e as que ele qualifica como epidíticas (visando celebrar ou recriminar uma personagem pública). Aristóteles chama «entimema» (enthumêma) à argumentação retórica, talvez porque ela age igualmente sobre o coração (thumos); define-a como um silogismo, uma dedução que decorre de premissas verosímeis (eikota), ou seja partilhadas pela audiência, como os endoxa, que não são válidos em todos os casos mas somente na maior parte deles. Este tipo de argumentação pode também partir de «signos»; se esses «signos» forem necessários e certos, são então «provas»; senão, só estabelecem a verosimilhança. O entimema deve igualmente ser mais sucinto que o silogismo didáctico, devendo passar em silêncio as premissas mais evidentes, para não enfadar a audiência. Além disso, a arte retórica ensina a tomar em consideração outros factores de persuasão, como o carácter (êthos) do orador, que deve ser uma pessoa credível, ou ainda as paixões (pathê) da audiência, que a fazem pender em favor de um ou outro argumento. É por isso que Aristóteles considera a arte retórica como um «ramo» da ciência política, relativo justamente aos caracteres e às paixões. Por

fim, o filósofo assinala a importância da elocução (lexis), da maneira de falar e do estilo do orador. Para Aristóteles, a poesia é mimêsis, o que não significa imitação passiva, mas representação, capacidade para fazer viver uma ficção como se ela fosse real. Ela pode tomar por objecto personagens nobres, e nesse caso trata-se de poesia épica ou trágica; no caso das personagens não nobres, trata-se de poesia cómica. A poesia épica e a tragédia diferenciam-se assim: a primeira só transmite a narrativa dos factos ao passo que a segunda os representa de maneira dramática. Esta última característica remete também para a comédia. A Poética dá uma célebre definição da tragédia dizendo que ela consiste na «imitação de uma acção que forma um todo, é grave e apresenta uma certa nobreza, segundo uma forma não narrativa mas dramática e que, por meio da compaixão e do terror, permite a purificação das paixões semelhantes». O elemento mais importante aqui é a ideia de «purificação» (katharsis), que parece livrar paixões como a compaixão e o terror dos elementos dolorosos que tais sentimentos apresentam na vida real, procedendo de modo a que eles se tornem agradáveis. O prazer associado a uma tal imitação é, como sempre para Aristóteles, o de conhecer, ou seja de aprender. Enquanto a catarse produzida pelo canto educa os jovens nas virtudes éticas (tal como é dito na Política), a catarse produzida pela tragédia educa os adultos nas virtudes dianoéticas, ou seja na prudência. Se a catarse é a finalidade própria da tragédia, o elemento mais importante desta é o «mito» (a história representada); ele deve propor factos que possam produzir-se, seja verosimilmente, seja necessariamente, isto é o mais das vezes ou sempre. É por isso que Aristóteles diz que a poesia é «mais filosófica» que a história, por ser mais apta a conduzir em direcção ao conhecimento. Com efeito, a história faz a narrativa de casos particulares, ao passo que a poesia, ao representar o verosímil, dá a conhecer o universal. Na Poética, Aristóteles ilustra igualmente os outros elementos da tragédia e da poesia épica (catástrofes, peripécias, revelações, intrigas e resoluções, caracteres, etc.), embora não estude tão profundamente a comédia, talvez porque o segundo livro da obra – hoje em dia perdido – lhe era dedicado. ENRICO BERTI

Os saberes e as ciências na cidade grega

Arqueologia do saber científico Como e quando nasceu o pensamento científico na Grécia? Uma tendência historiográfica muito difundida descobre-lhe as origens no novo olhar votado à natureza pelos pensadores (Aristóteles chamar-lhes-á justamente physiologoi) dos séculos VI e V a.C., entre os quais os milésios (Tales e sobretudo Anaximandro e Anaxímenes), Heraclito e, mais tarde, Anaxágoras e Demócrito. Apesar do seu profundo enraizamento na tradição mitológica e da sua opção por uma linguagem poética, ou mesmo oracular, as suas ambiciosas hipóteses cosmogónicas e cosmológicas abriram certamente caminho a uma compreensão da natureza de tipo racional; todavia, tais hipóteses permanecem muito afastadas daquilo a que hoje em dia chamamos «ciência», mesmo no sentido lato do termo. De maneira paradoxal, o pensamento de um filósofo como Empédocles, fortemente caracterizado por traços místicos e mágicos, marca uma orientação bem mais significativa nesta direcção: a sua concepção de uma natureza material composta por quatro elementos (ou «raízes»: terra, água, fogo, ar) terá uma influência decisiva na física de Aristóteles, e através dela numa grande parte da física antiga. Mas é evidente que também Empédocles se mantém muito distante de uma forma de pensamento científico quanto ao fundo e ao método. Na origem dos saberes de tipo matemático, encontram-se em primeiro lugar as especulações numerológicas atribuídas a Pitágoras, que atingem o seu auge entre os séculos V e IV, na obra de Filolau de Crotona. A origem desse interesse pitagórico é mais de ordem místico-religiosa do que matemática. A descoberta dos números irracionais, considerada um escândalo inadmissível, e o axioma da indivisibilidade do um (princípio intangível da realidade) constituem um verdadeiro obstáculo epistemológico para toda a aritmética antiga. Por outro lado, a lógica da escola de Eleia contribui para a construção da racionalidade matemática, principalmente com a demonstração pelo absurdo, utilizada por Zenão, que consistia em provar a verdade de uma proposição

demonstrando a falsidade do seu contrário. É neste tipo de prova que se funda um dos métodos mais elaborados da geometria grega, a «exaustão», usada por Eudoxo e mais tarde por Arquimedes. Mas os instrumentos lógicos dos eleatas tendem mais a estabelecer a impossibilidade do saber científico (nomeadamente ao defenderem a nossa incapacidade para pensar o múltiplo e o movimento) do que a fundá-lo. As referências epistemológicas do século IV a.C.: Platão e Aristóteles As grandes filosofias do século IV – as de Platão e de Aristóteles – forneceram os elementos epistemológicos de base que orientariam modo duradouro o processo de formação dos saberes científicos; com efeito, elas suscitam uma reflexão aprofundada sobre as origens recentes de tais saberes. Platão atribui uma posição privilegiada aos saberes matemáticos e em primeiro lugar à geometria; coloca-os logo a seguir à dialéctica filosófica, que continua a ser «o cume das ciências»97. Tal privilégio explica-se pelas propriedades de abstracção e de conceptualização que Platão atribui aos processos matemáticos, os quais parecem portanto capazes de levar o espírito a afastar-se progressivamente dos conhecimentos empíricos (forçosamente instáveis e subjectivos) para se aproximar do conhecimento dos objectos noéticos, invariantes e susceptíveis de um saber verdadeiro e perdurável (ideias ou Formas). Platão formula um princípio que acompanhou as ciências matemáticas quase até aos nossos dias: a função delas é a «descoberta» das propriedades dos objectos ideais dotados de uma existência autónoma e não a «construção» de tais objectos. Platão desempenhou portanto um papel de «arquitecto» em relação ao conjunto dos saberes matemáticos. Com efeito, por um lado a epistemologia platónica age poderosamente em reforço do rigor conceptual, anti-empírico, dos procedimentos de demonstração matemáticos, e da extensão destes à astronomia. Por outro lado, ela age como uma espécie de obstáculo epistemológico ao desenvolvimento da matemática grega, ao interditar o recurso aos procedimentos instrumentais de construção geométrica, à observação empírica em astronomia e, em geral, mostrando-se hostil a toda a aplicação prática da matemática. Convém igualmente notar a ambiguidade da posição de Platão quanto a um saber nascente que havia desempenhado um importante papel cultural no século V: a medicina. Se a medicina ocupa, segundo Platão, a posição mais baixa na hierarquia dos saberes, por ser pouco susceptível de ser matematizada,

contrariamente à arquitectura, não obstante ele vê nela um modelo éticopolítico de grande valor, que oferece o exemplo de uma técnica racional eficaz, de um saber-poder bom e que actua mais no interesse dos seus sujeitos (os doentes) do que no seu próprio interesse: sob este ponto de vista, a medicina prefigura o modelo de um poder filosófico fundado no saber e capaz de agir para o bem da cidade, em lugar de a oprimir ao jeito dos tiranos. O trabalho epistemológico de Aristóteles apresenta-se de maneira mais homogénea e o seu poder de orientação sai com isso reforçado. Nos Analíticos, o filósofo oferece uma formalização definitiva para as normas de construção do saber teórico ao defini-lo como um sistema de axiomas e de deduções; esta nova orientação normativa contribui para transformar de maneira definitiva a ciência geométrica nascente num conjunto teoremático compacto; a transformação é completada e concluída perto do final do século IV, graças à obra maior de Euclides, os Elementos. Por outro lado, Aristóteles recusa o primado exclusivo que Platão atribui aos saberes matemáticos. As ciências da natureza beneficiam, segundo ele, de um duplo privilégio: os seus objectos possuem o carácter ontológico das «substâncias» (ousiai), ou seja são dotados de uma existência autónoma, plena e inteira, e os processos do mundo vivo são organizados de forma finalista, ou seja visam realizar um telos imanente. Os saberes correspondentes estabelecem o primado da explicação teleológica, a mais satisfatória segundo Aristóteles, e a mais apta a revelar a ordem «divina» que opera na physis98. Mas Aristóteles visa também criar uma nova ciência do vivente, como é testemunhado pela quantidade de tratados que dedicou a tal assunto. O nascimento dos saberes científicos Apesar da importância das ideias dos antigos pensadores da natureza (os physiologoi) na fase de gestação dos saberes, e a influência determinante das grandes epistemologias nos seus processos de formação, deve considerar-se que não se pode verdadeiramente falar de ciências a menos que esteja historicamente verificada uma série de condições. Elas podem resumir-se assim: 1. Quando domínios de conhecimentos e de competências técnicas ultrapassam o limiar da escrita e dão lugar ao estabelecimento de textos que são propostos à discussão pública e constituem uma base para um crescimento cumulativo dos conhecimentos, criando o embrião de uma «bibliografia» especializada. Foi o que se produziu na segunda metade do século V para a

medicina, a arquitectura, a geometria, a astronomia calendar (a zoologia e a botânica teriam de esperar até ao século IV e a mecânica até ao século III). 2. Quando, em função das técnicas (technai) e dos saberes presentes numa comunidade de cidadãos (polis) se constituem grupos profissionais publicamente identificáveis (como o de Asclépio para a medicina), comunidades científicas embrionárias, espontâneas e auto-reguladas (como a dos matemáticos), ou grupos que conduzam actividades de investigação especializadas no seio de escolas filosóficas (como para a geometria e a astronomia na Academia de Platão ou para a zoologia e a botânica no Liceu de Aristóteles) e que se dotem da sua literatura própria, sistemática e mesmo historiográfica. 3. Finalmente, quando os conhecimentos elaborados e tornados públicos são defendidos segundo um argumentário racional, publicamente controlável e transmissível no ensino, baseado em observações, experiências e confrontações com as teses opostas. De um ponto de vista cronológico, o primeiro saber que terá respondido pelo menos em parte a estas condições foi a medicina (que seguidamente seria integrada nas ciências da vida), e é por isso que ela ocupa aqui o primeiro lugar. A medicina e as ciências do vivente As origens e o Corpus Hipocrático Desde sempre a sociedade grega conheceu práticas destinadas a tratar e a sarar. Disso encontramos diversos testemunhos nos poemas homéricos: na Ilíada são evocados dois guerreiros cirurgiões, Podalírio e Machaon. Na Odisseia, o médico tem um estatuto mais modesto: trata-se de um artesão itinerante, como o adivinho ou o carpinteiro, que anda de aldeia em aldeia para oferecer os seus serviços aos doentes99. A formação destes primeiros médicos era totalmente da iniciativa deles: a arte transmitia-se oralmente de pai para filho, de mestre para discípulo. Tal situação perduraria sem grandes alterações durante toda a Antiguidade. Com efeito, não se deverá esquecer que nem a sociedade grega nem a sociedade romana conheciam faculdades de medicina, hospitais ou instituições públicas susceptíveis de garantirem a formação dos médicos, ou legislação que lhes pudesse regular as actividades. Quem o desejasse poderia pois dizer-se médico. Essa situação, por mais surpreendente que possa parecer, tinha consequências negativas mas igualmente positivas.

As primeiras são evidentes: o exercício da medicina estava acessível a todos, incluindo a pessoas sem competência alguma, a charlatães e a impostores, com os riscos que isso comportava para quem se confiasse às mãos deles. Mas os aspectos positivos compensavam os aspectos negativos. Para serem distinguidos dos seus concorrentes, os médicos profissionais tinham de mostrar que possuíam uma rigorosa preparação científica, estudando a medicina ao longo de toda a sua vida; tinham além disso de se dotar de um código moral preciso, ou seja de uma «deontologia» médica. Um outro efeito positivo da ausência de regulamentação oficial era a total liberdade de investigação de que beneficiava a medicina antiga. Na cultura egípcia, esta profissão era minuciosamente enquadrada como um sacerdócio particular e uma transgressão das normas estabelecidas poderia, de uma vez por todas, ser punida com a morte. Os médicos gregos e romanos não conheceram nada disso e permaneceram livres de tratar doentes explorando novas vias, de elaborar teorias debatendo-as entre si e de não ajuizar a validade destas senão pela força da argumentação e pela eficácia terapêutica. Em meados do século V, assistiu-se porém a uma mudança radical no domínio da elaboração e da transmissão do saber médico. Grupos de médicos, que oficiavam em Cnide e sobretudo em Cós (onde dominava a autoridade do fundador, o grande Hipócrates), começaram a assentar por escrito os conhecimentos acumulados até então. Assim se constituiu uma compilação de escritos médicos que mais tarde foram atribuídos ao próprio Hipócrates, daí o seu nome de Corpus Hipocrático, embora não se saiba quais as partes que terão sido redigidas por ele próprio. Para o exercício e o ensino da medicina, estes escritos constituíam uma referência mais segura e mais homogénea do que as noções anteriormente transmitidas oralmente e de mestre a discípulo. Na mesma época formou-se uma associação profissional (ou «corporação») de médicos que tomou o nome de Asclepíades, segundo Asclépio, a divindade mais apta a propiciar a cura. Os escritos médicos podem ser divididos em dois grupos principais. O primeiro grupo de textos releva da função dos manuais, auxiliares da memória para uso dos médicos em viagem longe do seu mestre: trata-se portanto de recolhas de casos clínicos exemplares, de súmulas relativas aos sintomas e aos diagnósticos aferentes, de indicações terapêuticas. Pelo contrário, o segundo grupo compreende textos que relevam daquilo a que se poderia chamar propaganda e destinados a defenderem o prestígio e a eficácia da arte médica

nascente junto de um público culto ou junto de potenciais pacientes, embora contestando as capacidades das práticas rivais, tanto para fornecer a cura como para conhecer a natureza humana. O saber médico como modelo cultural A medicina «hipocrática» teve rapidamente um imenso impacto cultural, que lhe conferiu um notável prestígio durante a segunda metade do século V. Ela apresentava-se como um saber competente e eficaz no domínio mais importante da vida dos homens, o da saúde e da doença. Tratava-se de um conhecimento inteiramente baseado em procedimentos e em métodos racionais, publicamente controláveis (contrariamente à magia) e transmissíveis através do ensino; tratava-se igualmente de uma profissão que atribuía a si mesma um código moral. Num primeiro tempo, a autopropaganda da medicina revestiu-se de um estilo enfático, proclamando uma infalibilidade terapêutica sem nenhuma relação com a possibilidade de eliminar as doenças100. No entanto, perante a evidência de repetidos fracassos terapêuticos – cujo mais notório se manifestou aquando da peste que atingiu Atenas em 430-429, anos durante os quais a medicina permaneceu totalmente impotente diante dos efeitos catastróficos da epidemia –, os médicos tiveram de adoptar uma atitude mais prudente. Por um lado, renunciaram à tese segundo a qual a medicina já havia descoberto tudo e insistiram antes no próprio método; seria esse método novo que iria permitir, «durante um longo período», aperfeiçoar a realização dessa ciência (é a tese do importante texto metodológico intitulado A Antiga Medicina). Por outro lado, os médicos deram prioridade ao seu empenhamento profissional e moral, bem como ao esforço para tomarem a seu cargo toda a vida do paciente, antes e durante a doença. Deve destacar-se esta passagem fundamental do texto hipocrático das Epidemias: «descrever o passado, compreender o presente, prever o futuro: eis a tarefa. Tratar as doenças com dois objectivos: ser eficaz ou não ser nocivo. Os três elementos fundamentais da arte são a doença, o doente e o médico. O médico é o ministro da arte: o doente deve lutar contra o mal com o médico». O saber dos médicos «hipocráticos» Se é certo que no seu início a medicina constituiu um modelo muito sedutor para a cultura do seu tempo, tanto pelo rigor dos seus métodos como pela sua

postura moral, como avaliar os seus verdadeiros conteúdos científicos e os seus procedimentos terapêuticos? Para responder a esta pergunta, deve antes de mais notar-se que o saber médico da época hipocrática (séculos V e IV) permanecia submetido a uma dupla carência. Em primeiro lugar, os médicos não dispunham de nenhum conhecimento anatómico e fisiológico; em suma, eles não sabiam nem como eram feitos nem como funcionavam os órgãos internos do corpo, e tais lacunas não seriam colmatadas antes do século III a.C. Em segundo lugar, eles não dispunham de nenhum remédio farmacológico de tipo «químico», semelhante aos que hoje em dia conhecemos, e não podiam fazer mais do que recorrer a extractos ou a infusões de origem vegetal (plantas curativas) ou, mais raramente, animal – às quais convirá acrescentar as intervenções cirúrgicas, como a amputação das partes infectadas ou a cauterização das feridas. Esta dupla carência ajuda a compreender a estruturação particular da medicina hipocrática. Os médicos conheciam os elementos que entram no organismo (alimentos, bebidas, ar inspirado). Supunham que no interior do corpo – uma espécie de «caixa negra» para a fisiologia hipocrática – se produzia um fenómeno de «cozedura» desses elementos, transformando-os em fluidos orgânicos essenciais, os «humores». Esses humores podiam ser observados quando saíam do corpo: tratava-se sobretudo do sangue (visível aquando de hemorragias ou feridas), do fleuma (muco ou catarro), e da bílis amarela ou negra (detectável na urina ou nos excrementos). Numa pessoa de boa saúde, tais humores eram em quantidade equilibrada, misturavam-se bem e não eram tóxicos. Pelo contrário, em caso de doença, o organismo não conseguia transformar («cozer») de modo apropriado os elementos nele entrados; por isso, à saída do corpo, eles apresentavam quantidades excessivas e desequilibradas (sendo pois as doenças dos aparelhos respiratório e digestivo as principais patologias da medicina hipocrática). A doença era provocada por numerosos factores: a estação, o clima, a idade, o tipo de alimentação e o modo de vida do paciente. O meio (para o ar respirado e a água bebida) tinha uma importância particular no desenvolvimento das patologias individuais ou colectivas, como disso presta testemunho o importante texto sobre Ares, águas, locais, destinado ao médico itinerante, e que constitui o mais antigo texto de medicina ambiental e etnográfica. Para prevenir a doença ou para tratá-la uma vez declarada, o médico hipocrático deveria portanto agir sobre os elementos que entravam no

organismo, estabelecendo em primeiro lugar um regime alimentar muito preciso. Seguidamente, podia melhorar as capacidades de funcionamento do corpo recorrendo a uma combinação de exercícios físicos, de banhos e, globalmente, de hábitos de vida. Era assim que a medicina se constituía como um conjunto que visava tratar com atenção o próprio modo de vida do paciente, antes, durante, após a doença, e tomando a seu cargo toda a existência deste. A orientação higiénica, profiláctica e dietética predominou na medicina antiga durante séculos e constituiu a parte mais eficaz dela (a isso se somavam ainda as preparações vegetais purgativas, depurativas ou adstringentes). Para além dessa atenção particular aos regimes dos seus pacientes, os médicos hipocráticos desenvolveram uma outra competência excepcional, a do prognóstico. Graças à observação dos «sinais» ou sintomas (a aparência do paciente, os seus suores ou os seus excrementos, o seu comportamento), eles eram capazes de prever com incrível precisão a evolução da doença (não devemos esquecer que se tratava muitas vezes de acessos de febre aparentados à malária). Estabelecer um prognóstico exacto era importante pois isso não iria servir apenas para fornecer as bases nas quais apoiar a intervenção terapêutica; a previsão da evolução da doença, caso ela se verificasse, servia também para ganhar a confiança do doente e de quem o rodeava, atestando que o médico era verdadeiramente um homem da arte e não um charlatão. Sete séculos mais tarde, Galeno, cujas capacidades de previsão lhe valeram uma acusação de feitiçaria por rivais ciumentos, respondia simplesmente: «Não há nisso feitiçaria alguma; mas estudei o Prognóstico de Hipócrates.» A revolução anatómica e a medicina helenística No início do século III a.C., produziu-se uma mudança radical na história da medicina antiga: a descoberta da anatomia interna do corpo e dos grandes processos fisiológicos que dela derivam. Esta mudança, que fez progredir de forma decisiva os conhecimentos do tempo de Hipócrates, foi tornada possível por dois factores convergentes, ainda que muito diferentes. O primeiro refere-se à zoologia aristotélica, exposta nos grandes tratados História dos Animais, Partes dos Animais, Geração dos Animais, e em outros textos menores. Fundador desta nova ciência, Aristóteles havia recorrido, sistematicamente e pela primeira vez, à dissecção dos corpos dos animais; descobrira assim a forma e a função dos órgãos internos. Cérebro, pulmões, coração, fígado, veias, músculos e ossos achavam-se agora colocados no centro

da investigação biológica, em lugar dos «humores» que dominavam na fisiologia hipocrática. Ainda que tivesse limitado as suas observações aos animais, Aristóteles demonstrava assim que a anatomia era a principal via de acesso à compreensão da estrutura e das funções dos órgãos, e que a medicina não poderia mais escapar ao estudo de um tal campo de pesquisa. Além disso, o seu axioma teleológico, segundo o qual todos os processos e toda a estrutura do mundo vivo podem e devem ser explicados por referência à sua função própria, constituiu o fundamento de uma fisiologia nova. O segundo factor de mudança foi de natureza institucional. No início do século III, Ptolomeu, rei do Egipto, fundou na sua capital, Alexandria, duas grandes instituições culturais: a Biblioteca, onde se reuniram progressivamente todos os livros antigos (incluindo os textos médicos atribuídos a Hipócrates) e o Museu, onde os maiores sábios do mundo grego foram convidados a residir a fim de concluírem livremente as suas investigações a expensas do rei. Foi justamente no Museu que os grandes médicos do século III Herófilo e Erasístrato puderam conduzir as suas revolucionárias pesquisas anatómicas. Nesse local, dispunham do tempo e dos meios necessários para se dedicarem aos estudos; além disso, o rei autorizara-lhes a dissecção de cadáveres humanos (o que era interdito até então) bem como a vivissecção dos corpos dos criminosos condenados à morte. Tudo isso permitiu responder ao desafio lançado à medicina por Aristóteles e fazer descobertas que em numerosos aspectos ultrapassaram as do próprio mestre. Pode estabelecer-se do seguinte modo a lista das mais importantes dessas descobertas: 1. Descobriu-se o sistema nervoso, com os seus dois subsistemas, sensorial e motor, que ligam ao cérebro os órgãos dos sentidos e o sistema dos tendões e dos músculos. Por isso o cérebro foi reconhecido como órgão central da sensação e do movimento, e seguidamente de todos os processos psicofisiológicos, incluindo o pensamento (ao passo que Aristóteles atribuía tais funções ao coração); 2. Reconheceu-se a diferença entre as artérias e as veias, bem como as relações entre cada sistema e os diferentes ventrículos do coração, ao qual foi atribuída a função de «bomba» para a circulação do sangue no organismo; 3. Descobriu-se que a pulsação (o pulso) era importante para operar um diagnóstico; fabricaram-se instrumentos para medir a temperatura do corpo

(termómetros). Deve porém dizer-se que, para tratar as doenças tradicionais, a medicina da época helenística não introduziu inovações substanciais em relação às velhas terapias hipocráticas. A profilaxia, a higiene, a dieta, o regime, a observação dos sintomas para estabelecer um prognóstico, permaneceram no centro das práticas terapêuticas e em nada foram influenciadas pelas novas descobertas anatómicas e fisiológicas. Foi assim que se estabeleceu uma ruptura entre o nível teórico do saber médico, revolucionado pelas novidades vindas de Alexandria, e o seu nível prático, que se manteve na tradição hipocrática, mais ou menos inalterado. As escolas de medicina A partir do século III, esta fractura suscitou o nascimento de diferentes escolas ou correntes («seitas»). Para seguir a orientação dada pelas descobertas de Herófilo e Erasístrato, assistiu-se à formação da corrente dos «dogmáticos» (ou racionalistas). Estes sustentavam que os sintomas visíveis (externos) se explicavam por causas invisíveis (internas), reveladas pela anatomia; os cuidados de saúde deveriam então referir-se às causas e já não aos sintomas. A anatomia e a fisiologia integraram portanto a formação do médico, tornando-a muito mais longa, mais difícil e certamente mais onerosa. Aos dogmáticos racionalistas opunha-se a corrente da medicina «empírica», fundada por Filinos de Cós no século III. Segundo esta corrente, a prática médica não se deveria apoiar senão na experiência, sem jamais recorrer nem à explicação pelas causas nem ao estudo anatómico. A experiência – a do médico e sobretudo a que estava contida nos textos da tradição hipocrática – bastava para saber que remédios convinham como resposta a um ou outro conjunto de sintomas. Finalmente, entre os romanos, no século I a.C., formou-se uma terceira tendência, a dos médicos «metódicos», fundada por Temiso e dirigida no século seguinte por Tessálio. Estes médicos eram radicalmente hostis a toda a tradição médica que, segundo eles, havia complicado inutilmente os conhecimentos necessários à sua formação. Era possível preparar-se um bom médico em seis meses, o que deveria permitir responder à crescente procura nas grandes metrópoles do Império. Com efeito, segundo eles, todas as doenças se podiam referir a dois estados do organismo: o estado de «prisão de ventre» (donde, por exemplo, as tosses secas, as anemias, o próprio tolhimento dos

intestinos) ou o estado de «soltura» ou de «fluidez» (responsável pelas constipações, as diarreias, as hemorragias). Galeno ou a refundação da medicina A existência de «seitas» rivais constituía um escândalo para Galeno, o maior médico e um dos sábios mais importantes do século II d.C. O projecto ao qual Galeno consagrou a sua imensa produção científica foi o de transformar os saberes da medicina num sistema único, homogéneo, coerente e unificado, tomando por modelo a geometria euclidiana. Dever-se-ia poder ascender sempre dos sintomas visíveis às causas destes, que se achavam nas estruturas anatómicas e na composição material dos corpos; seguidamente, poder-se-ia deduzir do conhecimento das causas as indicações apropriadas para o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento das doenças. Os dois pilares em que se deveria apoiar a estruturação do novo saber eram a razão (ou seja, o conhecimento teórico dos corpos e das causas e a capacidade para dele deduzir uma demonstração certa) e a experiência (o conhecimento efectivo dos sintomas, da evolução das doenças, da eficácia dos remédios). Sem a experiência, a mera razão permanecia abstracta e vazia, incapaz de saber «o que fazer»; sem a razão, a experiência resultava numa prática incapaz de compreender o «porquê» das suas próprias operações. Galeno considerava que uma medicina unificada constituiria, ao mesmo tempo, uma poderosa ciência da natureza, capaz de ultrapassar as discussões estéreis entre as escolas filosóficas, e um saber terapêutico capaz de indicar de maneira indiscutível os meios de tratar e de sarar as doenças. Graças a tal diligência, a medicina retomaria finalmente o seu prestígio social e cultural e o seu nível de saber exemplar, posição perdida após a época gloriosa de Hipócrates. O saber médico elaborado por Galeno estava organizado segundo um sistema de vários níveis. Para ele, os tecidos dos corpos eram constituídos pelos quatro elementos da física aristotélica, afectados por «qualidades» correspondentes: água/líquido, terra/seco, fogo/quente, ar/frio. Estes elementos-qualidades, e os «humores» que deles derivam (fleuma, bílis amarela e negra, sangue) dão lugar a misturas («temperamentos») segundo proporções variáveis. Existe um único temperamento óptimo, perfeitamente equilibrado, e oito tipos derivados, segundo a predominância de um elemento ou de um par de elementos, por exemplo a bílis negra no caso do melancólico. Esta teoria obteve um imenso sucesso, estendendo-se ao domínio psicológico. Para Galeno, o conhecimento dela é indispensável para adoptar medidas profilácticas (cada temperamento

requer um regime dietético diferente segundo as estações), bem como para o diagnóstico e a terapia das doenças que procedem de cada um deles. Com efeito, as doenças relevam habitualmente de causas externas (o clima, a alimentação, etc.), mas as consequências delas variam segundo o temperamento próprio de cada doente. Após o nível de composição dos corpos e dos tecidos segundo os elementos e os humores, encontramos o nível dos órgãos, que releva do saber anatómico e fisiológico, ao qual Galeno dedicou várias obras maiores (Procedimentos Anatómicos, Do Uso das Partes do Corpo Humano, Dos Dogmas de Hipócrates e de Platão). Neste domínio, a finalidade natural aparece muito claramente (de acordo com os princípios do finalismo aristotélico e estóico), com a ordem providencial que rege a natureza ao adaptar perfeitamente os órgãos às funções. A psicofisiologia de Galeno apresenta igualmente um interesse filosófico. No seguimento do Timeu, Galeno situa a sede da alma racional no cérebro, a da alma irascível no coração, a da alma desejante no fígado. A relação entre o corpo e a alma corresponde àquela que existe entre o órgão e a função: tal como a visão é a função do olho, a inteligência e a moral são a do cérebro, a emoção a do coração, e o desejo a do fígado. Mas ao prosseguir o raciocínio, poderá dizer-se por exemplo que a idiotia e a loucura são as consequências de lesões ou de malformações do cérebro, exactamente como a cegueira é uma consequência das doenças do olho. Portanto, se os desvios intelectuais e morais dependem de doenças orgânicas, o tratamento deles dependerá não do educador, do filósofo e do moralista, mas exclusivamente do médico. Em As Faculdades da Alma Seguem os Temperamentos do Corpo, Galeno defende que o médico poderá intervir tratando os órgãos e, com eles, as suas funções; por esse meio, ele melhorará a inteligência e o sentido moral do paciente. No entanto, outras doenças, resultantes do desenvolvimento do embrião, são congénitas e por conseguinte não podem ser saradas. Nesses casos de diagnóstico funesto, o médico não pode fazer mais do que pedir a morte do indivíduo anormal, não porque este seja responsável por qualquer má acção, mas porque é perigoso para a sociedade (As Faculdades da Alma, cap. 11). Estes textos de Galeno desenvolvem uma argumentação rigorosa mas que conduz a consequências inquietantes e dificilmente aceitáveis; aqui, a medicina antiga chega a reivindicar o direito de pronunciar diagnósticos que se transformam em sentenças inapeláveis. Aliás, essa é uma consequência última

do controlo exercido sobre o modo de vida anteriormente reivindicado pela medicina hipocrática. O projecto de Galeno de refundação da medicina chega a um extremo: atribuir à medicina a função de controlar a saúde moral e intelectual da sociedade; assim estabelecida em bases científicas, essa função deveria tomar o lugar que a filosofia tradicionalmente reivindicava. Galeno tinha efectivamente consciência, no final do século II d.C., de haver atingido uma posição terminal. Percebia os sinais de uma iminente crise da sociedade e da cultura que o seu pensamento reflectia. Nisso foi bom profeta: o declínio da sociedade imperial andou a par do das ciências e em particular da medicina, que não conheceu outros desenvolvimentos significativos a partir do século III d.C. A matemática e a astronomia Galeno contava que o filósofo Aristipo, havendo naufragado ao largo de Siracusa, se tranquilizara ao ver na areia o desenho de uma figura geométrica, sinal de que chegara junto de gente que conhecia tal ciência, portanto gregos, e não bárbaros. Quando pensamos naquilo que os gregos nos transmitiram como herança, vemos imediatamente na matemática (e em particular na extraordinária construção de geometria contida nos Elementos de Euclides, elaborados entre o final do século IV e o início do século III a.C.) uma espécie de modelo da racionalidade produzida por esta cultura, bem como a codificação duradoura da concepção ocidental do espaço. Mas a matemática grega nem sempre relevou de um «sistema» euclidiano, a saber de um conjunto organizado de axiomas e de deduções perfeitamente homogéneo e coerente. Nos séculos anteriores à grande sistematização operada por Euclides, havia-se desenvolvido um saber assaz diferente, mais baseado nos problemas do que nos teoremas. Ele era sobretudo muito menos sistemático, no sentido em que os princípios utilizados tinham uma função limitada, «local», e não universal como os de Euclides. Os raros testemunhos relativos à geometria préeuclidiana parecem remeter para procedimentos nos quais as proposições que faziam função de princípios para a solução de um dado problema podiam perder essa capacidade para resolver um outro problema. Parece que esse modo de proceder «por problemas» constitui a característica dos Elementos de Hipócrates de Quios (século V a.C.). As premissas decisivas para a elaboração dos axiomas da geometria por Euclides só foram avançadas no decurso do século IV a.C.; decorriam da reflexão conduzida na Academia de Platão, e mais tarde da epistemologia de

Aristóteles, quer fossem estritamente matemáticas ou de ordem metodológica. Do ponto de vista epistemológico, o elemento mais importante da reflexão aristotélica consistia na interrogação sobre o afastamento entre a forma dedutiva necessária à actividade matemática e o carácter sobretudo intuitivo das premissas, que são os princípios que fornecem as bases das deduções. Este sistema axiomático-dedutivo está fundado na identificação de alguns axiomas fundamentais, a partir dos quais se é levado a deduzir necessariamente uma série de consequências, complexas e ligadas umas às outras. O esquema dos Elementos de Euclides reproduz a estrutura teorizada por Aristóteles, nomeadamente nos Segundos Analíticos. A Academia de Platão, pelo seu lado, forneceu à axiomatização matemática um conteúdo, mas também um contributo formal – a metodologia. Deve-se a Eudóxio de Cnide a formulação do primeiro modelo de astronomia matemática e diversas contribuições fundamentais para a geometria. A sua teoria das proporções demonstrava que o domínio das relações entre as grandezas é mais vasto que o dos números; ela oferecia, entre outras, uma solução satisfatória para a questão da relação entre o lado e a diagonal de um quadrado, que parecia porém irracional em termos numéricos (uma vez que não se pode exprimir essa relação com o auxílio dos números inteiros). Foi assim que Eudóxio subordinou a aritmética à geometria e construiu para esta última uma forte estrutura axiomática. Foi todavia Euclides que, pelos seus Elementos, transformou definitivamente o saber geométrico numa cadeia de deduções rigorosas, onde uma sequência homogénea de teoremas podia desenvolver-se a partir de um dado conjunto de definições e de axiomas, considerados a priori como indemonstráveis. A partir de Euclides, a geometria apresenta-se como um saber cumulativo, capaz de integrar acrescentos sem que sejam postas em causa a coerência e a estruturação globais da disciplina; no século III a.C., por exemplo, a teoria das curvas cónicas de Apolónio de Perga e as descobertas de Arquimedes em geometria, em estática e em mecânica engrandeceram o edifício construído por Euclides sem causar dano aos seus fundamentos. A astronomia matemática A astronomia merece um lugar à parte numa exposição sobre a história da matemática grega, nomeadamente porque as reflexões empreendidas na Academia desempenharam um papel decisivo na sistematização da disciplina. Platão havia estabelecido o quadro das normas gerais no interior do qual uma

astronomia de vocação científica se deveria desenvolver. Tratava-se de princípios ligados à visão de conjunto que o filósofo elaborara, apoiando-se em particular nas reflexões conduzidas pelos meios pitagóricos. Mas o ponto mais importante é que Platão parece haver estabelecido as bases daquilo a que se chama «o universo de duas esferas», a saber a imagem do cosmos que dominará sem rival durante quase dois milénios (até à publicação em 1543 do As Revoluções das Orbes Celestes de Copérnico). O modelo cosmológico antigo propunha duas esferas fundamentais: uma, no centro do universo, era constituída pela Terra imóvel (na época antiga, somente Aristarco de Samos, no século III a.C., propôs um modelo que colocava o Sol na posição central); a outra, situada nos confins do cosmos, era constituída pela esfera das estrelas fixas. A estrutura e o movimento – quer ele seja global ou limitado a cada um dos astros – do universo não poderiam ser pensados senão segundo este esquema de conjunto, que permaneceu como quadro cosmológico de referência de todo o pensamento antigo (embora tenha conhecido diversos modelos cinemáticos). Dado que os astros são substâncias eternas e imutáveis, os seus movimentos não podem ser senão circulares (sendo o círculo a figura perfeita), regulares e uniformes, ou seja racionais. Contudo, a observação revela uma série de comportamentos desviantes dos astros e dos planetas que não respeitam tais princípios filosóficos. Poderá dizer-se que toda a astronomia antiga, atravessada por diferentes modelos de explicação, está marcada por esforços que visam referir a aparente irregularidade dos movimentos planetários à combinação de uma série de movimentos, cada um dos quais apresenta as características de circularidade, regularidade e uniformidade estabelecidas por Platão. A orientação geral da astronomia matemática antiga é dada por um testemunho do neoplatónico Simplício (século VI d.C.), que avançava que a intenção de Platão era a de «salvar os fenómenos», na ocorrência descobrindo quais os movimentos uniformes e ordenados capazes de explicar as aparentes anomalias dos movimentos dos astros. Mas que anomalias eram essas? Tratava-se por exemplo do movimento anual do Sol no círculo da eclíptica (o círculo maior que o Sol percorre num ano); ora esse movimento não é uniforme mas mais rápido ou mais lento segundo o local percorrido. Tratava-se também das retrogradações que afectavam a revolução de todos os planetas ao redor da Terra (eles interrompiam o seu movimento em direcção a leste para retrocederem em direcção a oeste, e depois dirigiam-se de novo para leste).

Eudoxo propôs um modelo matemático complexo, visando integrar cada um desses movimentos irregulares na estrutura de diversos movimentos que eram eles próprios circulares, regulares e ordenados. Formulou a hipótese de que cada planeta fosse movido por uma série de esferas (mais ou menos numerosas segundo a complexidade do movimento aparente), providas do mesmo centro que a Terra (daí o seu nome de «sistema das esferas homocêntricas»). Endoxo imaginava que o planeta se encontrava na esfera mais interna de um certo sistema, e que o seu movimento fosse determinado pelo agenciamento dos movimentos do conjunto dessas esferas concêntricas; além disso, cada planeta apresentava uma inclinação diferente, o que permitia explicar que o movimento do planeta também tomasse diferentes inclinações; em consequência, o seu movimento aparente era dado pela resultante dos movimentos (circulares e regulares) das esferas ligadas à esfera a que esse planeta pertencia. O modelo de Eudoxo definia-se somente como hipótese matemática. Aristóteles retomou o modelo, dando porém uma consistência física às esferas, afirmando que elas eram constituídas por éter (a «quinta essência», uma matéria invisível e incorruptível). O sistema eudoxiano das esferas homocêntricas foi substituído (ou mesmo acompanhado) por outros modelos que conseguiram explicar melhor certas anomalias dos movimentos planetários. Foi provavelmente através de Apolónio de Perga e de Hiparco de Niceia que se impôs um outro modelo astronómico, baseado nas excentricidades e nos epiciclos. O modelo excêntrico imaginava que um planeta (por exemplo o Sol, considerado como um planeta pela astronomia antiga) se deslocava segundo um círculo e de maneira uniforme em torno de um centro que não era a Terra mas um ponto excêntrico, situado nas proximidades desta; assim se tornava possível explicar como esse planeta se podia achar mais próximo ou mais distante da Terra, embora girasse numa órbita perfeitamente circular. O modelo dos epiciclos formulava a hipótese de que um planeta se deslocava (segundo um movimento circular e uniforme) num círculo de pequenas dimensões, chamado epiciclo, cujo centro se deslocava por seu turno (sempre segundo um movimento circular e uniforme) num círculo mais vasto (o círculo deferente), tendo por centro a Terra ou um ponto excêntrico em relação a esta. Esse sistema permitia não só explicar o movimento retrógrado dos planetas, tornando-o facilmente compreensível, como também representar de modo visível a maior ou menor distância que separava um planeta de um observador terrestre.

Todas essas explicações foram compiladas e tornaram-se objecto de uma sistematização definitiva no século II d.C., com a grandiosa obra de Ptolomeu, a Composição Matemática (Syntaxis mathematikê), escrito conhecido sob o título arabizante de Almageste. A par dos Elementos de Euclides, o Almageste constituiria durante muito tempo a herança mais importante do pensamento matemático grego, extraordinário pela amplitude das suas observações e das suas medidas e pela sua capacidade para as estabelecer de acordo com modelos geométricos rigorosos. Mas poderia dizer-se também que o próprio sucesso da obra de Ptolomeu constituiria uma espécie de obstáculo epistemológico, pois, pelo menos até Copérnico, ele levou ao esquecimento e ao abandono da hipótese heliocêntrica formulada por Aristarco. MARIO VEGETTI 97 A República, VII, 534e. 98 Partes dos Animais, I, 5. 99 Odisseia, XVII, v. 381 e segs. 100 Pode ler-se esta proclamação num dos textos mais antigos do Corpus Hipocrático, «Dos locais no homem», cap. 46.

O atomismo antigo

O atomismo antigo desenvolve-se na Grécia do século V antes da nossa era. Os seus principais representantes são, sucessivamente, Demócrito (cerca de 460-cerca de 360 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.). Um e outro sustentam que os componentes últimos da matéria são corpúsculos indivisíveis, em movimento num vazio infinito. Todos os corpos compostos são constituídos por essas entidades «atómicas», ou seja «indivisíveis», de acordo com o significado do adjectivo grego átomos. Tomado literalmente, o atomismo é pois antes de mais uma doutrina física. Todavia, os seus apoiantes desenvolvem igualmente teses relativas à teoria do conhecimento e à ética. A teoria dos átomos e do vazio é por conseguinte o núcleo de um pensamento vocacionado para dar conta de todos os aspectos do real e da existência humana. Demócrito de Abdera incarna o primeiro atomista, ao qual se deverá associar igualmente Leucipo, que foi provavelmente seu mestre, mas cujo contributo doutrinário é difícil de definir. Conhecemos a filosofia dos primeiros atomistas por intermédio dos testemunhos antigos, alguns dos quais restituem certos fragmentos que, na sua maioria, concernem a moral. Os princípios da filosofia natural epicurista decorrem directamente do atomismo abderitano. Sob a inspiração de Epicuro, fundador de uma das mais importantes escolas do período helenístico – o Jardim –, o atomismo tal como o havia definido Demócrito goza de uma fortuna tanto mais inesperada quanto Platão não cita Demócrito em parte nenhuma e Aristóteles formula contra ele críticas radicais. Epicuro, por seu turno, dirige fortes objecções ao abderitano, mas no essencial conserva a sua teoria dos átomos. Autor de um vasto tratado intitulado Da Natureza (Peri phuseôs), do qual só nos restam alguns fragmentos, Epicuro resumiu o essencial da sua filosofia nas cartas e nas sentenças101 que chegaram até nós. Depois dele, a doutrina não sofrerá grandes evoluções. Será todavia enriquecida, nomeadamente pelo epicurismo romano, do qual Lucrécio (século I a.C.), autor do longo poema Da Natureza das Coisas (De rerum natura), é a principal figura. Diógenes de Enoanda (século II d.C.), autor de uma imponente inscrição mural situada no Sul da actual Turquia, é o último representante

conhecido do atomismo antigo. Para Demócrito e Leucipo, o átomo não é um ponto matemático, mas um poliedro. Em princípio, sendo fisicamente indivisível, ele não dispõe de partes separáveis. Os epicuristas, pelo seu lado, afirmam a existência de partes últimas do átomo – as minimae partes lucrecianas –, que equivalem às unidades de medida deste. Elas são no entanto inseparáveis do átomo e, por esse motivo, incapazes de produzirem por si mesmas os movimentos e as agregações102. Contra o monismo de Parménides e dos eleatas em geral, Demócrito pretende dar conta do movimento, o que o leva a estabelecer a existência do vazio (kenon), intervalo ilimitado necessário ao movimento dos átomos. Assim, o ser dos átomos ou o «algo» (den) opõe-se ao vazio entendido como não-ser ou «não-algo» (mêden). A partir daí, ainda contra Parménides, deve admitir-se que o não-ser não é absolutamente nada, pois ele não é menos que o ser103. Os epicuristas mantêm a dualidade átomos/vazio, ainda que concebam o vazio mais como um meio espacial do que como um simples intervalo vago entre os corpos. A partir deste par de princípios, os átomos e o vazio, os atomistas concebem uma combinatória ilimitada, capaz de dar conta de todas as modificações dos corpos compostos. Os princípios dela são muito simples: os átomos são ilimitados em número e movem-se incessantemente e em todos os sentidos no vazio; possuem um número ilimitado de formas; constituem os corpos compostos por simples agregação e as diferenças das formas atómicas determinam as propriedades dos compostos; os mundos são em número ilimitado e nascem ou perecem sob o mero efeito dos movimentos atómicos. No plano cosmogónico e cosmológico, os atomistas defendem pois uma imanência radical: nenhuma inteligência organizadora, nenhuma providência é convocada para justificar a existência dos mundos. Demócrito estima que um só princípio está na origem de todas as coisas: a Necessidade (anankê)104. A fecundidade explicativa desta teoria traduz-se por uma multidão de inquéritos especializados nos diferentes domínios da filosofia natural. Epicuro, embora afirmando a necessidade de conhecer os princípios da física, torna a pôr em causa a utilidade das ciências positivas particulares, considerando que elas não são necessárias à ausência de perturbação (ataraxia), único estado da alma que conduz à felicidade105. Epicuro e Lucrécio, ainda que retomem o essencial da teoria abderitana dos

átomos e do vazio, emendam-na em dois pontos importantes. Por um lado, as formas e as grandezas dos átomos não são em número absolutamente ilimitado106; por outro lado, o movimento atómico deve ser explicado com maior precisão. Para Epicuro, o próprio peso do átomo é a causa do seu movimento para baixo, não fazendo os choques mais do que modificar-lhe a trajectória107. Além disso, os epicuristas procuram justificar ao mesmo tempo a potência organizadora da natureza e a liberdade de agir. Para isso, introduziram um princípio de variação e indeterminação no movimento atómico, princípio que tem por efeito suscitar encontros de átomos e, por esse meio, agregações, mas também subtrair os movimentos deliberados à hegemonia da Necessidade, ou seja ao determinismo. Assim, Lucrécio – tal como porventura Epicuro antes dele – supõe que a queda dos átomos é acompanhada por um desvio (clinamen) ínfimo. Isso explica, por um lado, a génese espontânea das combinações corpóreas – e desse modo a formação dos mundos – e, por outro lado, a possibilidade do acto livre108. Além disso, os epicuristas modificam substancialmente a maneira de conceber a relação entre os átomos e os compostos. Estes últimos já não são, como para Demócrito, substratos precários de ilusórias qualidades sensíveis, mas existentes de pleno direito. Com efeito, Demócrito afirma que só existem realmente, ou na verdade, os átomos e o vazio, não sendo tudo o resto – e nomeadamente as propriedades perceptíveis dos compostos – mais que o resultado das nossas crenças ou das nossas convenções109. Assim, os epicuristas classificam os átomos e os compostos na categoria única de «corpos»: «Entre os corpos, uns são compostos e os outros aqueles de que os compostos são feitos110.» A diferença entre átomos e compostos não é já uma distinção ontológica, mas uma diferença funcional no interior de uma mesma categoria física. Lucrécio insiste aliás na função imediatamente produtora do átomo: os átomos são não só a «matéria» (materies; materia) de que as coisas são feitas, mas também os «princípios primeiros das coisas» (primordia rerum), os «corpos primeiros» (corpora prima), as «sementes das coisas» (semina rerum) ou os seus «princípios genitores» (genitalia rerum). Neste sentido, para o atomismo epicurista, a categoria fundamental da filosofia natural já não é o átomo, mas o corpo. As divergências entre o atomismo abderitano e o atomismo epicurista são mais fortes ainda no plano da teoria do conhecimento. Demócrito, sustentando que as qualidades sensíveis não possuem outra existência além da

convencional, e que só os átomos e o vazio existem realmente, é levado a adoptar uma atitude paradoxal em relação ao testemunho dos sentidos. Embora este último seja necessário às actividades humanas em geral, e também, no domínio filosófico e científico, ao conhecimento dos fenómenos naturais, só a razão tem acesso aos princípios – os átomos e o vazio – que, na verdade, são imperceptíveis. Ao juízo racional e «legítimo» que os capta opõe-se o juízo «bastardo» do pseudoconhecimento sensível111. Certos fragmentos do Abderitano extraem desse paradoxo uma consequência extrema, uma forma de pré-cepticismo que não poupa nem os sentidos nem a razão, razão pela qual se tornaram famosas estas palavras: «Nada sabemos realmente, pois a verdade está no fundo do poço112.» A teoria epicurista do conhecimento baseia-se num «cânone», conjunto de regras ou doutrina dos critérios de verdade113, que rompe nitidamente com o racionalismo crítico de Demócrito. Para Epicuro, a sensação, longe de ser fonte de erro ou de ilusão, é o nosso primeiro critério de conhecimento e o primeiro critério da verdade, pois os outros conhecimentos derivam dela. Toda a sensação é por si mesma portadora de uma verdade irredutível que ela é a única a poder exprimir. Assim, Lucrécio defende a infalibilidade dos sentidos ao mostrar que nenhuma sensação particular, como a visão ou o odor, pode ser refutada por outra sensação particular: a visão não pode ser corrigida pela audição, a audição pelo tacto, o tacto pelo gosto, pois cada sentido tem um poder particular e separado114. Quanto à razão, ela brota da sensação e não pode portanto refutá-la, pois destruir-se-ia a si mesma ao pretender refutar a sua própria origem115. Deve portanto admitir-se que o erro provém de outro movimento psíquico, distinto da sensação. Se, ao longe, vejo redonda uma torre quadrada, não é a sensação em si que abusa de mim, mas a opinião que eu formo por ocasião da sensação116. Para o compreender, precisamos de voltar à física. Cada corpo composto emite finas películas, simulacros, que lhe reproduzem a forma e lha tornam perceptível. Ora, pode suceder que os simulacros da torre quadrada que vejo ao longe me tragam a imagem de uma torre redonda por causa da erosão que o fluxo deles sofre ao atravessar o ar numa longa distância. Não obstante, a imagem finalmente recebida é uma imagem real: ela é a presença efectiva daquilo que emana do objecto visado. A sensação em si mesma não é portanto falsa, pois é verdade, quando apercebo a torre redonda, que a percebo redonda, embora ela própria seja de forma cúbica. O erro provém portanto daquilo que é «acrescentado pela opinião» (prosdoxazomenon) e que, subsequentemente, não é objecto de uma

verificação117. Os outros critérios estão directamente ligados à sensação. Diógenes Laércio (X, 31) conta que, segundo o Cânone de Epicuro, os critérios da verdade são as sensações, as pré-concepções (prolêpsis), noções gerais derivadas das sensações, e as afecções (pathos). Estas últimas revelam o prazer e a dor (X, 34), como uma espécie de sentido interno. As afecções são não só os indicadores das nossas disposições internas – indicadores pelos quais sentimos que sofremos ou experimentamos prazer –, mas também critérios de acção, ou seja sinais evidentes daquilo que se deve evitar ou perseguir. Elas gozam portanto de um papel central na ética epicurista. Com efeito, a frase-chave de Epicuro é que «o prazer é o princípio e o fim da vida bem-aventurada». Os homens procuram naturalmente a vida feliz, que tem por fito «a saúde do corpo e a ausência de perturbação (ataraxia) na alma»118. A ausência de perturbação não é mais do que o reverso do próprio prazer. Este é portanto o fito da vida feliz, o nosso bem primeiro e «conatural119» (sungenikon ou sumphuton). Não se desfruta todavia dos verdadeiros prazeres a menos que se saiba estimar com prudência (phronêsis) os prazeres ou desprazeres que possam resultar de uma ou outra acção120. A felicidade epicurista é portanto assunto de disciplina, de cálculo e de razão. Ela não se encontra no puro laço afectivo ou na satisfação imediata de qualquer desejo. Só participam directamente na felicidade os desejos naturais e necessários, como a filosofia e a amizade, por oposição aos desejos vãos, como o desejo de aumentar a riqueza pessoal. Não é pois de espantar que a ética epicurista seja uma ética sábia, instruída em particular pelas lições da filosofia natural. Esse é um ponto que os fragmentos éticos de Demócrito, onde a tónica é posta na alegria trazida pela tranquilidade ou equilíbrio da alma (euthumiê), apenas sugerem. Para Epicuro, a filosofia natural marca os limites do que nos pertence, ensinando que o que está para além não se deve temer. O caso da morte mostrao bem: a alma é corpórea, composta de átomos, pelo que as suas funções dependem da proporção desses átomos no agregado que ela forma com o corpo. Ela não sobrevive pois à morte do corpo e nós não experimentamos mais nenhuma sensação uma vez transposto esse limite. Sabendo que a morte é uma cessação da sensação, e que nenhum «eu» subsiste se já não pode sentir, sabemos por antecipação que não seremos contemporâneos da nossa própria morte. Esta não é portanto «nada para nós», não experimentamos por ela

qualquer dor, ainda que ela já não seja de temer121. Assim, conhecendo a natureza – mortal – da alma, e sabendo por outro lado que os deuses em nada se preocupam com os assuntos do mundo, libertamo-nos da perturbação engendrada pelo medo da morte e dos castigos infernais. PIERRE-MARIE MOREL 101 O livro X das Vidas e Doutrinas dos Filósofos, de Diógenes Laércio, reproduz a Carta a Heródoto, sobre a física, a Carta a Fitócles, sobre os meteoros, a Carta a Meneceias, sobre a ética, e quarenta máximas morais, as Máximas Capitais, às quais se devem acrescentar as Sentenças Vaticanas. 102 Epicuro, Carta a Heródoto, 59; Lucrécio, Da Natureza das Coisas, I, 599-634. 103 Ver por exemplo: Aristóteles, Metafísica, A, 4, 985b5-9 (DK 67A6); Plutarco, Contra Colotes, 1108F (DK 68B156). 104 Ver Diógenes Laércio, IX, 45 (DK 68A1); Leucipo, DK 67B2. 105 Carta a Heródoto, 78-81. 106 Ibid., 42-43 e 55-56; Da Natureza das Coisas, II, 496-499. 107 Carta a Heródoto, 61; Da Natureza das Coisas, II, 84-85. 108 Da Natureza das Coisas, II, 184-293. 109 Ver por exemplo Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 135 (DK 68B9). 110 Carta a Heródoto, 40-41; comparar com Da Natureza das Coisas, I, 483-484. 111 Ver por exemplo Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 138-139 (DK 68B11). 112 Citado por Diógenes Laércio, IX, 72 (DK 68B117). 113 Ver Diógenes Láercio, X, 31-34; Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 203-216. 114 Da Natureza das Coisas, IV, 486-490. 115 Ibid., IV, 483-485. Ver também Diógenes Laércio, X, 32. 116 Da Natureza das Coisas, IV, 353-363. Ver Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 208-209. 117 Carta a Heródoto, 50. 118 Carta a Meneceias, 128. 119 Ibid., 129. 120 Ibid., 129-130.

121 Ibid., 124-127.

O estoicismo

O movimento intelectual que é conhecido pelo nome de estoicismo nasceu no final do século IV a.C. em Atenas122. No seu início, ele reduz-se à actividade filosófica do fundador da escola, a saber Zenão, originário de Citium, na ilha de Chipre. Seduzido pela leitura das «obras socráticas», Zenão foi para Atenas a fim de aprofundar o seu conhecimento delas. Sentiu um verdadeiro choque numa leitura pública de certas partes do livro ii das Memoráveis de Xenofonte e perguntou onde poderia encontrar homens como o Sócrates que acabavam de lhe descrever. Indicaram-lhe Crates de Tebas, filósofo cínico de nomeada. Levado pelo seu entusiasmo socrático, Zenão devotou-se aos ideais da filosofia cínica: tomou a decisão de viver «conformemente à natureza» e de repensar as convenções da sociedade civil a partir dos seus fundamentos123. Foi somente mais tarde, após investigações aprofundadas em diversos domínios da filosofia, que Zenão fundou uma escola empenhada na via de uma ciência universal. Essa ciência compreendia a física, incluindo nesta a cosmologia e a teologia, a análise dos modos formais de raciocínio e a epistemologia, bem como uma certa aproximação à ética e à política onde se sustentavam os valores civis ao mesmo tempo que se repensavam radicalmente os fundamentos destes. Essa escola exerceu a sua influência durante pelo menos meio milénio, e conseguiu a transição do ambiente cultural grego para o dos romanos, atraindo a si as simpatias de pensadores oriundos de meios sociais extremamente variados, do intelectual de carreira ao amador cultivado, do antigo trabalhador e do escravo aos membros da elite romana do mais elevado nível hierárquico. Porém, no seu início a escola era pequena. Na realidade, os primeiros discípulos de Zenão foram mais conhecidos por «zenonianos» do que por «estóicos»124, ao passo que os discípulos de Epicuro foram desde o início conhecidos por «epicuristas». Contudo, o movimento fundado por Zenão sobreviveu ao seu fundador e adquiriu uma identidade independente. Os filósofos que optaram por seguir Zenão durante a vida deste formavam um conjunto heteróclito. Alguns estavam por exemplo predispostos à tarefa muitas vezes ingrata de conselheiros políticos (Perseu de Citium, por exemplo,

mantinha laços estreitos com a corte de Antígona da Macedónia e Esfero de Boristena frequentava a corte de Ptolomeu em Alexandria, sendo ao mesmo tempo conselheiro de Cleomeno de Esparta; estes dois filósofos tinham em conjunto uma concepção pró-espartana da organização política). Outros discípulos de Zenão foram menos fiéis aos princípios filosóficos do seu mestre, como Dionísio de Heracleia, que, após haver estudado com numerosos mestres antes de Zenão, acabou por abandonar as doutrinas deste em proveito do hedonismo, recusando em particular a ideia segundo a qual a dor é indiferente125. Os mais célebres discípulos de Zenão foram incontestavelmente Cleanto de Assos e Ariston de Quios, dois rivais cujas interpretações da herança zenoniana divergiam sensivelmente. Tal como Hérilo de Cartago, Ariston pensava que o cerne das doutrinas da escola era a ética num sentido preciso, ou seja uma ética socrática de inspiração cínica. Cleanto, pelo contrário, afirmava que a escola devia considerar a física, a teologia, mas também a epistemologia e a lógica como objectos de estudo ao mesmo nível da ética. Esforçou-se por encontrar uma combinação satisfatória entre esses domínios de estudos, que acabaria por caracterizar a escola. Não é pois de espantar que Ariston se tenha afastado da escola estóica para ministrar o seu próprio ensino. Os seus discípulos foram chamados de «aristonianos», mas não foram muitos, e a influência da escola de Ariston não perdurou126. Cleanto permaneceu à frente da escola durante trinta anos, desde a morte de Zenão em 262-261 até à sua própria morte em 230-229127. O seu discípulo Crisipo de Soles abraçou as teses de Cleanto a respeito da tradição estóica e desenvolveu-as. Após um período em que ministrou o seu ensino de maneira autónoma128, Crisipo retomou a bandeira da escola. Teve o cuidado de se manter afastado da política, ao contrário dos primeiros estóicos; além disso, opunha-se com vigor à interpretação aristoniana do estoicismo. A sua actividade filosófica consistiu em enriquecer e em consolidar a ideia que Cleanto fizera da doutrina da escola, para a defender contra os seus adversários, tanto no interior como no exterior da escola. Crisipo é conhecido por haver defendido encarniçadamente a concepção zenoniana da epistemologia estóica (que mistura uma crença na possibilidade de um saber inabalável com posições materialistas e empiristas) contra a Academia céptica (cf. infra). A sua importância na história da escola resume-se muito bem ao que acerca dela diz um anónimo: «Se Crisipo não existisse, não existiria o

Pórtico129.» Os seus discípulos Zenão de Tarso e Diógenes de Babilónia também ficam à frente da escola, e depois o discípulo de Diógenes, Antipater de Tarso130. A versão do estoicismo de Crisipo, ela própria descendendo em linha recta da de Cleanto, estava destinada a tornar-se canónica e foram as suas teses que dominaram a escola durante gerações. Mas esse ascendente da «ortodoxia» (conceito sempre delicado quando se aplica a um movimento filosófico em pleno desenvolvimento) não durou para sempre. Com Panécio no século II a.C. e Posidónio no século I, o espírito da doutrina da escola alarga-se. Estes dois escolarcas estavam prestes a pôr de novo em causa certos aspectos da ortodoxia nos domínios da ética e da física, e a abrir a escola não só aos argumentos e às teorias dos seus rivais contemporâneos, mas também à influência dos gigantes da filosofia do século IV, Platão e Aristóteles. Muito diferente era sem dúvida a abordagem de Antipater de Tarso, que afirmava que Platão subscrevia uma posição estóica ainda que esta não fosse interpretada «correctamente131». A doutrina estóica ganhou maior amplitude aquando do desaparecimento das grandes escolas em Atenas, no seguimento das convulsões políticas e militares da guerra de Mitrídates, que terminou com o saque da cidade pelo general romano Silas no ano 86 – acontecimento da maior importância na história da escola, mesmo se a partir de meados do século II a.C. a escola já começara a estender-se geograficamente, em particular para Rodes. Essa emancipação em relação à tradição levou os estóicos a debruçarem-se mais sobre os aspectos cínicos da doutrina do primeiro período. Nos séculos I e II d.C., Musonius Rufus, Séneca, Epicteto e Dion Crisóstomo seguiram, pelo menos durante um certo tempo, um curso mais restrito, no qual a ética ocupava o primeiro lugar. Puseram em causa a ideia-guia de Crisipo segundo a qual as três partes da filosofia são essenciais à vida filosófica e estão intimamente ligadas umas às outras. É muito natural que o imperador romano Marco Aurélio, cujo diário intelectual não é obra de um filósofo profissional, se tenha preocupado ainda mais com a ética e haja dado provas de uma grande abertura de espírito quanto ao modo como ela se enraizava na física. A influência do estoicismo na cultura – entendida em sentido lato – dos séculos I e II foi profunda e extensa, embora pareça haver declinado sensivelmente depois, a não ser nos círculos filosóficos, particularmente entre os platónicos. O médicofilósofo Galeno opunha-se à escola estóica por defender o platonismo.

Durante o primeiro período do Império, certos mestres estóicos prosseguiram a sua actividade apesar do desaparecimento institucional da escola ateniense; escreveram-se vários tratados estóicos bastante escolares durante esse período. Cornutus, no século I d.C., escreveu um tratado de teologia, Hiérocles deixou um longo tratado, Elementos de Ética, e Cleómedes abordou a astronomia numa perspectiva estóica. A obra do peripatético Alexandre de Afrodísia ensina-nos que o estóico Filopator prosseguiu as suas investigações sobre a causalidade física e sobre o determinismo, questões que estavam no cerne dos trabalhos de Crisipo. A criação de uma cátedra de Filosofia Estóica em Roma pelo imperador Adriano (a par das cátedras de Platonismo, de Aristotelismo e de Epicurismo) marcou certamente o reconhecimento da importância de uma filosofia institucionalizada para a educação e a vida social da elite romana, mas não permitiu obstar ao lento e longo declínio da escola. Filosofia Ainda que as doutrinas da escola tenham evoluído consideravelmente durante o meio milénio da sua existência, a versão mais acabada e mais influente do estoicismo continua a ser seguramente a de Crisipo e dos seus discípulos. É cómodo, tanto para nós como para os próprios estóicos, apresentar a filosofia do Pórtico distinguindo nela três «partes»: a lógica, a física e a ética. Esta divisão, que remonta ao platónico Xenócrates, está longe de ser rígida. Para Zenão, na realidade trata-se mais de uma divisão do discurso sobre a filosofia do que de uma divisão da própria filosofia132; outros filósofos (como Séneca na Carta 39) afirmam com insistência que a filosofia no seu conjunto é uma, e que a divisão em partes é certamente útil mas totalmente artificial. Podem existir divergências entre os estóicos quanto à ordem de aprendizagem destas partes. Segundo eles, esta ordem é em certa medida efeito de uma convenção; disso é testemunha a necessidade de entrecruzar os temas próprios a cada uma dessas partes no ensino133. Sabe-se que os estóicos empregavam diversas analogias para descreverem a relação das partes da filosofia entre si e relativamente ao todo, e a maior parte delas implica uma concepção holista e orgânica da filosofia. A única imagem que tende a fazer de uma parte da filosofia um elemento autónomo é a que compara a lógica a um cercado que rodeie um campo cultivado, onde a ética designa os frutos que crescem, a física as árvores que os sustentam ou a terra que produz a colheita. Através desta imagem, a física surge numa relação íntima e directa com a ética

da qual se recolhem as benfeitorias (a física é então a árvore de onde brotam as azeitonas ou a terra onde cresce o trigo), ao passo que a lógica é um instrumento de protecção que parece arredado dessas benfeitorias. Não se pode certamente conceber que existam azeitonas sem oliveiras, nem trigo sem terra apropriada e trabalhada para o efeito. Mas a colheita pode ser protegida de muitas maneiras (muros de pedra, ameias, cães de guarda ou jardineiros, entrincheiramento numa ilhota), o que implica uma certa contingência quanto ao papel da lógica no seio da filosofia. Porém, noutras analogias, a lógica, no seu papel de protecção, é muito mais solidária com aquilo que defende: ela é a casca do ovo, ou então os ossos e os tendões do corpo animal134. Física A física estóica é profundamente influenciada pelo Timeu de Platão e pela cosmologia de Aristóteles. O cosmos é uno, é um todo finito, composto pelos quatro elementos fundamentais da matéria (a terra, o ar, o fogo e a água) e seus compostos. (Os estóicos consideravam que existem dois princípios nos elementos: um princípio activo divino, e um princípio inerte, sem qualidade, e passivo; mas estes dois factores ou princípios nunca estão separados um do outro nos corpos.) Tal como Platão, os estóicos pensam que o cosmos é um ser vivo. No entanto, a alma deste não é incorpórea: ela é feita de pneuma, uma espécie de sopro composto de ar e de fogo (ainda que a sua natureza seja controversa no seio da escola). O cosmos é com efeito um pleno físico, onde não existe nem vazio no interior (embora o cosmos esteja rodeado por um espaço vazio infinito), nem entidades causais eficientes incorpóreas. A causa da unidade do cosmos segundo os estóicos é uma solução alternativa à teoria aristotélica do lugar natural. Eles afastam-se de Platão e de Aristóteles ao considerarem que os corpos celestes fazem parte de um mesmo sistema corpóreo (não há separação entre os mundos sublunar e supralunar, tal como não existem almas divinas incorpóreas operando no universo). Enquanto Platão pensa, ao que parece, que foi um deus-artesão que criou o cosmos, e Aristóteles recusa a teoria da fabricação do mundo para preferir a da existência eterna do universo, os estóicos defendem a ideia de que há ciclos de criação e de destruição do universo, sob a influência de uma entidade activa divina, Zeus, responsável tanto pelo eventual fim do cosmos numa conflagração ígnea como pela sua regeneração a partir do fogo passando por uma zona húmida, até à reaparição dos quatro elementos conhecidos do cosmos.

No sistema estóico, todo o acontecimento é causado e determinado por uma cadeia racional e providencial de causas e de efeitos, que se reproduz naturalmente em cada ciclo de criação e de destruição do cosmos. Só os corpos podem ter causas ou efeitos. Também existem incorpóreos no sistema estóico: o vazio, o espaço, o tempo, os «exprimíveis» (lekta), o conteúdo intelectual do discurso e do pensamento. Mas a alma, o espírito e deus são entidades causais que interagem com outros corpos; por conseguinte, eles são de cariz material, ou seja feitos do pneuma anteriormente mencionado. A alma humana é da mesma espécie que a dos deuses. Por isso o ser humano perfeito é indiscernível, tanto fisicamente como moralmente, do ser divino. O determinismo causal que caracteriza este sistema físico suscita críticas dos seus adversários, mas Crisipo e outros estóicos conseguem demonstrar que a forma de determinismo por eles defendida não exclui a responsabilidade moral e a possibilidade de cada um se tornar melhor, como pressupõe a sua teoria ética. Ética No domínio ético, os estóicos sustentam uma forma de eudemonismo: o fito da vida humana é o cumprimento do fim (telos) que lhe é próprio. Este fim consiste em viver conformemente à natureza (à nossa natureza e à do cosmos; compreende-se assim a importância da ideia segundo a qual a nossa natureza é idêntica à potência divina que estrutura o mundo natural). A vida perfeitamente conforme à razão é a única vida virtuosa e feliz, e o melhor guia para conduzir essa vida perfeita e divina, segundo Crisipo, é a compreensão dos eventos que sucedem por natureza. A vontade cínica de seguir mais a natureza do que as convenções torna-se, nos estóicos eminentes, o esforço de viver em conformidade com essa ordem própria do cosmos regido pela providência. O ideal da vida humana racional que se encontra no Timeu implica igualmente que a vida humana e as suas actividades se inspirem nos modelos do cosmos (o homem imita o modelo circular perfeito dos corpos divinos), mas é aqui que as semelhanças acabam. Na corrente dominante do estoicismo, o ideal de vida é muito mais naturalista, e é orientado tanto para a acção como para a contemplação. Os estóicos da corrente aristoniana parecem mais socráticos do que platónicos nesse ponto: para exercer a virtude, afirmam eles, o homem não precisa de estabelecer uma teoria física elaborada. Todos os estóicos estão no entanto de acordo em afirmar que a virtude humana designa o estado ideal da alma racional unificada; nesse sentido eles subscrevem o ideal socrático do Protágoras ou do Fédon, mais do que o modelo platónico ou aristotélico da

harmonização das «partes» da alma entre elas, tendo cada uma uma função própria e comportando-se de maneira quase autónoma. Viver em acordo com a natureza significa desde então ter uma vida activa, ter um ideal moral de governo de si, e esforçar-se por atingi-lo. Os meios da educação moral que os estóicos retêm parecem inspirados por Aristóteles: tornamo-nos corajosos ao cumprir acções corajosas, ainda que à primeira vista a maior parte das acções corajosas não atinja o ideal almejado. O facto de os estóicos terem a virtude por ideal coloca-os perante uma série de paradoxos acerca do progresso moral (prokopê): o facto, por exemplo, de os erros morais serem «equivalentes» e de ninguém ser verdadeiramente feliz antes de atingir a «perfeição» no domínio moral. Encontra-se o mesmo absolutismo paradoxal na psicologia moral dos estóicos: dado que a alma humana é una (não existem partes irracionais a controlar, trata-se somente de aperfeiçoar o exercício da sua razão), a única maneira de preservar a liberdade dela contra as perturbações devastadoras e dolorosas a que chamamos paixões (pathê) consiste em erradicar pura e simplesmente todo o erro e toda a forma de fraqueza moral. Só o «sábio» pode atingir esse estado; infelizmente, os modelos a imitar são em todo o caso muito pouco numerosos, sendo Sócrates a única figura de sábio que não se presta a controvérsia. Estas consequências paradoxais da teoria moral expuseram os estóicos a numerosas críticas que se reclamavam do «senso comum» na Antiguidade, mas muitos pensavam que as aspirações descritas na teoria moral estóica constituíam um poderoso incentivo para melhorar o carácter, o pensamento e a acção; pelo menos isso empenhava os indivíduos na via, que eles jamais haveriam empreendido por si mesmos, dessa vida estável e racional, que os estóicos pensavam ser o horizonte natural da vida de cada um. Lógica e teoria do conhecimento A lógica ocupa um lugar considerável no estoicismo: ela inclui tanto a retórica como a dialéctica (que abrange o problema do conhecimento adquirido por meio de conversas sob a forma de perguntas e respostas breves). A retórica estóica é célebre pela sua austeridade e pela sua maneira de persuadir sem apelar às emoções. A dialéctica concerne por seu turno o conhecimento do que é verdadeiro, falso e nem verdadeiro nem falso. Acerca deste ponto, deve reconhecer-se a força extraordinária e a novidade das propostas estóicas. Elas consistem numa análise aprofundada das inferências, dos paradoxos e das ambiguidades que ocupavam a frente do palco no século IV entre os megáricos,

em Aristóteles e nalguns outros. Os estóicos desenvolvem uma teoria semântica complexa, baseada no conceito de exprimível (lekton), e são os primeiros a interessarem-se pelo conteúdo dos enunciados e dos pensamentos enquanto tais (contrariamente a Aristóteles e a Platão, para os quais o sentido da proposição reside na predicação de uma propriedade). Assim, para conduzir a análise formal das inferências válidas (a lógica no sentido restrito do termo), os estóicos, e mais particularmente Crisipo, desenvolvem uma lógica proporcional fundada no reconhecimento de cinco formas elementares de inferência válida, às quais chamam «indemonstráveis». I. Se o primeiro, então o segundo. O primeiro logo o segundo. II. Se o primeiro, então o segundo. Não o segundo logo não o primeiro. III. Não o primeiro e o segundo. Ora, o primeiro logo não o segundo. IV. Ou o primeiro, ou o segundo. Ora, o primeiro logo não o segundo. V. Ou o primeiro, ou o segundo. Ora não o segundo logo o primeiro. Com o auxílio destes indemonstráveis e de alguns outros princípios lógicos e metalógicos, os estóicos consideram poder analisar todas as outras formas de

inferências válidas e provar a validade destas. A análise que fazem dos enunciados não assertivos, tanto dos sofismas como da sua solução, bem como de certos paradoxos como o do mentiroso, constitui um contributo maior para a história da lógica, capaz de rivalizar com os trabalhos pioneiros de Aristóteles nos Analíticos, nos Tópicos e nas Refutações Sofísticas. Os estóicos servem-se além disso da lógica como de um instrumento de defesa nas discussões. Na medida em que os estóicos crêem na fiabilidade das percepções sensíveis, e que o conteúdo da percepção pode constituir um fundamento sólido para a formação de conceitos e de inferências, é crucial mostrarem aos seus adversários (em geral os académicos durante o período céptico da escola) que existe pelo menos um tipo de percepção sensível fiável. Instaurou-se um debate acerca daquilo a que se chama a representação compreensiva (phantasia katalêptikê) no início do século III a.C., debate que se prolongou até Cícero, sem que se possa reconhecer um claro vencedor. Os estóicos permaneceram convictos de que existem percepções sensíveis fiáveis, que contêm o seu próprio critério de verdade, e que representam as coisas tal como elas são na realidade. Quando os sentidos fornecem uma representação, podemos, bem entendido, examiná-la minuciosamente antes de a declararmos verdadeira e de lhe darmos o nosso assentimento. A objecção céptica consiste sumariamente em afirmar que se pode sempre encontrar ou imaginar uma representação errónea, indiscernível de uma representação fiável, de modo que a sua verdade jamais possa ser aferida com certeza. Os detalhes desta polémica relevam mais da história do cepticismo, mas as objecções cépticas designam os pontos fracos que caracterizam as teorias representacionalistas da percepção sensível. O estoicismo teve uma influência considerável, desde a sua fundação até ao fim da Antiguidade, de maneira directa (sobretudo no período helenístico e no início do Império romano) ou ao produzir imitadores ou adversários. Só se começa a avaliar a influência exercida pelo estoicismo aquando da renovação do platonismo, do século I d.C. a Simplício, no século VI. O estoicismo suscitou algumas retomas de interesse nos séculos seguintes, e a sua influência é ainda tangível nos filósofos modernos. BRAD INWOOD 122 Ver os capítulos 1 (D. Sedley) e 2 (C. Gill) da obra The Cambridge Companion to the Stoics (Cambridge, Cambridge University Press, 2003) para outras precisões relativas à história da escola.

123 Diógenes Laércio, VII, 2-3. 124 Ibid., VII, 5. 125 Ibid., VII, 37. 126 Ibid., VII, 61. 127 Ibid., VII, 176. 128 Ibid., VII, 179. 129 Ibid., VII, 183. 130 Ver Der Neue Pauly, s.v. «Chrysippus» para mais pormenores. 131 Stoicorum veterum fragmenta (doravante SVF), textos recolhidos e editados por J. von Arnim, Estugarda, Teubner, 1978 (1.a ed. 1905), Antipater, 56. 132 Diógenes Laércio, VII, 39. 133 Ibid., VII, 40. 134 Ibid., VII, 39-40.

O cepticismo antigo

Sexto Empírico, o único céptico antigo do qual conservámos os livros, inicia os seus Esboços Pirrónicos com uma distinção entre três tipos de filósofos: os dogmáticos, que pretendem haver descoberto o verdadeiro, os académicos, que afirmam ser impossível descobri-lo, e os «cépticos», que o procuram ainda. Este último qualificativo provém de skepsis, que significa «observação», «exame», «pesquisa». É aqui definido por oposição ao conhecimento da verdade e à negação de toda a verdade. Esta segunda oposição, surpreendente do ponto de vista da ideia moderna e contemporânea do cepticismo, testemunha uma rivalidade entre os filósofos pirrónicos, dos quais Sexto Empírico é o último representante conhecido, e a Nova Academia. Se os primeiros são os únicos a dizerem-se «cépticos», ambas as escolas pretendem pôr em causa de maneira radical a crença na verdade das opiniões mantidas pela grande maioria dos filósofos e dos homens, ainda que ambas possam ser tidas por cépticas no sentido lato do termo que ainda hoje prevalece. A esta primeira disparidade problemática do cepticismo antigo juntam-se as diversidades e as evoluções internas de cada uma destas duas correntes. Pirro e Timão Pirro de Élis (cerca de 365-275 a.C.) é tradicionalmente considerado o primeiro verdadeiro céptico da história da filosofia. Esta tese histórica coloca porém dois problemas. Podemos antes de mais encontrar numerosos argumentos cépticos em autores anteriores, como Heraclito, Xenófanes, Parménides e Zenão de Eleia, Protágoras e Górgias, Sócrates, Demócrito, ou mesmo Platão. A maior parte deles foram aliás invocados pelos pirrónicos ou pelos académicos como precursores da sua própria filosofia. Mas os primeiros estimavam Pirro como mais radical do que todos os seus predecessores. Se nos debruçarmos sobre o único testemunho fiável e preciso de que dispomos acerca da filosofia de Pirro, descobrimos porém um pensamento bem diferente do cepticismo tal como ele é considerado desde Descartes. Segundo o seu primeiro discípulo, Timão de Flionte (cerca de 325-235),

Pirro teria declarado que «as coisas são igualmente indiferentes, instáveis e indecidíveis, ainda que nem as nossas sensações nem as nossas opiniões as digam verdadeiras ou falsas, ainda que não nos devamos fiar nelas mas ser sem opinião, sem inclinação e inabalável, ao dizer, a propósito de cada uma, que ela é ou que ela não é, ou ao mesmo tempo que ela é e não é, ou que nem ela é nem não é135». Por um lado, o questionamento dos nossos conhecimentos é aqui deduzido da indeterminação das coisas, ao passo que o cepticismo começa geralmente pela crítica das nossas percepções e crenças. Por outro lado, Pirro não se contenta em duvidar da objectividade delas, mas pretende dispensá-la inteiramente em proveito de uma dissolução de toda a indeterminação. A propósito do ser, do conhecimento deste e do discurso, Pirro parece assim assumir posições próximas das que Aristóteles atribui aos que negam o princípio da contradição e que ele julga absurdas136. Segundo Timão, estas posições conduziam primeiramente à aphasia, ou seja ao silêncio ou a um uso novo da linguagem que não implica qualquer determinação, e depois à ausência de perturbação (ataraxia). Como todos os filósofos antigos, Pirro pretendia com efeito conduzir uma vida em acordo com as suas posições e encontrar nela a felicidade. A sua filosofia da indistinção aplicava-se não só às propriedades mas também (e talvez sobretudo) aos valores – positivos ou negativos, utilitários, estéticos ou morais – que as coisas e as acções possuíam para o conjunto dos homens. Desde então, Pirro não tinha repugnância em cumprir tarefas reputadas vis, e esforçava-se por se manter indiferente aos eventos ou às pessoas que o rodeavam, e mesmo insensível à dor, inspirando-se porventura nos sábios indianos que havia conhecido ao acompanhar Alexandre, o Grande nas suas campanhas137. Não tendo Pirro escrito nada, foi o seu discípulo Timão quem se encarregou de dar a conhecer ou defender o seu pensamento e sobretudo a sua vida, louvadas por Timão como superiores às de todos os outros homens pela sua lucidez e a sua tranquilidade perfeitas. Timão parece além disso haver-se empenhado em criticar e zombar de todos os filósofos do passado e do seu tempo, conferindo assim ao pirronismo a sua dimensão fortemente polémica e a sua ambição de ultrapassar todas as filosofias existentes, reduzidas a produtos ilusórios da vaidade humana138. A Nova Academia Apesar dos talentos satíricos de Timão, o pirronismo não parece ter tido

muita influência durante dois séculos. Porém, pouco depois da morte de Pirro, Arcésilas (316-241) fica à frente da Academia, a escola fundada por Platão, e aí elabora uma outra forma de cepticismo, que será desenvolvida por Carnéades (214-130). Tal como Pirro, Arcésilas e Carnéades nada escreveram, e alguns dos adversários de Arcésilas censuraram-no por se haver inspirado em Pirro. Isso não está excluído, mas o cepticismo académico é não obstante original. Ele elaborou-se no quadro de um debate com as filosofias sistemáticas e dogmáticas da sua época, em particular o estoicismo. Este último julgava o espírito humano capaz de formar representações «compreensivas» (kataleptikê) dos objectos, simultaneamente verdadeiras e ostentando a marca da sua verdade, a tal ponto que podiam servir de critério para o conhecimento e a acção. Utilizando numerosos argumentos que se tornariam clássicos, como o dos objectos distintos mas indiscerníveis, das ilusões sensoriais ou do sonho, Arcésilas e depois Carnéades mostram que nenhuma representação pode atestar de maneira certa a sua conformidade ao seu objecto, e que não existe portanto nenhuma representação compreensiva, ao ponto de o sábio ser obrigado a suspender o seu assentimento em relação a todas as suas representações, sob pena de cair nas incertezas da opinião139. Esta «suspensão [epoché] universal» não paralisa toda a acção, contrariamente ao que objectam os estóicos, porque o homem não precisa de um conhecimento certo e verdadeiro, mas pode fiar-se no que é «razoável» (eulogon) ou «verosímil» (pithanon) para agir140. Quer isto dizer que Arcésilas e Carnéades se contradisseram ao sustentarem teses filosóficas negativas («nada pode ser compreendido») ou positivas, a propósito da acção, como lhes censuraram os estóicos e, mais tarde, os neopirrónicos? O problema pôs-se logo aos seus sucessores e ainda hoje divide os intérpretes actuais. Para fazerem escapar Arcésilas e Carnéades à autorefutação, alguns defenderam que todos os seus argumentos eram dialécticos: ter-se-iam contentado em tomar os conceitos e as premissas dos estóicos e tirarem daí consequências válidas mas opostas às teses estóicas, refutando assim o sistema dos seus adversários a partir do interior, sem sustentarem eles próprios qualquer tese, à maneira de Sócrates revelando aos interlocutores dele a incoerência das suas crenças, e portanto a sua ignorância, nos primeiros diálogos de Platão. Ora, se Arcésilas utilizou efectivamente o método de Sócrates, do qual se reclamava, para confundir a arrogância dogmática dos estóicos, o cepticismo da Nova Academia parece haver tido também uma inspiração e objectivos propriamente platónicos. Com efeito ele demonstra que a experiência sensível e a razão humana não podem conduzir-nos à verdade,

mas que o filósofo é aquele que a procura incansavelmente, ciente da fraqueza das nossas faculdades e da relatividade das nossas certezas. Em ética e em física, Carnéades insistia com o mesmo espírito nas incoerências do naturalismo estóico, tirando em particular consequências epicuristas dos princípios deste: as nossas tendências naturais não podem conduzir-nos por si mesmas às virtudes, a sabedoria que procura o nosso bem e a justiça que exige sacrificá-lo são incompatíveis141, os deuses não têm mais nenhuma realidade se se confundem com a natureza, a providência divina não é benfeitora se está na origem do conjunto da natureza e da natureza humana142. A Nova Academia encontra portanto o seu ponto de partida numa refutação das pretensões filosóficas e vulgares ao conhecimento do real, e chama-nos mais a uma lucidez inquieta sobre a incerteza das nossas verdades e dos nossos valores, do que à tranquilidade da indiferença. Ela constitui assim o verdadeiro antepassado do cepticismo moderno, que raramente a invoca mas que incorporou muitas das suas ideias ou argumentos por intermédio de Cícero e do neopirronismo. O neopirronismo: Enesidemo e Sexto Empírico No século I a.C., Enesidemo rompe com a Nova Academia e reclama-se de Pirro e talvez de Heraclito para elaborar um cepticismo que ele pretende radical. Na mesma época, o académico Fílon de Larissa havia com efeito admitido que o real era por natureza cognoscível e que só o critério estóico da verdade era posto em causa pelos argumentos académicos. Contra este cepticismo moderado, Enesidemo reactiva a fórmula pirrónica por excelência, «nem mais»: as coisas não são «nem mais» existentes do que não existentes, verdadeiras do que falsas, compreensíveis do que incompreensíveis, verosímeis do que inverosímeis, de tal forma elas parecem diferentes segundo as circunstâncias ou as pessoas. O pirrónico renuncia pois a estatuir acerca da natureza das coisas, «não determina nada» e submete o seu próprio discurso a essa dissolução143. Enesidemo distingue-se porém de Pirro e recorda a Nova Academia quando concentra a sua análise crítica nas nossas representações e nos conceitos dos filósofos, examinando cada um deles para mostrar que não existe sentido algum e construindo um arsenal argumentativo capaz de levar o céptico à suspensão sistemática do seu assentimento. O melhor exemplo disso são os dez tropos ou modos atribuídos a Enesidemo144, onde se enumeram todos os pontos

de vista que permitem contrabalançar uma representação ou uma opinião por uma outra percepção diferente, que pode vir de um animal, de outro homem, de outro órgão sensorial, de outras circunstâncias, de outra cultura, etc. Encontrase essa recolha sistemática de argumentos úteis aos cépticos nos oito modos de Enesidemo contra as explicações causais e os «cinco modos» do pirrónico Agripa (o desacordo, a regressão ao infinito, a relatividade, a petição de princípio e o círculo vicioso), cuja combinação lhe permitia minar os fundamentos lógicos de qualquer tese145. Todos estes argumentos são largamente utilizados por Sexto Empírico (séculos II-III d.C.). Nos Esboços Pirrónicos, Sexto apresenta e defende o seu cepticismo, no seu longo tratado Contra os Dogmáticos refuta sucessivamente as filosofias dogmáticas do conhecimento, da natureza e da moral, e no seu tratado Contra os Sábios ataca as ciências, ou antes os fundamentos e os usos filosóficos de certas disciplinas (a gramática, a retórica, a geometria, a aritmética, a astrologia e a música). Para Sexto, o «cepticismo» é «uma capacidade [dunamis] para pôr frente a frente o que aparece e o que é pensado», que nos leva à suspensão do assentimento, devido ao «peso igual» (isostheneia) dos argumentos opostos, e depois à ausência de perturbação. O céptico não desenvolve nem critica, não sustenta nem nega qualquer doutrina, positiva ou negativa: ele reduz-se a uma faculdade, a uma estratégia de disposição oponencial das nossas percepções sensoriais ou intelectuais146. Essa capacidade, o céptico descobriu-a por acaso ao procurar a verdade e ao dar-se conta de que ela suprimia as suas inquietações mais eficazmente do que qualquer outra doutrina, a tal ponto que acabou por exercê-la e aplicá-la em todos os domínios, graças aos «modos» cépticos147. Contrariamente a muitos cépticos, o pirrónico não se apoia portanto em exemplos e argumentos gerais, destinados a fazer-nos duvidar de imediato de todas as nossas opiniões, mas num exame laborioso de cada argumento e conceito dogmático, ao qual procura «opor um argumento igual» para se manter na suspensão. O céptico põe portanto em causa todos os discursos que pretendem interpretar as «aparências» e enunciar a realidade que nelas se revelaria (ou não), uma vez que nada pode indicar se o que quer que fosse apareceria ou não apareceria numa ou noutra aparência148. Sexto radicaliza assim o cepticismo de Enesidemo, o qual já generalizava sem dúvida uma célebre observação de Timão: «Que o mel seja doce, não o defendo; mas que ele pareça doce, concordo149.» Nessa medida, tal como Enesidemo, Sexto concorda que o

céptico utilize as aparências como critério de acção, em particular as nossas afecções, os costumes, e mesmo as técnicas150. Longe de ser um mero compilador do neopirronismo, Sexto procura pois definir com rigor o cepticismo autêntico, especificando o sentido dos seus argumentos e das suas fórmulas para as purgar de toda a suspeita de dogmatismo positivo ou negativo, e distinguindo o pirronismo de todas as outras filosofias que lhe parecem próximas151. O seu fenomenismo está porém muito distante da filosofia da indiferença própria de Pirro, ainda que partilhe com esta a intuição de que o único meio de atingir a serenidade é renunciar ao desejo de discriminar e de determinar. THOMAS BÉNATOUÏL 135 Eusébio, Preparação Evangélica, XIV, 18, 1-5 (texto 1 F in A. Long e D. Sedley, The Hellenistic Philosophers, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, vol. 1). 136 Metafísica, Γ, 4, 1008a30-34. 137 Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 66-67 e 61-62. 138 Ver os textos reunidos por A. Long e D. Sedley, op. cit., cap. 2. 139 Cícero, Académicos, II, 40-42 e 76-90. 140 Ibid., II, 98-104. 141 Cícero, Dos Fins dos Bens e dos Males, V, 16-23 e A República, III, 12-29. 142 Id., Da Natureza dos Deuses, III 43-52 e 65-95. 143 Fócio, Biblioteca, 212, 169b 18-171a 5 e Diógenes Laércio, VII, 106. 144 Sexto Empírico, Esboços Pirrónicos, I, 40-163. 145 Ibid., I, 180-186 e 164-177. 146 Ibid., I, 8-10. 147 Ibid., I, 25-29. 148 Ibid., I, 19-20. 149 Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 105-106. 150 Sexto Empírico, Esboços Pirrónicos, I, 21-24. 151 Sexto reage em particular contra aqueles que, adversários dogmáticos ou filósofos cépticos como

Favorino de Arles (nascido cerca do ano 80, falecido em meados do século II), pretendiam aproximar o pirronismo e o cepticismo da Nova Academia.

A filosofia imperial (século I a.C. – século II d.C.)

O retorno das principais teorias filosóficas do século IV a.C. é o que caracteriza melhor este período; com efeito, elas voltam a ganhar vantagem sobre as filosofias helenísticas, o cepticismo académico, o epicurismo e sobretudo o estoicismo, tendo este último sido o principal alvo dos discípulos de Platão e de Aristóteles. O renascimento das duas filosofias da época clássica inscreve-se aliás numa tendência mais vasta de regresso aos antigos, aos fundadores de escolas ou de correntes, que as filosofias helenísticas haviam afastado: assim, ao lado dos discípulos de Platão e de Aristóteles do século I a.C., vêem-se regressar filósofos que se referem a Pitágoras, outros que querem tornar a honrar a herança de Pirro (como Enesidemo, também ele no século I a.C., e Sexto Empírico, entre os séculos II e III). Mas o facto mais interessante continua a ser a longa batalha dos herdeiros de Platão e de Aristóteles contra as filosofias helenísticas e mais especialmente contra o estoicismo (desaparecendo discretamente o epicurismo durante a época imperial sem haver produzido obra notável posterior ao grande poema de Lucrécio Da Natureza das Coisas). Ainda hoje, não é fácil dizer como, onde e porque nasceu esse movimento de retorno aos deuses mestres do século IV, mas um interesse pelas teorias destes é já atestado em Panécio, um dos estóicos do final do século II a.C. É certo que os escritos de ensinamento de Aristóteles recomeçaram a circular a partir das primeiras décadas do século I a.C. e que a difusão deles foi facilitada pela publicação de uma edição que os reunia por completo, promovida por Andrónico de Rodes em meados desse século152. Deve sublinhar-se que é mais ou menos essa a época em que se produziram importantes acontecimentos na escola herdeira de Platão: um vivo debate que opôs, nos anos 90-80, o último filósofo a dirigir a Academia, Fílon de Larisso (para o qual a filosofia céptica da escola deveria ser menos afirmada) e o seu discípulo mais notável, Antióquio de Ascalon (para o qual se deveria atribuir a Platão a paternidade de uma doutrina positiva, propondo explicitamente um certo número de convicções dogmáticas que Aristóteles e mesmo os estóicos teriam largamente

retomado)153. A forma sistemática, as escolas e o comentário Antióquio e todos os seus sucessores platónicos e aristotélicos sofreram a influência do estoicismo num domínio em particular: todos eles apresentam as suas doutrinas segundo a forma sistemática típica do estoicismo. Com efeito, partilham a ideia de que todas as proposições de uma doutrina se devem articular segundo a lógica, de maneira a constituírem um discurso finito e global, que possa estar apto a responder de maneira coerente a todos os problemas possíveis154. No fundo, a oposição ao estoicismo levou ou constrangeu os platónicos e os aristotélicos a irem até ao terreno do adversário, procurando opor-lhe sistemas tão resistentes quanto aqueles que pretendiam demolir: transformaram as filosofias dos grandes mestres em sistemas de doutrinas, também eles fechados e dogmáticos. Perante as obras de Platão e de Aristóteles, sempre muito abertas ao questionamento, e que por vezes apresentam até, pelo menos aparentemente, numerosas incoerências, a primeira tarefa dos seus discípulos foi pois a de encontrarem um ponto de acordo apropriado, e seguidamente a de extrair dessas obras um discurso doutrinal coerente e acabado. É isso que explica que a sua produção literária se apresente preferencialmente sob a forma de exegese: todos, ou quase, foram professores, comentadores e autores de obras cujo objecto era a interpretação dos textos; de uma maneira ou de outra, estiveram relacionados com o ensinamento escolástico. Não nos resta grande coisa desses trabalhos consideráveis que continuaram a ilustrar as duas grandes doutrinas dos pais fundadores: na escola de Aristóteles, certos comentários ou partes de comentários de Alexandre de Afrodísia (segunda metade do século II) constituem os testemunhos mais marcantes; quanto à outra escola, ela deverá ter prosseguido em paralelo as suas actividades, como testemunham certos escritos exegéticos e, de uma maneira geral, os trabalhos de Plutarco de Queroneia (cerca de 50-125). Devem acrescentar-se alguns fragmentos de papiro, suportes de comentários anónimos, bem como diversos manuais de introdução à filosofia platónica. No entanto, as informações contidas por esses raros vestígios reforçam a ideia de que a actividade exegética foi seguramente o fundamento da difusão das duas filosofias. Parece que o carácter escolástico deste renascimento encontra em primeiro lugar as suas razões internas na actividade desses filósofos e nos seus

objectivos; mas sobretudo deveria corresponder perfeitamente às necessidades e às modalidades de difusão do saber, próprias da sociedade romana dos séculos I e II: uma época em que floresceram múltiplas instituições escolares, quer dependessem das administrações das cidades ou fossem encorajadas pela autoridade imperial155. Nos meios garbosos e educados, propagava-se a convicção de que uma preparação filosófica de base deveria fazer parte da bagagem cultural de quem visasse uma posição social importante. A formação de um representante típico desses meios, como a do médico Galeno, que deles fazia parte, é por nós conhecida; a sua formação oferece deles um bom exemplo, confirmado aliás por informações relativas a outras personagens. Com efeito, Galeno, na sua juventude, frequentou os ensinamentos de quatro mestres de filosofia, um por cada escola reconhecida como havendo conservado o essencial da herança do pensamento grego, a saber as escolas platónica, aristotélica, estóica e epicurista. Quando Marco Aurélio criou em Atenas cátedras de ensino destinadas a essas escolas, não fez mais do que oficializar uma prática já corrente entre as pessoas instruídas. O papel do estoicismo Platónicos e aristotélicos tinham em comum estarem profundamente implicados na vida académica propriamente dita e na prática do comentário; é isso que diferencia nitidamente as duas grandes tendências rivais. Os estóicos – tal como os epicuristas, aliás – dispunham em princípio dos mesmos instrumentos que os seus adversários, as escolas e a interpretação dos escritos dos mestres. De facto, essa actividade de comentário era desde há muito praticada de forma parcial pelos epicuristas e a leitura de Epicteto permite constatar que as escolas estóicas estudavam e interpretavam as obras de Crisipo e as dos pensadores mais importantes da antiga Stoa. Mas existem muito poucas informações sobre uma literatura de natureza exegética produzida pelos estóicos; além disso, os seus adversários platónicos e aristotélicos jamais a consideraram digna de interesse. Apesar disso, os estóicos mantiveram-se presentes, pelo menos até ao final do século II, mas ocupavam outras funções e os seus centros de interesse eram diferentes. Desde a época dos Cipiões, na sociedade romana, assistiu-se ao fenómeno da vinda de intelectuais gregos, filósofos incluídos, como hóspedes das maiores mansões aristocráticas, onde serviam como professores: Cícero, por exemplo, beneficiou da presença do estóico Diódoto. Mas com o tempo, a função desses mestres de filosofia parece ter vindo a transformar-se numa

função de conselheiros espirituais e de guias morais capazes de assistirem aos seus protectores e aos seus discípulos nos momentos difíceis da existência. Foi precisamente nesse papel que os estóicos se especializaram e quase se poderia apostar ter sido um deles que acompanhou e apoiou até ao cadafalso uma das vítimas das perseguições imperiais contra a aristocracia senatorial, uma vez que foi apresentado como «seu filósofo156». O objectivo não é dizer-se que esse papel dos estóicos fosse desprovido de importância: conseguir reconfortar os homens nos momentos difíceis da vida pode ser considerado um dos resultados mais nobres que a filosofia pode obter. As obras de Epicteto (cerca de 50-125) e de Marco Aurélio, que afortunadamente ainda podemos ler e que remetem para uma concepção da filosofia como disciplina interior que visa encorajar os esforços de autocontrolo e de aperfeiçoamento moral, mostram como uma tal orientação pode inspirar páginas muito fortes e proveitosas ainda hoje157. Mas o que falta a este projecto é o esforço teórico de elaboração de conceitos: as obras do estoicismo romano chegadas até nós (Musónio, Epicteto, Marco Aurélio) manifestam uma grande capacidade para conceber e fazer a apologia de um modelo de vida em que o empenhamento moral jamais enfraquece, onde permanecemos senhores de nós mesmos, onde nos esforçarmos por guardar uma liberdade interior que garanta total autonomia face às vicissitudes do destino. Todavia, estas páginas não desenvolvem de modo algum os fundamentos lógicos, os laços teóricos e a coerência do sistema estóico, e não poderiam compensar o desaparecimento das obras de Zenão e de Crisipo. Por vezes, apercebemo-nos de que os estóicos da época imperial não estavam em condições de compreender certos aprofundamentos teóricos refinados dos mestres fundadores (em todo o caso, julgavam-nos desprovidos de importância). As novidades mais significativas que marcam a produção deles parecem resultar da fortíssima exigência moral que os caracteriza: assim, na proairesis (escolha moral) de Epicteto e na voluntas (vontade) de Séneca, podem ver-se duas etapas importantes do desenvolvimento da noção de vontade que atingirá o seu apogeu em Agostinho. Mas nem Séneca nem Epicteto dispõem de teoria a respeito dessas noções que continuamente empregam. Métodos e problemas da exegese Em relação aos aristotélicos, os platónicos experimentavam algumas dificuldades que os penalizavam, mas podiam no entanto apoiar-se em algumas

vantagens. Em princípio, as duas escolas haviam baseado os seus trabalhos num mesmo método interpretativo: explicar os trabalhos dos dois mestres a partir dos seus próprios textos, procedendo a comparações entre as passagens que colocavam problemas e outras passagens dos Diálogos ou dos escritos acroamáticos que pareciam próximas do ponto de vista da forma ou do ponto de vista do conteúdo, ou ambas as coisas em simultâneo. O fito de tais abordagens era o de deduzir de todos os textos tomados como referência uma interpretação unificada e apta a demonstrar a coerência do pensamento do mestre. O pressuposto sistemático constituía o fundamento do método exegético, e este último, por seu turno, deveria confirmar a validade daquele. Contudo, desde os primeiros séculos da época imperial, os platónicos usaram também um outro método: estimaram que o texto dos Diálogos os autorizava a deduzir o que não era explicitamente afirmado mas lhes parecia ser uma consequência lógica do que Platão havia escrito158. É evidente que uma tal leitura podia abrir vias muito amplas a interpretações particulares, e sobretudo arbitrárias. Mas, por outro lado, a liberdade que os platónicos se atribuíam para tal leitura constituía uma resposta a uma dificuldade que se revelava menor para os aristotélicos. Deve recordar-se que, pelo menos desde meados do século I a.C., circulavam várias versões contraditórias da filosofia de Platão; a de Antióquio, a de origem neo-académica, e uma outra, cuja origem permanece pouco clara, que via em Platão o herdeiro de Pitágoras. O leitor de Platão não podia pois deixar de colocar desde logo a questão de saber com que filósofo se confrontaria ao ler os Diálogos. Essa dificuldade preliminar deveria provavelmente causar inevitáveis alterações dos textos. Encontram-se traços significativos do exame de uma tal questão pelos platónicos e pode igualmente adivinhar-se a importância dela entre as linhas das páginas escritas por Plutarco de Queroneia, um dos raros platónicos que se esforçara por enumerar e relacionar os dados essenciais das diferentes tradições exegéticas159. Este escritor fecundo, autor de polémicas violentas contra os estóicos160 e os epicuristas, defendeu convicções arreigadas quanto à existência de uma tradição de pensamento herdada de Pitágoras, que somente Platão havia retomado perfeitamente (e à qual o próprio Aristóteles não seria totalmente estranho). Mas não renunciou a sustentar que a tradição do cepticismo académico era também ela descendente legítima do platonismo, temperando esse cepticismo, segundo ele, a pretensão dos homens a alcançarem um saber total e definitivo graças à crítica da evidência sensível e, mais geralmente,

graças à atitude de prudência reforçada que ele implica. A tradição dominante do médio-platonismo Porém, o ponto de vista de Plutarco não se impôs: parece claro que a orientação dominante dos platónicos dos dois primeiros séculos (que a historiografia moderna designa correntemente pelo nome de «médioplatónicos161») foi muito diferente e que ela releva das análises avançadas pelos manuais de introdução à filosofia de Platão, chegados até nós como tendo por autores Apuleio e um certo Alcino, perfeitamente desconhecido. Nesses escritos, o cepticismo académico parece não relevar em nada da tradição platónica. Segundo eles, a filosofia, ao seu mais alto nível, une-se a uma teologia racional, hierarquicamente estruturada, onde um deus primeiro, absolutamente transcendente e quase inefável, que se pensa a si mesmo ao modo do intelecto motor de Aristóteles, produz o paradigma ideal que um deus segundo – que é o verdadeiro demiurgo do Timeu – toma como modelo para gerar o cosmos. Se a isto acrescentarmos que esse deus segundo, também ele de natureza intelectual, é por vezes apresentado como uma função distinta e superior da alma do mundo, cremos ver aqui o ponto de partida de um esboço da tríade das hipóstases de Plotino. As ideias propostas pelos fragmentos das obras de Numénio de Apaméia, platónico e pitagórico do século II, estão estruturalmente próximas desta concepção filosófica e metafísica; elas apresentam um tom polémico muito marcado contra a Academia nova e consideram Platão como o herdeiro perfeito da filosofia de Pitágoras. É certo que são os textos de Numénio que melhor permitem compreender como a teologia hierarquizada dos «médio-platónicos» e a sua distinção das figuras divinas podiam decorrer de uma interpretação forçada de diferentes textos platónicos e do Timeu em particular, se o lermos à luz de certas ideias avançadas n’A República e nas Cartas. Além disso, a influência da Metafísica de Aristóteles, interpretada como uma obra de carácter teológico, é visível na orientação comum de Alcino, de Apuleio e de Numénio. A influência de Aristóteles é de resto manifesta em diversos outros domínios, da doutrina da virtude moral (comum a Plutarco e a mais de um escrito pseudopitagórico) à lógica, passando pelo debate sobre a eternidade do mundo. Mas nem todos os «médio-platónicos» tinham uma disposição tão favorável a respeito de Aristóteles: encontram-se mesmo vestígios de uma viva polémica contra a doutrina das categorias, bem como fragmentos assaz importantes de uma obra que constitui uma crítica virulenta

de Aristóteles, escrita por Ático no século II. O comentário de Aristóteles por Alexandre O mais conhecido e mais importante dos comentadores de Aristóteles foi Alexandre de Afrodísia, cuja produção se situa entre o fim do século II e os primeiros anos do século seguinte. Chamavam-lhe o Exegeta por excelência, e foi sem dúvida o espírito filosófico mais sólido dos dois primeiros séculos, ao ponto de o seu trabalho de aprofundado comentário dos escritos do mestre ter permanecido como referência obrigatória de todo o comentário ulterior, até ao neoplatonismo. Entre os comentários que puderam ser parcialmente conservados, aquele que diz respeito aos cinco primeiros livros da Metafísica é particularmente notável. Alexandre chega aí a formular uma leitura unitária do tratado, na qual o primado da ciência teológica concorda com a ciência geral do ser e da substância162, de uma maneira que ainda hoje se pode tomar em consideração. Consegue-o ao tratar o aristotelismo como uma filosofia que, embora desembocando na metafísica e na teologia, permanece não obstante votada a uma concepção coerente da substancialidade, incluindo para o mundo sensível. As linhas directrizes e os pontos conclusivos do comentário ao tratado Da Alma não chegaram até nós mas deveriam ser análogos; é-nos oferecida uma síntese deles pelo tratado de Alexandre que ostenta o mesmo título que o de Aristóteles. Alexandre de Afrodísia interpreta nele a teoria aristotélica do intelecto, sustentando que o intelecto humano, inteiramente mortal, pode ainda assim identificar-se temporariamente, no acto de pensar, com o intelecto «produtivo» (ou «agente»: o misterioso nous que «produz ou “faz” todas as coisas» em Aristóteles163). Alexandre assimila esse intelecto produtivo ao motor imóvel que se pensa a si mesmo no livro xii da Metafísica. Em todas as suas obras, quer sejam os comentários ou os tratados pessoais, Alexandre ataca o estoicismo; o seu tratado Do destino164 mostra porém que tal não se trata nele de uma mera e pequena querela de escola, mas antes de uma exigência de aprofundamento crítico. A crítica do determinismo estóico alargase aí ao ponto de se tornar uma reflexão geral sobre toda a questão do determinismo e da possibilidade de autonomia para o homem: uma questão que é muito difícil resolver no sentido da liberdade total, mesmo para alguém que conhecia bem Aristóteles, como era o caso de Alexandre. Séneca

Antes de concluir esta apresentação sintética, não se pode ignorar o caso, interessante e específico, de Séneca (cerca de 4-65 d.C.), mestre, conselheiro e, finalmente, vítima do imperador Nero. Séneca é considerado – e sempre se considerou a si mesmo – como estóico, para além da distância que sempre manteve em relação a certos elementos da doutrina da escola em física e em lógica, para além da sua reivindicação de liberdade quanto ao seu juízo pessoal. Uma grande parte dos seus trabalhos poderia muito bem entrar no quadro de pensamento dos grandes moralistas como Epicteto e Marco Aurélio: isto é verdade quanto aos seus Diálogos em geral, mas também quanto à sua obraprima, as Cartas a Lucílio. Convém sublinhar que é precisamente nesta compilação de cartas que se manifesta uma grande curiosidade intelectual, que leva Séneca a revisitar de forma crítica numerosas questões da doutrina da escola e a debater (cartas 58 e 65) as teorias dos «médio-platónicos» que começavam a propagar-se. Mas, simultaneamente, Séneca sofreu fortemente a influência da hipótese de orientação platónico-aristotélica sobre a possibilidade de o homem se consagrar a uma actividade teórica puramente distinta da actividade prática e largamente superior a esta. Tal perspectiva reaparece no próprio fundamento de uma outra obra tardia de Séneca, as Questões Naturais165. De certo modo, pode já pressentir-se nas obras de Séneca o fim da fortuna do estoicismo e o triunfo próximo de uma filosofia da transcendência, de origem platónica e aristotélica. PIERLUIGI DONINI 152 P. Moraux, Der Aristotelismus bei den Griechen von Andronicos bis Alexander von Aphrodisias, Berlim-Nova Iorque, De Gruyter, 1973, p. 45-48. 153 H. Tarrant, Scepticism or Platonism? The Philosophy of the Fourth Academy, Cambridge, Cambridge University Press, 1985. 154 Ver a este respeito: P. Donini, «Testi e commenti, manuali e insegnamento: la forma sistemática e i metodi della filosofia in età postellenica», in W. Haase e H. Temporini (eds.), Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, Berlim-Nova Iorque, De Gruyter, 1994, p. 5027-5034. 155 Ver a este respeito: P. Domini, Le scuole, l’anima, l’impero, La filosofia antica da Antioco a Plotino, Turim, Rosenberg & Sellier, 1982, p. 31-39. 156 O episódio é relatado por Séneca em A Tranquilidade da Alma, 14, 9. 157 A tese do célebre livro de P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, Paris, Études augustiniennes, 1987, vale principalmente pelos estóicos. Do mesmo autor, deve igualmente referir-se La Citadelle intérieure. Introduction aux pensées de Marc Aurèle, Paris, Fayard, 1992.

158 Sobre os métodos da exegese, o leitor deverá referir-se ao ensaio de P. Domini anteriormente citado, em particular p. 5075-5082; deve acrescentar-se, sobre o platonismo, F. Ferrari, «Struttura e funzione dell’esegesi testuale nel medioplatonisme: il caso del Timeo», Athenaeum, LXXXIX, 2001, p. 525-574. 159 Ver o livro de M. Bonazzi, Accademici e platonici. Il dibattito antico sullo scetticismo di Platone, Milão, LED, 2003. 160 A obra de D. Babut, Plutarque et le stoïcisme, Paris, PUF, 1969, é fundamental. 161 Para uma apresentação completa, ver o livro maior de J. Dillon, The Middle Platonists. A Study of Platonism 80 B.C. to A.D. 220, Londres, Duckworth, 1977. Ver igualmente: M. Zambon, Porphyre et le moyen-platonisme, Paris, Vrin, 2002. 162 P. Donini, «L’objet de la métaphysique selon Alexandre d’Aphrodise», in M. Narcy e A. Tordesillas (dir.), La «Métaphysique» d’Aristote. Perspectives contemporaines, Paris, Vrin- Ousia, 2006, p. 83-98. 163 Aristóteles, Da Alma, III, 5. 164 É porventura a obra de Alexandre mais célebre na época moderna, rica de numerosas edições e traduções, algumas das quais recentes. Ver a notável edição de R. W. Sharples, Alexander of Aphrodisias on Fate, Londres, Duckworth, 1983. Deve acrescentar-se: Alexandre d’Aphrodise, Traité du destin, texto estabelecido e traduzido por P. Thillet, Paris, Les Belles Lettres, 1984. 165 B. M. Gauly, Senecas Naturales Quaestiones. Naturphilosophie für die römische Kaiserzeit, Munique, Beck, 2004.

Plotino

Plotino foi o fundador e o maior representante do movimento a que se deu o nome de «neoplatonismo» na época moderna; ele pôs fim a um longo período de pluralismo durante o qual as diferentes escolas haviam produzido representações concorrentes de Platão, quer fossem pró ou anti-aristotélicas, pitagóricas, estóicas ou cépticas. O objectivo fundamental de Plotino foi o de defender e desenvolver os princípios fundamentais dos dogmas do platonismo, por meio de uma «competição» com o aristotelismo e o estoicismo, debate que comportava igualmente aberturas e concessões (pelo contrário, as suas relações com as tradições atomistas, hedonistas ou cépticas foram menos importantes e quase sempre polémicas); os neoplatónicos seguintes mantiveram-se dentro dos limites da sua síntese filosófica, propondo, em suma, uma imagem homogénea do platonismo da Antiguidade tardia. Embora sendo sensível à questão religiosa da salvação, típica do seu tempo, Plotino mantém-se fiel aos fundamentos do racionalismo grego e à autoridade de Platão, cujos ensinamentos considerava como o depósito da totalidade da verdade filosófica: por mais diferentes que hoje em dia possam parecer as imagens que se façam dos dois filósofos, Plotino, com efeito, via-se como um mero discípulo de Platão, não reivindicando ser mais que um intérprete singular, convencido de haver atingido melhor que os restantes o sentido das afirmações do mestre166. Para ilustrarem o pensamento de Plotino, os intérpretes privilegiam geralmente a apresentação hierárquica, fazendo seguir-se os níveis de realidade que descendem do Uno até à matéria, indo do Ser-Intelecto e da Alma (aquilo a que ele chama «hipóstases» incorpóreas, que se sucedem ao Uno) aos corpos animados, depois às qualidades sensíveis e aos corpos inanimados. Proceder assim não resulta de uma escolha errónea mas, pelo contrário, faz compreender bem que o cosmos plotiniano, divino e harmonioso na sua totalidade, se caracteriza no entanto por articulações e distinções internas; ele não é a expressão de um panteísmo integral e indiferenciado. Deve porém recordar-se que Plotino, nos seus raciocínios, quase nunca parte do Uno; por outras palavras, não estabelece o princípio supremo sem explicar as razões que

levaram a postular a existência deste; ao invés, chega a ele através da discussão de questões que concernem a estrutura do mundo inteligível ou a dimensão humana concreta, ou seja a de uma alma incarnada, imersa na diversidade e na relativa imperfeição do mundo sensível. A sua vida, os seus escritos Plotino nasceu em 205 d.C., segundo toda a probabilidade no Egipto. Porfírio, seu biógrafo e seu editor, ensina-nos que aos vinte e oito anos de idade, em Alexandria, Plotino se tornou discípulo de Amónio Sacas, junto do qual permaneceu durante onze anos. Em 243, levado pela curiosidade de conhecer as filosofias persas e indianas, tomou parte na expedição ao Oriente de Gordiano III; no ano seguinte, após a morte do imperador, regressou a Antioquia e depois a Roma, onde estabeleceu a sua escola e se manteve durante quase toda a vida167. Morreu em 270, na Campânia, para onde se havia retirado durante a última fase da sua doença e onde, alguns anos antes, concebera o projecto de fundar uma cidade de filósofos, Platonopolis168, contando com o apoio do imperador Galiano e da sua esposa Salonina. Plotino começou a escrever tarde, quase aos cinquenta anos de idade, a fim de não quebrar o primeiro juramento, feito com os seus condiscípulos Erénio e Orígenes, de não revelar as doutrinas de seu mestre Amónio169. Tendo origem nos seminários e nas discussões que tinham lugar na escola, e destinados a circularem entre os seus alunos, os escritos de Plotino foram publicados no início do século IV por Porfírio, que os ordenou em seis livros, cada um contendo nove tratados, não sem proceder a cortes e forçar ajustamentos. O título Eneadas significa justamente: «grupos de nove170». O Uno e a génese do intelecto O Uno, muitas vezes também chamado «Bem», «Deus» ou «Primeiro», é o fundamento de todas as coisas, absolutamente simples e único: causa universal de todas as coisas, infinitamente potente, ele é o princípio de onde tudo emana e para onde tudo aspira a regressar. Tomando como ponto de partida a descrição platónica do Bem «acima do Ser em dignidade e em potência171», Plotino coloca o seu princípio supremo acima dos paradigmas ideais (o Ser, justamente), acima até do espírito divino (Intelecto) que os pensa; pode assim fazer avançar um primeiro princípio superior ao deus aristotélico, descrito no

livro Λ da Metafísica como sendo primeiro entre as coisas e Intelecto pensante, dando assim um passo que os platónicos anteriores não haviam ousado dar por completo. Dadas as qualidades próprias à sua natureza, o Uno não admite ser descrito senão por definições negativas: com efeito, toda a qualificação ou definição positiva, incluindo as de «causa», de «princípio, de «bem», ou mesmo de «uno», não poderiam descrever convenientemente a sua absoluta necessidade e a sua incomensurável superioridade. Diversas passagens, principalmente da V e da VI Eneadas, descrevem portanto o Uno como não tendo nem limites, nem figura, nem partes, não relevando nem de um lugar específico nem de lugar algum, não estando nem em movimento nem em repouso, estando fora do tempo, sem qualidade, sem nenhuma forma de ser, não sendo nem «alguma coisa» nem «uno», inefável, incognoscível, etc.; através desta «teologia negativa» sistemática, Plotino recusa em suma todos os atributos que são negados ao Uno pela primeira hipótese do Parménides, o diálogo platónico que, no platonismo tardio, desapossa o Timeu172 da sua preeminência. A maneira como, a partir do Uno, é engendrada a hipóstase que dele decorre é muito particular. O Ser-Intelecto emana com efeito do Uno, pois é a partir deste último que se difunde primeiramente uma potência (dunamis) ainda indistinta que, chegada a um certo ponto, se detém, se volta para a sua origem – que é o próprio Uno – para a contemplar: é somente nesse momento que o SerIntelecto se determina, tomando forma nas suas estruturas típicas, ou seja nas ideias173. Há portanto uma energia que surge, por sobreabundância, do princípio superior, se vira para a sua origem no desejo de a contemplar, e, quando uma tal visão-pensamento se realiza, constitui-se então um novo estado da realidade, estável e autónomo. Um processo análogo caracteriza a génese dos outros estados da realidade e, como prova o vocabulário usado por Plotino, a energia que, a cada nível, se solta do superior para produzir o inferior é uma espécie de pensamento, de contemplação intelectual (theoria); daí resulta que o conjunto da realidade, considerada deste ponto de vista, não é mais do que pensamento ou resultado da actividade do pensamento. As ideias-espíritos A par de teses tradicionais, encontram-se proposições fortemente inovadoras na versão plotiniana da doutrina das ideias platónicas. Fundamentalmente de acordo com as exegeses anteriores, Plotino nega a existência de modelos ideais

de realidades contra-natura ou do que seja mau e suscite repugnância; pelo contrário, no que concerne os artefactos e os indivíduos, a sua posição é aparentemente mais elaborada que a de outros platónicos, ainda que ela, porventura, conheça algumas hesitações174. Sobre o número das ideias, Plotino permanece convicto, concordando ainda com a quase totalidade dos intérpretes, de que esse número é finito, em conformidade com a sua concepção do mundo inteligível enquanto cosmos, verdadeiro e perfeito, totalidade harmoniosa e completa175. No debate sobre o lugar e a natureza das ideias, ou seja sobre a relação que existe entre estas e a inteligência do Deus-demiurgo do Timeu, debate muito vivo na escola, Plotino intervém de uma maneira efectivamente original. A maior parte dos platónicos contemporâneos acreditava que as ideias tinham uma existência autónoma, portanto exterior ao intelecto divino; Plotino, pelo contrário, alinha por aqueles que (como Fílon de Alexandria ou Albino, autor do Didaskalikos) haviam situado os arquétipos ideais directamente no interior do espírito divino, estimando que eles eram, a bem dizer, «pensamentos de Deus». No entanto, a grande novidade foi a de conceber as ideias já não somente como conteúdos ou instrumentos da inteligência divina, mas verdadeiramente como espíritos pensantes. Uma vez abolida a figura mítica do Demiurgo, Plotino concebeu então a segunda hipóstase como o conjunto de uma pluralidade de entidades que são ao mesmo tempo ideias e faculdades de compreensão; em suma, para ele, ser e pensamento já não são distintos ou, quando muito, unidos no mesmo local – o espírito divino – mas absolutamente idênticos176. A identidade entre o pensamento e o que é pensado não é imaginada por Plotino de modo estático mas no quadro de um movimento espiritual, de uma «vida», onde as ideias não cessam de se pensar a si mesmas com a totalidade orgânica que elas constituem177. Devido à interpenetração total e recíproca que caracteriza o mundo ideal, cada ideia é ao mesmo tempo ela mesma e todas as outras; ela tem um conhecimento intuitivo de si mesma e de todas as outras sem com isso perder a sua autonomia e a sua individualidade178. Por isso, o dinamismo individual constitui a essência das ideias e, por conseguinte, de toda a realidade, que é uma cópia das ideias. Porém, o mundo sensível não é a primeira cópia do mundo inteligível, uma vez que Plotino, pela utilização repetida da relação platónica modelo/imagem e pela exploração exagerada de certas indicações contidas no Timeu, multiplica os níveis de entidades ideais: as ideias que se encontram na Alma, igualmente chamadas

logoi (princípios racionais) primários, são segundo ele imagens debilitadas das ideias que se encontram no Ser-Intelecto, ao passo que os «vestígios» das ideias que se encontram na natureza, ou logoi secundários, são imagens debilitadas das ideias que residem na alma. Daí resulta que os logoi, que finalmente dão forma aos compostos sensíveis, não passem de cópias de cópias de ideias179. Alma e almas A Alma deriva do Ser-Intelecto em virtude de um processo análogo àquele pelo qual a segunda hipóstase deriva do Uno; em relação ao Ser-Intelecto do qual ela deriva, ela é degradada, uma vez que dá forma e vida ao corpóreo. Plotino não cuida nada de ser preciso quanto às diversas articulações do nível psíquico; em geral, pode dizer-se que após a Alma hipostática se encontra a Alma do mundo e com esta as almas individuais, que são de uma natureza próxima da sua (a influência do Timeu é evidente), e que todas essas almas, tanto a alma colectiva como as almas individuais, têm uma dimensão superior, voltada para o inteligível, e uma dimensão inferior (Natureza), voltada para a produção do sensível. O ser humano, enquanto corpo governado por uma alma, e por uma alma provida de funções tanto superiores (racionais e intelectuais), como inferiores (sensitivas e vegetativas), é verdadeiramente o ponto de encontro dos dois «mundos» tradicionais de Platão: o inteligível e o sensível. É precisamente essa estreita relação com o sensível que suscita aporias complexas quanto à natureza da alma. Com efeito, como pode – interroga-se Platão – um princípio que governa e anima a totalidade do mundo sensível deixar de implicar extensão? Como pode o princípio psíquico residir em várias partes de corpos complexos sem estar por seu turno dividido em partes? Uma resposta possível é que a alma esteja totalmente presente em cada parte do corpo animado; uma outra é que não é a alma que está no corpo mas o corpo que está nela, da mesma maneira que um corpo iluminado ou aquecido está na luz ou no calor. O exame de todas estas questões releva mais frequentemente dos livros vi, 4 e vi, 5 das Eneadas (originalmente um tratado único, dividido em dois por Porfírio), onde Plotino elabora a sua resposta às questões relativas às relações entre inteligível e sensível, levantadas principalmente na primeira parte do Parménides de Platão. A matéria e o mal

O tema da matéria apresenta numerosos aspectos que suscitam debate. Parece no entanto que, para Plotino, a matéria não é engendrada senão uma única vez e para toda a eternidade (no sentido em que ela está fora do tempo) pela Natureza, ou ainda pela parte inferior da Alma180. Plotino descreve frequentemente a matéria como um puro não-ser caracterizado pela privação, a esterilidade e a ausência total de vida. Resulta de tais premissas que dizer-se que as formas ideais ou logoi se encontram na matéria é inapropriado, uma vez que esta última também não é um substrato apto a acolhê-las: os logoi não fazem parte da matéria senão na aparência, visto unirem-se a esta sem a modificarem nem a determinarem de maneira alguma: a matéria, quando muito, não é mais do que uma espécie de espelho inerte181, sobre o qual as formas produzem um reflexo aparente (a saber, porque ele não reproduz fielmente as feições do princípio formal), inconsistente e fugaz. Tratando-se do mundo sensível, resultado da interacção entre a matéria e os princípios ideais, o pensamento de Plotino varia com frequência. Opondo-se às doutrinas de tipo gnóstico que condenam absolutamente a corporeidade e imputam a um Demiurgo mau a criação do mundo sensível, Plotino reafirma com vigor a bondade do mundo sensível e a sua origem divina e perfeita. Segundo esta concepção, a beleza e a harmonia do cosmos visível reflectem justamente a beleza e a harmonia do mundo inteligível182. Quando, pelo contrário, aborda as concepções aristotélicas ou materialistas, que negam a existência de uma esfera inteligível à parte e valorizam a experiência do prazer no sentido comum do termo, Plotino sublinha que o mundo dos corpos naturais não é mais do que um pálido reflexo deformado das causas incorpóreas verdadeiras, apto a lograr o conhecimento e a perverter a moral. O papel da matéria e da corporeidade do ponto de vista ético é examinado principalmente no tratado i, 8, onde Plotino estima ser na matéria que o mal primário, origem de todo o mal para a alma, encontra lugar, ao mesmo tempo que confirma a tese de que a matéria deriva de princípios superiores. Assim, por um lado Plotino permanece fiel à tese monista que exclui a existência de um princípio negativo oposto desde a origem aos princípios supremos, e por outro lado não hesita em sustentar a existência de um dualismo dos valores, segundo o qual a matéria é o princípio do mal moral, capaz de impelir a alma humana para o que é inferior e negativo, ou seja para o corpo e a atenção que é prestada a este183. O conhecimento e o regresso ao Uno

Plotino experimentava desconfiança em relação às práticas magico-rituais e às formas de religiosidade supersticiosa; para ele, é essencialmente a vida filosófica que nos permite emanciparmo-nos do corpóreo, pois nela convergem disciplina moral e disciplina intelectual. Devem ultrapassar-se as formas primeiras do conhecimento ligadas à percepção sensível para atingir as que são mais racionais, susceptíveis de nos conduzirem à visão das ideias. Para Plotino, se é possível conhecer-se bem as realidades inteligíveis, é porque não é a totalidade da alma humana que desce para se incarnar efectivamente no sensível, uma parte dela permanece sempre no mundo das ideias184, ao contrário do que pensam todos os outros intérpretes de Platão. Espécie de ideia entre as ideias, essa parte da alma frui sempre da forma de pensamento própria da segunda hipóstase, a saber da compreensão total e imediata das partes e do todo. Trata-se pois de uma intuição intelectual (noêsis) que capta intemporalmente todos os inteligíveis nas suas relações recíprocas, colocandose assim acima do pensamento racional (dianoia) no sentido habitual dos termos, onde o raciocínio se desenvolve no tempo e onde os conteúdos conceptuais só estabelecem entre si relações parciais. Mas a intuição perfeita do mundo inteligível não constitui o cume da ascese espiritual, que se não cumpre plenamente senão quando a alma se une ao Uno, numa experiência mística em que os limites do indivíduo tendem a anular-se e onde o objecto e o sujeito tendem a coincidir. Para «ver» ou «tocar» verdadeiramente o Uno, a alma deve despojar-se de tudo e abandonar o que caracteriza a inteligência para perder toda a forma, como o objecto para o qual ela tende; depois disso, ela deve aguardar pacientemente que o Uno se manifeste e que, numa visão súbita, seja finalmente realizada a sua união com o princípio185. Plotino, embora continue consciente da incomunicabilidade fundamental da experiência mística, fala dela com frequência, usando expressões e palavras altamente sugestivas, como se a alma se revelasse a si mesma, se identificasse com o divino, com uma pura visão da luz – que é Deus – num sujeito humano tornado ele próprio luz186. A posteridade de Plotino no seio do platonismo antigo e medieval é, sob alguns aspectos, menor do que aquela de que ele beneficiou na época moderna (durante a qual se transpôs uma etapa fundamental da difusão da sua obra aquando da publicação, em 1492, da tradução das Eneadas por Marsílio Ficino), e, sobretudo, na época contemporânea, quando o movimento romântico europeu revalorizou os seus escritos. Parece ter havido duas razões principais para o relativo enfraquecimento da fama de Plotino no termo da

Antiguidade tardia: em primeiro lugar, a sua atitude resolutamente crítica a respeito de Aristóteles, que se confrontou com a tendência «concordista» (aquela que procurava sempre o acordo entre as posições de Platão e as de Aristóteles), já presente no movimento platónico que o precedera e que se tornaria dominante depois dele, promovida em particular por Porfírio; seguidamente, a viragem mágico-teúrgica que Jâmblico impôs à escola, largamente adoptada pelos platónicos seguintes (pensemos sobretudo em Proclo), que os afastava da atitude sobriamente racionalista de Plotino, que olhava com suspeita as formas de purificação espiritual diferentes da vida filosófica de ascese e de estudo. ALESSANDRO LINGUITI 166 Cf. Eneadas, IV, 8, 8.1-3; V, 1, 8.1-14; VI, 2, 1.3-5; VI, 3, 1.1-2. 167 Cf. Porfírio, Vida de Plotino, 3. 168 Cf. ibid., 2 e 12. 169 Cf. ibid., 3. 170 Cf. ibid., 24. 171 Cf. A República, VI, 509b. 172 No platonismo dogmático (ao contrário do platonismo céptico-académico) anterior a Plotino, era do Timeu que provinha a doutrina fundamental dos três princípios: Deus-demiurgo, ideias e matéria. O primado do Timeu tornou a ser posto em causa quando Plotino, e, mais sistematicamente, os neoplatónicos que se lhe seguiram, creram reconhecer na segunda parte do diálogo, aquela que é dedicada à discussão das oito (ou nove) hipóteses acerca do Uno, as características do Uno transcendente ao Ser e aos níveis de realidade que ele engendra. Antes de Plotino, em Eudoro e em Moderatus, podemos aperceber-nos dos vestígios de uma interpretação semelhante, e não pode portanto excluir-se que personagens como Numénio ou Amónio Sacas, que influenciaram a formação de Plotino, hajam sofrido os efeitos dela. Os estudos sobre este tema foram inaugurados pelo célebre ensaio de E. Dodds, «The Parmenides of Plato and the Origin of the Neoplatonic “One”», Classical Quarterly, 22, 1928, p. 129-142. 173 Cf. por exemplo Eneadas, V, 1, 7.5-6; V, 2, 1.7-11. 174 Ibid., V, 9, 9-13; V, 7; VI, 7, 1-11. 175 Ibid., III, 2, 1.26-45; III, 7, 4.12-15; VI, 7, 14. Ver, para uma apresentação de conjunto, M. Baltes e M.L. Lakman, «Idea (dottrina delle idee)» in F. Fronterotta e W. Leszl (dir.), Eidos-Idea. Platone, Aristotele e la tradizione platónica, Sankt Augustin, Academia Verlag, 2005. 176 Cf. por exemplo Eneadas, V, 9, 8. Pode facilmente reconhecer-se aqui o contributo dos intérpretes de Aristóteles, em particular de Alexandre de Afrodísia, que, algumas dezenas de anos antes de Plotino, havia

identificado o deus do livro Λ da Metafísica pensando-se sempre a si mesmo por meio do intelecto em acto do livro III do Da Alma, que pensa constantemente o conjunto dos inteligíveis. 177 Cf. por exemplo Eneadas, VI, 7, 13. A razão principal para isso prende-se com a exigência de Platão, atestada por uma célebre passagem do Sofista (248e e seguintes), de atribuir ao Ser movimento, vida, alma e pensamento, bem como com a descrição do deus de Aristóteles enquanto pensamento de si sempre em acto. 178 Cf. por exemplo Eneadas, V, 8, 4. A fim de ilustrar esta característica particular – e sob muitos aspectos paradoxal – da natureza das ideias, Plotino compara-as aos teoremas de uma ciência única onde cada teorema não é na aparência mais do que ele próprio, mas implica na realidade todos os outros, quer eles sejam antecedentes ou consecutivos, e portanto a totalidade da ciência em questão (cf. Eneadas, IV, 9, 5; VI, 2, 20). 179 Cf. principalmente Eneadas, II, 3, 17-18; V, 9, 6; VI, 7, 5. 180 Ibid., III, 4, 1. 181 Ibid., III, 6, 9. 182 Ibid., II, 9. 183 Essa é uma contradição aparente, como não deixará de sublinhar Proclo no De malorum subsistentia. 184 Cf. Eneadas, IV, 8, 8-1-6. 185 Ibid., V, 7.31-35; VI, 7, 34.12-14; VI, 9, 7.5-16. 186 Ibid., IV, 8, 1.1-11; VI, 9, 9.38-60.

O neoplatonismo de Proclo

Proclo nasceu em Constantinopla no ano 412, numa família originária da Lícia que havia permanecido fiel à religião helénica tradicional numa sociedade já dominada pelo cristianismo. O brilhante jovem decidiu dedicar-se inteiramente à filosofia. Após estudos em Alexandria, chegou a Atenas em 430 para frequentar a Academia, que era então dirigida pelo velho Plutarco. Com a nomeação deste, também a venerável instituição se convertera ao movimento neoplatónico, que inicialmente se desenvolvera à margem das escolas tradicionais. Essa nova filosofia, inaugurada por Plotino, foi continuada em Roma pelo ensino de Porfírio, enquanto o seu discípulo Jâmblico estabelecia a sua própria escola na Síria. Sob a influência de Jâmblico, a metafísica do neoplatonismo aliou-se cada vez mais aos ritos e às crenças do paganismo, que ela supostamente justificaria. Esta corrente do neoplatonismo invadiu finalmente a Academia de Atenas com a chegada de Plutarco à chefia da escola. Com Siriano, que lhe sucedeu em 432, essa nova orientação seria ainda reforçada. Até ao seu encerramento por Justiniano em 529, a Academia seria o bastião intelectual do paganismo. Durante mais de quinze anos, Proclo seguiu todos os cursos de Siriano e foi profundamente influenciado pelo ensino deste. Após a morte do seu venerado mestre (em 437?), tornou-se ele próprio chefe da Academia, e com isso «sucessor de Platão»; assim se manteve até à sua morte, em 485. Apesar do clima ideológico hostil, a Academia continuava a gozar de um grande prestígio em Atenas. Proclo não abandonou a cidade, a não ser durante um período de perturbações políticas, que passou na Lídia. Atraiu para junto de si uma grande quantidade de discípulos vindos de diversos países. Podemos reconstruir a vida da escola graças à biografia (hagiográfica) que o seu aluno Marino187 lhe dedicou. Nessa obra, Marino pretendia mostrar como Proclo havia atingido o cume da felicidade pela prática de todos os graus de virtude. A Academia não era apenas uma escola filosófica, mas também uma comunidade religiosa, na qual Proclo e os seus alunos continuavam a praticar os cultos da antiga religião helénica e os ritos teúrgicos dos caldeus. Não era concebível aos seus olhos que

se pudesse dissociar a filosofia, concebida como uma argumentação racional, das crenças religiosas ditas pagãs, como defendiam na época os intelectuais cristãos. Pelo contrário, a ambição de Proclo, que era já a do seu mestre Siriano, era a de demonstrar o acordo fundamental entre a filosofia de Platão e as outras fontes de sabedoria divinamente inspirada, a tradição matemática vinda de Pitágoras, os Oráculos Caldaicos, as teogonias órficas, os mitos de Homero e de Hesíodo. «Ele não teve dificuldade alguma em penetrar toda a teologia tanto grega como bárbara e aquela que se oculta sob as ficções dos mitos, mas, para os que querem e podem compreendê-la, produziu-a perante a luz, explicando todas as coisas de uma maneira profundamente inspirada pelos deuses e pondo todas essas teologias de acordo188.» Proclo estava convencido de que só a filosofia podia produzir a síntese dessa tradição multiforme. «Em todos os casos, eu preferiria o evidente, o distinto e o simples aos seus contrários; e do que é transmitido por símbolos tirarei a claro o ensinamento; o que é transmitido por imagens, fá-lo-ei remontar ao seu original, ao que está escrito de uma maneira demasiado categórica, dar-lhe-ei confirmação por raciocínios189.» Nesse esforço de compreensão, ele pretendia seguir o ensinamento do divino Platão, o único que havia desenvolvido uma doutrina compreensiva dos primeiros princípios dos seres. Proclo adoptava também tudo «o que fosse fecundo e útil» entre os pensadores antigos posteriores a Platão, Aristóteles e os estóicos, embora muitas vezes se mostrasse crítico a respeito de Aristóteles, que acusava de haver interpretado mal o seu mestre. Proclo compôs comentários de todos os diálogos de Platão que faziam parte do currículo da escola neoplatónica desde Jâmblico. O curso começava com a explicação do Alcibíades sobre o conhecimento de si, diálogo que era considerado como uma introdução à filosofia, e culminava na explicação das duas obras maiores de Platão, o Timeu, sobre a génese do mundo sensível, e o Parménides, que oferecia os princípios da teologia. De todos esses comentários, os relativos ao Alcibíades, ao Crátilo, ao Timeu e ao Parménides estão em parte conservados. Além disso, dispomos de uma série de ensaios sobre a interpretação d’A República. Os comentários de Proclo são obrasprimas no seu género. Apresentam uma interpretação coerente de um diálogo a partir da determinação do seu objecto (skopos), com um interesse particular pelo mais ínfimo pormenor do texto, sem jamais perder de vista a realidade das coisas que esses textos do divino Platão supostamente explicam. Fornecem igualmente uma documentação extremamente rica sobre a interpretação do diálogo na tradição platónica (deste ponto de vista, o comentário do Timeu é

uma mina de informações). A par desses comentários sobre Platão, Proclo compôs um outro sobre os Elementos de Euclides. Os dois prólogos deste comentário oferecem a melhor introdução ao estudo filosófico da matemática na Antiguidade. A composição da «Hipotipose das posições astronómicas» é uma outra indicação do grande interesse de Proclo pelas ciências e pela cosmologia, como mostram igualmente as numerosas digressões matemáticas no seu comentário sobre o Timeu. Proclo comentou ainda as Eneadas de Plotino, das quais era leitor assíduo, mas crítico. E não devemos esquecer-nos de mencionar o seu grande comentário dos Oráculos Caldaicos, de que foram conservados alguns vestígios por Pselo. Além disso, Proclo redigiu tratados sobre diversos temas, como a providência e a fatalidade, a liberdade de escolha da alma, a existência do mal. Para além dos seus comentários, a reputação de Proclo deve-se antes de mais aos dois grandes tratados sistemáticos que passaremos a apresentar: os Elementos de Teologia e a Teologia Platónica. Elementos de Teologia Os Elementos de Teologia são sem dúvida alguma a obra mais original de Proclo, não tanto pelo seu conteúdo – pois a maior parte dos princípios nela desenvolvidos vem dos seus predecessores –, quanto pelo esforço notável que ela prossegue a fim de desenvolver toda a metafísica platónica a partir de um conjunto de axiomas. Nos Elementos, Proclo demonstra de uma maneira quase geométrica os teoremas fundamentais da teologia ou ciência metafísica tal como ele a concebe. A obra contém 211 proposições, cada uma delas seguida de uma demonstração. A primeira parte (1-112) examina os princípios fundamentais que estão na base de tudo o que existe, como a relação entre o uno e o múltiplo, entre a causa e o efeito, o todo e as partes, a participação, a processão e a conversão dos seres, o limite e o ilimitado, o automovimento e a autoconstituição, o acto e a potência, a eternidade e o tempo. Na segunda parte (113-211), Proclo passa em revista todos os graus da realidade, aplicando-lhes os princípios metafísicos gerais da primeira parte. Examina sucessivamente as hénades divinas, os intelectos e as almas. O mundo físico, que não constitui uma verdadeira hipóstase, não tem lugar nesta metafísica teológica. O Uno e o múltiplo Os Elementos começam pelo princípio fundamental de todo o neoplatonismo posterior a Plotino: «Toda a pluralidade participa de algum modo no Uno.»

Com efeito, sem a unidade que o mantém no seu ser, o múltiplo tornar-se-ia uma pluralidade infinita de partes e deixaria de existir. Mas uma pluralidade não pode por si mesma ser a unidade em que participa e que a faz subsistir. O ser unificado não é o Uno enquanto tal, o Uno absoluto. Ele recebeu a unidade como uma determinação distinta do que ele é por si mesmo. O que é pois esse Uno do qual a pluralidade como ser unificado participa e ao qual ele está subordinado? O que explica, por exemplo, a unidade de um organismo vivo é a sua alma. Mas a alma não poderia ser a explicação última da unidade: ela própria é uma multiplicidade de potências e de actividades. É preciso pois remontar a uma outra forma de unidade que a explique, e assim sucessivamente, até que se chegue ao princípio de todos os seres, que é verdadeiramente o Uno absoluto. Este Uno é igualmente o Bem absoluto. Com efeito, se a função própria do Uno é a de manter os seres múltiplos no seu ser, é também essa a função do Bem. A perfeição e o bem-estar das coisas vêm-lhes da sua unificação, ao passo que a sua dispersão e a sua fragmentação são a causa da destruição e do mal. O Uno e o Bem são nomes que designam uma mesma realidade, ou antes as relações dos seres em referência a essa realidade. Nós chamamos-lhe o Bem quando a encaramos como finalidade suprema de todos os seres, e chamamos-lhe Uno quando a consideramos como a origem transcendente de todos os seres. Processão «Cada ser produz seres semelhantes a si mesmo antes de fazer existir os seus dissemelhantes190.» O que é absolutamente diferente não pode proceder imediatamente da sua causa. Daí a necessidade de seres intermédios para religar os termos extremos. Está assim excluído que o Intelecto, que contém a multiplicidade das ideias, proceda directamente do Uno, como pensava Plotino. O que procede primeiramente do Uno é o ser absoluto, que é também o primeiro objecto inteligível (noêton). Para aproximar o inteligível e o intelecto é preciso postular a ordem inteligível e intelectiva, que corresponde à Vida absoluta. Do Uno vem portanto o Ser, do Ser a Vida, da Vida o Intelecto. Nesta processão, o nível superior exerce uma causalidade mais compreensiva, que se estende mais longe do que o nível que lhe está subordinado. Deste modo todos os seres participam no Ser, mas nem todos na Vida, e ainda menos no Intelecto. A causalidade do Uno estende-se ainda mais longe do que a do Ser, pois a própria matéria, o substrato indeterminado de todo o mundo físico, depende do Uno, ainda que ela não exista verdadeiramente.

A estrutura triádica da realidade Se a processão se faz segundo a semelhança, tudo o que é produzido préexiste de uma certa maneira na potência fecunda da sua causa. Pode dizer-se que «reside» na sua causa (kat’aitian) sem nela ter uma existência formalmente distinta (kath’huparxin). No entanto, se o efeito aí permanecesse imutável, ele em nada se distinguiria da sua causa e nada se produziria dela. É somente pela «processão» que o efeito começa a existir à parte, como um ser formalmente distinto, fora da sua causa. Se é verdade que um ser não pode ficar integralmente na sua causa, está igualmente excluído que ele proceda até ao infinito. É preciso pois que o efeito se refira continuamente à sua origem para continuar a existir. «Todo o ser que procede de um princípio se converte segundo o seu ser naquilo de que procede191.» Pois que outro princípio lhe poderia procurar o bem que lhe é próprio, senão a causa da qual ele recebe o seu ser? A conversão ou o retorno é essa aspiração do efeito para a sua causa porquanto esta constitui o seu bem. O termo da conversão coincidirá portanto sempre com o princípio da processão. Como todos os seres se convertem na causa de que procedem, eles realizam uma actividade cíclica. «Estes ciclos fazem-se amplos ou mais curtos segundo as conversões se dirijam às causas imediatamente superiores ou a outras mais elevadas192.» Participação A metáfora da participação introduzida por Platão para explicar a relação entre a forma e as coisas múltiplas suscita tantas dificuldades quanto as que resolve. Se a forma permanece una e «separada» das coisas múltiplas, parece que estas últimas não poderiam ter nela uma «parte». Se ao invés ela está presente nos seres que dela tomam parte, torna-se particularizada e perde a sua universalidade. A solução de Proclo consiste em distinguir o modo participado e o modo não participado ou imparticipável da forma. O que é participado pelos seres particulares não pode ser a forma ideal em si mesma. Essa forma permanece imparticipável, mas a partir dela provêm formas participadas que são imanentes aos seres que dela participam: essas formas correspondem às formas na matéria (enuloi) de que trata Aristóteles. Mas enquanto Aristóteles rejeita as formas separadas como uma duplicação supérflua da realidade, Proclo mostra que a existência da forma não participada é necessária para garantir o carácter universal das formas participadas. Com efeito, uma forma

participada pertence inteiramente à coisa que participa e não pode estar ao mesmo tempo numa outra. Se não houvesse mais do que a forma participada, não se poderia explicar como todas as coisas que participam de uma forma têm essa forma em comum com as outras coisas da mesma espécie. Existe portanto, anteriormente às formas participadas, uma mónada não participada que garante a unidade e a universalidade da forma nos seres múltiplos. «Todo o imparticipável produz a partir de si mesmo formas participadas e todos os seres (hypostaseis) participados se referem aos seres imparticipáveis193.» A distinção entre os modos participado e imparticipável não se aplica somente às Formas ideais, mas a todas as hipóstases: a Alma, o Intelecto e mesmo o Uno. Em cada nível, deve fazer-se uma distinção entre a mónada imparticipável e a série das formas participadas que lhe estão subordinadas. Assim, anteriormente à série das almas das quais os corpos participam em níveis diferentes – há com efeito almas divinas dos astros, almas de demónios, almas particulares de humanos –, existe uma alma imparticipável da qual procede a série das almas participadas segundo os diferentes graus de participação. E antes dos intelectos nos quais participam as almas divinas, demoníacas ou humanas, existe um intelecto imparticipável absoluto, que compreende em si a totalidade de todas as formas ideais. Os múltiplos intelectos procedem deste intelecto absoluto e constituem assim uma série coordenada de intelectos, cada um tendo o mesmo conteúdo intelectual. O intelecto é portanto simultaneamente uno e múltiplo. Segundo o mesmo argumento, devemos estabelecer junto do Uno – que é absolutamente transcendente e no qual não pode participar nenhum dos seres – uma série de «unos» ou «hénades», na qual participam as diferentes classes de seres que dela provêm. Essas hénades não são as modalidades da unidade adquiridas pelos seres, mas unidades que subsistem por si mesmas embora permanecendo transcendentes em relação aos seres que delas dependem. Embora permaneçam unidas ao Uno primordial e estejam, tal como ele, para além do ser e para além de todo o conhecimento, podemos conhecer indirectamente as suas características distintivas a partir das diferentes classes de seres que estão suspensas delas. As primeiras entre as hénades, e as mais próximas do Uno absoluto são o limite e o ilimitado. A doutrina das hénades desempenha um papel absolutamente determinante na elaboração do sistema teológico de Proclo. Se o Uno é o Bem, ele é igualmente o deus. Com efeito, como não há nada de superior (de «melhor») ao Uno-Bem, ele é o primeiro princípio dos seres, e portanto deus. Falar do Uno e

da série das hénades que estão unidas a ele equivale por conseguinte a falar do deus e dos deuses. Enquanto unidades para além do ser, as hénades divinas são inefáveis e incognoscíveis, mas elas deixam-se definir indirectamente pelas diferentes classes de seres que nelas participam. «Só o primeiro deus é totalmente incognoscível como ente imparticipável194.» A controvérsia «um só deus ou deuses múltiplos» – tema central na oposição do monoteísmo cristão e do paganismo politeísta – baseia-se pois numa questão mal colocada. Deus é uno e o Uno é deus, eis o que é manifesto. Mas o Uno absoluto faz subsistir ao seu redor e unifica em si múltiplas hénades, que constituem tantas formas de unidade quantos os seres que delas participam. Assim, é possível explicar num sistema racional a processão e as propriedades distintivas de todas as classes de deuses. Teologia platónica Se todos os homens concordam em utilizar o nome «deuses» para designar os primeiros princípios, eles fazem-no segundo modalidades de discurso extremamente diferentes. Proclo distingue quatro tipos de discurso teológico: 1) O discurso mítico com uma encenação trágica e símbolos (como na tradição órfica ou em Homero e Hesíodo); 2) a revelação divinamente inspirada dos profetas, como nos Oráculos Caldaicos; 3) o discurso matemático dos pitagóricos, que evocam ordens divinas com o auxílio de imagens de números e de figuras; 4) a teologia científica que trata os deuses utilizando termos tomados à dialéctica, como «uno» e «ser», «todo» ou «parte», «idêntico» e «diferente», e oferece demonstrações das suas propriedades. Foi Platão quem levou essa ciência teológica à sua perfeição no Parménides, em particular no exame dialéctico da hipótese do Uno, por pouco que este seja convenientemente interpretado. Uma vez admitida a equivalência entre o Uno e deus, pode ler-se a série de argumentos sobre o Uno como uma exposição científica consagrada a deus e aos deuses. No Parménides, Platão demonstra pois de uma maneira científica «a processão ordenada de todas as classes divinas a partir do primeiro princípio, as suas diferenças e as suas propriedades comuns e específicas195». É segundo este modelo que Proclo quer ele próprio construir a sua Teologia Platónica: «Neste tratado», escreve ele, «enumerarei todos os graus da hierarquia divina, definirei, segundo a maneira de Platão, as suas propriedades e as suas processões196.» É a partir dos princípios científicos do Parménides e de todos os argumentos sobre os deuses nos outros diálogos

de Platão que é possível interpretar e integrar num sistema coerente todas as informações sobre os deuses que se encontram nas narrativas míticas, nas rapsódias órficas e nos Oráculos Caldaicos. A intenção teológica da filosofia de Proclo torna a sua obra fastidiosa para o leitor contemporâneo, que a ele preferiria sem dúvida Plotino, como mais autenticamente filósofo. Podemos certamente ter admiração pelo grandioso, senão heróico, projecto de, a partir das premissas saídas da filosofia de Platão, fundar o conjunto da religião pagã, que estava prestes a desaparecer no seio de uma cultura já dominada pelo cristianismo. Todavia o pensamento de Proclo é muito mais do que uma ideologia pagã. Prosseguindo a inspiração de Plotino, criticando-a e desenvolvendo-a, ela é uma filosofia de uma extraordinária potência especulativa, que vai muito para além dos seus desenvolvimentos acerca das divindades pagãs. A prova disso é que autores que não aderiram de modo algum às convicções religiosas de Proclo se deixaram fascinar pelo pensamento dele e o desenvolveram de uma maneira original, como o cristão que se oculta sob o nome de Dionísio, o Areopagita e o muçulmano árabe que compôs o Liber de causis. Através desses dois autores anónimos, Proclo contribuiu mais do que Plotino para a formação da tradição platónica na Idade Média, tanto grega como latina e árabe. Enfim, foi no Renascimento que se redescobriram os seus grandes comentários sobre Platão, os quais por intermédio de Ficino determinaram a interpretação de Platão até ao século XIX. CARLOS STEEL 187 Trata-se de Marino – ou Marinus – da Samaria. (N. do T.) 188 Vida, § 22. 189 Teologia Platónica, I, 2, p. 9, 20-27. 190 Elementos de Teologia, § 28. 191 Ibid., § 31. 192 Ibid., § 33. 193 Ibid., § 23. 194 Ibid., § 123. 195 Teologia Platónica, I, 4, p.20.20-25.

196 Ibid., I, 2, p. 9-13.

A herança da filosofia grega no cristianismo antigo grego e latino A importância da tradição platónica Helenismo e cristianismo no pensamento dos Pais da Igreja A questão da relação entre o pensamento grego e a fé cristã ocupa um lugar considerável nos escritos patrísticos dos primeiros séculos; mas, sobre esse assunto, os Pais oscilavam entre uma recusa absoluta, uma abertura limitada e uma defesa apaixonada. Não renunciam porém à tese da influência fundamental dos livros hebraicos, que decorre do judeo-helenismo. São Paulo já havia apresentado a filosofia como fonte de ilusão e fermento de orgulho; considerava-a como muito largamente inferior ao conhecimento de Deus. Taciano, autor do Discurso aos Gregos, despreza-a abertamente, estimando que ela releva de saberes bárbaros e transborda de absurdezas e de contradições. De maneira análoga, o autor da Exortação aos Gregos rejeita as doutrinas filosóficas e sublinha as contradições destas, e defende que elas estão sujeitas a Moisés. Mas é sobretudo em Tertuliano que a recusa da filosofia grega é particularmente virulenta: ela estaria na origem de todas as heresias, mesmo se, em alguns casos, não se pudesse negar a existência de um acordo entre os filósofos e as doutrinas cristãs. Seja como for, nenhuma relação verdadeira pode existir entre Atenas e Jerusalém, nem entre a Academia e a Igreja. A ideia de Tertuliano, que vê na filosofia a própria origem das heresias, regressa em Hipólito e em Epifânio, que não hesita em classificar Orígenes entre os heréticos devido a uma «educação grega» demasiado dominante. Pelo contrário, Atenágoras ostenta a sua estima pelo ensinamento das grandes escolas filosóficas que afirmaram a existência de um Deus único, tal como o fazem os cristãos. Justino, o Mártir reconhece a presença de «germes de verdade» entre os filósofos gregos, que não teriam chegado senão a um conhecimento muito reduzido da verdade e deviam esse conhecimento seja à sua razão, parte humana do logos universal, seja à intervenção directa do logos que neles teria «semeado» certas ideias. Este ponto de vista é adoptado e desenvolvido por Clemente de Alexandria, que interpreta nesse sentido a

parábola evangélica do semeador; com efeito, não é absurdo crer que uma «chuva divina tenha impregnado» os filósofos gregos que procuravam a verdade. Clemente não hesita portanto em tomar resolutamente a defesa da filosofia grega face aos membros menos cultivados da comunidade cristã de Alexandria, que só experimentavam desconfiança e temor a respeito da filosofia, emanação do demónio e origem da heresia. A teoria judeo-helenística segundo a qual os gregos se haviam apropriado do Antigo Testamento, retomada por Clemente com grande reforço de erudição197, não está segundo ele em contradição nem com a imagem do semeador – o logos universal que faz chover os bons germes de verdade sobre os filósofos –, nem com a imagem da «chuva divina» já presente em A Sabedoria de Salomão, no livro do Sirácida e em Fílon. Pelo contrário, ela fornece uma prova suplementar da presença de elementos de verdade nas doutrinas dos filósofos e um argumento mais para que nos aliemos a ela. À excepção da doutrina epicurista, as diferentes doutrinas filosóficas gregas constituem fragmentos de verdade que, idêntica ao logos universal na sua origem, veio seguidamente a deslocar-se dele em filosofias distintas, à semelhança dos membros do corpo de Penteu. Reunindo os fragmentos de verdade dispersos em cada uma das doutrinas filosóficas, é possível chegar-se à contemplação da verdade absoluta. Assim compreendida e considerada no seu conjunto, a filosofia grega oferece «uma imagem clara da verdade»; ela é um dom que Deus oferece aos gregos. Na história, a sua função foi a de os preparar para o cristianismo. O Antigo Testamento teve o papel, análogo e paralelo, de preparar para isso os hebreus. Se a considerarmos do ponto de vista histórico, a filosofia está orientada para a busca da verdade, da qual o cristianismo representa a expressão mais completa e mais elevada, ao passo que, na actividade quotidiana, o estudo da filosofia se torna o instrumento que o cristão deve empregar caso queira que a sua «simples fé» se expanda para uma verdadeira gnosis; e isso não seria possível sem uma interpretação alegórica ou «filosófica» do significado literal do texto das Escrituras. Partindo da letra, símbolo em si, tal interpretação pode trazer à luz o significado mais elevado da Escritura, oculto pelo símbolo. Clemente é o primeiro grande teólogo cristão a insistir nessa ideia que Fílon, representante maior do judeo-helenismo de Alexandria, já havia sustentado e posto em prática ao interpretar «filosoficamente» os livros do Antigo Testamento. Numa época anterior, os estóicos haviam tratado a mitologia grega de maneira análoga. É justamente graças a esse duplo papel desempenhado pela filosofia na história e na actividade quotidiana que Clemente pode ver na filosofia uma

«serva da teologia», ideia que partilha com Fílon. Num testemunho relatado por Eusébio da Cesareia198, Porfírio informa-nos da imensa erudição de Orígenes. Noutro local, Gregório, o Taumaturgo relata que a escola de Orígenes tinha o maior interesse para o estudo dos filósofos. Orígenes tem muito mais consciência do que Clemente da necessidade de possuir um conhecimento aprofundado das doutrinas filosóficas gregas clássicas e dos principais escritos desse domínio, produzidos durante os três primeiros séculos; tal conhecimento condiciona a elaboração de uma «teologia cristã», bem como a defesa do próprio cristianismo. Apesar disso, em relação à filosofia propriamente dita, Orígenes manifesta maior circunspecção do que Clemente. Tal como Atenágoras, Justino e Clemente, Eusébio da Cesareia considera que a sabedoria hebraica e a filosofia grega se encontram no essencial199, dependendo a segunda da primeira devido à anterioridade do povo hebreu. Eusébio pode assim adoptar facilmente a visão de Clemente quanto ao papel histórico desempenhado pela filosofia grega para preparar a verdade cristã; as muito numerosas citações filosóficas que pontuam os seus trabalhos visam precisamente estabelecer a prova disso. Tal como Clemente, Eusébio considera admissível a ideia de Numénio segundo a qual «Platão é antes de tudo um Moisés que fala grego». No seu Discurso aos Jovens, Basílio, o Grande assinala o seu interesse pelas obras literárias gregas onde as declarações de diversos autores pagãos se podem revelar úteis para a moral, na medida em que concordem com os preceitos evangélicos. Na sua obra Contra Juliano, em resposta ao texto do imperador Juliano intitulado Contra os Galileus, Cirilo de Alexandria propõe-se demonstrar que numerosos pontos da doutrina cristã estão já presentes no pensamento grego e que a hostilidade de Juliano em relação ao cristianismo não tem por conseguinte fundamento lógico ou histórico. O entusiasmo de Agostinho por Platão e por aqueles que constituem a tradição platónica é análogo ao de Justino, o Mártir pelo médio-platonismo que lhe era contemporâneo. O seu juízo acerca dos neoplatónicos não é fundamentalmente diferente do que exprimem Atenágoras, Justino, Clemente e Eusébio a propósito dos filósofos gregos no seu conjunto: «Poucas mudanças bastariam para os transformar em cristãos200.» Agostinho reconhece muito claramente e sem reservas o papel que a filosofia desempenhou na sua formação intelectual.

A época moderna retoma a necessidade de precisar que relações mantinham a filosofia grega e a religião cristã; fá-lo com tons muitas vezes apaixonados e segundo uma multidão de iniciativas e de orientações que ecoam, nem que fosse parcialmente, as dos Pais dos primeiros séculos. Nesta matéria, os trabalhos de H. Dörrie e de C. de Vogel têm uma importância considerável. A herança filosófica nos autores cristãos Convém tomar em consideração diversos pontos fundamentais da tradição platónica, em numerosos autores patrísticos gregos e latinos: – a teologia negativa, da qual a concepção de um Deus imutável é somente um aspecto; – a doutrina da inteligência divina como lugar das ideias, que não se distinguem dos pensamentos de Deus e dos seus poderes criadores e são modelos dos objectos sensíveis; – a interpretação simultaneamente teológica e metafísica das duas primeiras hipóteses do Parménides; – o problema da relação existente entre o primeiro princípio, a inteligência e o ser; – o problema da relação entre as supremas realidades inteligíveis; – a cosmologia; – o controlo exercido pela parte racional do espírito sobre a parte irracional; – o despojamento em relação ao corpo e ao mundo sensível, assimilável a uma «purificação» e indispensável à contemplação do mundo inteligível; – a contemplação de Deus compreendida como autocontemplação, ou seja como contemplação da imagem divina que cada homem carrega em si mesmo; – a flexão da alma sobre si mesma; – a graduação das virtudes; – o ideal de «semelhança a Deus» e de redução à unidade; – a doutrina do mal; – o carácter esotérico do conhecimento superior; – a imagem da alma alada; – os três grandes momentos da metafísica neoplatónica, monê, proodos e epistrophê; – a doutrina das hénades; – a união mística superior à inteligência;

– as leis que regem a hierarquia dos seres divinos. Os quatro primeiros pontos desempenham um papel essencial no pensamento do pseudo-Dionísio, o Areopagita. Podem igualmente encontrar-se pressupostos porfíricos na doutrina do Deus uno e triplo, própria simultaneamente aos Pais capadócios e a Dionísio, o Areopagita, tal como na relação entre a natureza divina e a natureza humana na pessoa de Jesus. O estudo do «platonismo dos Pais da Igreja» deve, por um lado, levar em conta a posição destes em relação ao fundador da Academia, em grande parte análoga à do platonismo contemporâneo, mas também marcada por certas ideias próprias da apologética judaico-helenística; e, por outro lado, tal estudo deve preocupar-se com as reminiscências evidentes e as citações platónicas presentes nos seus trabalhos. Numerosas pesquisas demonstraram claramente que a especulação dos três Pais capadócios não pode ser separada do neoplatonismo. No caso do pseudo-Dionísio, o Areopagita, foi sobretudo o neoplatonismo mais tardio que deixou um cunho particularmente marcado no seu pensamento. A presença do aristotelismo e do estoicismo no pensamento dos Pais da Igreja, sem dúvida menos difusa que a do platonismo, não é porém tão «marginal» quanto se poderia pensar. As teorias do logos como princípio fundador e como lei do cosmos, da virtude regida por esse mesmo logos, da origem e da natureza das paixões, da moderação destas pelo logos agindo como médico da alma e da sua completa eliminação, do homem concebido como um «microcosmo» sujeito às leis do logos tal como o universo sensível ou macrocosmo, da inanidade dos bens exteriores comparados ao bem que se possui em si e que deve ser identificado com a virtude, são outras tantas teses que constituem as linhas mestras da escola estóica e que se congregam na filosofia judaico-helenística e na tradição platónica da Antiguidade tardia. Do mesmo modo se encontram importantes teorias cosmológicas e antropológicas, próprias do estoicismo, em Gregório de Nissa. Enfim, acrescentemos que a Stoa desempenha um papel eminente na antropologia de Nemésio de Emeso. As ideias expressas por Aristóteles nas suas obras de juventude transparecem em certos apologistas, e principalmente em Clemente. Na sua concepção da pistis, Clemente recorreu à lógica aristotélica, com a qual mistura as ideias platónicas e estóicas. A distinção aristotélica entre prote e deutera ousia desempenha um papel fundamental na elaboração da doutrina trinitária dos Pais capadócios e no monofisismo e no triteísmo de João Filopono. Numerosos

temas do Estagirita estão disseminados nos escritos de Gregório de Nissa. Outros temas aristotélicos importantes foram retomados pela tradição platónica, ela própria retomada pelos Pais: o tema do princípio primeiro que limite algum pode conter, a impossibilidade de conhecer o infinito, a inteligência metafísica pura que se pensa a si mesma, o desejo de Deus que é experimentado por todos os seres, a virtude concebida como justo meio e resultado da conjugação das tendências naturais, da aprendizagem e do exercício, e, enfim, a natureza da matéria fundamental. Diversas concepções aristotélicas relativas à física são retomadas por Basílio, o Grande, principalmente nas suas homilias sobre o Hexaéméron; João Filopono comenta Aristóteles e, ao mesmo tempo, critica muitas das suas teorias físicas; certas obras de Boécio atribuem um lugar de primeiro plano à lógica aristotélica. Não obstante, convém reconhecer que os Pais da Igreja dirigem um juízo mais severo sobre os estóicos e sobre Aristóteles do que sobre Platão; ainda aí, a influência do médio-platonismo do século II desempenhou um papel determinante. Tal como os representantes da tradição platónica, os Pais recusam de maneira cortante o panteísmo e o determinismo dos estóicos, bem como a negação aristotélica da providência divina. Por fim, não se deve negligenciar o neopitagorismo, do qual se encontram vestígios na iniciativa de Clemente em matéria de teologia negativa, na subordinação da mónada ao princípio primeiro, na concepção do homem «monádico», em certas especulações aritmológicas, na questão, debatida por Orígenes, da relação que existe entre Deus, a ousia e a inteligência, no tema, retomado por diversos Pais, da «redução à unidade» – assimilável à concepção do homem «monádico» de Clemente –, na teoria da subordinação do limite e do infinito ao princípio primeiro, essencial para Dionísio, o Areopagita. O neopitagorismo é também o húmus cultural de dois tratados de Boécio (Instituição Aritmética e Instituição Musical). Pitágoras é frequentemente associado a Platão quando os Pais da Igreja exprimem a sua preferência e esse é um reflexo do clima cultural reinante durante os primeiros séculos da nossa era. Na história da cultura da Antiguidade tardia, o estoicismo, o aristotelismo e o neopitagorismo não podem ser separados do neoplatonismo; eles convergem neste e conferem-lhe um aspecto sincrético característico; este fenómeno reflecte-se igualmente nos Pais da Igreja. O platonismo segundo os Pais da Igreja

Apesar das reservas e das críticas que exprimem diversos autores, como Taciano, Teófilo de Antioquia, Hérmias, Epifânio e Tertuliano, Platão continua a ser o filósofo que os Pais da Igreja mais apreciam. Em geral, vêem nele o maior dos filósofos e dos teólogos, o autor de um pensamento profundo e visionário e de uma teologia susceptível de dar ao cristão que deseje elevar-se os meios apropriados para o conduzir a uma mais nobre e mais verdadeira concepção de Deus. Clemente apresenta Platão como o amigo da verdade, conduzido por Deus; faz dele seu companheiro na busca de Deus e louva o seu ideal de semelhança a Deus. Eusébio da Cesareia consagra a Platão a integralidade dos livros XI-XIII e uma parte do livro XIV da Preparação Evangélica. Tal como Atenágoras, Justino e Clemente, Eusébio testemunha um profundo respeito por Platão, embora sustentando que a filosofia platónica depende do saber mosaísta. Segundo ele, Platão é o «filósofo grego supremo», o «corifeu dos filósofos» que disse «coisas conformes à verdade com grande frequência, ainda que a expressão nem sempre tenha sido feliz». Na realidade, o importante para Eusébio era sobretudo encontrar no Antigo Testamento a filosofia platónica que ele interpreta à luz do médio-platonismo e do neoplatonismo; é com esse intuito que cita extractos de diálogos de Platão, mas também obras de filósofos posteriores. A ele se deve igualmente a conservação de fragmentos das obras de Numénio e de Ático. A célebre frase de Numénio – para quem Platão é «um Moisés que fala grego» –, à qual Clemente se havia referido, é um elemento importante da sua concepção da história da filosofia. Teodoreto, na sua Terapêutica das Doenças Helénicas, evoca várias vezes Platão e diversos representantes da tradição platónica e neopitagórica, e cita de bom grado passagens das suas obras. As homenagens que presta ao pensamento platónico são em numerosos pontos calorosas, pois estima que o nível de Platão é bem mais elevado que o de Aristóteles. A recepção dos ensinamentos de Moisés e dos profetas por Platão prova a substancial identidade da filosofia deste com a filosofia mosaísta. Tais elogios não apagam porém a recusa de certas doutrinas da escola platónica, como a da matéria coeterna a Deus, a do corpo como origem dos males, ou a da metempsicose. Agostinho transborda de elogios a respeito de Platão, embora só tenha lido a parte do Timeu traduzida por Cícero e não conheça o seu pensamento senão através das indicações fornecidas por autores latinos como Cícero, Varrão, Cipriano e Ambrósio. No capítulo iv do livro viii de A Cidade de Deus,

Agostinho explica que a glória soberana de Platão eclipsou todas as outras filosofias; no livro xxii, 12, refere-se, para felicitá-la, à passagem do Timeu (47b) relativa à origem da filosofia; visando sublinhar a identidade da filosofia platónica e da sabedoria mosaísta, Agostinho estabelece uma ligação entre Platão e Moisés, tal como o haviam feito anteriormente Numénio e certos Pais gregos. Largamente de acordo com Clemente, Agostinho estima que a correlação entre Platão e o Antigo Testamento não exclui que ele tenha sido directamente inspirado por Deus, solução que parece aliás obter o seu favor. Também para Boécio, Platão é o filósofo por excelência, aquele em cujos diálogos o amor da sabedoria encontra a sua mais alta expressão. No que concerne os Pais latinos em que a presença de Platão é mais tangível, mencionaremos apenas Hilário de Poitiers, Mário Victorino, Ambrósio, e depois sobretudo Agostinho e Boécio. Hilário de Poitiers retoma temas e expressões próprios da teologia negativa, característicos da tradição platónica tardia, embora mostrando-se polémico em relação à filosofia, à qual reprova haver confundido Deus com os astros, com os elementos sensíveis e com o mundo inteiro, haver formulado opiniões extravagantes a respeito deste, e, enfim, haver negado a providência. No entanto, não parece que o platonismo grego, em particular o da Ásia Menor, faça directamente parte da formação cultural de Hilário, que provavelmente a adquiriu em Bordéus, centro universitário da Gália romana muito activo no século IV. É esse contexto que lhe terá transmitido conhecimentos em filosofia, a partir de textos latinos, como por exemplo os escritos de Cícero; as ideias filosóficas veiculadas pelas obras de Tertuliano teriam igualmente desempenhado um papel não negligenciável nos seus trabalhos. O reitor africano Mário Victorino é autor de uma tradução latina de obras da corrente platónica; o conteúdo destas foi identificado com certos tratados de Plotino e de Porfírio201. Santo Ambrósio fazia parte do cenáculo de intelectuais latinos adeptos do neoplatonismo que floresceu em Milão cerca do ano 386. A formação filosófica de Santo Agostinho foi largamente influenciada pela leitura do Hortênsio de Cícero, que suscitou nele o desejo ardente de se afastar do mundo para se aproximar de Deus e da sabedoria. Mais tarde, as relações que Agostinho estabelece cerca de 384 em Milão com o meio neoplatónico – do qual Simpliciano e Santo Ambrósio faziam parte –, bem como a leitura de diversos libri platonicorum – tratava-se de tratados neoplatónicos traduzidos

para latim por Mário Victorino – desempenharam um papel determinante na orientação do seu pensamento. Como P. Hadot bem mostrou, Agostinho aborda a filosofia de Platão em quatro enunciados, repletos de temas platónicos, neoplatónicos, estóicos e cristãos202. O esquema ternário que os caracteriza, baseado na tripartição escolástica da filosofia (física, lógica e ética), e a referência a vários modelos possíveis (como por exemplo Cícero, Apuleio e Calcídio) nada retiram ao laço sincero da inspiração agostiniana que tem sem dúvida raízes neoplatónicas e cristãs, mas está igualmente marcada por uma personalidade levada a sistematizar a sua exposição. As componentes platónicas e neoplatónicas dos quatro enunciados são as seguintes: – no domínio da física, a oposição entre o mundo sensível (instável e submetido ao nascimento e à morte) e o mundo inteligível (imutável na sua forma), ligada ao platonismo e ao neoplatonismo; – no domínio da lógica, a oposição entre a verosimilhança ou a opinião e a verdade, entre o raciocínio erróneo ou falacioso e o raciocínio justo, entre o sensualismo estóico e epicurista e o conhecimento verdadeiro, puramente intelectual; – finalmente, no domínio da ética, a distinção nítida entre a virtude política, inferior, e a virtude superior, entre a atracção dos bens materiais, caducos, e a contemplação da beleza, eterna e situada para além do sensível, entre o prazer do corpo e a fruição de Deus, o bem supremo. A posição intermediária da alma humana, a meio caminho entre o sensível e o inteligível na estrutura vertical ternária própria de cada um dos domínios da filosofia, é também de origem platónica e neoplatónica. No que concerne a referência ao Deus único da física, da lógica e da ética, do qual prestam testemunho A Cidade de Deus (VIII, 6-8) e a Carta 118, ela está já presente na doutrina estóica e no neoplatonismo; com efeito, para a Stoa, o logos divino é não só o princípio criador do universo, mas também, devido à sua presença no homem, o princípio do justo raciocínio e da norma ética que se exprime no nomos, valendo tanto para o universo como para a humanidade. Em A Cidade de Deus (VIII, 10), o próprio Agostinho faz remontar aos neoplatónicos a ideia segundo a qual Deus seria a fonte original da física, da lógica e da ética. Na realidade, para Plotino, a inteligência metafísica, segunda hipóstase, é seja o demiurgo do mundo, seja o órgão do conhecimento superior, diferente do conhecimento discursivo próprio da alma, seja ainda o lugar dos modelos das virtudes.

Pelo contrário, referir o domínio físico ao Pai, o domínio lógico ao Filho e o domínio ético ao Espírito Santo remete para o próprio cristianismo. Severino Boécio é o último teólogo e filósofo do Ocidente latino, no momento em que finda a Antiguidade tardia e se inicia penosamente a Idade Média. É autor de uma produção abundante na qual se reúnem os melhores elementos da cultura literária e filosófica latina e grega, quer ela remonte à época clássica ou à Antiguidade tardia. Com efeito, Boécio reúne a melhor parte das tradições das filosofias de Platão, do estoicismo, de Aristóteles e dos peripatéticos, bem como do neopitagorismo. Convém repetir aqui uma observação já formulada: quer se trate do caso particular da formação cultural de Boécio ou do caso geral da história da cultura filosófica da Antiguidade tardia, o estoicismo, o aristotelismo e o neopitagorismo estão indissoluvelmente ligados ao neoplatonismo. No que concerne o neoplatonismo, foi antes de tudo o neoplatonismo da escola de Amónio que marcou profundamente o pensamento e a obra boecianas. Em Boécio, também se não deve subestimar o papel que desempenha a tradição filosófica de língua latina representada por Cícero, Séneca, Apuleio, Marciano Capela, Calcídio, Macróbio, Mário Victorino e sobretudo Agostinho. SALVATORE LILLA 197 Estrómatas, livros I e V. 198 História Eclesiástica, livro VI. 199 Preparação Evangélica, livros X e XI. 200 Da Verdadeira Religião, XII. 201 Os trabalhos de P. Henry e sobretudo de P. Hadot mostraram a que ponto as ideias teológicas de Victorino dependiam do neoplatonismo. 202 Contra os Académicos, III, 17, 37; Da Verdadeira Religião, III, 3; A Cidade de Deus, VIII, 6-8; uma parte da Carta 118. Cf. P. Hadot, La Présentation du platonisme par Augustin, in A. M. Ritter (ed.), Kerygma und Logos, Festschrift für C. Andresen zum 70. Geburtstag, Göttingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1979, p. 272-279.

Damasco e Bagdade

Em 661 d.C., no reinado de Mu’âwiyah, os Omêiades escolheram por capital Damasco, um dos centros urbanos mais antigos do Médio Oriente e hoje em dia capital da Síria. Esta dinastia (661-750) estendeu o seu império para oeste ao ganhar controlo de uma grande parte da Espanha, para leste em direcção à Índia, e para norte em direcção à Ásia Central. Durante o seu reinado, o controlo e a administração dos países conquistados, assegurados até então pelos bizantinos e pelos persas, passaram para as mãos de árabes privilegiados e com poderes acrescidos. Porém, em 750, os Omêiades foram vencidos a leste, à excepção da Espanha, onde Abd al-Rahman (cerca de 750-788) pôde perpetuar a dinastia em Córdova. Os Abássidas, linhagem que continha sangue persa e que provavelmente havia sofrido a influência do zoroastrismo, tomaram o controlo do Império. A fim de desalojar a burocracia árabe instalada pelos Omêiades, de firmarem o seu poder e de garantirem a expansão do islão sobre povos não árabes, os Abássidas deram ao Império uma dimensão internacional, e nomearam entre outros os persas para administrarem o território dessa nova dinastia. Para assinalarem essa internacionalização, em 762 estabeleceram a nova capital do califado no local de uma pequena aldeia persa: Bagdade. Desenhada por arquitectos sob as ordens do segundo califa abássida, alMansur203 (cerca de 754-775), que estava muito implicado no funcionamento da administração do Império, a nova cidade fora concebida para responder aos imperativos ideológicos de controlo das diversas instituições; estas estavam dispostas em torno do palácio do califa, lugar do poder central, no próprio centro da cidade e do Império. Com sublinhou Gutas, deve-se a al-Mansur ter inaugurado esse gigantesco movimento de tradução em Bagdade e arredores durante mais de dois séculos, introduzindo os tesouros da ciência e da filosofia gregas no Dar al-Islam, onde se praticava o islão e onde o seu poderio político dominava204. O movimento de tradução O interesse pelas questões de saúde e de bem-estar favoreceu inicialmente a

tradução de obras de medicina e de astronomia. Mas depressa os textos gregos sobre a ciência, quer ela fosse poiética, prática ou teorética, e sobre a filosofia do período helenístico antigo e tardio abundaram nos meios islâmicos graças às traduções árabes do grego e do siríaco. As longas listas encontradas no catálogo (fihrist) de Ibn al-Nadim, um livreiro de Bagdade do século X, permitem-nos saber mais acerca desses textos. Entre os primeiros tratados filosóficos a serem traduzidos, encontram-se as Categorias, Da Interpretação, e os Segundos Analíticos de Aristóteles, bem como o Isagoge ou a Introdução às Categorias de Porfírio, cuja versão árabe se deve a Abdullah ibn alMuqaffaʿ ou ao seu filho Mohammed, no reinado de al-Mansur. O movimento de tradução perpetuou-se sob o reinado dos seus sucessores, entre os quais o lendário Harun al-Rashid (que reinou entre 786-809) das Mil e Uma Noites e al-Ma’mun (que reinou entre 813-833), tristemente célebre por haver iniciado a Mihna ou inquisição religiosa em Bagdade. Os tradutores mais conhecidos são os do século IX, que assiste à emergência de dois grupos cujos estilo, interesses e ensinamentos filosóficos eram distintos. A maior parte das traduções do grupo associado ao nome de al-Kindî (810866), chamado «o filósofo dos árabes» devido à sua origem étnica205, tem por principal objecto a metafísica neoplatónica. Entre as mais influentes, contam-se as páginas escolhidas das Eneadas IV-VI de Plotino, que tanto tomam a forma de versões literais, como de paráfrases e adaptações, às quais eram acrescentados numerosos comentários206. É a partir deste conjunto de textos que a teoria neoplatónica de Deus enquanto Uno que está para além do ser e da forma se transforma progressivamente, para se tornar uma teoria do Deus criador, cuja natureza é puro ser (annîyah faqat) e acto (ficlun mahdun), sem forma nem limite. Encontra-se a mesma ideia no Kalâm fî mahd al-khair (Livro do Bem Puro) ou Livro das Causas (Liber de causis), que terá uma influência determinante no Ocidente cristão aquando da sua tradução latina no século XII207. Nestas duas obras, as criaturas são compostos de ser e de forma, ao passo que o Uno verdadeiro, o Bem puro, ou seja Deus, é a única coisa da qual se pode dizer que é um ser infinito transcendendo os limites da forma que caracterizam o conjunto da realidade. A maior parte dos Plotiniana Arabica encontra-se numa obra intitulada A Teologia de Aristóteles, composta e editada por al-Kindî, que utilizou a tradução do cristão Abdul-masîh b. Abdullah b. Nâ’ima al-Himsî, ao qual se deveria a versão árabe do conjunto dos Plotiniana Arabica e que não deixou de lhe adaptar a filosofia. A sua adaptação é

nitidamente aristotélica, embora manifestando uma forte influência platónica relativamente à natureza imaterial e transcendente da alma, tese que teria uma incidência considerável na tradição filosófica árabe/islâmica. Entre as outras obras atribuídas ao círculo de al-Kindî, que se caracterizam pela versão literal, o uso de transliterações e de um vocabulário específico, bem como por uma certa tendência para a simplificação, conta-se a tradução do Timeu de Platão, bem como a das Meteorológicas, do Tratado do Céu, da Geração dos Animais, d’As Partes dos Animais, Da Alma, e porventura uma versão modificada dos Parva Naturalia de Aristóteles. Devem-se provavelmente tais adaptações a Ibn al-Bitriq. Há que mencionar igualmente a tradução da Metafísica de Aristóteles por Eustácio e uma paráfrase anónima do tratado Da Alma. Destes dois movimentos de traduções, o mais conhecido está associado ao nome do cristão nestoriano Hunayn b. Ishâq al-Ibâdi (808/9-873). Após haver sido afastado dos seus estudos de medicina pelo seu mestre, Hunayn partiu para ir aprender grego e regressou dois anos mais tarde, conhecendo o suficiente da língua para traduzir os tratados de Galeno e dos filósofos gregos. Organizou então um grupo de tradutores muçulmanos e cristãos que conheciam o grego, o siríaco e o árabe. Ao adoptar um método mais rigoroso que o do círculo de alKindî, este grupo de tradutores esforçou-se por coligir manuscritos, estabelecer um vocabulário filosófico mais coerente – aquele que a tradição reteria – e oferecer versões certamente menos literais, mas mais fluidas e mais fiéis. Os cristãos desempenharam um papel determinante nesse empreendimento, ao utilizarem com grande frequência o siríaco como língua intermédia nas traduções do grego para o árabe. É importante sublinhá-lo, tanto mais que certas obras filosóficas só estavam disponíveis em siríaco e não em árabe, mesmo na época de al-Fârâbî, no século X, que trabalhava em Bagdade com numerosos mestres e estudantes cristãos. Entre as obras traduzidas em árabe ou em siríaco, encontram-se o Timeu, o Sofista, As Leis e outros diálogos de Platão, por vezes sob forma abreviada. Para Aristóteles, a lista é mais longa e inclui tanto os tratados lógicos como a sua filosofia prática e teorética: Categorias, Da Interpretação, Primeiros e Segundos Analíticos, Refutações Sofísticas, Retórica, Física, Da Geração e da Corrupção, Da Alma, Metafísica, Ética a Nicómaco e A Grande Moral. Um outro eminente tradutor da época é o sabeu Thabit b. Qurrah de Harrân, sobre cujas obras, escritas em colaboração com matemáticos e astrónomos, se pode dizer que são de inspiração neopitagórica. Traduziu a Introdução à Aritmética de Nicómaco de Gerasa, fez um comentário da Física de Aristóteles, e reviu as adaptações do Almageste de

Ptolomeu e dos Elementos de Euclides, realizadas por Ishaq b. Hunayn. A Introdução às Categorias de Porfírio foi traduzida por Abu Uthmân alDimashqî, tal como os Tópicos de Aristóteles. Qustâ b. Lûqâ dedicou-se à versão da Metafísica de Teofrasto, da compilação doxográfica Placita philosophorum e dos tratados de medicina e de matemática. As obras de Alexandre de Afrodísia e os comentários de certos neoplatónicos foram igualmente traduzidos208. Este movimento de transmissão da herança grega continuou com a mesma intensidade no século X, durante o qual os tradutores, os sábios e os professores das três grandes religiões de Abraão trabalhavam juntos em Bagdade para realizarem novas traduções ou para reverem as antigas e estudarem-nas. A Poética, Da Sensação, as Meteorológicas e o Tratado do Céu de Aristóteles, bem como as obras de Alexandre de Afrodísia foram adaptadas por Abu Bishr Mattâ b. Yûnus (f. 940), mestre de al-Fârâbî. O teólogo e filósofo cristão Yahyâ b. Âdî (f. 974), aluno de al-Fârâbî, traduziu os comentários de Alexandre, de Temístio e de Olimpiodoro sobre Aristóteles, mas também as Categorias, os Tópicos, as Refutações Sofísticas, a Poética, a Física, o Da Alma, e a Metafísica. Publicou igualmente os seus próprios comentários. Entre os últimos tradutores deste grande movimento que durou cerca de duzentos anos, citemos os contemporâneos: Ibn al-Khammâr (f. 1017) e Ibn Zur’ah (f. 1008), aos quais se deve a versão árabe da História dos Animais, da Geração dos Animais, das Meteorológicas, e de outros textos de Aristóteles. O Kalâm ou a teologia filosófica É na época de al-Kindî que a teologia racional do mu’tazilismo ganha importância em Bagdade, sustentada pelas medidas autoritárias da Mihna, a inquisição conduzida por al-Ma’mûn. Demarcando-se do puritanismo e do rigorismo dos kharijitas, bem como do aparente laxismo dos murji’itas, os mu’tazilitas (ou «separatistas», em referência aos extremistas) consideravam que os homens haviam criado o Qur’ân, que eram capazes de discernir o bem e o mal graças à razão e que possuíam um livre arbítrio. A interpretação racional da justiça divina e a doutrina da retribuição e do castigo eram centrais para compreender a revelação do poder divino. Tal abordagem necessitava de uma hermenêutica aprofundada de um grande número de passagens do Qur’ân que a tradição havia compreendido de maneira literal. No entanto, esta abordagem corria o risco de ser percebida como um novo questionamento ou uma limitação da autoridade e do poder de Deus, ao adoptar um ponto de vista

humano sobre o real significado dessas passagens. Entre os opositores a esse racionalismo, o mais conhecido é Abû al-Hasan al-Ashcarî (f. 935), que trocou o mu’tazilismo por uma leitura mais fiel da revelação divina, rejeitando o ponto de vista do racionalismo humano que limitava o poder de Deus. Mais do que uma simples defesa da revelação, o ash’arismo era, de um ponto de vista filosófico, uma teologia atomista e ocasionalista complexa, e uma teoria do poder divino onde a potência, a acção e a justiça de Deus dependiam inteiramente da sua vontade. Este movimento elaborou a doutrina do kasb, segundo a qual o homem cumpre os seus actos por meio da criação divina. Tal doutrina visava responder à tese da liberdade humana dos mu’tazilitas, evitando ao mesmo tempo adoptar um determinismo demasiado estrito. Apesar disso, ela parecia minar a liberdade e a responsabilidade humanas. Esta teologia filosófica ocasionalista, que mais tarde foi retomada por al-Ghazâlî (f. 1111) e muitos outros, tornou-se a corrente dominante e eclipsou rapidamente o mu’tazilismo, que desapareceu da tradição209. Al-Kindî (801-866) Ainda que somente uma pequena parte das cerca de duzentas e cinquenta obras de al-Kindî tenha chegado até nós, podemos avaliar nos seus escritos a amplitude do encontro entre as ideias filosóficas dos gregos e a teologia islâmica, bem como a importância do papel desempenhado pela tradição neoplatónica no desenvolvimento da filosofia islâmica. Al-Kindî escreveu em Bagdade no século IX, no momento em que a teologia racionalista mu’tazilita leva a melhor em influência, e no período imediatamente posterior. No prefácio à sua Epístola sobre a Filosofia Primeira, al-Kindî explica que a filosofia secular herdada dos gregos deve ser compreendida como uma tentativa de descrição da unidade divina e do respeito que o homem lhe deve, tais como se encontram na revelação e na teologia islâmicas sob o nome de Tawhîd. Após haver agradecido ao seu mecenas, al-Kindî explica porque a filosofia primeira deve ser definida como conhecimento da causa da verdade no seu conjunto, o Uno verdadeiro. Al-Kindî serve-se da lógica aristotélica e da teoria das quatro causas para alcançar verdadeiras definições. Deve reconhecer-se aos antigos o mérito de haverem produzido este método capaz de atingir a verdade. Al-Kindî passa porém, auxiliado por um argumento retórico de uma espantosa insolência e efectivamente falacioso, a atacar certos teólogos contemporâneos, que não nomeia, dizendo: «Eles consideram como inimigos audaciosos e perigosos aqueles que detêm as virtudes humanas que eles não puderam atingir, e das

quais estão bem distantes, para defenderem as suas cátedras usurpadas que erigiram sem terem tal direito mas antes para dominarem e para traficarem religião embora não tenham religião alguma; com efeito, aquele que trafica uma coisa vende-a, e quem vende uma coisa deixa de a ter: portanto aquele que trafica religião já não tem religião; merece ser despojado da religião aquele que se opõe com furor a que adquiramos a ciência das coisas nas suas verdades e lhe chama descrença210.» A verdade à qual se acede pela filosofia, uma vez que inclui o conhecimento de Deus, é portanto necessária, digam o que disserem os teólogos. O prefácio conclui-se com agradecimentos dirigidos ao seu benfeitor, após uma oração solicitando a assistência divina para estabelecer contra os inimigos da filosofia argumentos racionais capazes de provarem a existência de Deus e de explicarem o que é Uno para atingir a verdade. Este prefácio é importante na história da filosofia islâmica, pois al-Kindî afirma que a filosofia permite apreender a unidade divina (Tawhîd) tanto como a revelação e a doutrina religiosas, e que essa apreensão é fundamental para o conjunto da vida humana. O raciocínio filosófico e as suas demonstrações apodícticas, por um lado, e o islão e a revelação divina, por outro, são portanto duas vias iguais para conduzir a Deus, ao Uno verdadeiro e à causa de toda a verdade. No entanto, em caso de conflito de interpretação, deve dar-se preferência à explicação filosófica, devendo a revelação ser entendida alegoricamente, tal como Ibn Rushd/Averróis afirmará mais tarde. O seguimento da Epístola sobre a Filosofia Primeira assemelha-se a um tratado filosófico acerca do que é o Tawhîd, apoiando-se no exame aristotélico e, mais ainda, no do neoplatonismo de Plotino e de Proclo. O género, a espécie, o acidente, o movimento, a matéria, a alma, o intelecto, as partes (etc.) não podem ser atribuídos ao Uno verdadeiro, ao Primeiro, ao Criador, que excede o poder que o homem tem de o compreender e de o descrever. Deus é o Uno puro e causa de todo o ser e de toda a verdade que decorre dessa unidade. Al-Kindî aprofunda este tema num pequeno tratado intitulado «Sobre o agente verdadeiro, primeiro e perfeito e sobre o agente deficiente que é agente por extensão». A propósito da diferença entre causalidade primeira e causalidade segunda, como aquela que se encontra no primeiro capítulo do Kalâm fî mahd al-khair/Liber de causis que lhe é atribuído, e em todo o caso associado ao círculo de al-Kindî211, ele mostra que o termo «agente» não pode verdadeiramente aplicar-se senão àquilo que não pressupõe nenhum outro agente, nem nenhum outro substrato ou matéria que pré-existisse ou coexistisse com a sua actividade criadora. Assim, à excepção desse único Agente

verdadeiro, todos os outros se dizem ser causas num sentido metafórico ou derivado212. O criacionismo de al-Kindî acompanha a sua bem conhecida recusa da doutrina aristotélica da eternidade do mundo, fazendo uso de argumentos tirados do cristão de Alexandria João Filopono. O aristotelismo desempenhou portanto um papel maior, tanto nos Plotiniana Arabica e na Teologia de Aristóteles, editados por al-Kindî, como no pensamento do próprio al-Kindî, ainda que este tenha sido sobretudo influenciado pelo neoplatonismo, do qual se encontram vestígios na sua teoria da alma como intelecto imaterial simples. O seu tratado Do Intelecto assemelha-se, à primeira vista, aos trabalhos peripatéticos tardios sobre o intelecto agente, o intelecto em potência, o intelecto em acto, etc. No entanto, a concepção que al-Kindî faz da alma e do intelecto está mais de acordo com a teoria platónica segundo a qual o conhecimento intelectual humano se realiza através dos objectos inteligíveis, que existem independentemente da alma que os apreende por memória ou reminiscência, e não por extracção ou abstracção, como em al-Fârâbî. Al-Fârâbî (870-950/951) Conhecemos mal a identidade e a vida de al-Fârâbî. Supomos que ele venha da Turquia ou da Pérsia, ou pelo menos da parte oriental do Império. Sabe-se que começou por estudar em Bagdade, com o cristão Yuhannâ b. Haylân, lendo a Introdução às Categorias de Porfírio, as Categorias, o Da Interpretação, os Primeiros e Segundos Analíticos de Aristóteles. Foi também junto de al-Fârâbî que estudou o grande teólogo e filósofo cristão Yahyâ b. Âdî (f. 974). Passou verosimilmente uma grande parte da sua vida em Bagdade, mas em 942 trocou essa cidade por Damasco, onde terminou o seu Tratado das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal. Demorou-se igualmente em Alepo e viajou ao Egipto, antes de regressar a Bagdade, onde morreu em 950-951213. Com os seus contemporâneos, Abû Bishr Mattâ b. Yûnus (f. 940), al-Fârâbî, é hoje em dia tido por um dos promotores da tradição filosófica da escola de Alexandria em Bagdade, que era uma mistura de aristotelismo e de neoplatonismo, e da qual Amónio foi arauto no século V. É o que mostram os métodos de ensino praticados em Bagdade, e em certa medida pelo próprio alFârâbî, que traça no Da Aparição da Filosofia as linhas desse novo aristotelismo de Bagdade, perpetuando a tradição grega de uma maneira inteiramente diversa da de al-Kîndî no século anterior. Das raras obras de al-

Fârâbî que chegaram até nós, solta-se uma nova cosmologia de inspiração aristotélica, onde o mundo nasce por emanação da Causa primeira, a partir da qual é criada toda uma hierarquia de intelectos, de almas e de corpos celestes superiores, onde cada intelecto, por intelecção de si mesmo, dá origem a outros intelectos, almas e corpos inferiores. Única causa da existência (wujûd) das outras coisas e isento de qualquer defeito, o Primeiro é uno e imaterial, conformemente ao neoplatonismo, e a sua substância não é comparável a nenhuma outra. Não se lhe pode descrever a essência na medida em que «ele é o Ser cuja existência não pode ter nem causa formal, nem causa eficiente, nem causa final214». O Primeiro não pode ser caracterizado senão negativamente: ele é indivisível, incorpóreo, imaterial, não tem substrato e é sem começo. No entanto, a sua substância é a de um intelecto e de um inteligível, pois, conformemente ao aristotelismo, ele é uma essência que se pensa a si mesma e que é objecto do seu pensamento. É por isso que a razão nos ordena que evoquemos o Primeiro por toda uma série de nomes: ele é sabedor, sábio, real, verdadeiro, vivo, ele é a vida, ele é belo, brilhante, maravilhoso, ele experimenta os maiores prazeres, ele é o primeiro objecto de amor. «Os nomes pelos quais convém tratar o Primeiro são aqueles que para nós designam os seres mais eminentes em perfeição e em existência. Mas esses nomes não evocam senão o que aí há de perfeição e de eminência segundo o hábito corrente pelo qual designamos os seres que estão entre nós, e aqueles que são os melhores. Para o Primeiro, esses nomes caracterizam a perfeição que é a Sua Substância215.» Contrariamente a al-Kindî, que considera que Deus na teologia islâmica e na metafísica é a mesma coisa que o Uno verdadeiro, al-Fârâbî pensa que o objecto da ciência teorética (a metafísica) é o que é comum a todos os seres (na sua existência), o que inclui o princípio absoluto de todas as coisas existentes, a saber Deus. Uma vez que não existe senão uma única ciência universal para todos os seres, a metafísica compreende a teologia como uma das suas partes que tratam de Deus, causa criadora por emanação de todas as coisas, por intermédio da escala dos intelectos materiais. O último intelecto criado por emanação é o intelecto agente ou intelecto activo (al-caql al-faccâl), que é associado à esfera da Lua, e do qual emanam formas no mundo e em outros seres do mundo sublunar, segundo certos tratados de al-Fârâbî. Este intelecto intervém junto dos animais racionais, ou seja dos homens, na compreensão intelectual, conformemente ao que diz Aristóteles no De anima (III, 5), seguindo al-Fârâbî sem dúvida neste ponto os

ensinamentos de Alexandre de Afrodísia216. Segundo ele, os seres humanos distinguem-se dos outros animais pelas suas faculdades de escolha e de compreensão intelectual, graças às quais conseguem superar as determinações do mundo físico e atingem mesmo um nível próximo do do intelecto agente. Os comentadores gregos de Platão e de Aristóteles discutem entre si a diferença entre as formas transcendentes do primeiro, que são universais atingíveis pela alma, e os conceitos aristotélicos que derivam do mundo e cuja intelecção se deve a um conjunto complexo de faculdades psíquicas. Em certos casos, como em Porfírio, ambas as explicações são retidas: os universais aristotélicos são fundados na experiência e abstraídos dela; a experiência é considerada essencial para apreender as Formas por meio dessa actividade inteiramente diversa que é a reminiscência217. Na sua Epístola sobre o Intelecto e em outras obras, al-Fârâbî considera no entanto que os inteligíveis existem naturalmente em acto na alma humana somente por um processo que faz intervir a sensação, a imaginação e quatro intelectos, dos quais três estão na alma, sendo o quarto o intelecto agente, que lhe é transcendente. O processo começa pela apreensão dos sensíveis pelos cinco sentidos e a sua unificação pelo sentido comum dominante, que produz impressões na faculdade mimética de representação ou de imaginação. Esta última exerce uma actividade pré-noética que «combina as sensações umas com as outras, ou então as separa umas das outras por combinações ou separações diversas218». A intelecção produz-se graças à intervenção de quatro intelectos. O intelecto em potência, ou intelecto material, é «uma certa coisa cuja essência foi preparada ou aprestada a separar as quididades de todos os entes, bem como as suas formas das suas matérias, fazendo delas todas uma forma, ou formas, para ela mesma219». Ao receber estas formas abstractas, a alma humana possui e identifica essas formas presentes enquanto inteligíveis em acto no que é presentemente o intelecto em acto. Antes de serem abstraídas pelo intelecto material, elas tinham um estatuto ontológico diferente, o de inteligíveis em potência. Tal nome não lhes convém senão na medida em que elas se referem a um intelecto, pois, em si mesmas, as formas das coisas do mundo material não são inteligíveis. Al-Fârâbî escreve: «Mas quando [elas] se tornam inteligíveis em acto, então a sua existência enquanto são inteligíveis em acto não é a sua existência enquanto formas nas matérias. E a sua existência em si mesma não é a sua existência enquanto são inteligíveis em acto220.» O papel do intelecto agente, tal como é descrito pela Epístola sobre o Intelecto, consiste em dar ao

intelecto material aquilo que lhe permite receber os inteligíveis e tornar-se inteligível, tal como o sol dá à visão a luz que lhe permite ver em acto e às coisas visíveis serem visíveis em acto. Encontra-se a mesma ideia no Tratado das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal, onde o intelecto agente faz passar (yanqulu) os inteligíveis da potência que é a sua, quando eles existem nas coisas particulares e nas faculdades pré-noéticas da alma, ao acto no intelecto em acto, na medida em que ele «dá ao intelecto material uma espécie de luz». Escreve ele: «Quando na potência razoável se produz a partir do intelecto agente essa coisa que está na mesma situação que a luz em relação à vista, os sensíveis realizam-se a partir do que está conservado na potência imaginativa e tornam-se inteligíveis na potência razoável221.» Enquanto os inteligíveis imateriais em acto estão presentes no intelecto da alma, as Formas podem ser pensadas de outro modo, como separadas e inteligíveis em acto. A actividade imaterial do pensamento sobre estas formas abstractas, completamente separadas da matéria, dá então lugar a uma nova actualidade do intelecto, chamada «intelecto adquirido». O intelecto adquirido já não precisa de nenhuma faculdade da alma que exista no corpo. É nesse sentido que se pode falar de realização ou de transformação da alma incarnada em intelecto. A alma já não precisa do corpo para a intelecção uma vez que doravante ela é uma entidade imaterial em acto, eterna por natureza, alçando-se ao nível do intelecto agente ao qual se assemelha. Não se trata de um evento místico em que o intelecto se unisse com o intelecto agente, como mais tarde em Ibn Bâjjah, mas antes de um indivíduo humano que se realiza completamente ao tornar-se um intelecto separado, graças à abstracção intelectual que o homem é capaz de escolher e de prosseguir durante a sua vida, segundo al-Fârâbî. A doutrina por ele elaborada da abstracção dos inteligíveis a partir da experiência ocupa um lugar considerável no ensinamento de Ibn Rushd/Averróis, mas também em Tomás de Aquino, que a descobre na tradução latina do Grande Comentário sobre o De Anima de Averróis. Verdadeiro guia para o homem, o intelecto agente desempenha igualmente um importante papel nas ciências poiética, prática e teorética ao dar à acção humana voluntária que visa a felicidade os primeiros fundamentos inteligíveis da realidade. A partir de uma interpretação d’A República de Platão influenciada pela leitura de Aristóteles, al-Fârâbî mostra como o imã (o guia religioso), o filósofo e o legislador se tornam um na cidade ideal. O método mais seguro para atingir uma verdade apodíctica é o da demonstração filosófica, que utiliza silogismos válidos a partir de premissas verdadeiras. No

entanto, a maior parte das pessoas dá o seu assentimento às acções ou às doutrinas não em razão de provas filosóficas complexas, mas graças à persuasão que utiliza os recursos da imaginação para revelar a vontade divina. Estas imitações transmitem as prescrições divinas por símbolos, que o imãfilósofo-legislador emprega quando governa a cidade e os cidadãos de modo a conduzi-los à felicidade. Não obstante, «a religião é uma matéria de opinião», como recorda al-Fârâbî nas primeiras páginas do seu Livro da Religião, e a felicidade para o homem, a sua verdadeira felicidade, não se obtém senão quando atinge a verdade graças aos filósofos que usam da demonstração e das ciências, e não quando aquiesce ingenuamente às imagens e aos símbolos, nem quando dá o seu consentimento dialéctico ao religioso. O conhecimento absoluto e transcendente do filósofo não é fácil de atingir e nem todos os homens são igualmente capazes dele, devido à diferença das disposições naturais e à dificuldade em atingir um tal grau de intelecção. Certos intérpretes contemporâneos tentaram mostrar que as declarações de al-Fârâbî constituem uma rejeição céptica do pensamento grego e marcam a criação de uma nova ciência política que não estaria fundada nas teorias tradicionais da natureza humana222. No entanto, é sem dúvida menos anacrónico procurar no pensamento de al-Fârâbî sobre a política, a psicologia, a epistemologia e a metafísica, pontos de acordo com uma mistura de neoplatonismo e de aristotelismo saída da tradição grega tardia223. Entre os filósofos de Bagdade, al-Fârâbî é hoje o mais conhecido, mas sabemos que o movimento aristotélico foi inaugurado pelo cristão Abû Bishr Mattâ (f. 940), ao qual se deve a tradução do siríaco para o árabe dos Segundos Analíticos de Aristóteles e que se opôs ao gramático Abû Sacîd al-Sîrâfî (f. 979). Este último negava a universalidade da lógica grega ao pretender que se tratava apenas de gramática grega sob uma veste filosófica. O aluno de alFârâbî, o cristão Yahyâ b. Âdî (f. 974), traduziu as Refutações Sofísticas e compôs numerosos tratados de lógica e de teologia. A presença do neoplatonismo era igualmente muito forte nessa época. O vocabulário e as teses neoplatónicas dos Plotiniana Arabica encontram-se na obra de Miskawayh (f. 1030) e de al-Sijistani (f. 985). Al-Âmirî (f. 991) seguiu a via de al-Kindî em filosofia e utilizou a tradição neoplatónica nas suas interpretações do Alcorão, embora recorrendo ao auxílio de citações e de paráfrases do Kalâm fi mahd al-khair/Liber de causis no seu tratado Sobre a Vida após a Morte. Na mesma época, as Epístolas dos Irmãos da Pureza, obra que mistura a filosofia e a revelação islâmica, apresentam-se como um guia religioso para que a alma

atinja a felicidade aquando da sua vida futura e testemunham a influência do pitagorismo e do neoplatonismo. Damasco e Bagdade são os dois maiores centros de tradução e de actividade intelectual entre os séculos VII e X em terras do islão. A cidade nova de Bagdade eclipsou rapidamente a antiga cidade de Damasco, a partir do século VIII. Paralelamente ao movimento de tradução, al-Kindî e al-Fârâbî desenvolveram uma filosofia própria, ainda que os seus trabalhos e os seus ensinamentos tenham sido rapidamente eclipsados pela importância das obras de Ibn Sînâ/Avicena (f. 1037), a partir do século XI. No entanto, as teorias metafísicas sobre Deus e sobre a alma humana saídas do círculo de al-Kindî encontram-se em pensadores muçulmanos posteriores que regressavam sistematicamente aos Plotiniana Arabica, e no Ocidente latino onde a tradução do seu primo Kalâm fi mahd al-khair/Liber de causis era abundantemente estudada e comentada na Universidade de Paris. A influência de al-Fârâbî em metafísica, em psicologia filosófica e no pensamento político é atestada em Ibn Sînâ, bem como em filósofos do al-Andaluz, entre os quais Ibn Bâjjah e Ibn Rushd/Averróis. No Ocidente latino, as traduções de al-Fârâbî influenciaram profundamente a teoria das ciências, e o desenvolvimento que Averróis fez do seu pensamento teve um impacto decisivo nas concepções da natureza humana e da alma nos debates cristãos. RICHARD C. TAYLOR 203 Na literatura portuguesa também correntemente designado como Almançor. (N. do T.) 204 D. Gutas, Greek Thought, Arabic Culture, Nova Iorque, Londres, Routledge, 1998. 205 P. Adamson, Al-Kindi, Oxford, Oxford University Press, 2007. 206 Id., The Arabic Plotinus, Londres, Duckworth, 2002. 207 R. C. Taylor, «Aquinas, the Plotiniana Arabica, and the Metaphysics of Being and Actuality», Journal of the History of Ideas, n.o 59, 1998, p. 217-239. 208 C. D’Ancona, «Greek into Arabic: Neoplatonism in Translation», in P. Adamson e R. C. Taylor (dir.), The Cambridge Companion to Arabic Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, p. 10-31. 209 D. Gimaret, La Doctrine d’al-Asharî, Paris, Cerf, 1990; id., «Mu’tazila» in P. J. Bearman, C. E. Bosworth, E. van Donzel, W. P. Heinriches et al. (dir.), Encyclopedia of Islam, 2.a ed., Leyde, Brill, 19602005, t. 9, p. 783-793. 210 Al-Kindî, Œuvres philosophiques et scientifiques d’al-Kindî, R. Rashed e J. Jolivet (ed.), Leyde, Brill,

1997-1998, 2 vols., vol. 2, p. 14-15. 211 G. Endress, «The Circle of al-Kindî. Early Arabic Translations from the Greek and the Rise of Islamic Philosophy», in G. Endress e R. Kruk (dir.), The Ancient Tradition in Christian and Islamic Hellenism. Studies on the Transmission of Greek Philosophy and Sciences dedi cated to H. J. Drossaart Lulofs on his ninetieth birthday, Leyde, Research School CNWS, School of Asian, African, and Amerindian Studies, 1997, p. 43-76. 212 Al-Kindî, op. cit., t. 2, p. 168-171. 213 D. Gutas, «Fârâbî», in Ehsan Yarshater (dir.), Encyclopaedia iranica, Londres, Routledge & Kegan Paul, t. 9, 1985. 214 Al-Fârâbî, Traité des opinions des habitants de la cite idéale, trad. do árabe [para francês] por T. Sabri (Études musulmanes, n.o 31), Paris, Vrin, 1990, p. 43. 215 Ibid., p. 60. 216 Ver M. Geoffroy, «La tradition arabe du d’Alexandre d’Aphrodise et les origines de la théorie farabienne des quatre degrés de l’intellect», in C. d’Ancona et G. Serra (dir.), Aristotele e Alessandro di Afrodisia nella Tradizione Araba, Pádua, Il Polígrafo, 2002. 217 H. Tarrant, Thrasyllan Platonism, Ithaca, Londres, Cornell University Press, 1993, p. 108-147. 218 Al-Farâbî, Tratado das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal, op. cit., p. 81. 219 Id., Alfarabi. Risalah fî al-caql, M. Bouyges (ed.), Beirute, Dar el-Machreq, 1983, 2.a ed.; trad. do árabe [para francês] por D. Hamza. L’Épître sur l’intellect. Al-Risâla fî al-caql. Abû Nasr Al-Fârâbî, Paris, L’Harmattan, 2001, § 12, p. 70. 220 Ibid., § 16, p. 72-73 (traduções ligeiramente modificadas). 221 Id., Tratado das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal, op. cit., p. 92 (trad. ligeiramente modificada). 222 Ver C. A. Colmo, Breaking with Athens: Alfarabi as Founder, Lanham, Maryland, Lexington, 2005, e M. Mahdi, «Fârâbî», in Encyclopaedia Iranica, op. cit. 223 Ver D. O’Meara, Platonopolis: Platonic Political Philosophy in Late Antiquity, Oxford, Oxford University Press, 2005, e P. Vallat, Farabi et l’école d’Alexandrie, Paris, Vrin, 2004.

Averróis/Ibn Rushd

Cadi224 e jurista oriundo de uma longa linhagem de teóricos da lei religiosa, Ibn Rushd ou Averróis (cerca de 1126-1198) marca na filosofia o sucesso da tradição racionalista clássica em terras do islão. Essa tradição enraíza-se no pensamento de al-Kindî, firma-se na filosofia de al-Fârâbî, desenvolve-se ainda nas obras de Avicena/Ibn Sînâ, até que Averróis a conduz ao seu ponto de acabamento ao operar um retorno ao racionalismo aristotélico, que o fará passar a ser chamado «o Comentador» no Ocidente latino. Pode dividir-se a obra filosófica de Averróis em dois grandes conjuntos. O primeiro reúne as obras dialécticas relativas a questões de ordem religiosa ou filosófica225; o segundo as obras que ele qualificava como «filosóficas» e «demonstrativas»226. Trata-se de tratados independentes sobre diversos assuntos e de comentários filosóficos sobre a obra de Aristóteles, que são de três tipos: as Súmulas (ou Epítomes), os Comentários Médios e os Grandes Comentários. As Súmulas tratam das questões e dos problemas levantados pela leitura das obras de Aristóteles e dos comentadores gregos e árabes. Os Comentários Médios consistem em larga medida numa paráfrase das principais teses aristotélicas, e foram provavelmente escritos a pedido do califa Abû Yaqûb Yûsuf. Aí se encontram por exemplo uma paráfrase d’A República de Platão com matizes claramente aristotélicos. Mas foram os Grandes Comentários que se tornaram mais conhecidos e também mais influentes. Averróis reproduz neles o texto aristotélico, acompanhado por um comentário linear detalhado e crítico sobre os termos empregues, os argumentos, o sentido do texto e a sua intenção, ao mesmo tempo que toma posição em relação às opiniões dos filósofos e dos comentadores das tradições gregas e árabes, designadamente às de Alexandre de Afrodísia, de Temístio, de al-Fârâbî, ou ainda de Avicena. O racionalismo filosófico na dialéctica em matéria de religião: método e objecto da religião e da filosofia Não seria errado considerar que o Discurso Decisivo de Averróis se refere à

harmonia entre a filosofia e a religião, ainda que se pudesse igualmente traduzir o título por: «Livro sobre a separação do discurso religioso e do discurso filosófico e estabelecimento da relação entre os dois227.» Sob a forma de um decreto religioso, ou talvez mesmo de uma fatwa, Averróis escreve: «O fito deste discurso é o de averiguar, na perspectiva da reflexão jurídica, se o estudo da filosofia e das ciências da lógica é permitido pela Lei revelada, ou condenado por ela, ou ainda prescrito, seja enquanto recomendação, seja enquanto obrigação228.» Mas tal exame revela-se resolutamente dialéctico na medida em que Averróis confronta entre si os significados dos termos empregues pela religião, e resolutamente filosófico através desta afirmação fundadora: a verdade é uma por natureza, quer ela seja estabelecida pela filosofia ou pela Escritura e pelas crenças religiosas. Ao identificar a reflexão (al-nazar) que a religião exorta a empreender sobre a Escritura e o mundo que Deus criou com a que caracteriza a ciência teorética em Aristóteles (cilm nazarî), Averróis afirma que a reflexão religiosa atinge a sua perfeição quando toma a forma de um exame sobre os seres, na medida em que eles revelam o seu Criador divino. Do mesmo modo, ele associa o qiyâs (o raciocínio por analogia), do qual a lei religiosa faz uso quando recorre aos modelos do Qurcân e das Hadiths («tradições») para estabelecer as regras da vida quotidiana, ao qiyâs aristotélico (o raciocínio por silogismo) que os filósofos empregam nas suas demonstrações. Ao citar o mandamento do Qurcân «Prestai pois atenção, ó vós que sois dotados de clarividência229», Averróis procura aproximar a «atenção» (al-ictibâr) da indução científica aristotélica, pela qual se tira um conhecimento novo daquilo que já é conhecido230. E conclui: «É evidente, além disso, que este procedimento de reflexão (al-nazar) a que a Revelação chama, e que ela encoraja, é necessariamente o mais perfeito e aquele que recorre à espécie mais perfeita de qiyâs, à qual chamamos “demonstração” (burhân)231.» Graças a este argumento dialéctico, Averróis sustenta não só que o estudo da filosofia é permitido, mas também que todos os que são capazes dele estão obrigados a isso por um mandamento da lei religiosa, uma vez que ela é uma reflexão (alnazar) sobre as criaturas, e por conseguinte sobre o Criador delas. Neste tratado religioso dialéctico, Averróis toma por adquirido o princípio seguinte: «A verdade não pode ser contrária à verdade, mas concorda com ela e testemunha em seu favor232.» Trata-se por um lado de se precaver contra a possibilidade de uma teoria da «dupla verdade», uma religiosa e a outra filosófica, e de insistir na primazia da demonstração que constitui

imediatamente e por si mesma um conhecimento, pois ela conduz ao verdadeiro e ao certo (al-yaqîn)233. Este demarca-se assim de todos aqueles que dão o seu assentimento (al-tasdîq) sob o efeito ou de uma persuasão retórica que se dirige à imaginação, ou então de uma persuasão dialéctica que utilize a argumentação mas apoiando-se em crenças comuns. Nestes dois casos, não é a necessidade da demonstração em si mesma, onde uma forma válida de silogismo se apoia em premissas verdadeiras, que suscita o assentimento (altasdîqc), mas antes o efeito persuasivo da crença religiosa, do consenso (alijmâʿ), ou ainda da emoção. Por isso, quando sucede que as conclusões de um raciocínio contradizem certas interpretações dos textos religiosos sobre o mundo e o seu Criador, deve retomar-se a interpretação dos textos deixando-se guiar por aquele que pratica a demonstração, pois só as explicações que daí saírem são incontestavelmente verdadeiras. Este método permite a Averróis, no Discurso Decisivo, na Incoerência da Incoerência e no Tratado sobre o Conhecimento Divino, responder a três acusações de infidelidade (kufr) que al-Ghazâli lhe dirige no seu Incoerência dos Filósofos, relativamente às suas posições sobre 1) a eternidade do mundo, 2) a natureza do conhecimento divino e 3) a ressurreição do corpo e a vida depois da morte. 1) Tal como al-Fârâbî e Avicena, que sustentam ser o mundo eterno, tese expressa nomeadamente através da ideia de uma hierarquia dos seres emanada da Causa primeira ou Deus e da qual eles são ontologicamente dependentes, Averróis permanece inabalável quanto à questão da eternidade do mundo. Mantém a tese de Aristóteles, segundo a qual o universo é eterno, pois a matéria deve necessariamente existir para que haja mudança; sublinha, além disso, que seria a essa mesma tese que um leitor atento da Escritura chegaria, pois, no Qurcân, Deus menciona um «trono» e a «água» que precedem a criação do mundo. Assim, Averróis não sustenta a ideia de uma creatio ex nihilo, mas considera que a criação consiste na mera dependência do mundo em relação à divindade (posição que exprime claramente no seu Grande Comentário sobre a Metafísica). Na obra dialéctica Desvelamento dos Métodos de Demonstração dos Dogmas Religiosos, Averróis estabelece dois tipos de prova da existência de Deus, ambos concordantes com a teologia de Aristóteles: a prova a partir da providência (cinâyah) e a prova a partir da criação da vida por um decreto divino (qatân). 2) Contra al-Ghazâli, que acusa os filófos de denegrirem a potência de Deus

ao Lhe recusarem o conhecimento dos particulares, Averróis defende de novo implicitamente uma tese aristotélica: o conhecimento divino não é nem particular nem universal, ele constitui antes um terceiro género de conhecimento voltado para si mesmo. O conhecimento dos particulares e o dos universais não existem senão em virtude de objectos exteriores, ao passo que no caso do conhecimento divino transcendente, que não se refere nem aos particulares nem aos universais, Deus conhece todas as coisas pelo facto de que se conhece a si mesmo em acto. E esse acto de conhecimento de si é idêntico ao ser e ao acto divino, causa final de todas as coisas, ou seja, uma espécie de causa cuja potência faz existir todas as realidades e lhes confere a sua essência, em conformidade com a tese aristotélica. 3) Finalmente, no Discurso Decisivo, Averróis defende uma concepção comum a favor da ressurreição e da vida depois da morte. De um ponto de vista religioso, a sociedade deve crer na ressurreição e na vida depois da morte, mas Averróis acrescenta que essa atitude convém mais aos crentes do que àqueles que preferem ser guiados pelo conhecimento. No entanto, para esses espíritos mais científicos, há que amparar todas as interpretações escritas acerca desse assunto com um raciocínio demonstrativo: é essa a tarefa da filosofia. Para os espíritos cultivados, tais explicações visam esclarecer a comunidade dos não filósofos, fazendo-os conceber uma forma de existência no além, distinta da do mundo físico dos corpos, e apreender a verdadeira natureza da divindade, ainda que imperfeitamente, como pura actividade do intelecto, para além dos limites do corpo, da matéria e da sua potência. Averróis aniquila assim toda a força dessas três acusações, ao responder a elas por meio de um raciocínio filosófico que concorda com os ensinamentos de Aristóteles sobre a eternidade do mundo, sobre a natureza do conhecimento divino e sobre a persistência da alma humana depois da morte. Ele remete-se metódica e sistematicamente aos princípios fundadores aristotélicos, e desenvolve a sua filosofia a partir deles, como demonstram ainda melhor as suas obras estritamente filosóficas. Um retorno aos textos de Aristóteles Na sua obra filosófica, Averróis reexamina os textos aristotélicos e a tradição exegética grega e árabe, despojados das noções e das teses saídas da teologia islâmica ou de outras fontes estrangeiras. Se pusermos de parte a tendência emanatista da Epítome da Metafísica de Aristóteles, as suas obras de maturidade apoiam-se nos princípios aristotélicos para elaborarem uma

explicação sistemática da natureza, das faculdades psicológicas e intelectuais humanas, do movimento celeste e da natureza da metafísica como ciência cujo principal objecto é a Causa primeira. A natureza do intelecto constitui um problema difícil para Averróis, ao qual ele regressa incessantemente para precisar o seu pensamento. Na Epítome do Tratado da Alma, um dos seus primeiros ensaios sobre o exame do intelecto humano, Averróis sustenta que a capacidade humana para captar as realidades inteligíveis, às quais se chama, no seguimento de Alexandre de Afrodísia, o «intelecto material», é uma disposição da faculdade da imaginação, que depende principalmente do corpo. Cada faculdade receptiva do homem é actualizada graças ao intelecto agente transcendente cuja luz e cujo poder de abstracção se aplicam às imagens recolhidas pelos sentidos e a experiência. Mas no seu Comentário Médio sobre o Tratado da Alma, Averróis afirma que as realidades inteligíveis em acto, abstraídas pelo intelecto agente, não podem ser apreendidas senão por um sujeito inteiramente imaterial, libertado do seu corpo e das suas afecções. Considera então o intelecto material como uma substância imaterial e separada do corpo, mas própria do homem cujos sentidos e experiência produzem imagens que serão seguidamente abstraídas. Porém, Averróis recusa esta concepção no seu Grande Comentário sobre o Tratado da Alma, obra de maturidade que teve uma grande influência e suscitou numerosas controvérsias no Ocidente medieval quando foi traduzida do árabe para o latim. Partindo da interpretação de Temístio na sua Paráfrase do Tratado da Alma, Averróis remete-se à ideia de que, para que a ciência seja una, é preciso que haja um conjunto único de realidades inteligíveis em acto, objectos de conhecimento, e que tais realidades existam no intelecto material transcendente e eterno que as recebe; a alma do sujeito cognoscente partilha desse intelecto material. Segundo esta última explicação, o sujeito cognoscente produz imagens que o intelecto agente abstrai da sua alma, fazendo-as passar do modo de ser inteligível particular em potência ao modo de ser inteligível em acto. A compreensão intelectual humana exige a conjunção das duas dimensões da racionalidade, o intelecto agente e o intelecto material, ainda que eles sejam transcendentes e independentes; estes dois intelectos devem achar-se «na alma» e estar à disposição da vontade do sujeito cognoscente. Segundo Averróis, a filosofia natural é capaz de provar a existência do motor imaterial situado na extremidade da esfera celeste; a psicologia pode pelo seu lado provar que esse motor é por natureza o intelecto; a metafísica, enfim, pode elucidar a sua natureza e o seu papel causal na constituição ou na «criação» de

todas as outras realidades. Não se pode explicar o movimento eterno dos corpos celestes senão por meio de uma alma finita, unida de maneira ambivalente a esse corpo celeste «no» qual ela se acha, e por meio do intelecto imaterial que age como uma causa final para a alma e é responsável pelo movimento. É somente dessa maneira que se compreende como o movimento finito dos corpos celestes é também ele eterno. O intelecto imaterial detém uma certa potência, o que justifica a hierarquia ontológica dos intelectos, causas do movimento dos corpos celestes. A psicologia filosófica de Averróis mostra com efeito como o intelecto material é ao mesmo tempo intelecto e potência de recepção das realidades inteligíveis. Assim, esses intelectos ou inteligências situam-se numa escala cuja unidade não cessa de crescer e cuja potência decresce à medida que eles se aproximam da Causa primeira. Todas essas inteligências, e também todas as realidades «criadas», detêm alguma potência, pois todas remetem necessariamente para um ser superior, que é a Causa primeira. Esta contém em si mesma toda a perfeição do ser enquanto ser, perpetuamente empenhado numa actividade perfeita de conhecimento de si, em conformidade com a definição que Aristóteles oferece do Deus no livro Λ da Metafísica. O regresso a Aristóteles efectuado por Averróis não será seguido pelas escolas da tradição árabe, mas tornar-se-á central na filosofia do Ocidente latino. Os comentários de Averróis constituíram para os latinos um modelo de leitura de Aristóteles, embora suscitassem numerosas controvérsias, que dariam lugar a diversas condenações, até à de 1277, a qual tornaria difícil a difusão das suas teses filosóficas. RICHARD C. TAYLOR 224 Magistrado. (N. do T.) 225 O Fasl al-Maqâl ou Discurso Decisivo, o curto Tratado do Conhecimento Divino, o al-Kashf an almanâhij ou Desvelamento dos Métodos de Demonstração dos Dogmas Religiosos, e o Tahâfut at-Tahâfut ou Incoerência da Incoerência. 226 Averróis, Tahafot at-Tahafot, M. Bouyges (ed.), Beirute, Imprimerie Catholique, 1930, p. 427-428. 227 A. El Ghannouchi, «Distinction et relation des discours philosophique et religieux chez Ibn Rushd: Fasl al maqal ou la double verité», in R. G. Khoury, Averroes (1126-1198) oder der Triumph des Rationalismus, Internationales Symposium anlässlich des 800. Todestages des islamischen Philosophen, Heidelberga, Universitätsverlag C. Winter, 2002, p. 145.

228 Averróis, Discours décisif, trad. M. Geoffroy modificada. 229 Ibid., 59.2. 230 Aristóteles, Segundos Analíticos, 1.1., 71a 1. 231 Averróis, Discours décisif, trad. M. Geoffroy modificada. 232 Averróis não cita a origem aristotélica deste princípio: Aristóteles, Primeiros Analíticos, 1.32, 47a 8-9. 233 Aristóteles, Segundos Analíticos, 1.2, 71b 18-24.

Filosofia política e teologia na Idade Média

Após um longo período dominado pelo esquema historiográfico de um nascimento do espírito laico situado no «declínio da Idade Média234», a história do pensamento político medieval abriu-se a outros modelos de inquérito e de descrição. A reavaliação do pensamento escolástico impõe novos paradigmas, onde não será de espantar o estudo da hipótese de que os teólogos tenham inventado o Estado ou de que a ciência do homem se haja constituído no seio da ciência divina, a teologia. Se, como escreve Paul Veyne, «um evento não é um ser, mas um cruzamento de itinerários possíveis», o evento-advento do político na Idade Média pode ser objecto de diversos traçados. Um primeiro seria a passagem do modelo do Estado-república ao do Estado-soberano, articulado em torno da emergência, no século XIV, de uma questão teológica – a Imaculada Concepção – em que se elabora uma teoria da soberania absoluta, fundada na lei teológica singular que permite justificar o facto de, por uma espécie de «direito privado» ou de «privilégio de excepção» que a subtraiu ao «direito comum», «a mãe de Deus não haver contraído o pecado original»235. Um segundo: a reformulação da teoria do «homem animal político civil» do ponto de vista da teoria averroísta do intelecto, onde se instala, com Dante, a ideia de uma monarquia universal em que «a humanidade assume as feições de uma comunidade política global236». Um terceiro: o conflito do papado e do Império, onde, nesse mesmo século XIV, se coloca de forma decisiva a problemática indissoluvelmente filosófica, teológica e jurídica da separação dos poderes espirituais e temporais. Esforçar-nos-emos por oferecer aqui uma ideia destes três aspectos. Onde termina a Idade Média política? Há diversas idades medievais, segundo se tome por referencial a romanitas ou a christianitas, ou se adopte uma periodização interna ao objecto. O esquema historiográfico que faz do Príncipe a figura literária e conceptual em que se inventa uma modernidade assente na recusa, até então desconhecida, de pensar o político a partir da moral e da «virtude» revela-se esclarecedor, se

apenas lhe pedirmos que configure o conjunto com o qual Maquiavel entende romper. Com efeito, o Príncipe demite-se da questão teológico-política da relação entre poder espiritual e poder temporal e dos modelos que a articulam. A esfera do político já não é aquela, medieval, do Uno, quer se trate do Império ou da Igreja, mas a das multiplicidades: as cidades em luta. O Príncipe deixa igualmente de lado os modelos elaborados pelos escolásticos para pensarem a potência, todos eles ligados, quanto ao fundo, ao modelo unitário monárquico do imperium que lhes define o quadro de exercício, e, quanto à forma, à referência teológica que torna possível o seu uso como argumentos: a potência divina, absoluta ou ordenada. O Príncipe abandona a maneira medieval de entender a relação entre moral e político: a questão do soberano perfeito. Finalmente, abandona o ponto de vista escolástico sobre a questão do Estado e da Lei, ao eliminar a polaridade que, na Idade Média, tornava possível a sua formulação: a distinção das duas Cidades, terrestre e celeste, elaborada por Agostinho. Essa eliminação não consiste apenas em opor uma anatomia política aristotélica, com a tipologia das cidades reais e dos modos de boa governação que ela induz, e um «agostinianismo político» fundado no jogo complexo, ou mesmo contraditório, de duas abstracções: a Cidade dos homens e a Cidade de Deus. Operar um retorno de Agostinho a Aristóteles – desencantar a esfera do político –, regressar das duas Cidades à pluralidade factual, polémica, irredutível, das cidades humanas, não é mais do que uma parte da tarefa – e poderia mostrar-se que a Idade Média a havia entrevisto, em certo sentido. O que enuncia Maquiavel é a não-pertinência política da rede conjuntural que antes dele comandava a distinção das duas Cidades, e constituía o horizonte insuperável da reflexão dos seus predecessores. Quererá isto dizer que a Idade Média do político só se deixa definir negativamente? Um facto nada é sem a sua intriga. Um historiador de Maquiavel verá no agostinianismo político o aspecto constitutivo da teoria política medieval, pois, privilegiando o gesto maquiavélico de inversão dos valores do agostinianismo, ele favorecerá no pensamento político medieval uma tendência para fazer da esperança da Cidade por vir, prefigurada na comunidade eclesiástica, a única verdadeira realidade. Alain Boreau, pelo contrário, vê na própria «incomensurabilidade» da vida presente à vida futura um incitamento recebido pelo pensamento escolástico para «separar os domínios religioso e terrestre», autorizando uma «autonomização do campo do político deixado à governação dos homens»237. Nesta perspectiva, impõe-se uma outra leitura do agostinianismo, que vê os escolásticos separarem o singular do colectivo ao

distinguirem a salvação da felicidade. Se «a salvação eterna incumbe ao homem enquanto indivíduo», a «felicidade humana» incumbe ao homem enquanto género, «colectivamente». A partir daí, a teoria agostiniana das duas Cidades apela, numa sociedade religiosa, a «uma saída da religião para fora do campo público», por onde se enceta a separação da Igreja e do Estado. O corpus político A Política de Aristóteles teve duas traduções escolásticas devidas a Guilherme de Moerbecke238, e uma terceira, redigida por Leonardo Bruni no século XV, que releva da era «humanista»239. Para os mestres em artes da primeira metade do século XIII, a «política» é, com a «monóstica» e a «económica», uma das três componentes da «filosofia moral». Trabalhada num contexto em que não se dispõe nem de uma Ética completa, nem das Económicas atribuídas a Aristóteles, nem da Política, esta tríade informa-nos acerca do que constituía a base textual da visão universitária das três disciplinas: para a monóstica, as «Éticas», ou seja, na época, a Ethica vetus (a saber os livros II e III, até 1119a34) e a Ethica nova (o livro I), reunidas num Liber Ethicorum em três ou quatro livros (com os capítulos 1-8 do livro iii a constituírem o terceiro livro, e os capítulos 9-15 a formarem o quarto); para a económica, o De officiis de Cícero; para a política, as leges et decreta, por outras palavras: as leis civis e as leis eclesiásticas. É somente na década de 1270 que os escolásticos dispõem dos textos de Aristóteles que fundam a divisão-padrão entre ética (ciência do indivíduo), económica (administração doméstica) e política ou «civil» (administração da cidade). A dimensão que unifica as três disciplinas é a do «regime» (regimen): a política é a ciência do «regime de um povo, de um país ou de uma cidade», a económica a do regime da família, a monóstica a do regime «de um só, a saber de si mesmo». Se regime e governação são aqui sinónimos, o cruzamento das três redes conceptuais distingue o regimen da noção moderna de governação. A «conduta» de si está presente no próprio princípio da «administração doméstica» e da «direcção da Cidade». A passagem do regime de si estendido à arte de governar é um dos horizontes que permitem avaliar a novidade do Príncipe de Maquiavel. Não é o único. Línguas da política. Políticas da língua A tríade das ciências morais encontra-se na política de traduções

empreendida pelos soberanos de França, convictos da importância de concluir pela língua nacional o movimento de translatio studiorum que havia achado na Universidade de Paris o seu alegado ponto culminante. Com a tradução francesa do De regimine principum de Gil de Roma240, redigido cerca de 1279 para a educação de Filipe, o Belo, da Quaestio in utramque partem, do tratado Rex pacificus, e depois das Políticas de Aristóteles, o Estado e o facto político adquiram um estatuto de objecto autónomo liberto de toda a perspectiva escatológica: uma outra maneira de se afastar do agostinianismo político. Se as três partes (ética, económica, política) do De regimine, adaptado em 1282 por Henrique de Gauchy sob o título Li Livres du gouvernement des rois, falam antes de tudo da «maneira como se devem conduzir os príncipes», a tradução comentada das Políticas, redigida entre 1370 e 1374 por Nicolau de Oresmo a pedido de Carlos V, forneceu as bases conceptuais necessárias para pensar simultaneamente a autonomia do Estado real face ao poder da Igreja e a independência da França face ao Império. Os dois problemas haviam sido habilmente ligados por Bonifácio VIII, quando, procurando englobar os gauleses na «Doação de Constantino» para reconduzir a autoridade do rei à do papa através da do imperador, ele havia acometido contra a superbia Gallica. Devido à Guerra dos Cem Anos, Oresmo combate outro adversário: o pretendente inglês ao trono de França. Retoma portanto a ideia de uma «dupla finalidade» da cidade: procurar as «coisas necessárias a viver» e o que é preciso para viver bem «segundo as leis e segundo a virtude», mas sublinha que o fim natural da cidade não é tanto a cidade em si mesma quanto o facto de «comunicar em cidade», pois o homem é «naturalmente coisa civil» e «ordenado por natureza a viver em comunidade civil»241. Esta comunicação tem um sentido eminentemente político. Ela implica o elogio do francês, língua nacional, contra a língua do estrangeiro. Já no Prólogo («Escusação») da sua tradução do Livro de Éticas, Oresmo havia sublinhado que «bailiar em francês as artes e as ciências» era «um labor mui proveitoso, pois é língua nobre e comum a gentes de grande engenho e de boa prudência». Aqui, ele insiste no facto de ser «uma coisa assim como que fora da natureza que um homem reine sobre gente que não entenda a sua materna linguagem». Invocando Jeremias, 5,15, onde se vê que a mais grave ameaça dirigida aos hebreus era a de os pôr «nas mãos de gentes estranhas e de outra língua»242, o elogio da comunidade linguística viva tem por intuito, para retomar uma fórmula de Noel de Fribois na Súmula das Crónicas de França, argumentar «o direito do rei contra os ingleses», ou por outras palavras recusar as pretensões dos reis ingleses à coroa

de França. No que respeita ao Império, Oresmo lembra que não poderia haver neste um único governo nem um mesmo direito para todos os homens, «pois segundo a diversidade das regiões, das compleições, das inclinações e dos costumes das gentes, convém que os seus direitos positivos e os seus governos sejam diferentes243». Directamente dirigido contra o Império governado por um direito único – o direito romano –, a declaração oresmiana arbitra ao mesmo tempo a favor dos teólogos o conflito dos clérigos que rivalizam em influência junto do rei. O reino de Carlos V distingue pela língua a existência de uma filosofia política francesa: o monarca suscita o Sonho do Horto (1378), súmula de filosofia política de Everardo de Trémaugnon, que, segundo o termo de Lagarde, «reúne», seguindo as pisadas de Guilherme de Ockham e de Marsílio de Pádua, «tudo o que pôde ser dito desde o início do século sobre a autonomia do poder civil e a sua independência quanto à potência espiritual». Os conflitos de soberania são o alimento principal do pensamento político da Idade Média tardia: a legitimação do poder real ou imperial face ao poder pontifício ou o questionamento da sua legitimidade toca todos os domínios – povo, língua, sociedade, território. Dois modelos de soberania dominam a reflexão no século XIV: o modelo hierárquico e o modelo orgânico. O modelo hierárquico O corpus dos escritos atribuídos a Dionísio, o Areopagita é a fonte de um pensamento hierárquico que impregnou fortemente a teoria política medieval e depois moderna. «Dionísio», o monge sírio do século VI sob cujo nome os carolíngios confundiram três personagens distintas: o primeiro convertido ateniense de Paulo, o primeiro bispo de Atenas e o primeiro bispo de Paris, supliciado no alto do «monte dos Mártires» (Montmartre), havia distinguido duas hierarquias: a hierarquia celeste para o mundo angélico, a hierarquia eclesiástica para o dos homens. Ainda que ela não tenha originariamente dimensão política, a noção dionisiana de hierarquia recebeu muito rapidamente uma interpretação política. O modelo «hierárquico» da soberania é regido por três princípios. O princípio da «redução ao um» (reductio ad unum), tirado ao mesmo tempo da Metafísica de Aristóteles244, de Dionísio e de Proclo, permite «reduzir» o conjunto da sociedade humana, e portanto da ordem política, à soberania do papa. A formulação propriamente dionisiana do modelo hierárquico é dada no De ecclesiastica potestate, de Gil de Roma (1301-1302), manifesto da teologia política pontifícia do século XIV. Ela baseia-se numa

regra, a lex divinitas («lei da ordem divina»), cujo enunciado tradicional é: «a lei da ordem divina é a de referir os inferiores aos superiores através de intermediários» (lex divinitas est ultima per media reducere). Transposta em instituição de governo de um inferior por um intermediário em virtude de um superior, a «hierarquia» definiu a política como um caso particular da ordem universal, ordem essencialmente desigual, onde cada coisa tem o seu lugar, determinado pela sua capacidade, e está subordinada a uma série de mediadores que lhe asseguram a recepção do que lhe cabe: não há relação directa do inferior ao superior, do mais baixo ao mais alto. Em cada caso é preciso uma mediação, um intermediário. Tal como os corpos deste baixo mundo são regidos pelos corpos do alto, e como a substância inteira do corporal é regida pelo espiritual, também na Igreja de Nosso Senhor as realidades temporais e inferiores são regidas por realidades superiores, e o universo temporal e a potência terrestre são inteiramente regidos pelo espiritual e supremamente regidos pelo soberano pontífice. Quanto ao pontífice em si mesmo, só Deus o pode julgar245.

Para o anónimo Glossa ad Extravagantes, o papa, que é «supremo entre os homens», é a «medida» e a «regra que dirige todos os outros homens». O princípio de um Primeiro que realiza nele toda a perfeição de que é capaz o género de seres que lhe está subordinado é o arquétipo do totalitarismo. O segundo princípio geral da hierarquia é o da omnipotência, que aplica à esfera política a oposição entre curso legal da natureza (secundo communes leges naturae) e milagre, paralela à distinção teológica da «potência ordenada» e da «potência absoluta» de Deus desenvolvida pelos teólogos desde o século XII. Tal como Deus pode derrogar o governo natural do mundo pelas leis naturais por ele estabelecidas em virtude da sua potência ordenada – e, assim, suspender ou modificar milagrosamente, em virtude da sua potência absoluta, o curso natural das coisas –, também o papa pode, por meio da «plenitude da sua potência» (plenitudo potestatis), intervir no político para nela cumprir o que, na natureza, seria da ordem do milagre. Esta prerrogativa que corresponde ao nosso «estado de excepção» vale, por exemplo, para a vacatura de um trono ou para a deposição de um imperador herético. No século XIV, a noção de potência absoluta é formulada numa linguagem jurídica que permite estabelecer num quadro legal uma forma de acção divina extraordinária, acima das leis (supra legem). Sob a pena de Duns Escoto, este tipo de acção é pensada como legalidade de facto, em oposição à legalidade de iure da potência ordenada que se exprime no curso ordinário das coisas. Tudo o

que Deus faz é justo de facto, ainda que isso se oponha à lei que ele estabeleceu anteriormente: a substância da lei é a livre vontade do soberano que não é constrangida por nada além dela mesma. No debate sobre a Imaculada Concepção, Duns Escoto, mas também Guilherme de Ware e Pedro de Auriole sustentam que Maria foi submetida ao pecado original de direito (de iure), isto é em virtude da lei comum, que põe todos os seres humanos em igualdade, mas não de facto (de facto), em virtude da potência absoluta de Deus. Rogério Baconthorpe contesta este ponto: «É temerário e contrário à natureza da lei alegar um privilégio de facto.» Isso equivale a «privar a lei» da sua legalidade. Para além das duas concepções possíveis do privilégio, a do Decreto de Graciano, que faz dele um «dispositivo de destruição da lei, um abuso tirânico246», e a do direito romano imperial, que faz dele «uma graça legislativa, com a qual o imperador, estatuindo por rescrito, favorece os súbditos», os debates atingem a eclesiologia; alguns, sustentando que «o privilégio dá qualquer coisa a mais, sem ofender a lei», invocam por exemplo o Cristo, autor do privilégio fundamental de que goza a Igreja romana. A potência absoluta concerne só a Deus, mas também ao homem e, por excelência, ao soberano. A aplicação do modelo jurídico à esfera da natureza e depois à do direito é amparada metafisicamente por um último princípio: o princípio de imediatez causal do Primeiro, tirado do Liber de causis, abundantemente alegado desde o século XIII nas controvérsias eucarísticas. Mesmo num mundo hierarquizado que tem no seu cume uma Causa primeira dominando toda uma série de causas segundas que transmitem a sua causalidade, a Causa primeira pode agir directamente, sem intermediário, sobre os efeitos mais inferiores. Transposto pelos teólogos pontifícios – nomeadamente Gil de Roma – para a esfera política, o princípio afirma que, à imagem de Deus que ele representa sobre a terra, o papa pode, embora permanecendo sujeito à suprema jurisdição divina (iurisdictio primaria), «fazer ele mesmo, passando-se por causa segunda, tudo o que faz (habitualmente) por intermédio de uma causa segunda247». O papa tem uma «jurisdição imediata e executória» que lhe permite fazer-se passar por qualquer outro intermediário ou executante. Transferido para o papel de causa segunda, o rei ou o imperador não é mais do que um instrumento do poder religioso. A noção moderna de poder absoluto tem uma fonte teológica: a articulação da concepção dionisiana da hierarquia e do princípio de causalidade imediata. Longe de se contradizerem, estas duas teses formam um sistema fundado na assimetria das relações do superior com o inferior e do inferior com

o superior: o inferior não pode atingir directamente o seu princípio; ao invés, o poder do princípio supremo exerce-se directamente e de pleno direito sobre o inferior, onde quer que ele esteja. O inferior é mantido à distância do soberano por uma hierarquia que não é mais do que a legalidade de iure, a potência vulgar do soberano; mas neste mesmo quadro o soberano está de facto na proximidade igual e legal de todos aqueles que lhe estão sujeitos. O «corpo político» Desde Agostinho que os teólogos medievais tinham o hábito de apresentar a Igreja, incluindo a Igreja dita «invisível», a comunidade cristã passada, presente e por vir, segundo o modelo de um corpo – o corpo «místico» do Cristo –, que se reconstituiria por inteiro no fim dos tempos, após o Juízo Final. Nesse corpo, o Cristo, Verbo incarnado, aparecia como a cabeça, o «chefe» – Roberto de Lincoln chegou mesmo a chamar «Cristo total» ou «integral» (Christus integer) ao conjunto formado pelo Cristo e a sua Igreja: Verbum incarnatum cum corpore suo quod est Ecclesia. Não é pois de espantar que a ideia de apresentar a sociedade política como um corpo, e depois, apoiando-se em Aristóteles, como um organismo vivo, se tenha imposto na Idade Média, e se tenha durante muito tempo combinado com o modelo hierárquico. No entanto, no século XIV, comparando o Estado a um corpo, os teólogos de Filipe, o Belo demonstram que se, como representante do Cristo, o papa é a cabeça – o «chefe» – do reino, o rei é o seu coração. Ambos são igualmente indispensáveis, tal como o cérebro e o coração o são para o organismo humano. Assim reformulado, o modelo orgânico já não está hierarquizado: ele argumenta um equilíbrio funcional, e entra em contradição aberta com o modelo dionisiano da hierarquia utilizado pelos teólogos pontifícios. À reductio ad unum da hierarquia dionisiana, os autores de Rex pacificus opõem a ideia peripatética de harmonia dos órgãos reitores da vida, que, fundando na natureza a independência dos poderes civil e religioso, permite reservar a plenitude do poder temporal para aquele que reina exclusivamente no mundo terrestre: o rei. O modelo do «corpo» apresenta além disso um carácter médico. No século XV, Cristina de Pisa utiliza-o no Livro do Corpo de Polícia para denunciar a inutilidade dos membros que deixassem de ser solidários com o conjunto: A parte que não se ajuste ao todo é vergonhosa e o membro que recuse sustentar o corpo é inútil e como que paralisado. Laicos ou clérigos, nobres ou de baixa extracção, quem recusar prestar o seu apoio à sua cabeça e ao seu corpo, a saber ao senhor rei e ao reino, e, em definitivo, a si mesmo,

revela ser uma parte mal ajustada e um membro inútil e como que paralisado.

A leitura médica do modelo orgânico permite retirar toda a legitimidade à ideia de rebelião, de resistência ou de dissidência e justificar assim, por isso mesmo, a de repressão. A interdependência das partes do corpo e a sua subordinação ao todo legitimam que se corte o que é inútil ou contrário ao funcionamento harmonioso, orgânico, do todo. A mereologia investe o discurso político: não há direito da parte face ao todo. No Contra rebelles suorum regnum, João da Terra Vermelha (de Terra Rubea) sustenta que os partidários do duque da Borgonha que se opõem ao rei de França são membros em decomposição do corpo político francês que devem ser amputados no interesse do conjunto. A interdependência das partes do corpo e a subordinação das partes ao todo não significam no entanto obrigatoriamente a subordinação de todas as partes à cabeça nem a identificação do bem do conjunto com o bem da sua parte suprema. Por vezes, o modelo medicalizado é pelo contrário utilizado para justificar a deposição do rei em benefício do conjunto do corpo. É o caso no sermão do bispo John Stratford, perante a assembleia convocada em 1327 para ratificar a deposição do rei Eduardo II. O tema do sermão, caput meum doleo («a minha cabeça faz-me sofrer»), funda um desenvolvimento «revolucionário»: fazendo as falhas de Eduardo II – «a cabeça» – sofrer o corpo inteiro, este pode e deve oferecer-se uma nova cabeça! Esta oscilação da leitura médica do modelo orgânico abre portanto para uma legitimação da resistência e da revolta, contrariamente à que defende a dominação e a repressão. A justificação do assassinato político também joga evidentemente noutros harmónicos, com a do tiranicídio, ou suposto como tal, fazendo de bom grado apelo às noções de «traição» e de «deslealdade». É o caso no discurso francês pronunciado a 8 de Março de 1408 por João Pequeno (Joannes Parvus) que, perante uma audiência de grandes senhores, de universitários e de burgueses reunidos no Hôtel de Saint-Pol, legitima o assassinato de Luís de Orleães pelo duque da Borgonha, João Sem Medo, a 23 de Novembro de 1407, «feito que foi perpetrado para mui grande bem da pessoa do rei, de seus filhos e de todo o reino», pretendendo demonstrar «que é lícito a cada súbdito, sem nenhum mandamento, segundo as leis morais, naturais e divinas, matar ou fazer matar traidor desleal e tirano». A Universidade de Paris condenaria em Fevereiro de 1414 as alegações de João Pequeno, após diversas intervenções teóricas de João Gerson, contra errores Joannes Parvi, duas das quais no Concílio da Fé em Novembro de 1413.

Monarquia universal e dualismo A Monarquia de Dante é o mais rigoroso enunciado de filosofia política antipontifícia do século XIV. Pode-se resumir o seu essencial em três teses, cada uma das quais é objecto de um livro. A primeira é a de que a única garantia de paz e de justiça para a cristandade reside no estabelecimento da unidade política sob um único dirigente. A segunda é a de que a Providência divina confiou tal papel ao imperador romano, desde a época pré-cristã, e que ele confirmou esse papel no início da era cristã, quando o próprio Cristo, reconhecendo o direito do Império, do imperium, em governar o mundo, optou por viver e morrer na submissão à sua soberania. A terceira é a de que o governo universal único foi dado directamente por Deus a cada imperador, sem intermediação do papado, e que ele foi exercido pela cabeça da Igreja sem controlo jurisdicional. A grande novidade de Dante é a de considerar a sociedade humana como uma unidade, sem que por isso ela seja redutível à Ecclesia. Ele pode portanto aceitar o princípio da reductio ad unum, fundamento de todo o discurso monárquico, sem dele tirar as mesmas consequências que os partidários do papa. Segundo os pontifícios, o princípio da redução ao um implica a subordinação do imperador ao papa. Dante contesta as condições nas quais eles a aplicam. É verdade que «em todo o género há qualquer coisa de primeiro à qual se devem reduzir (reduci) todas as coisas que estão nesse género, e que é a medida de todas essas coisas»; mas também que todos os homens pertencem a um mesmo género: o género humano. É portanto igualmente verdade que todos os homens devem ser reduzidos a um primeiro que é a medida única do género humano. É pelo contrário falso que o papa, ou por outro lado o imperador, possa ser concretamente tal «modelo». A razão de tal é que ser papa ou imperador é uma relação, tal como ser pai, ao passo que ser homem é uma essência. O homem é homem em função da sua natureza ou essência de homem. O papa é papa por relação com uma função ou propriedade extrínseca: o papado. Os homens enquanto homens não têm pois de ser reduzidos ao papa ou ao imperador, porque o facto de ser papa não é mais do que um acidente e não concerne o homem enquanto homem. O que funda a unidade do género humano, o que é efectivamente primeiro neste género, o que é medida de todos os outros homens, é o homem de que fala a Ética a Nicómaco, não um papa ou um imperador, mas o homem perfeito, que realiza a perfeição da humanidade ou da natureza humana, o homem «ideal». Esse homem ideal, Dante não o designa no concreto, mas é óbvio que a referência à Ética a Nicómaco permite caracterizá-

lo: é aquele em quem se realiza ou se actualiza a vida filosófica, ou seja o conhecimento intelectual. Se a natureza do homem é o pensamento, a ciência, o conhecimento, nem o papa nem o imperador a realizam enquanto tais. Cabe à monarquia imperial, ou seja ao poder temporal, tornar possível a vida filosófica, e ao papado, ou seja ao poder espiritual, não a tornar impossível. A originalidade da posição de Dante está em afirmar ao mesmo tempo a autonomia na sua ordem própria dos dois poderes, o espiritual e o temporal, e a autonomia da ordem filosófica, que concerne todo o género humano e permanece irredutível tanto ao espiritual como ao temporal. A monarquia fornece um quadro institucional, uma estrutura jurídica à actividade filosófica: ela não a absorve. Embora afirmando a dimensão colectiva da ciência onde o homem realiza progressivamente a humanidade, Dante insiste no dualismo absoluto dos poderes. O cristianismo impõe ao homem viver em função de dois fins bem distintos, duo ultima: a felicidade civil para o mundo cá de baixo, a beatitude eterna para o outro mundo. Duas críticas da teocracia Na sua decretal de 16 de Novembro de 1329, Quia vir reprobus, o papa de Avinhão, João XXII, respondendo às críticas formuladas por Miguel de Cesena e pelos franciscanos espirituais, sustenta a tese da «realeza temporal do Cristo». Um novo problema «político» se apodera da cristandade: a pobreza. Para provar que Cristo e os apóstolos não haviam vivido em pobreza absoluta, ao não possuírem nada nem de próprio nem de comum, o papa afirma que o Cristo «enquanto homem havia sido rei e detentor de uma possessão ou poder (dominium) temporal universal». A pobreza à qual fazia alusão o Evangelho significa não que o Cristo tenha renunciado a esse dominium universal, mas que ele se absteve de lhe colher os frutos. O tema da realeza temporal do Cristo não era novo. Já no início do século XIV, João Quidort248 havia criticado o ponto de vista teocrático por estar baseado na tese errónea de que o Cristo haveria tido um dominium temporal. A conjunção dos franciscanos e dos imperiais refugiados na corte do imperador Luís da Baviera era a ocasião de ligar a problemática da pobreza do Cristo à da autonomia do imperium. É o que faz Guilherme de Ockham, que até à sua morte polemizará contra o papado. Uma passagem do Evangelho de João249 desempenha um papel central nesta nova episteme: «Regnum meum non est de hoc mundo» e «Regnum meum non est hinc.» Tendo João XXII insistido na importância da frase «Regnum meum

non est hinc», ou seja «O meu reino não vem deste mundo» – e não «Regnum meum non est hic», «O meu reino não é daqui», «não é este mundo» – para provar que a realeza temporal do Cristo era de origem divina, não humana, ao passo que a compreensão corrente da passagem dizia simplesmente que o reino do Cristo era de natureza espiritual, todos os franciscanos espirituais e imperiais, a começar por Ockham, dedicaram imensas páginas a essa subtileza gramatical. O elemento decisivo da discussão reside todavia mais numa estratégia iniciada em Dante: o recurso à história. Nas Oito Questões sobre o Poder do Papa, Ockham concentra a sua análise na tese que, segundo ele, funda todas as pretensões da teologia pontifícia. Remonta pois a Nicolau I, dito «o Grande», papa de 858 a 867, partidário e teórico da «supremacia romana», especialmente face à Igreja grega. Segundo Nicolau I, «o Cristo deu ou conferiu a São Pedro todos os direitos correspondentes ao poder temporal e espiritual». Para Ockham, estas palavras devem ser explicadas num sentido directamente oposto ao que elas apresentam tal e qual, sem que tombem sob o golpe da heresia. Porquê? Porque historicamente são desprovidas de fundamento. O mesmo sucede com uma outra afirmação de Nicolau I: a «Igreja romana instituiu todas as primazias, sedes metropolitanas nas cátedras episcopais […] e estabeleceu a dignidade de todas as igrejas, qualquer que seja o nível delas». Ockham não ignora que sob o pontificado de Adriano II (867-872), o quarto concílio de Constantinopla (869870) hierarquizou os patriarcados, sendo o patriarca de Roma, nomeadamente, colocado acima dos de Constantinopla e de Jerusalém. Mas sustenta, por esse mesmo motivo, que a menos que sejam reinterpretadas, «as palavras de Nicolau I vão contra as Sagradas Escrituras e os escritos dos Santos Padres», pois historicamente a Igreja romana não foi fundada no começo do cristianismo e não instituiu ela própria as outras igrejas […]. Muitas igrejas foram fundadas antes da Igreja de Roma, e muitas delas foram elevadas à dignidade eclesiástica antes mesmo da sua fundação […]. Na realidade, antes que a Igreja de Roma detivesse a primazia, as igrejas de Antioquia haviam-se multiplicado a tal ponto que foi lá que os discípulos do Cristo foram pela primeira vez chamados de «cristãos» […]. Foi pelo mesmo motivo que São Pedro ali instalou a sua sede antes de a estabelecer em Roma. De onde deriva que ele instituiu igrejas e dignidades eclesiásticas no patriarcado de Antioquia antes de o fazer no de Roma. [Nesta matéria] é pois necessário

explicar correctamente as palavras do papa Nicolau e deve fazer-se o mesmo para tudo o que ele disse sobre a concessão dos direitos correspondentes aos poderes temporal e espiritual a São Pedro, pois senão isso cheirará a heresia250. Em que é que a tese de Nicolau sobre a concessão a Pedro dos poderes espirituais e temporais «cheira» a heresia? É que, «se a interpretarmos no sentido literal, dela decorrem inevitavelmente dois erros». O primeiro consiste em dizer que o imperium espiritual, por exemplo o dos bispos, provém do papa «como um feudo outorgado». É uma tese herética, pois o papa não é mais do que o guardião das chaves do reino dos céus e somente em certo sentido, mas não é, em sentido nenhum do termo, o senhor delas. Ora, só o senhor pode outorgar um feudo. O segundo erro é o de estabelecer que todos os reinos reais são recebidos do papa. Esse princípio não passa de uma invenção ideológica: É um princípio que tem por única função causar dano aos interesses dos reis que não prestam homenagem ao papa no que respeita ao seu próprio reino: graças a esse princípio, o rei de França pode parecer errar perigosamente em matéria de fé, quando não reconhece nenhum superior a si nos assuntos temporais251.

Vê-se qual é o método de Ockham: recordar os factos históricos, na medida em que eles sejam acessíveis, e depois criticar as teses inventadas em função de uma necessidade ideológica. A mesma ideia aparece sob uma outra forma em Marsílio de Pádua. No seu Defensor da Paz, ele ataca o próprio cerne da lógica teocrática ao rejeitar a origem divina da função pontifícia. O Cristo não escolheu Pedro, e ainda menos os seus sucessores, para serem a cabeça da Igreja. Esse papel exercido pelos bispos de Roma é de origem humana, apareceu na história. Nasceu da piedade da lembrança, continuou por comodidade administrativa e fixou-se numa prática costumeira. Além disso, onde Dante distinguia a função papal, que é o vicariato do Cristo, e a pessoa que a exercia – ou mesmo que eventualmente abusava dela, como João XXII, por meio de um comportamento corrompido –, Marsílio ataca a própria função que, diz ele, «não é dada por Deus, mas antes pela decisão e a vontade dos homens, exactamente como em todas as outras funções na sociedade». Se sucedeu que o corpo da Igreja tenha em dado momento como chefe o bispo de Roma, esta instituição humana nada tem a ver com um decreto directamente emanado do Cristo. Após dois séculos de discussão entre os partidários do imperador e os do papa, Marsílio atinge

uma ideia radicalmente nova: o soberano legítimo não é a cabeça, mas o próprio corpo. O dirigente tem uma jurisdição que lhe vem da autoridade do legislador, que é o conjunto do corpo social. O primeiro governo da Igreja era comunitário, os apóstolos que eram todos iguais resolviam os seus problemas pelo «método de comum deliberação». Marsílio reclama pois uma reorganização do funcionamento da Igreja, fundada na redefinição do soberano legítimo na ordem religiosa, a saber: a «universidade dos fiéis» (universitas fidelium). O termo «universidade» significa aqui o «corpo inteiro», a «totalidade dos membros». Ao designar o corpo inteiro dos fiéis pela expressão «concílio geral dos crentes» (generale concilium credentium), Marsílio acentuava ainda a sua crítica da teocracia e fundava a doutrina que iria dominar as discussões do século seguinte: o conciliarismo. Dito isso, esta redefinição não atingia um dualismo no plano político geral, mas uma espécie de cesaropapismo. Mais do que Luís da Baviera, a verdadeira referência de Marsílio continuava a ser Filipe, o Belo, esse rei que, para bem da cristandade, havia convocado um concílio geral para pôr o papa sob acusação e insistira em que tal acusação prosseguisse mesmo após a sua morte. O equilíbrio dos poderes político e religioso não foi portanto a versão dominante do pensamento político medieval, que oscilou constantemente entre teocracia e cesaropapismo. O dualismo perfeito de Dante nasceu como um discurso minoritário, que permaneceu minoritário. Os pensadores medievais não sustentaram a coordenação de duas autoridades autónomas no interior da sociedade humana. Se pensaram a unidade da sociedade cristã, foi graças à supremacia de facto conquistada por um poder sobre o outro. Não coube à Idade Média sair dessa alternativa. ALAIN DE LIBERA 234 G. de Lagarde, La Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Age, Lovaina, Nauwelaerts, Paris, Béatrice-Nauwelaerts, 1956-1970. 235 Cf. A. Boureau, La Religion de l’État. La construction de la République étatique dans le discourse théologique de l’Occident medieval, Paris, Les Belles Lettres, 2006. 236 Cf. R. Imbach, Dante, la philosophie et les laics, Paris, Cerf, 1996. 237 A. Boureau, La Réligion de l’État. La construction de la Republique étatique dans le discours théologique de l’Occident medieval, op. cit. 238 A Translatio prior ou imperfecta que compreendia somente os livros I-II.11, e uma tradução completa, redigida cerca de 1267.

239 Contenta Politicorum Aristotelis libri octo. Economicorum ejusdem duo. 240 Também conhecido na tradição como Egídio Romano. (N. do T.) 241 Le Livre de Politiques, 48a-b. 242 N. de Oresmo, prólogo à tradução do Livro de Éticas, 292a. 243 Ibid., 29 1b. 244 Metafísica, I, 1, 1052b18-20. 245 Gil de Roma, De ecclesiastica potestate, I, 5. 246 A. Boureau, La Réligion de l’État. La construction de la Republique étatique dans le discours théologique de l’Occident medieval, op. cit. 247 Gil de Roma, De ecclesiastica potestate, III, 9. 248 Ou João de Paris, o Surdo (1255-1306). (N. do T.) 249 João 18, 36-38. 250 Guilherme de Ockham, Oito Questões sobre o Poder do Papa. 251 Ibid.

Tomás de Aquino

Tomás de Aquino (1225-1274) é conhecido como o teólogo oficial da Igreja católica pelo menos desde o Concílio de Trento, que no século XVI o tornou doutor universal, mas a sua canonização, sobrevinda cinquenta anos após a sua morte, já testemunhava uma influência considerável. Em vida, após haver sido, ainda jovem dominicano, discípulo de Alberto, o Grande, foi um dos mais importantes mestres de teologia da Universidade de Paris, e um dos conselheiros do papa durante os seus anos italianos. Com Alberto e alguns outros, mas sem dúvida mais ainda que a todos eles, é-lhe atribuída a adaptação da obra de Aristóteles à teologia cristã e a síntese do peripatetismo greco-árabe (Aristóteles e o neoplatonismo veiculado em particular pelos seus comentadores em língua árabe) e da doutrina católica. Devido, nomeadamente, à sua promoção em finais do século XIX pelo papa Leão XIII e ao desenvolvimento de uma filosofia «tomista» em diversos filósofos cristãos, Tomás de Aquino chegou a representar por si só o pensamento medieval e a teologia católica tradicional. Essa impressão foi corrigida na segunda metade do século XX, a partir do interior da Igreja, pela difusão de teologias alternativas, e no mundo universitário pelo desenvolvimento dos estudos históricos. Estes últimos valorizaram outros grandes pensadores escolásticos e situaram Tomás numa história em que ele surge simultaneamente como oferecendo uma síntese do saber do seu tempo e como um pensador original, cujo racionalismo e aristotelismo estavam a tal ponto sujeitos à caução do século XIII que as célebres condenações doutrinais pronunciadas em Paris em 1277 incriminaram algumas das suas teses. A obra imensa de Tomás de Aquino (mais de oito milhões de palavras nos textos conservados) é composta por comentários filosóficos (essencialmente de todo o corpus aristotélico, à excepção dos tratados biológicos) e teológicos (a diversos livros do Antigo Testamento, e a uma boa parte do Novo), por questões disputadas sobre praticamente todos os temas debatidos em teologia e em filosofia (os títulos Da Verdade, Da Potência, Do Mal, etc., em geral não revelam mais do que a primeira questão de uma longa série), por opúsculos e

tratados diversos (incluindo os sermões), e por grandes sínteses sobre o conjunto da teologia cristã. Tomás inaugurou a sua carreira no início da década de 1250, com o seu comentário das Sentenças de Pedro Lombardo. Este teólogo do século XII havia compilado as opiniões ou sentenças dos Pais acerca dos grandes temas da doutrina cristã, acerca da distinção res et signum (a coisa e o signo). Os estatutos da Faculdade de Teologia, no século seguinte, fizeram do comentário das Sentenças uma passagem obrigatória para que alguém se tornasse «mestre em Teologia». O comentário do texto (que desapareceu assaz rapidamente) rendia-se às questões colocadas acerca do tema abordado na divisão do texto (a «distinção») comentado: sobre Deus, a sua existência e a sua natureza, a Trindade e cada Pessoa, sobre a criação, a natureza humana, a moral, os sacramentos. Ainda que a finalidade do livro e do comentário, bem como grande número das questões colocadas, sejam de natureza teológica, estes comentários sobre o Lombardo encerram uma boa parte da filosofia dos doutores escolásticos. Tomás não se limitou a esse comentário monumental; propôs uma primeira Suma, que se intitulou Contra os Gentios (1259-1265), de natureza apologética, organizada em torno da distinção entre as verdades cognoscíveis pela mera razão (três livros, sobre Deus, a criação, a providência) e as verdades acessíveis somente pela fé (quarto livro). Mas foi a sua Suma Teológica (1265-1274, inacabada), concebida como um substituto para as Sentenças, que lhe valeu uma reputação e uma influência consideráveis e que frequentemente ainda serve de referência para uma definição ou um argumento clássico em favor de um ou outro ponto da doutrina católica. Ela segue parcialmente o modelo do esquema neoplatónico da emanação a partir do princípio e do retorno ao princípio (primeira parte sobre Deus conhecido pela razão e pela Revelação, e sobre a criação; segunda parte, a mais importante, sobre a vida humana: a sua finalidade, os actos, as paixões, os hábitos, as leis), embora consagre uma terceira parte ao estudo dos meios cristãos para tal retorno (o Cristo e a sua acção prolongada nos sacramentos). Estas sumas contêm as maiores teses filosóficas de Tomás de Aquino. Com efeito, se Tomás de Aquino tem o seu lugar numa história da filosofia, não o deve somente à sua influência sobre o curso dessa história, nomeadamente na época moderna (lembremos que, até Kant, inclusive, o vocabulário e a agenda – o sumário das questões abordadas – dos filósofos são determinados pela herança do pensamento escolástico, e portanto muito frequentemente pelas Sumas de Tomás, quer seja directa ou indirectamente, por intermédio de Suarez por exemplo). Não o deve também ao seu título de

comentador literal, abundante, original e frequentemente luminoso, de Aristóteles. É a natureza argumentativa da sua obra que lhe explica o estatuto de filósofo incontornável. Decerto que Tomás concebeu a sua obra como fundamentalmente teológica devido à sua orientação: trata-se sempre de estudar Deus ou as criaturas em referência a Deus. Mas na sua actividade a teologia assume os argumentos filosóficos. E se Tomás distingue com nitidez argumento filosófico e argumento intrinsecamente teológico, distingue-o somente devido à natureza das premissas destes: naturalmente cognoscíveis ou defendidas pela simples Revelação. Porque, em seguida, a mera força das razões avançadas pelo doutor permite passar das premissas à conclusão. A demonstração racional, quer ela seja teológica ou puramente filosófica, distingue-se assim rigorosamente do argumento de autoridade, simples tese que tira a sua força da mera notoriedade do seu defensor. No essencial, a filosofia de Tomás inspira-se nas teses aristotélicas, tornandoas compatíveis com a revelação cristã. Assim, a existência de Deus é nela demonstrada a partir dos fenómenos naturais, mas Deus é igualmente atingido como Criador, fonte e princípio de existência de todas as coisas, e o estudo dos seus atributos leva a que se Lhe conceda o conhecimento detalhado e o cuidado da sua criação. A alma humana é essencialmente intelecto, forma do corpo que pode subsistir separada, e Tomás argumenta a favor da individualidade continuada dessa existência separada. O fim da vida humana é a felicidade, caracterizada formalmente nos termos de Aristóteles, mas pode provar-se que tal felicidade não pode ser realizada senão pela visão de Deus, a qual requer uma elevação da natureza à ordem da glória. Do mesmo modo, as virtudes necessárias à vida boa devem ser completadas pelas virtudes teologais (fé, esperança e caridade) que, nesta vida, reclamam uma outra elevação da criatura à ordem da graça. Enfim, a filosofia aristotélica de Tomás de Aquino supera o quadro das questões abordadas pelo próprio Aristóteles. Ela acha-se igualmente convocada, e por vezes de maneira surpreendente e técnica, nas questões cuja matéria é essencialmente teológica (Trindade, cristologia, graça e sacramentos), sendo então conceitos e análises aristotélicos os instrumentos de argumentação utilizados. Este último ponto não é uma particularidade de Tomás de Aquino. A teologia medieval já tentava, pelo menos desde há dois séculos, tirar partido dos recursos fornecidos pelas artes liberais, nomeadamente a dialéctica. A primeira metade do século XIII assistiu à irrupção da quase totalidade do corpus aristotélico no mundo latino. Tomás de Aquino distingue-se no entanto pela

mestria que adquiriu sobre este e pelo uso intensivo que dele fez. Sublinhemos aqui a definição da ciência que conseguiu extrair dos Analíticos de Aristóteles e que dominou a sua concepção da pesquisa intelectual. Vimos que instituía uma distinção estrita entre a filosofia e a teologia (diferença de intenção do autor, estatuto das premissas), embora mantendo uma comunidade de regime argumentativo. As mesmas razões que haviam levado Aristóteles a fazer da metafísica, ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas, a ciência primeira e mestra levam Tomás a fazer da teologia a ciência mais elevada, à qual estão subordinados os outros saberes. E se a definição aristotélica da ciência exige que as premissas dos silogismos sejam evidentes, o que não é o caso dos artigos de fé, Tomás explica que a nossa teologia pode não obstante estar subordinada à de Deus e dos bem-aventurados, para os quais tais artigos são evidentes; da mesma maneira, o músico aceita como premissas as proposições demonstradas pelo matemático. Uma tal compreensão do que deve ser o raciocínio científico (de natureza dedutiva, a partir de premissas evidentes) é sem dúvida demasiado exigente para a nossa concepção, tanto da ciência como da argumentação. Mas ela ilustra bem o teor filosófico da obra de Tomás de Aquino. No fundo, ele aborda o tema da criação de uma maneira particularmente original. Ao concebê-la menos como uma origem temporal – que Tomás pensa não poder ser estabelecida, nem negada, pela argumentação racional – do que como uma relação de dependência na existência, que é demonstrável, Tomás defende uma dupla tese sobre Deus e sobre as criaturas: a simplicidade absoluta é o que é próprio da divindade, e todas as criaturas estão marcadas pela composição, nem que fosse somente a composição do que a coisa é (a sua essência) e do que faz com que ela o seja (o seu ser). Ele sustenta assim, contra numerosos contemporâneos, partidários de um hilemorfismo universal (toda a substância seria um composto de matéria e forma), a existência de espíritos puros que apesar disso não fruem da simplicidade divina (o estudo dos anjos, a angelologia, constitui uma parte importante das reflexões daquele a quem apelidaram de «doutor angélico»). A relação de criação dá igualmente sentido à presença do criador em todas as coisas, a qual não se resume à mera causalidade. Tomás põe em evidência por um lado a distinção da causa primeira e das causas segundas e, por outro, uma relação de subordinação que assegure a autonomia da ordem criada – autonomia reflectida na dos diferentes saberes, cada um deles fundado em princípios próprios. Enfim, sendo obra de um Deus inteligente que a governa para seu maior bem, a criação manifesta em

todos os seus planos uma finalidade e uma ordem que a inteligência humana, e nomeadamente a do filósofo, Aristóteles, contribuíram em larga medida para descobrir. A ordem do real é assim o princípio da sua inteligibilidade, e o homem, que é o cume da criação visível pelo seu intelecto, pode recapitulá-la pelo pensamento. «O que é próprio do sábio é meter ordem»: Tomás de Aquino retomou incessantemente e ilustrou largamente a observação de Aristóteles acerca da capacidade arquitectónica da ciência primeira. Mas esse adágio também tem um sentido prático, uma vez que o homem é igualmente aquele que, pelas suas acções livres, é susceptível de organizar o mundo, particularmente no que toca aos assuntos humanos, onde pode exercer a sua parte de providência, à imagem e à semelhança de Deus. Essa convicção de que o real é racional, ou de que o pode tornar-se graças à acção humana, funda um certo optimismo filosófico onde a Razão, que está no princípio de todas as coisas, pode vir esclarecer a razão humana, finita e limitada pelas consequências históricas do pecado. O mal não é, aliás, mais do que um limite transitório, uma vez que, relevando do nada, ele está destinado a desaparecer definitivamente, quando toda a criação tiver por seu turno sido recapitulada pelo seu criador, que é o próprio ser subsistente (ipsum esse subsistens), a razão, a bondade e o amor. CYRILLE MICHON

João Duns Escoto

Nascido em Duns, pequena aldeia do Sul da Escócia, cerca de 1265-1266, João Duns Escoto – o «doutor subtil» – foi ordenado padre na Ordem dos Franciscanos a 17 de Março de 1291. Entre 1288 e 1301, estudou Teologia em Oxford e aí comentou as Sentenças de Pedro Lombardo em 1298-1299. A partir de Outubro de 1302 ensina na Universidade de Paris. Torna-se doutor em Teologia em 1305, e é mestre regente dos estudos no convento franciscano em 1306-1307. Num documento datado de 20 de Fevereiro de 1308, Duns Escoto é assinalado como leitor no Studium franciscano de Colónia. Parece ter aí ministrado cursos a partir de Outubro de 1307, mas o seu ensino na Alemanha será de curta duração, visto a data habitualmente atribuída à sua morte ser a de 8 de Novembro de 1308. Dessa breve carreira, Duns Escoto deixou uma obra considerável, produzida em cerca de uma dezena de anos, a qual conhecerá um significativo destino histórico. A partir do início do século XIV forma-se uma escola escotista, que gozará de uma longa prosperidade – diz-se que no século XVII ela teria contado com mais membros que todas as outras escolas reunidas. No entanto, é porventura fora do círculo da sua própria escola que Duns Escoto produzirá uma influência mais determinante. A sua obra será lida e comentada por autores tão diversos quanto Guilherme de Ockham, Francisco Suárez ou Gregório de Rimini. Sem exagero algum, poderá dizer-se que o pensamento de Duns Escoto assinala uma verdadeira viragem no pensamento medieval, e, mais amplamente, na filosofia ocidental. A univocidade do ente O século XIII havia adoptado maciçamente a tese, fruto de uma longa tradição de interpretação de Aristóteles, segundo a qual «ser» não se dizia num único sentido, mas em vários, porém não por pura equivocidade mas por analogia. A analogia é intermediária entre a univocidade e a equivocidade. Ela permite preservar a transcendência absoluta de Deus em relação à criatura, que a univocidade teria suprimido, embora evitando condenar o conhecimento

natural de Deus a uma simples teologia negativa, consequência da pura equivocidade. Duns Escoto é o primeiro a romper com esta tradição. Ele sustenta que o mesmo conceito de ente (ens) se diz univocamente de Deus e da criatura: é com o mesmo significado que eu digo que «esta pedra é um ente», que «o homem é um ente» ou que «Deus é um ente». Esta univocidade estende-se a todas as propriedades imediatas do conceito de ente, a que os medievais chamavam os transcendentais (verdadeiro, bem, etc.), bem como às categorias (substância, acidente, etc.). Trata-se portanto de uma verdadeira revolução metafísica. A posição de Duns Escoto deve ser compreendida a partir da concepção da analogia que ele achara desenvolvida em Henrique de Gand (cerca de 12201293). Henrique compreende a analogia como uma combinação de equivocidade e de univocidade. O conceito de ente predicável a Deus é distinto do conceito de ente aplicável à criatura, ainda que não seja possível ao nosso espírito distingui-los absolutamente como dois conceitos diferentes, mas somente como duas propriedades opostas de um mesmo conceito: o ser compreende-se «em parte como equívoco e em parte como unívoco». Não é pois de espantar que toda a discussão de Duns Escoto acerca da univocidade do ser ande em torno desta questão da distinção ou confusão dos conceitos. O doutor subtil não vê como se poderá saber que dois conceitos diferem um do outro sendo-se incapaz de os distinguir como tais. Ou conhecemos dois conceitos, caso em que sabemos estabelecer a distinção, ou então não conhecemos mais do que um só. Ora a certeza na unidade dos conceitos é a condição de possibilidade de todo o conhecimento verdadeiro. A univocidade do ente é apresentada por Duns Escoto como uma exigência epistemológica: se o conceito de ente não fosse unívoco, toda a demonstração metafísica ou teológica que entendesse fazer uso desse conceito num silogismo (a começar pela demonstração da existência de Deus) estaria tingida de engano e de equivocidade. Consciente da grande novidade da sua tese, Duns Escoto sublinha que não faz mais do que tornar evidente o que toda a gente já sabia. Desde os pré-socráticos, os filósofos procuraram incessantemente conhecer a natureza de Deus; procuraram saber se ele possuía ou não um corpo, se era um ser finito ou infinito, etc. Ora, ao colocarem tais questões, todos concordavam pelo menos num ponto, que era a própria condição de possibilidade da sua dúvida, a saber que, qualquer que seja a sua natureza, o Deus que procuravam deveria ser um «ente».

A ontologia A partir de meados do século XIII, os esforços de um realismo consequente fizeram rebentar a estrutura binária entre o ser exterior ao espírito e a pura representação mental. Entre o ser de razão, que é uma pura operação lógica do intelecto, e o ser exterior, que nem sempre é inteligível a não ser em certas formas, modos ou graus, é necessário um espaço intermédio, que justifica a eficácia de um pensamento voltado para o real, porquanto ele se rege pelos diferentes aspectos possíveis deste. A teoria escotista da distinção formal com fundamento real (distinctio formalis ex parte rei) é seguramente a mais célebre, mas ela constitui já uma crítica da distinção intencional de Henrique de Gand, segundo a qual os conceitos realmente distintos do espírito correspondem a aspectos potencialmente distintos na coisa. Duns Escoto considera pelo contrário que a distinção, numa mesma coisa, entre diversas realidades formais não é simplesmente em potência, mas muito actual, sem que com isso se quebre a unidade da coisa. Na coisa, é-me dado a conhecer um certo aspecto, aspecto que, na medida em que não resulta da operação do meu intelecto, é uma propriedade real, e não de mera razão. Todavia, essa propriedade, se se deixa pensar (e portanto definir) independentemente do seu tema, não se deixa dissociar concretamente deste como uma outra coisa que pudesse ter uma existência independente. O sucesso da distinção formal escotista é devido em particular ao seu potencial para resolver o problema da unidade divina: os atributos divinos ou as pessoas divinas são realmente distintos, sem que a unidade e a simplicidade divinas sejam afectadas por isso. O realismo de Duns Escoto é moderado e revela-se assaz diferente daquele que se desenvolverá entre os reales a partir do século XIV. O doutor subtil esforça-se por mostrar que a simples oposição entre a pura existência mental e a realidade exterior ao espírito é insuficiente: é necessário um domínio intermédio. Os graus de semelhança ou de contrariedade que se observam na natureza, e nos quais se funda a nossa faculdade de abstracção, não se explicam pela mera existência de seres singulares, numericamente distintos uns dos outros, uma vez que a unidade numérica não engendra nenhuma hierarquia. Deve portanto supor-se uma unidade intermédia entre a existência individuada e o conceito universal: a unidade de uma «natureza» (natura). Uma natureza não é em si nem individual nem universal, ela é indiferente a um ou outro desses modos de existência. Se a transposição de uma natureza comum num conceito universal se deixa compreender como uma operação do intelecto, resultado da sua faculdade de

abstracção ou de universalização, a singularização dessa natureza numa realidade exterior requer quanto a ela um princípio ontológico próprio. Duns Escoto examina longamente esta questão, afastando um após outro os candidatos clássicos ao papel de princípio de individuação: a negação, a existência, a quantidade, a matéria. Evitar-se-á, em particular, confundir individuação e indivisibilidade. A individuação não poderia ser uma propriedade lógica, acidental ou extrínseca de uma substância (seria a sua existência); um ser é individuado em virtude do facto de se apropriar totalmente das propriedades comuns de que é portador. Em Sócrates, a humanidade torna-se o próprio Sócrates: ela torna-se «socrateidade», ou seja, ao mesmo tempo a realização e a apropriação da humanidade por um indivíduo. O princípio de individuação é a perfeição ou forma última que um ser realiza, a sua haecceitas252 (de haec, «isto»). O singular realiza a inteligibilidade de que é portador pela sua individuação. A individualidade não é um princípio extrínseco à inteligibilidade de uma coisa. A vontade e a lei moral Classicamente, associa-se à filosofia escotista a expressão «voluntarismo». Porém, sobre a questão da vontade e da liberdade, no essencial Duns Escoto não fez mais do que retomar e desenvolver a posição franciscana, dando-lhe mesmo uma formulação mais moderada do que aquela que era sustentada em particular por Pedro João Oliva (cerca de 1248-1298). Para Aristóteles, o intelecto, como faculdade de discernimento, acha-se na origem da nossa capacidade de deliberação e de escolha, ou seja da liberdade humana. No século XIII, a escola franciscana opor-se-á à definição aristotélica do homem como animal racional, pois uma tal metafísica reduzir-nos-ia, segundo a surpreendente expressão de Oliva, a não sermos mais do que «bestas intelectuais». O que faz a nobreza do homem, o que o eleva acima do animal, não é o seu intelecto, mas a sua vontade. Essa vontade não é uma potência de discernimento ou de deliberação, é uma faculdade independente do intelecto na sua essência e no seu princípio. Só a vontade possui, perante um objecto, a «liberdade de indiferença», isto é a liberdade absoluta, de consentir (velle) ou de rejeitar (nolle), ou ainda de se abster de querer (non-velle). Tal liberdade é absoluta porque ela não é limitada nem determinada por nada. A natureza do objecto ou o grau de discernimento não diminuem nem afectam em nada essa potência que faz a essência do homem, e sem a qual seria impossível imputarlhe os seus actos: o poder, contra toda a lógica, de desejar um mal evidente, ou

de rejeitar um bem evidente. A origem do bem e do mal não se encontra na perfeição ou na fraqueza da razão; encontra-se na liberdade como potência de autodeterminação. Mas se a vontade não pode ser constrangida por nada, onde encontrar doravante a regra das nossas acções? O primado da vontade impõe uma nova definição da justiça: um acto é em si bom ou mau, enquanto acto puramente desinteressado, conforme se achar ou não conforme à lei. A lei é a única medida do bem e do mal. Esta nova concepção da ética, formulada por Duns Escoto, encontrar-se-á em Guilherme de Ockham e em Emanuel Kant. Não existe portanto nenhuma lei moral intrinsecamente necessária, à excepção da primeiríssima lei do Decálogo: aquela que dita o amor de Deus. Todas as outras leis podem ser revogadas por Deus a qualquer momento, se Lhe aprouver. Ele criou o nosso mundo a partir das combinações lógicas dos mundos possíveis. Ele escolheu livremente um caso particular entre todos os conjuntos de compossíveis (mas não necessariamente o melhor!). Ele pode agir no interior da ordem instituída por tal escolha (pela sua potência ordenada), mas pode também decidir mudar as regras do jogo (pela sua potência absoluta). No entanto, sendo boa a vontade divina, Deus ditou as Tábuas da Lei não em virtude de uma necessidade mas a fim de que elas estejam em harmonia com o seu projecto. A teologia escotista marca assim a emergência de um motivo maior, que a partir de então irá obcecar o final da Idade Média, até ao século XVII: a omnipotência divina. DOMINIQUE DEMANGE 252 Em português, hecceidade. (N. do T.)

Guilherme de Ockham

Guilherme de Ockham (cerca de 1285-1347) ficou na história da filosofia como o pai do nominalismo medieval. Propôs pontos de vista fortes e originais em quase todos os domínios da filosofia. Membro da Ordem dos Franciscanos, estudou em Londres e em Oxford, mas sem nunca se tornar mestre em Teologia. Em 1323 foram denunciadas diversas teses do seu comentário, e em 1324 foi convocado a Avinhão. Fugiu em 1328 e refugiou-se junto do imperador Luís da Baviera. Excomungado, passou o resto da sua vida a escrever tratados políticos e eclesiológicos contra o papado. Lógica, teoria da linguagem e do conhecimento A Suma de Lógica, redigida em 1323, marca todo o pensamento do século XIV. A lógica funda-se numa teoria do signo. Guilherme de Ockham considera três espécies de signos, todas elas remetendo directamente para coisas individuais: signos escritos, falados e mentais253. O domínio mental pode assim ser considerado como uma verdadeira linguagem, combinação de elementos significantes estruturada segundo uma certa sintaxe. Essa linguagem mental é o objecto primordial da lógica. Aí se analisam os diferentes tipos de termos: abstracto ou concreto, absoluto ou conotativo, singular ou universal. O universal é ele próprio um signo, falado ou mental. Nada é mais estranho a Guilherme de Ockham do que um «nominalismo» que fosse concebido como uma redução da linguagem a palavras vazias: trata-se, pelo contrário, de explicar o significado e a referência dos termos. As categorias são tipos de termos portadores de sentido que estão classificados segundo a sua maneira de significar as coisas. As propriedades semânticas estão organizadas em torno da teoria da «suposição», propriedade que um termo tem de se referir a uma ou outra coisa de acordo com o seu uso efectivo em proposições. A suposição divide-se ela própria em diferentes modos e serve para restituir os diversos usos (significativo ou metalinguístico, determinado ou distribuído, etc.) desses termos. Ela permite, enfim, definir as condições de verdade das proposições. A Suma de Lógica percorre seguidamente todos os domínios da lógica, da teoria

dos silogismos à teoria dos paralogismos, passando pela teoria das inferências, dos lugares, das obrigações. A teoria do signo é completada por um estudo da génese psicológica do conceito254. Este não é abstraído a partir da sensação. Conhecimento sensível e conhecimento intelectivo são para a alma duas maneiras de apreender a coisa, e, por direito, a intelecção é independente da sensação. O conceito surgiu com o contacto primordial de uma coisa. Esse contacto intelectivo primordial dirigese pois a uma coisa singular, mas é redobrado por disposições do espírito para captar de novo essa coisa ou coisas semelhantes – daí um conceito comum, que permite conceber num só acto e segundo uma referência múltipla coisas semelhantes do ponto de vista da espécie («homem»), ou de uma dada qualidade («branco»). O conhecimento é intuitivo quando, por ele, podemos saber se uma coisa existe ou não existe; é abstractivo quando, por ele, não podemos saber com evidência se a coisa existe ou não. Todo esse edifício assenta num contacto primordial, sensitivo e intelectivo, com a coisa, e numa relação causal entre a coisa e o conceito. As substâncias naturais: física e metafísica A análise lógica acha-se investida nas outras ciências, nomeadamente a física e a teologia. Ockham dedica vários comentários à Física de Aristóteles, nos quais se entrega a um estudo dos conceitos da filosofia natural255. Assim, «movimento» é um termo abreviado que significa que um corpo está num local num momento e depois num outro local um pouco mais tarde. A mudança qualitativa não é também ela senão o acrescento ou a supressão de uma ou outra qualidade. A condensação e a rarefacção são interpretadas a partir do movimento das partes do corpo. Todo o seu esforço visa a elucidação lógica das proposições da física, cruzada com uma visão parcimoniosa das realidades físicas, ou seja recusando toda a concretização das abstracções e reduzindo os termos complexos a abreviações de enunciados que remetem para as meras substâncias e qualidades. Os outros conceitos da física, como o local, o tempo, o infinito, o vazio, são tratados de maneira semelhante. Mas se a ontologia ockhamista não admite a realidade das relações, ela nem por isso implica qualquer cepticismo em relação à causalidade: uma causa é uma coisa tal que, se ela é dada, uma outra dela decorre necessariamente. A metafísica ockhamista assenta na tese da singularidade do ente: tudo o que

é é, em si, singular. Assim se acha recusada toda a problemática da individuação. Desta posição nominalista faz eco um princípio metodológico segundo o qual o que é realmente diferente é por direito separável pela potência divina absoluta. As substâncias são constituídas por matéria e forma; ambas são reais ainda que não sejam fisicamente separáveis. Ockham adopta, a este respeito, a doutrina da pluralidade das formas: as coisas são compostas, além da matéria, por uma hierarquia de formas substanciais e acidentais. Teologia Guilherme de Ockham tanto é teólogo como lógico. Ele interroga-se sobre o estatuto das verdades teológicas256. Em primeiro lugar coloca-se a questão dos conceitos pelos quais significamos Deus. Não podemos ter dele qualquer conceito intuitivo, pelo menos nesta vida; mas também não temos dele qualquer conceito abstractivo simples, supondo este um conceito intuitivo prévio. Em compensação, podemos ter acerca de Deus um conceito composto que lhe seja próprio, uma espécie de descrição definida que só a Ele convenha. Este conceito, composto de partes abstractas dos outros entes, pode servir de sujeito nas proposições em que se refere a Deus. Quanto às «perfeições», não se trata de qualidades que fossem nele distintas da sua essência, uma vez que Deus é radicalmente simples. Elas não são coisas mas signos, atributos predicáveis desse conceito. Tais propriedades convêm a Deus, mas são, ou comuns a outros entes, ou termos conotativos, como «criador», que significa de maneira segunda o mundo criado. A partir daí, Ockham analisa as proposições utilizadas em teologia segundo os cânones da lógica (salvo no caso da relação trinitária). Isso tem por consequência reduzir consideravelmente o âmbito demonstrativo das proposições teológicas, uma vez que a exigência de referência directa do termo sujeito raramente é satisfeita. Designadamente, nenhuma demonstração de existência pode ser considerada. Muitos dos raciocínios que os seus predecessores julgavam demonstrativos são rejeitados como inconcludentes. Algumas dessas proposições são porém acessíveis à razão por meio de uma argumentação persuasiva. A filosofia prática Encontram-se elementos de ética dispersos nas diferentes obras teológicas. A ciência moral comporta uma parte «positiva», contendo leis divinas e humanas

que obrigam a procurar certas coisas e a fugir de outras, e uma parte «não positiva», que não assenta em nenhum preceito superior mas depende de princípios conhecidos por si ou pela experiência257. Tais princípios são já tratados na lógica aristotélica. A ética ockhamista considera além disso que nenhum acto é por si mesmo bom ou mau, a não ser amar Deus por si mesmo e acima de tudo. A intenção é colocada em primeiro plano. Daí resulta que o cumprimento ou incumprimento de uma ou outra acção não deve condicionar o juízo moral efectuado sobre alguém. Estes dois princípios implicam que não se pode identificar com certeza o que no domínio prático corresponde a uma boa ou má intenção. Ockham admite contudo que há acções que são prescritas como boas e outras interditas como más. Tais prescrições, positivas ou racionais, devem ser seguidas. Mas uma acção não tem valor moral senão por derivar da vontade boa. O único acto intrinsecamente virtuoso é um acto da vontade: é o facto de se amar Deus por si mesmo e acima de tudo258. A salvação, porém, não só supõe a virtude, mas também requer o mérito. Guilherme de Ockham aborda as questões da predestinação de um ponto de vista semântico259. Opõe a verdade segundo Aristóteles à verdade em teologia: Deus conhece os futuros contingentes e sabe, de duas proposições contraditórias, qual é verdadeira; mas a questão de saber como isso é possível permanece misteriosa. Todavia, Deus sabe o futuro como contingente e não como necessário. No que concerne a questão de saber se a caridade criada (distinta do Espírito Santo) é requerida para que um homem seja salvo, Guilherme de Ockham recusa colocar uma forma criada na alma, que seja distinta da própria alma. Nenhuma forma, nem natural nem sobrenatural, é necessária para isso. Nenhum acto é meritório em si mas em razão de um mandamento divino; só é meritório um acto aceite por Deus de maneira contingente. Nem por isso deixa de suceder que, segundo as leis instituídas, o mérito preceda normalmente a graça e a graça a salvação. Mas uma tal ordem nada tem de necessário. Deus teria podido estabelecer uma diferente. Se Deus houvesse criado um mundo no qual fosse bom odiá-lo, esse teria sido um acto meritório! A filosofia política de Ockham é exposta por ocasião de polémicas sobre os poderes respectivos do papa e do imperador. O «direito natural» designa na origem a Lei divina, mas também o que dela deriva no estado instituído; ele serve de fundamento e de norma crítica à lei positiva. O mesmo sucede para a propriedade, que não existe no estado original, e depois se torna um direito de apropriação de todas as coisas, e por fim um direito de propriedade

propriamente dito. A ordem política releva para ele da mera instituição. Na Igreja, Ockham respeita em princípio a primazia do papa, mas este não está isento de erro e pode mesmo ser herético. Em compensação, recusa-se a transferir a infalibilidade para o Concílio geral. Cada um se mantém juiz na sua alma e consciência. JOËL BIARD 253 Suma de Lógica, I, cap. 1 e cap. 12. 254 Por exemplo Questões sobre a Física, qu. 7, Opera philosophica, VI, p. 410. 255 Expositio in libros Physicorum Aristotelis, Brevis summa libri physicorum, Summula philosophiae naturalis, Opera philosophica, IV, V, e VI. 256 Escrito sobre as Sentenças, «Prólogo», Opera theologica, I, p. 1-370. 257 Quodlibeta, II, 14, Opera theologica, IX, p. 176-178. 258 Ibid., p. 253-257. 259 Tractatus de praedestinatione et de scientia divina, Opera philosophica, II, p. 506-539.

O mundo e o poema Continuidade e transformação da filosofia no Renascimento

Se tivéssemos de contribuir para uma história da cultura no seu conjunto, é evidente que o Renascimento ocuparia nesta um capítulo maior. Não há dúvida alguma, quer se trate da literatura ou da arte, ou ainda da vida e dos sentimentos religiosos, de que o Renascimento incarna uma nova era e uma transformação profunda relativamente à época que o precedeu. O próprio termo «Renascimento», que designa essa época nova cujas fronteiras cronológicas são fluidas mas acerca da qual se pode estimar que abranja o período que vai do início do século XV a 1600, traduz a consciência que os seus protagonistas tinham da obra que estavam a realizar e à qual a posteridade cantaria louvores nos séculos seguintes: com a retoma da Antiguidade clássica (considerada como um modelo e como um paradigma cultural), saída das «trevas» da «Idade Média» em que fora amortalhada, a cultura europeia tomava o caminho que a iria conduzir à modernidade. O conceito de Renascimento é também indissociável do de Idade Média, tal como o são as duas faces de uma moeda, a boa e a má, e os movimentos inovadores da cultura europeia quererão encontrar aí as premissas dos seus próprios empreendimentos pelo menos até ao século XIX. O domínio da filosofia e da ciência – que na época quase se não podem distinguir – pertence igualmente ao Renascimento, ou antes faz também ele a experiência do seu renascimento após as trevas medievais. Era pelo menos assim que o representavam os seus próprios actores e os sucessores destes a partir do século XVII, quando até o racionalismo das Luzes teria a convicção de incarnar uma emancipação da cultura europeia muito mais bem conseguida que a dos Antigos. Uma superioridade que se manifesta claramente com a nova filosofia e a nova ciência elaboradas a partir do início do século XVII. Daí que a ruptura com a Antiguidade e os seus restauradores, imputada antes de tudo às obras de Bacon e de Descartes, associada a uma reavaliação da filosofia e da ciência medievais tidas como a expressão de um período de progresso e de

riqueza indubitáveis (bem distante da sua caricatura como idade das «trevas» a que o havia reduzido o Renascimento), tenha frequentemente levado a considerar o início da filosofia moderna como um fenómeno do século XVII que rompeu com a filosofia «escolástica» medieval então ainda em vigor nas universidades, desdenhando o parêntesis que a filosofia havia constituído numa cultura renascente predominantemente retórica e literária. Neste breve capítulo que introduz o discurso filosófico da modernidade, procuraremos todavia mostrar como o Renascimento, embora prosseguindo a tradição filosófica (universitária) herdada da Idade Média, a torna a pôr em causa para, em benefício de um apelo à restauração da Antiguidade, dar lugar a um novo clima cultural e a uma orientação inédita que iriam afectar a filosofia de maneira decisiva. Petrarca e o humanismo Contrariamente à imagem que dela forjou o humanismo de inspiração petrarquiana, a Idade Média filosófica e científica elaborou-se a partir da Antiguidade. Falou-se de um «Renascimento carolíngio» a propósito do século IX, ou ainda de um «Renascimento do século XII». Essa época é o ponto de partida do notável desenvolvimento da filosofia e da ciência medievais, quando inúmeras peças da filosofia e da ciência antigas – nomeadamente o corpus aristotélico – foram restituídas, graças à mediação islâmica, e depois teve lugar, a partir do século XIII, a instauração das universidades. Na mesma época, o estudo dos clássicos (latinos) conheceu um desenvolvimento decisivo. Associado ao aristotelismo universitário, ele passou para Itália, onde se fundiu com as tradições locais de uma retórica aplicada ao campo do direito e da política. Esse ímpeto classicista, unido à cultura das artes do discurso (a gramática, a retórica, a poesia), atingiu um auge com a obra de Francesco Petrarca (1304-1374). Petrarca conseguiu formular com toda a clareza o programa de uma restauração cultural dirigida contra a decadência e as errâncias de um saber contaminado pela barbárie islâmica, e fundado na redescoberta das línguas e da literatura clássicas, bem como no retorno aos temas autênticos da filosofia: a reflexão moral e espiritual do sujeito humano, por oposição ao cientismo naturalista e ao logicismo vazio das escolas universitárias. Se é verdade que Petrarca apresentava o seu projecto como uma batalha a favor da restauração da Antiguidade – identificada com a cultura pagã, que Petrarca todavia estimava ser compatível com o cristianismo e susceptível de ser harmonizada com este – e contra a barbárie dos «séculos

privados de Roma», nem por isso deixa de se tratar da tentativa de ressuscitar o ideal medieval da sapientia ou do saber cristão unificado, face à fragmentação e à profissionalização do saber que eram promovidas pelo aristotelismo averroísta das universidades e pela sua doutrina da «dupla verdade», e portanto face à autonomia da investigação filosófica em relação à religião. A rebelião cultural de Petrarca teve uma audiência considerável em Itália, nomeadamente em Florença. Foi assim que nasceu o movimento ao qual o século XIX iria dar o nome de humanismo. Os seus promotores, que no jargão estudantil da época eram conhecidos como os «humanistas», seguiam o curso a que Cícero havia chamado os Studia humanitatis, os estudos que convêm propriamente tanto ao interesse como à cultura do homem livre: as disciplinas relativas à linguagem (gramática, retórica, poesia) bem como à reflexão prática (história e ética). O campo assim ocupado pelo humanismo é em boa parte estranho àquele que a tradição medieval reservava para a filosofia, à excepção da ética. A cultura do renascimento era com efeito estranha à lógica e ao curso de estudos que a tradição peripatética e nominalista havia colocado no princípio do pensamento científico. O humanismo também não mostrava interesse pelo domínio da ciência natural nem pelo da metafísica. Interessavase antes de mais pela linguagem como aquela qualidade essencial do sujeito humano que exprime a sua dinâmica espiritual e por meio da qual ele entra em relação com os seus semelhantes no campo da prática. A consciência aguda da dependência do pensamento relativamente à linguagem era então acompanhada por um interesse pela rectidão da expressão linguageira do pensamento (o que equivaleu a favorecer a reabilitação do latim clássico, contra o jargão bárbaro da escolástica), e por uma atenção persistente à retórica concebida como arte do «bem falar» destinada à eficácia persuasiva no quadro das relações humanas. Se no seu início o humanismo era estranho à filosofia ensinada nas universidades sob a autoridade da tradição peripatética, o desenvolvimento da sua reflexão própria levou-o a transformar consideravelmente a filosofia. Confrontado com a lógica medieval tardia, que estava ligada às exigências do discurso científico, o humanismo com efeito veio a promover uma lógica nova, estreitamente ligada à retórica, bem como às exigências da boa «invenção» e «disposição» dos argumentos chamados a serem proferidos perante um público que convenha formar ou convencer. Com os trabalhos percursores de Lourenço Valla (1407-1457) e por intermédio de Rudolfo Agricola (1433/4-1485), a «lógica humanista» atingiu a sua maturidade nas obras de Melâncton (1497-

1560) e de Pedro de la Ramée260 (1515-1572). Da mesma maneira, a orientação predominantemente prática do humanismo fez-se acompanhar por um deslocamento da atenção votada aos autores. Assim, no tocante a Aristóteles, foram a Ética a Nicómaco, a Política, a Económica e a Retórica que estiveram no centro das preocupações humanistas no início do século XV. Ao mesmo tempo, nomeadamente em Florença, formava-se aquilo a que se chamou o «humanismo civil», cujos principais representantes foram Colucio Salutati (1331-1406) e Leonardo Bruni (1370-1444), particularmente empenhados em escorar as opções políticas republicanas da oligarquia florentina. Foi não obstante por se reapropriarem dos textos antigos e por se dotarem de uma nova biblioteca filosófica que os humanistas obtiveram os seus resultados mais notáveis. Contra o reino indiscutido do Aristóteles latinus com título de paradigma da filosofia, o humanismo proclamou a diversidade filosófica. Convicto de que uma parte importante do legado filosófico grego havia sido perdido e convicto sobretudo de que era necessário aceder ao estudo dos textos na sua língua original, o humanismo restabeleceu a língua grega no Ocidente. A busca de tradições perdidas encorajou uma caça sistemática aos manuscritos, que permitiu reencontrar textos extremamente importantes, os quais depressa inspiraram uma reflexão filosófica renovada: em primeiro lugar, os de Platão e da tradição platónica, depois dos autores e das obras que tornaram possível um conhecimento muito melhor dos pensamentos pré-socrático e helenístico. Lucrécio e Diógenes Laércio deram assim acesso ao empirismo autêntico, enquanto pelo seu lado Sexto Empírico fazia descobrir as correntes filosóficas que ele julgara dogmáticas, entre as quais figurava o estoicismo. O aristotelismo beneficiaria também ele da redescoberta das obras de comentadores tão importantes quanto Alexandre de Afrodísia, Temístio ou João Filopono, sem falar da abundante circulação das obras marginais do corpus aristotélico, como a Poética e a Mecânica. Um vasto ímpeto de tradução destes textos em latim – pois o conhecimento do grego continuava a ser limitado, incluindo entre o público letrado – conclui esse empreendimento, com o auxílio, a partir da segunda metade do século XV, da difusão acrescida que a imprensa tornara possível. O platonismo O platonismo renascente é obra do humanismo, e não teria sido possível caso este último não houvesse empreendido a sua obra de restauração da língua

grega e das filosofias concorrentes do aristotelismo. Mas ao contrário do interesse que o primeiro humanismo votara a Platão, essencialmente preocupado com a ética e a política mas indiferente à reflexão física e metafísica, o platonismo desenvolvido por Marsílio Ficino (1433-1499), e que João Pico de Mirândola (1463-1494) prosseguiu modificando-o, constituiu incontestavelmente uma verdadeira filosofia. Ficino empreendeu uma obra sistemática de tradução e de comentário: a sua tradução da obra de Platão, concluída desde 1469, foi impressa em 1484 e complementada por comentários cuja influência foi considerável, em particular aqueles que se referem a O Banquete e ao Fedro, que estiveram na origem da doutrina do «amor platónico», extremamente influente em todos os domínios da cultura europeia até ao final do século XVI. Tal empreendimento foi completado pela tradução do Corpus Hermeticum e pela tradução e comentário das Eneadas de Plotino (surgidas respectivamente em 1471 e 1492), e pela redacção de uma obra pessoal no seio da qual se destacam a Teologia Platónica da Imortalidade das Almas, impressa em 1482, o Da Religião Cristã (1474) e os Livros da Vida (1489), que expõem a sua teoria da melancolia, cujo impacto no pensamento ocidental foi imenso, desde a literatura e as artes até à medicina. Ficino lia e interpretava a filosofia de Platão à luz do neoplatonismo mas também do hermetismo, que ele via como um corpus doutrinal redigido por Hermes Trismegisto pouco depois da época de Moisés, e no qual fora consignada a antiga sabedoria egípcia. Aos olhos de Ficino – que conseguiu fazer partilhar tal crença na Europa do século XVI –, isso significava que Platão era o ponto culminante de uma tradição erudita única, que remontava às origens da humanidade, pois era posterior à revelação divina feita na Escritura ao povo de Israel, e dependente desta. Ficino atribuiu o nome de prisca theologia («teologia antiga») a essa herança pagã, e considerava que ela era ao mesmo tempo coerente e compatível com o cristianismo, adoptando quanto a esse tema a opinião favorável que sobre ele tinham os primeiros autores cristãos e os Pais da Igreja, que viam em tal tradição o testemunho da revelação divina feita à humanidade pagã por meio do logos, como uma espécie de preparação para o Evangelho. Desse modo, Ficino pôde apresentar a sua restauração do platonismo e da prisca theologia como uma forma de apologética da religião em geral e do cristianismo em particular, oposta à impiedade aristotélica. Com efeito o aristotelismo distinguia-se, nas suas correntes maioritárias (tanto o averroísmo

como a nova corrente «alexandrina», que se alimentava do comentário de Alexandre de Afrodísia), pela afirmação do carácter moral da alma humana (o que demitia a providência divina sobre a humanidade e, por esse motivo, a religião) e pela separação do discurso filosófico (que é o exercício racional superior) e da religião, destinada a comandar politicamente o povo graças a um discurso mítico e imaginário. Pelo contrário, a prisca theologia estabelecia a unidade da filosofia e da religião, cujo divórcio, durante o período dominado pelo aristotelismo, produzira simultaneamente a impiedade filosófica e a degenerescência da religião numa superstição ou numa religião indocta. Tanto a obra de Platão como o conjunto que constituía a prisca theologia revelam um pensamento que não se limita ao conhecimento da natureza, mas que se eleva a partir dele até ao conhecimento e ao culto da divindade. O resultado disso é uma filosofia piedosa (pia philosophia) e uma religião douta (docta religio). Assim se restaurava a unidades delas, permitindo não somente reencontrar a filosofia verdadeira, mas estabelecer ao mesmo tempo as bases da necessária reforma da religião cristã. Era assim que Ficino – o qual além disso estava convencido de que a sua obra e o seu projecto obedeciam a um desígnio da providência divina – compreendia o platonismo (concebido como o elo fundamental da cadeia formada pela prisca theologia) como o remédio necessário para o aristotelismo. A crise espiritual contemporânea deveria encontrar a sua superação graças à instauração de todas as potencialidades inerentes ao platonismo. A questão que ocupa o cerne da reflexão de Ficino é a do lugar que cabe ao homem na escala dos seres, da relação que ele mantém tanto com o mundo como com Deus – princípio e fim dessa escala – e da imortalidade da alma racional humana como realização necessária do fim natural que incumbe ao homem: a união permanente com Deus. A Theologia platonica de immortalitate animorum (Teologia Platónica da Imortalidade da Alma) indica de que maneira cada um desses temas está presente na obra de Platão, e em geral nas principais peças da prisca theologia, para demonstrar que, longe de ser uma fonte de impiedade, a filosofia é o solo firme sobre o qual se podem edificar a crença e a esperança religiosas. Ficino reformula o tema platónico (e aristotélico) tradicional da hierarquia dos seres atribuindo-lhe a forma de uma escada com cinco degraus: Deus, o espírito angélico, a alma racional, a qualidade e o corpo. Nessa escada, a alma racional, presente tanto no mundo como no homem (o que explica que o macrocosmo corresponda ao microcosmo), é a cúpula, ou o lugar que dá à

realidade a sua coerência. Em virtude da sua dupla tendência para a ascensão e a descida, a alma dá a sua unidade a uma escala que é como uma realidade dinâmica no seio da qual o superior desce para o inferior e o inferior se eleva para o superior. Desse modo, a descida da alma em direcção à matéria (que é uma queda para o inferior) dá a vida, informa e aproxima a divindade da matéria inerte, conformando o mundo como uma realidade bela e boa (um cosmos). Ao mesmo tempo, graças ao retorno da alma a si mesma e, por conseguinte, graças à sua elevação contemplativa rumo à inteligência e à divindade, o composto da criação é reconduzido à origem divina da qual procede e com a qual se reúne. Ficino considera essa tendência ou esse desejo de Deus presente na alma racional (e por esse motivo no homem) como natural e como universalmente presente entre os homens (ubique et semper: em toda a parte e sempre). Para além dos objectos finitos e pontuais do seu desejo, o amor da alma – o desejo dela de conhecer, de se unir ao e de fruir do seu objecto – dirige-se para Deus como seu termo último. Em suma: o desejo de Deus da alma racional (humana e individual) é simultaneamente infinito e impossível de satisfazer nos termos sempre finitos da existência mundana. Por conseguinte, tanto para o cumprimento de todas as tendências naturais como para fazer face à irracionalidade que torna o homem incapaz de satisfazer o desejo e o fim mais íntimo da sua natureza, fazendo assim dele «o mais infeliz de todos os animais261», há que afirmar a necessidade da imortalidade da alma individual: Além disso, uma vez que um desejo natural não é vão, daí resulta que a alma humana obtém a existência perpétua que necessariamente almeja, existência perpétua, digo eu, não somente na espécie, mas na substância própria [ao contrário do que se encontra em Averróis, não há imortalidade do intelecto universal, mas da alma individual]. Pelo contrário, todos nós desejamos uma existência eterna e isso sempre, mesmo quando estamos inconscientes desse desejo. É pois por não ser impossível atingi-lo262.

A cosmologia platónica de Ficino possui algumas particularidades em relação à de Aristóteles, da qual conserva no entanto os traços principais: um mundo único, finito, hierarquizado em duas regiões, sublunar e supralunar. O cosmos de Ficino também se caracteriza em parte pela influência das fontes herméticas e neoplatónicas, e pelos centros de interesse de Ficino, nomeadamente aqueles que explicam a presença de numerosos elementos de astrologia e de magia. Eis o que ressalta dos Libri de Vita (Livros da Vida) consagrados à teoria e à terapia da melancolia, e mais ainda no terceiro livro [o

muito influente De vita coelitus comparanda (Para Adquirir a Vida do Céu)], onde ele se propõe combater os aspectos negativos da melancolia (o humor que se associa a Saturno) por meio de diferentes formas de magia astral baseadas nas afinidades celestes dos minerais e das plantas. A voga e o prestígio consideráveis da astrologia e da magia natural no Renascimento europeu até ao início do século XVII devem-se enormemente ao platonismo tal como Ficino o havia reposto em vigor. Com João Pico de Mirândola, o platonismo conhece uma modificação portentosa. Em primeiro lugar, relativamente à orientação anti-aristotélica que lhe havia dado Ficino, Pico afirma a compatibilidade de Platão e de Aristóteles, bem como das tradições saídas das obras destes, e faz igualmente prova de um grande interesse pelo desenvolvimento medieval das filosofias islâmica, judaica e escolástica. Deste modo, a dimensão universalista do platonismo ficiniano e a busca de uma harmonia entre este último e o cristianismo adquirirão em Pico um carácter verdadeiramente universal. Esse ideal de «concórdia» será ainda enriquecido pela junção da Cabala, a tradição esotérica judaica que pretendia remontar a Moisés e conter a interpretação do sentido oculto da Bíblia hebraica. Tal como em Ficino, este universalismo acompanhava um projecto apologético, que em Pico deveria demonstrar a coincidência da tradição esotérica judaica com o cristianismo e portanto a verdade deste último. Assim, pela incorporação da Cabala na cultura cristã, que esteve na origem de uma tradição que se iria prolongar pelo menos até ao século XVII na Europa, procurava-se demonstrar a divindade de Jesus aos próprios judeus, a partir dos segredos e das verdades da sua tradição mística, de modo a preparar a conversão geral dos hebreus, que deveria ter lugar no fim dos tempos. Pico propôs-se proclamar a realização da concórdia universal através da convocação de um congresso geral dos sábios em Roma, no início de 1487. Para tal efeito redigiu, em jeito de documento preparatório, as suas 900 Conclusões que, publicadas em Roma no final de 1486, recolhiam proposições colhidas nas tradições filosóficas e teológicas das quais ele entendia defender a harmonia. No mesmo momento, aquele a que mais tarde se chamou a Oratio de dignitate hominis (O Discurso da Dignidade do Homem), e que não foi publicado antes de 1496, deveria ter lugar como discurso inaugural desse grande conclave. A primeira parte da Oratio apresentava o homem como uma essência não definida e sempre susceptível de ser determinada segundo a escolha que ele faz de si mesmo, e a segunda defendia as diferentes secções das

Conclusões, e nomeadamente o alcance da Cabala, da magia, e em geral da prisca theologia. O congresso romano acabou por ser proibido, as Conclusões foram censuradas e o confronto de Pico com a Igreja concluiu-se com a retirada forçada dele para Florença. Nos anos que se seguiram, Pico inflectiu a sua reflexão: no seu Heptalus de 1489, aplicou a hermenêutica da Cabala à interpretação do sentido oculto do primeiro capítulo do Génesis, mostrando que se pode descobrir nele a presença do próprio Cristo, e ver neste um mediador que torna possíveis a redenção da falta original da humanidade e o restauro no homem da união entre Deus e o conjunto da criação. Assim, nos seus últimos anos, Pico parece haver renunciado a seguir a concepção ficiniana da prisca theologia, e mais particularmente os seus elementos mágicos. Pico concebeu um ambicioso programa de refutação da superstição, do qual somente a crítica da astrologia veio à luz do dia263. Na mesma época, o projecto que consistia em demonstrar definitivamente a concórdia entre Platão e Aristóteles só deu lugar à publicação do De ente et uno (1491), em que Pico contestou a interpretação neoplatónica que Ficino oferecera da filosofia de Platão – estabelecendo o Uno para além do ser, a partir de uma leitura plotiniana do Parménides – para defender a equivalência do Uno e do ser, e propor uma leitura do Parménides como exercício dialéctico e disputatório. Não se pode evocar o platonismo do Renascimento sem mencionar a obra de Nicolau de Cusa (1401-1464). Pertencente à geração que precedeu Ficino e Pico, o cusano fazia parte do meio cultural alemão (ou mais exactamente renano). Estava aberto ao ideal humanista de uma reapropriação das novas fontes, mas carecia da formação. Herdeiro da tradição medieval e das suas correntes platónicas, muito particularmente do platonismo da mística alemã, o cusano elaborou uma filosofia platonizante perfeitamente original. O seu pensamento é dominado pela consciência da incapacidade do sujeito humano finito para aceder à compreensão do infinito divino e pela consideração do carácter conjuntural e aproximativo do conhecimento humano. Além disso, diferentemente da ontologia escalonada de Ficino e de Pico, com a sua progressiva procissão descendente desde o Uno e a sua emanação que vem encontrar o seu remate na matéria, o cusano defendia uma derivação imediata e simultânea de toda a criação, associada a uma cosmologia desprovida de hierarquia, na qual o universo não é finito e onde a Terra, dotada de um certo movimento, é igual em dignidade e em composição aos outros astros do

universo. Ao mesmo tempo, ele propõe uma concepção do infinito divino como coincidência dos opostos: matéria e forma, potência e acto são igualmente constitutivos de Deus, trata-se de princípios que se confundem na unidade divina que «complica» aquilo que no universo se «explica». A audaciosa especulação cosmológica e metafísica de Nicolau de Cusa teria repercussões consideráveis na filosofia do século XVI e seria adoptada por Giordano Bruno, que a associaria a uma cosmologia coperniciana. O aristotelismo. Pedro Pomponazzi A filosofia dominante no Renascimento foi indiscutivelmente o aristotelismo. Até ao início do século XVII, essa continuaria a ser a filosofia magistral das universidades europeias, e isso para além até das divisões engendradas pela Reforma protestante. Durante os séculos XV e XVI, mantiveram-se as diferentes correntes do aristotelismo medieval: a via antiqua do averroísmo, de Alberto, o Grande, do tomismo; a via moderna de Escoto e do nominalismo. Em certos casos, essas correntes integraram contributos oriundos do humanismo: a leitura de Aristóteles em língua original, a sensibilidade filológica, a atenção votada às novas traduções da ética e da política aristotélicas, o estudo dos antigos comentadores gregos reencontrados (Alexandre de Afrodísia, Temístio, João Filopono). Esta nova sensibilidade, que testemunha um desejo de abertura no interior da manutenção do aristotelismo concebido como filosofia universal que oferece respostas a todas as questões possíveis, atinge o seu ponto culminante com a série dos comentários Conimbricenses (oriundos da Universidade de Coimbra) às principais obras do corpus aristotélico, que foram publicados na passagem do século XVI para o XVII. Noutros casos, porém, a tendência que se impôs foi a do prosseguimento da tradição herdada da Idade Média. No seio desta grande variedade de figuras destaca-se a de Pedro Pomponazzi (1462-1525), que representa ao mesmo tempo a tradição e é original pelos problemas que aborda, pela resposta que lhes oferece e pelo vigor do seu pensamento. Produto típico do aristotelismo das universidades italianas da segunda metade do século XV, Pomponazzi ensinou sucessivamente nas Universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha até à sua morte. Em conformidade com o programa dos estudos, Pomponazzi expôs e comentou diversas obras de Aristóteles nos seus cursos, que permaneceram inéditas até uma época recente. A influência de Pomponazzi sobre a filosofia do seu tempo e sobre a filosofia posterior é antes de mais imputável ao seu Tractatus de immortalitate animae (Tratado sobre a Imortalidade da Alma), que publicou em 1516 e suscitou uma

grande controvérsia, e depois a outros tratados [o De incantationibus (Sobre os Encantamentos) e o De fato (Sobre o Destino)], que foram redigidos cerca de 1520 e destinados a uma circulação restrita sob a forma de manuscrito. A reflexão de Pomponazzi, em particular o seu tratamento da questão da imortalidade da alma e da religião, testemunha a solidez e o enraizamento das teses a que se chama do aristotelismo «radical» e contra as quais Ficino havia lançado o seu programa de restauração do platonismo. Tratava-se de um aristotelismo que se concebia como uma exegese do pensamento de Aristóteles em termos exclusivamente racionais, numa perfeita independência em relação à religião e ao magistério eclesiástico. Pomponazzi não havia aprendido grego, e o seu latim era aquele jargão universitário que o humanismo tinha por bárbaro; contudo, abriu-se aos novos elementos que este último havia posto à disposição dos leitores latinos e estava realmente familiarizado com o platonismo, quer fosse pela leitura dos diálogos de Platão ou pela leitura das obras de Ficino e de Pico. No Tratado sobre a Imortalidade da Alma, Pomponazzi procura definir a doutrina autêntica de Aristóteles, e ao mesmo tempo responder de um modo puramente racional à questão. As teses de Averróis (mortalidade da alma individual; imortalidade do intelecto universal) e de Tomás de Aquino (a alma, princípio único tanto da vida como da intelecção e forma substancial do homem, é imortal) são refutadas. Pomponazzi segue a interpretação de Alexandre de Afrodísia e afirma que a alma humana não pode inteligir sem o auxílio de imagens e que, por esse motivo, a actividade dela requer o corpo. Uma existência separada do corpo seria absolutamente ociosa e inactiva. Situado na fronteira do material e do imaterial, o homem pode «farejar» a imortalidade, mas não possuí-la. Contra o platonismo e implicitamente contra Ficino, Pomponazzi afirmava não ser preciso atribuir ao homem um fim natural inacessível, mas um fim natural finito e atingível por todos. Um tal fim não poderia ser outra coisa senão a perfeição do intelecto prático, a virtude moral, acessível a todos durante esta vida e necessária para a comum vida humana. À objecção segundo a qual sem imortalidade pessoal a virtude e o vício não teriam retribuição, Pomponazzi responde adoptando a teoria estóica que apresenta a virtude e o vício como possuindo em si mesmos a sua retribuição essencial, que desse modo nunca falta. Todavia, dado uma tal concepção não ser acessível senão à minoria capaz de se elevar à razão e à filosofia, a necessidade de tornar virtuosos todos os outros homens a fim de se tornarem

possíveis uma vida comum e uma comunidade política levou o legislador a introduzir a «nobre mentira» da imortalidade da alma, bem como as recompensas e os castigos post mortem. A despeito das suas declarações sobre o facto de o problema filosófico da imortalidade da alma ser um problema «neutro», face ao qual a razão não podia estabelecer demonstrativamente nem a mortalidade nem a imortalidade, e da sua tese de que a certeza da imortalidade provinha unicamente da instância superior da revelação divina e da autoridade eclesiástica, às quais nos submetemos sem duvidar, Pomponazzi sofreu numerosos ataques e só evitou um processo inquisitorial devido ao poder dos seus apoiantes. A concepção política da religião – instrumento de que se serve o legislador para educar moralmente o povo submetido às paixões e construir a comunidade política – que estabelece a inferioridade da religião em relação à filosofia, está de acordo com a definição da religião que é dada no seu tratado posterior e inédito, Sobre os Encantamentos. Nesse inquérito aos pretensos fenómenos sobrenaturais imputados aos anjos ou aos demónios, Pomponazzi propõe uma explicação natural sustentando que eles são produzidos pelo curso ordenado da natureza, seguindo o princípio de que, no mundo sublunar, as inteligências – cujo número, segundo Aristóteles, se limita ao das inteligências separadas que movem as esferas celestes – e em última instância Deus, que se encontra para além delas, agem unicamente pela mediação das esferas celestes. Se a totalidade da natureza sublunar está submetida ao governo dessas esferas, e se as religiões (cristianismo incluído) são organismos sublunares submetidos ao processo de geração e de corrupção a partir da causalidade celeste, então a sua sucessão histórica, bem como a sucessão dos profetas são um efeito da providência cósmica através da qual o mundo proporciona à humanidade o que é necessário à existência e à perfeição desta. Desse modo, não há lugar para pensar, filosoficamente, que o cristianismo seja a religião verdadeira que estabelece uma ligação sobrenatural com Deus à margem da natureza, uma ligação cujo fito seria a vida eterna. Esta obra, tal como o tratado Sobre o Destino, no qual Pomponazzi defendia a maior coerência filosófica do fatalismo estóico, só foi publicada a título póstumo264. Não é difícil compreender que, com os seus três tratados, Pomponazzi se haja tornado, ao mesmo título que Maquiavel, do qual era intelectualmente complementar, uma das principais autoridades do movimento libertino do século XVII e, em geral, das correntes do livre-pensamento.

O começo da revolução cosmológica: de Copérnico a Bruno As premissas da revolução científica que se iria cumprir plenamente no século XVII, ao produzir a imagem do mundo da modernidade, apareceram durante o Renascimento. Em 1543 foram publicadas duas obras emblemáticas deste movimento: o De revolutionibus orbium coelestium (As Revoluções dos Orbes Celestes) de Nicolau Copérnico (1473-1543) e o De humani corporis fabrica (Da Fábrica do Corpo Humano) de André Vesálio (1514-1564). A primeira obra foi o ponto de partida da revolução astronómica e física, que culminou no final do século XVII com a obra de Newton. A segunda assinalou a renovação do estudo da anatomia e, de uma maneira geral, a transformação da medicina. Neste domínio, a obra de Paracelso (1493-1541) deu lugar a uma nova teoria e a uma nova prática, com uma perspectiva diferente do galenismo e do aristotelismo no que respeita à filosofia do homem e da natureza, mas que no entanto se apresentava como uma refundação da medicina hipocrática original e, de uma maneira geral, da filosofia hermética e «mosaísta». Se nos ativermos às relações que a «revolução coperniciana» mantém com a filosofia, poderemos dizer sobre a obra de Copérnico que ela propunha uma reforma da astronomia por meio da modificação dos princípios cosmológicos em que assentava: ao geocentrismo e à imobilidade da Terra, baseados na física e na metafísica aristotélicas, substituíram-se o heliocentrismo e o movimento da Terra. A incompatibilidade destes novos princípios com a teoria do movimento de Aristóteles, e de um modo geral com o conjunto da sua filosofia, funda o carácter revolucionário da nova astronomia, que os seus detractores e alguns dos seus partidários tomavam por uma renovação do antigo pitagorismo, ou seja por um renascimento da Antiguidade. A astronomia coperniciana não poderia ser verdadeira a menos que a física e a filosofia do estagirita fossem falsas. Foi por isso que o seu desenvolvimento se fez inevitavelmente à custa da destruição da física aristotélica e da elaboração de uma nova teoria do movimento, associadas a uma nova ontologia ou metafísica. Ao mesmo tempo, o copernicianismo confrontava-se com a dificuldade relativa à sua aparente contradição com o texto literal da Escritura. Numa tal perspectiva, nada há de espantoso em que o movimento da Terra tenha sido maioritariamente recebido, na segunda metade do século XVI, como uma «hipótese» que permitia um cálculo geométrico meramente destinado a «salvar os fenómenos» do movimento planetário. O heliocentrismo e o movimento da Terra não eram teses físicas que descrevessem a realidade, mas hipóteses que – independentemente da sua falsidade – tornavam possível o

cálculo da posição dos planetas no céu, desde que a lógica admitisse que a verdade pudesse ser concluída de premissas diferentes, ou mesmo falsas. É exactamente esse o partido que acaba por adoptar a Igreja católica em 1616: tese filosoficamente absurda e contrária à Escritura, o movimento da Terra não poderia ser admitido senão a título de hipótese de cálculo, sem que implicasse a menor verdade cosmológica. Os copernicianos «realistas», que pelo seu lado admitiam a realidade do movimento terrestre, foram raros na segunda metade do século XVI. À excepção de alguns astrónomos (o inglês Tomás Digges e o alemão Michael Maestlin nos anos 1570, e depois Kepler e Galileu a partir dos anos 1590), em filosofia não se lhes pode juntar mais ninguém senão Giordano Bruno (1548-1600). Nas obras cosmológicas que publicou em Londres em 1584 [La cena de le Ceneri (A Ceia das Cinzas), De la causa, principio e uno, De l’infinito universo e mondi265], Bruno considera a cosmologia coperniciana como a verdadeira estrutura do universo, e inflecte na direcção de um universo necessário e necessariamente infinito, enquanto efeito necessário do poder infinito de Deus que nele se exprime e através dele se dá a conhecer ao homem. Além disso, esse universo infinito é homogéneo: contra o universo hierarquizado da tradição platónica e aristotélica, ainda presente num coperniciano como Tomás Digges, o universo infinito de Bruno está repleto em toda a sua extensão de uma matéria única submetida às mesmas leis do movimento. Desse modo, a Terra deixa de ser o meio da maior imperfeição ontológica (os «dejectos» do universo), para se tornar um astro como qualquer outro, um planeta que também ele gira em torno do Sol. Este universo infinito e homogéneo é uma repetição infinita de «mundos» ou sistemas planetários (synodi ex mundis ou «assembleias de astros», na terminologia de Bruno), cada um dos quais possuindo uma estrela ou um sol central rodeado por um conjunto de planetas e de cometas (sendo estes últimos descritos como uma espécie de «planetas raramente visíveis») que se movem em torno do seu centro, graças a esse princípio interior de movimento que é a sua alma inteligente. Bruno confrontar-se-á igualmente com o problema teológico do copernicianismo, ou seja a dificuldade relativa ao facto de a letra da Escritura parecer promover uma cosmologia geocêntrica, à custa da aceitação da teoria da acomodação divina à inteligência vulgar. Era pelo menos dessa maneira que os copernicianos se furtavam a tal dificuldade. Em Bruno, essa noção de acomodação é revista tendo por referência a adopção explícita da concepção

averroísta e maquiavélica da religião como instrumento de educação e de governo político do povo. A intenção do legislador divino que dá aos homens a revelação não é outra senão a de transmitir a «Lei» ao povo; em todo o rigor, ela não se aplica aos sábios, que acedem à Lei e à virtude pelo seu próprio entendimento. Uma tal concepção da religião pressupõe que a filosofia – a ciência – é o nível superior do conhecimento da natureza, pelo qual o homem se une à divindade da única maneira possível: inacessível enquanto tal, Deus dá-se a conhecer através da natureza infinita que explica o que n’Ele é complicado. Bruno adopta assim a metafísica do cusano e desenvolve-a na direcção de um monismo ontológico rigoroso: o universo ou a substância é uno e infinito, os indivíduos particulares nada mais são do que acidentes ou modos da substância única, cujos dois princípios (matéria e forma, ou alma) coincidem numa unidade infinita que é Deus explicado. Através do conhecimento da realidade física e metafísica da natureza infinita e do lugar que ele ocupa nesta, o homem superior acede à união com Deus e em última instância à beatitude e ao «Paraíso». Com Giordano Bruno, a filosofia do Renascimento atinge sem dúvida a sua expressão mais acabada, o momento em que, para o sábio, ela aparece como uma alternativa completa à religião e ao cristianismo. Antecipando sob muitos aspectos o pensamento de Espinosa, o de Bruno oferece à filosofia – para além de uma física ou de uma teoria da natureza que a ciência nova viria a corrigir consideravelmente – uma autonomia e um sentimento de perfeição que iriam ser julgados excessivos. Essa ciência e a sua filosofia nova, no século XVII – se exceptuarmos Espinosa –, procurariam encontrar um outro acordo com a religião e as instituições eclesiásticas. MIGUEL ANGEL GRANADA 260 Na tradição portuguesa também ocasionalmente referido sob a designação latina de Petrus Ramus. (N. do T.) 261 Marsílio Ficino, Theologie platonicienne de l’imortalité des âmes, texto crítico estabelecido e traduzido do latim para francês por R. Marcel, Paris, Les Belles Lettres, «Les Classiques de l’humanisme», 1965 e 1970 (reimp. 2007), 3 vols, vol. 1, p. 38. 262 Ibid., vol. 2, p. 265. 263 Ela está exposta nas Disputationes adversus astrologiam divinatricem, publicadas a título póstumo em 1496.

264 Estes dois textos foram publicados em Basileia, respectivamente em 1556 e 1567. 265 Cf. Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, trad. portuguesa, notas e bibliografia de Aura Montenegro, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1978, 2.a ed. (N. do T.)

Thomas Hobbes

Thomas Hobbes viveu no decurso de um dos séculos mais atormentados da história de Inglaterra. Após estudos em Oxford, as suas relações com a família Cavendish tornaram a sua longa vida indissociável da história da dinastia dos Stuart. É assim que, diferindo a composição do sistema de filosofia em três secções (Corpo, Homem, Cidadão) que ele projecta realizar a partir de 1637, é levado a escrever o seu primeiro tratado de filosofia política, os Elementos da Lei Natural e Política (Elements of Law) em 1640, enquanto o rei Carlos I, contra o qual a Escócia presbiteriana está em revolta, sofre os ataques do Parlamento. Hobbes decide partir para o continente, e é em Paris que se imprime em 1642 o seu segundo tratado político, Do Cidadão (De cive), poucos meses antes de a guerra civil rebentar em Inglaterra. Os tratados Do Corpo (De corpore) e Do Homem (De homine) são adiados para mais tarde (serão editados respectivamente em 1655 e 1658). Hobbes publica antes – dois anos após a decapitação de Carlos I – o seu terceiro tratado político, o Leviatã (1651)266, redigido durante as perturbações da Fronda. Regressado a Inglaterra, é objecto, mesmo após a restauração da monarquia em 1660, de numerosas acusações de ateísmo e de traição. É que a filosofia de Hobbes causa escândalo. A fórmula é conhecida: materialismo portanto ateísmo portanto imoralismo. Se acrescentarmos a isso uma filosofia política que não pode de modo algum satisfazer os diferentes campos ideológicos que se digladiam em torno da questão do poder político, o quadro parece completo. Hobbes, adversário da religião, teórico do despotismo: já para muitos dos seus primeiros leitores a obra do filósofo foi percebida como uma provocação insuportável. Nem os partidários de uma monarquia de direito divino, nem os juristas defensores do costume imemorial (common law), nem os autores de inspiração aristotélica que defendiam um fundamento natural da organização política, nem os contratualistas partidários de um pacto que ligasse o povo e o detentor da autoridade política se podiam reconhecer na figura do soberano absoluto hobbesiano. Mas as vivas reacções suscitadas pela filosofia de Hobbes entre os seus contemporâneos testemunham

na realidade talvez sobretudo, e antes de tudo, a radicalidade própria do sistema do pensador inglês. O corpo «Ele afirma, efectivamente, que Deus é um corpo», faz Hobbes dizer ao personagem que o representa no Apêndice III do Leviatã latino de 1668. Se uma tal afirmação tem antecedentes no pensamento estóico e até no estoicismo cristão, ela não é porém conforme, ou disso se duvida, aos princípios usualmente recebidos da fé cristã. Tratar-se-á então de uma daquelas provocações que se explicam pelas circunstâncias históricas, nomeadamente os conflitos de Hobbes com os teólogos e os sábios da década de 1660? Na realidade, para Hobbes, dizer que Deus é um corpo (body, corpus) é dizer que ele é um ente (being, ens); dizer que ele é um ente é dizer que ele existe. Ou ainda, por outras palavras, não é possível que Deus possa ser concebido – se o é, e para Hobbes é-o – de outro modo que não seja como corpo. É que a filosofia de Hobbes repete incansavelmente uma tese: tudo é corpo e não é pensável senão como corpo, e todos os fenómenos se explicam pelo movimento dos corpos. O tratado Do Corpo considera assim o corpo e o movimento como os verdadeiros princípios de elucidação da natureza inteira. Decerto que eles não surgem senão em segunda posição na dedução que abre o livro (cap. VIII), após o espaço e o tempo (cap. VII), mas isso é porque estes são caracterizados pela sua simplicidade de puras imagens. A noção de «corpo» ganha forma no espírito desde que se pense em qualquer coisa que se coloca no espaço anteriormente imaginado; o que o distingue verdadeiramente desse espaço é que ele resiste ao poder da imaginação, pelo que não depende dela. Quanto ao «movimento» (local), ele está na base de todas as mudanças do corpo e, portanto, de todos os aspectos da realidade natural. Compreende-se então a condição enunciada por Hobbes logo no limiar do tratado Do Corpo (cap. I) para delimitar o domínio do conhecimento racional: os corpos não podem ser conhecidos a menos que sejam afectados por movimentos que provoquem em nós fantasmas, eles próprios explicáveis em termos mecânicos. Isso exclui a teologia do campo da filosofia. Para Hobbes, a palavra «Deus» não pode então designar senão um corpo muito subtil e muito ténue, ao ponto de este já não poder afectar os nossos sentidos. Ele não designa porém uma realidade incorpórea. Mais do que isso, Deus não deve ser apenas dito extenso, mas propriamente corpóreo. Face ao dilema: ou a espiritualidade infinita, ou a corporeidade finita, Hobbes responde por algo que ele não

concebe de modo algum como um paradoxo. Deus é corpóreo e infinito: tem uma grandeza indeterminada, o que significa que nós não podemos imaginarlhe o termo (não há em Hobbes ideia positiva de infinito). Deus é além disso um espírito, mas corpóreo: ele é um corpo fino ao ponto de ser invisível; ele não pode pois, por via natural, provocar em nós fantasmas; ora, uma vez que o conhecimento parte dos fantasmas, ele mantém-se inconcebível. O objectivo visado por Hobbes ao defender a tese da corporeidade de Deus é assim muito preciso: não se trata de especificar Deus e a natureza da sua presença e da sua acção no mundo, trata-se de assegurar a integralidade da univocidade do ente a partir do conceito de corpo. Hobbes afirma certamente a relação de equivocidade, ou de homonímia, entre Deus e os entes finitos; mas é necessário, apesar dessa equivocidade proclamada e aquém dela, qualificar como ente, e portanto como corpo, toda a instância – Deus incluído – devido à decisão a favor da univocidade do ente. A equivocidade só surge depois, para assinalar o carácter incompreensível do corpo divino. Hobbes ratifica assim a morte da analogia como princípio de acesso a Deus pela linguagem, e substituia por uma lógica do conceito representativo, a qual impõe que, antes de mais e de pleno direito, se pense univocamente tudo o que é como corpo. O homem No prolongamento desta orientação teórica, trata-se então para Hobbes, na sua investigação referente ao homem, de substituir uma explicação corpórea à explicação por uma alma imaterial reputada inexistente. Pois não só a diversidade dos fantasmas é produzida pela diversidade das operações dos corpos sobre os nossos órgãos dos sentidos, como o sujeito onde são despertadas as representações e os afectos é ele próprio um corpo. Doravante trata-se pois de elaborar modelos para explicar as funções sensitivas, perceptivas, afectivas, motrizes, tal como o conjunto dos processos mentais da imaginação, do encadeamento das imaginações, do sonho, do delírio, etc., que fazem por inteiro a economia da imaterialidade da alma. Neste sentido, a hipótese da materialidade da alma opera efectivamente um «desencantamento» do homem, se por isso entendermos que o projecto de Hobbes consistiria em perseguir o sobrenatural até ao interior do homem. Mas a fórmula é enganosa caso permita pensar que Hobbes não teria em vista uma investigação que se inquietasse com o carácter específico do homem. Pois o paradoxo que Hobbes entende elaborar é com efeito este: reduzida à natureza, em virtude das exigências da ciência, a natureza humana não se confunde no entanto com a

natureza pura; somente a radicalidade de Hobbes pretende que não se dê de antemão uma distinção já feita entre natureza e natureza humana. A noção de «marca» é decisiva para compreender o que constitui aquilo que é próprio do homem, ou seja o seu poder para produzir o artifício e constituir uma esfera de realidade antinatural. Os animais, diz Hobbes, não se recordam do local onde esconderam o seu alimento quando a fome reaparece. Em compensação, o homem sabe que pode esquecer-se e, por via de consequência, é capaz de se prover dos meios de estender a sua memória e de se elevar à consciência de uma temporalidade mais ampla que a do animal, instituindo arbitrariamente «marcas» memoriais. É pois efectivamente a partir do estado de natureza, ou seja na condição dos homens fora de um poder público investido de direito, que o homem produz efeitos que vão contra a natureza. Deve todavia acrescentar-se que se o homem não se ativesse senão às «marcas», a vida dele em pouco se diferenciaria da do animal. Com efeito o homem não se torna verdadeiramente humano senão no momento da formação da palavra e, sobretudo, do impacto que esta tem sobre a natureza do seu desejo. A linguagem não introduz a distinção entre o homem e o animal, mas desmultiplica a maneira como o homem, no próprio seio da natureza, rompe toda a comunidade com os animais. De um modo geral, é a capacidade de se determinar, não só pelos bens presentes e aparentes, mas também em função do futuro, que distingue as paixões dos homens das dos animais. A este título, a curiosidade é mesmo a única paixão que Hobbes afirma ser especificamente humana. Por definição, se a reprodução do movimento vital é sempre desejada para o futuro, ela não está porém jamais garantida. O movimento vital é dado, ao passo que a reprodução dele tem de ser obtida. E a representação da incerteza quanto a tal reprodução produz uma dor que, segundo Hobbes, não engendra no homem uma simples aversão, que vale para o objecto presente, mas antes uma «ansiedade do porvir», que o dispõe a interrogar-se sobre as causas das coisas, tornando-o tal conhecimento mais apto a ordenar o presente tendo em vista a sua maior vantagem. Viver não é somente querer sobreviver; é desejar e querer continuar a desejar. Mas, para o homem, desejar é incontornavelmente viver numa perpétua preocupação com o futuro. Todo o animal encadeia ideias em «discursos mentais» e desejos em «deliberações». O «discurso mental» da besta é uma batalha onde uma imagem imediatamente produzida é sentida quando leva a melhor sobre todas as que foram conservadas na memória. Mas, no homem, um tal poder está hipertrofiado: ele é aquele animal que pode

enlouquecer por ser incessantemente arrancado ao presente e projectado num futuro que jamais pode ser dominado por inteiro. O cidadão Para apaziguar a ansiedade do homem e contrariar os possíveis delírios dos seus desejos quando estes se tornam patologicamente obnubilados pela preocupação com o futuro, Hobbes inventa uma solução política, de considerável importância na constituição da modernidade: segundo ele próprio, Hobbes foi para a ciência política o que Galileu foi para a ciência do movimento e William Harvey para a ciência dos corpos vivos. O temor de outrem transforma o desejo das coisas em desejo insaciável do poder; não que para Hobbes todo o homem seja, como demasiadas vezes se disse, um ambicioso insatisfeito e agressivo, mas porque os homens hostis são sempre suficientemente numerosos para que os melhores e os moderados tenham interminavelmente de se precaver contra a morte que cada um tem a força de dar a todos. É essa situação que descreve a hipótese teórica do estado de pura natureza. Se se puder dizer em termos narrativos que esse estado é o estado anterior a toda a instituição, em termos de estrutura ele é o estado de desinstituição. O estado de natureza é, com efeito, sem que seja necessário formar a hipótese de uma malvadez natural do homem, um estado de guerra de todos contra todos. Porquê? Porque a natureza, responde Hobbes, fez os homens iguais, de modo que eles podem sempre infligir-se uma morte violenta. Foi erroneamente, acrescenta ele, que Aristóteles acreditou na desigualdade natural entre aqueles que estão destinados a comandar e aqueles que estão destinados a servir. E é precisamente por a natureza ser incapaz de normatividade que o artifício do Estado deve suplementar as insuficiências dela. Se a igualdade natural não suscita mais do que uma desordem de perpétua insegurança, só a instituição de uma desigualdade deverá permitir instaurar uma ordem estável e segura. Para compreender esta invenção, devemos debruçar-nos sobre a definição do direito natural. No estado de natureza, certos obstáculos podem sempre privarme de uma parte do meu poder de fazer o que quero, mas nenhum obstáculo me pode impedir de usar, como eu quiser, um ou outro poder. Se nos ativéssemos a esta primeira caracterização, seria preciso concluir dela que tudo o que é de facto é igualmente de direito. Daí a importância da segunda caracterização: cada um tem efectivamente a liberdade de usar o seu poder como quiser, mas unicamente para a preservação da sua natureza. Dessa

exigência de conservação de si, que limita o nosso poder e funda o nosso direito natural, cada um deve calcular as consequências. A razão dita-nos leis naturais. Estas são regras gerais, descobertas pela razão, que interditam os homens de omitir tudo aquilo por que eles pensam poder ser mais bem preservados. Mas estas leis estão votadas a prescrever no vazio enquanto for permitido a cada um julgar, por um exame pessoal, o que permite atingir a paz. É preciso obter a garantia de uma reciprocidade, que é a condição da aplicação das leis naturais. Só um poder comum que mantenha todos os homens em respeito pode articular eficazmente o direito natural e a lei natural. Para Hobbes, a instituição do Estado equivale então a isto: é preciso transformar um «consenso», que mantém sempre a pluralidade das vontades e portanto do estado de multiplicidade conflitual dos homens, numa «união» que exige a existência de uma só vontade de todos. Por outras palavras, é preciso que a convenção entre os particulares, simultaneamente, num só e mesmo acto, una os particulares (antes da união fundadora, nenhuma unidade, ao nível dos conflitos do estado de natureza, pode ser pressuposta) e engendre o poder soberano. O que é possível, se cada um convier com cada um submeter a sua vontade e renunciar a fazer um uso irrestrito do seu poder, em proveito não do outro (que a contrai igualmente), mas de um terceiro que é por isso mesmo engendrado a título de vontade soberana. O princípio do dispositivo hobbesiano compreende-se bem, mas não é fácil de apreender no seu detalhe. A dificuldade é a seguinte: como pode uma convenção entre particulares engendrar a relação de soberania que encerra a um tempo a obrigação civil e a realidade de um poder necessitante? É neste ponto que os progressos conceptuais de Hobbes, dos Elementos da Lei ao Cidadão, e do Cidadão ao Leviatã, são mais importantes. A principal invenção reside na solução trazida pelo Leviatã com o conceito de autorização (cap. XVI). A instituição de uma pessoa civil supõe que os indivíduos se façam representar pela autorização de um domínio de actos a um único representante-actor (homem ou assembleia), comum a todos. A atribuição é dupla. Em virtude de uma personificação artificial por atribuição fictícia, a multidão torna-se uma pessoa à qual são atribuídas as palavras e as acções do representante-actor. Nenhum dos autores atribui as palavras e as acções do representante-actor à comunidade. Em compensação, cada um atribui-as a si mesmo, e é a convergência dessas atribuições que transforma a multidão em pessoa única. Quanto ao representante-actor, ele assegura uma dupla representação: a de cada indivíduo pertencente à multidão; a da multidão tornada pessoa representada. A

autorização nunca emana portanto da própria multidão. A partir de um esquema que parece referir-se à outorga de um mandato (da multidão a um ou a vários dos seus), o processo de personificação artificial atinge uma inversão: é o mandatário (o soberano) que faz o mandante (o povo, ou o corpo político no qual se subsume a multidão, tornada uma só pessoa representada pelo acto de autorização). Não é pois o povo que faz Leviatã, mas é Leviatã que institui o povo. Hobbes, enfim, sela a indivisão da autoridade política para preservar o corpo social da dissolução ao remeter para as mãos do soberano o poder religioso. Sendo a fé no Cristo e a obediência às leis civis os únicos artigos necessários à salvação prometida pelo cristianismo, em parte alguma se funda, em contexto cristão, que se não obedeça às leis do soberano no que concerne os actos exteriores da religião. Mas o Estado de Hobbes não é um «corpo místico», do qual só Deus conheça os corações. A religião, não sendo mais do que uma competência pertencente ao soberano, deve sincronizar, no domínio público, o que releva do religioso e o que releva da ordem civil para que reine a paz. Não é portanto a tolerância propiciadora de discussões político-religiosas que Hobbes professa, mas uma forma de conformismo: o de indivíduos aglomerados que formam a matéria do corpo de Leviatã, esse «deus mortal» engendrado pelos homens a fim de assegurarem para si não uma salvação absoluta, a qual só pertence à arte política divina, mas uma salvação relativa. A grande revolução teórica hobbesiana foi portanto a de haver articulado o que o não existia anteriormente, a saber uma teoria do direito natural, uma teoria da soberania e uma teoria do contrato político. Mas tomar a medida da radicalidade de Hobbes não é coisa fácil. Tanto mais que a teoria política da modernidade – dizem alguns – sofre hoje em dia uma temível crise. Crise do Estado, crise da soberania, crise também (antes de mais?) da noção de povo (na ausência de Estado, não há povo, dizia Hobbes): em suma, crise de toda a gramática política que Hobbes inventou. Para afrontarmos o que alguns não hesitam em chamar a «desforra» da «multidão» (espinosista) sobre o «povo» (hobbesiano), para captarmos igualmente a nossa actualidade (pósmodernidade, ultramodernidade, hipermodernidade, etc.), devemos, imperativamente, ler e reler sem cessar a obra do «Monstro de Malmesbury». DOMINIQUE WEBER 266 Cf. Thomas Hobbes, Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, trad.

portuguesa de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa, INCM, 1995. (N. do T.)

René Descartes

René Descartes267 nasceu a 31 de Dezembro de 1596 em La Haye (hoje em dia chamada «Descartes»), na Touraine. Estuda no colégio dos jesuítas em La Flèche entre 1606 e, ao que parece, 1614. Após haver obtido uma licença em direito canónico e civil na Universidade de Poitiers, alista-se no exército protestante de Maurício de Nassau, e depois no exército católico do duque Maximiliano da Baviera. Instala-se na Holanda a partir de 1628 e começa a trabalhar num tratado de metafísica que não chegou até nós. Entre 1630 e 1633, redige O Mundo, que decidirá não tornar público, aterrado pela condenação de Galileu. Em 1637 publica o Discurso do Método e, em 1641, as Meditações Metafísicas (Meditationes de philosophia prima). Em 1664 vêem o dia os Princípios de Filosofia (Principia philosophiae), onde reordena de maneira sistemática o conjunto das suas ideias. Chega à Suécia e à corte da rainha Cristina em 1649, e publica As Paixões da Alma. Morre em Estocolmo a 11 de Fevereiro de 1650, de uma pneumonia, segundo as fontes oficiais. A filosofia de René Descartes é dominada pelo projecto de ancorar firmemente a ciência num fundamento que pudesse legitimar a pretensão a conhecer o mundo exterior em toda a verdade. Descartes é partidário da ciência nova, que privilegia a matemática como instrumento de conhecimento dos fenómenos naturais. Diferentemente de outros sábios e filósofos do seu tempo, mas em concordância com Galileu, Descartes defende que a matemática descreve o mundo como ele é na realidade e não apenas como ele surge ao espírito humano ou como a ciência consegue interpretá-lo. Por isso, Descartes não se limita a construir uma metodologia complexa destinada às ciências; desde muito cedo que ele se aplica a dar-lhes um fundamento metafísico muito elaborado: Deus, a alma e a relação da alma e do corpo são objecto de uma vasta reflexão que marcará os futuros desenvolvimentos da filosofia moderna, pelo menos tão profundamente quanto o seu contributo científico. O método Descartes publica aos quarenta anos a sua primeira obra, a mais célebre de

todas: o Discurso do Método. Mas não era através deste que Descartes esperava apresentar-se ao mundo dos sábios. Estamos em 1637, num momento em que o filósofo renunciou a publicar o seu tratado de física, O Mundo ou tratado da luz. A condenação de Galileu leva-o a temer sorte análoga na medida em que, nessa obra, ele confere um lugar central à teoria heliocêntrica que valeu ao sábio italiano a ira da Igreja. Foi por isso que Descartes se decidiu a não fazer editar senão uma parte da sua produção científica, sob a forma de três ensaios: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Como preâmbulo a estes, colocou deliberadamente o Discurso, um ensaio autobiográfico que lhe permite ilustrar o método por ele próprio seguido para «buscar a verdade nas ciências». Falar mais da iniciativa que o levou à ciência do que dos resultados dela não é o projecto inicial de Descartes, mas é o expediente que lhe é imposto pela época e pela azáfama da censura. Descartes considera que as regras do método descrevem o processo natural do espírito exercendo a sua faculdade cognitiva, tal como o testemunham nomeadamente a matemática: e, como esta beneficia do estatuto de ciência exacta, está em posição de aclarar os procedimentos de investigação que permitem atingir a verdade. O conhecimento verdadeiro, tal como o atesta a matemática, deve partir de premissas evidentes por si mesmas, e destas deduzir consequências certas por meio de procedimentos que se possam controlar em permanência. A esses dois momentos de certeza próprios das demonstrações matemáticas correspondem duas funções do intelecto: a intuição, graças à qual se captam as verdades evidentes por si mesmas, e a dedução, que permite avançar das premissas às consequências, progressivamente, segundo uma sucessão de passagens em que cada qual é evidente por si mesma. Na medida em que a dedução se refere a uma sequência de passagens intuitivas, é afinal na intuição que assenta a justeza do raciocínio. No Discurso, Descartes resume as regras metodológicas – já enumeradas no seu tratado inacabado das Regras para a Direcção do Espírito (Regulae ad directionem ingenii) – em quatro preceitos. O primeiro princípio ordena que nos guardemos de toda a precipitação e de toda a prevenção e que não tenhamos por verdadeiro senão aquilo de que se não possa duvidar. A exclusão de tudo o que não é mais do que provável manifesta-se claramente: ou o conhecimento é verdadeiro, ou ele é falso. A segunda regra recomenda que se refiram os problemas complicados aos seus elementos simples e consiste em resolver um problema tratando-o degrau a degrau e segundo um movimento que vai para montante e remontando até atingir um termo impossível de reduzir

ulteriormente. É na análise que Descartes baseia a sua convicção de que é possível elaborar uma mathesis universalis, ou seja uma ciência das relações que tratam de toda a quantidade possível. O terceiro preceito preconiza que se construam séries dedutivas onde toda a proposição é precedida pela proposição que é necessária e suficiente para permitir deduzir a partir dela. A quarta regra exige verificar que a divisão em elementos simples e a sequência de demonstrações estão completas, ou seja que nenhum elo da demonstração foi esquecido. Ela visa anular os erros da memória e dominar todo o encadeamento do raciocínio. Trata-se de dar a um conjunto de conhecimentos complexos aquela evidência imediata que não pertence senão à intuição e que, do ponto de vista do método, é a única garantia de verdade. Veremos que esta garantia metodológica revelará as suas insuficiências do ponto de vista da metafísica. A nova ciência. Do mundo ao homem Descartes expõe a sua concepção da física, radicalmente oposta à de Aristóteles, em três ocasiões: uma primeira vez em O Mundo, depois na quinta parte do Discurso do Método, finalmente nos Princípios de Filosofia, publicados em 1644. Descartes pensa que a física aristotélica descreve o mundo tal como o faria uma criança, convicta de que os seus sentidos exprimem a realidade exacta das coisas. Para distanciar do mundo esta visão ingénua e antropomorfa, é necessário interrogar a teoria do conhecimento na qual ela se apoia, caracterizada pela confiança no conhecimento sensível e pela convicção de que os objectos exteriores são semelhantes à percepção que os nossos sentidos nos dão deles. É por isso que O Mundo começa por refutar a tese segundo a qual as percepções não podem representar o mundo exterior senão por serem semelhantes às características reais dos corpos. Tal como os sons da linguagem nada têm de comum com os conceitos que exprimem e não lhes estão ligados senão pela escolha arbitrária dos homens, também a natureza estabeleceu uma relação entre os movimentos que afectam o corpo quando este é modificado por corpos exteriores e ideias que não têm qualquer semelhança nem com tais modificações nem com os corpos exteriores que as suscitaram. O calor, o frio, as cores, os sons, os sabores não estão senão no espírito do sujeito que os percebe. Para acedermos à essência dos corpos, devemos abandonar os dados transmitidos pela sensibilidade e remeter-nos às ideias inatas da matemática. Elas revelam-nos que nada pertence ao mundo exterior, excepto a extensão tridimensional, ilimitada, divisível ao infinito e desprovida de movimento. Tal como a matéria não é definida senão pela extensão

tridimensional, a ideia de vazio é uma contradição e não pode conceber-se: seria uma extensão privada de extensão. Em O Mundo, Descartes convida a seguir a génese de um mundo imaginário criado a partir de uma matéria infinitamente extensa. No primeiro instante da criação, Deus divide a matéria em várias partes e impulsiona nela diversos movimentos, os quais obedecem a leis. Segundo a primeira delas, um corpo permanece fixo ou conserva o movimento enquanto o choque de um outro objecto não vier modificar-lhe o estado; de acordo com a segunda lei, o movimento total dos dois corpos é conservado nessa colisão, ainda que seja repartido diferentemente; por fim, a terceira lei estabelece que o movimento de um corpo tende a ser rectilíneo. O universo, tal como o vemos hoje, só pôde formar-se graças aos choques entre os corpos que obedecem às leis do movimento. Descartes explica as três leis da física pela imobilidade e a simplicidade de Deus: este não seria imóvel nem simples se modificasse a quantidade de movimento ou se lhe desse uma direcção diferente da linha recta. Como vemos, a explicação das leis da natureza é inteiramente a priori. A experimentação e, de uma maneira geral, a experiência, têm por função permitir escolher entre hipóteses igualmente compatíveis com os princípios primeiros da ciência da natureza. Em oposição ao modelo aristotélico, a física funda-se em bases contrárias ao empirismo: a epistemologia cartesiana está fundada na recusa do valor cognitivo da percepção sensível. Descartes opõe-se igualmente a Aristóteles pela sua rejeição das formas substanciais e, em última instância, pela explicação do movimento graças à lei da inércia, que contradiz o princípio aristotélico segundo o qual os corpos tendem para o repouso. Na quinta parte do Discurso, Descartes expõe a sua concepção da fisiologia. Para explicar a vida e a multiplicação dos organismos, não é necessário apelar, como fazem os aristotélicos, a uma alma vegetativa que governe o crescimento, a nutrição e a reprodução, e a uma alma sensível que controle a percepção, os apetites sensuais e o movimento animal. Todos os fenómenos vitais podem ser explicados por mecanismos corporais; a alma não é portanto necessária à vida. O que a alma traz, quando está presente, é a consciência que acompanha certos fenómenos físicos. Tal como o instrumento de música não se conhece e não ouve os sons por si produzidos, o corpo não se conhece e não percebe os seus próprios movimentos. Esta análise complexa da fisiologia dos organismos vivos dá igualmente fundamentos à teoria segundo a qual os animais poderiam não ter alma e fazer tudo o que fazem sem jamais terem disso consciência. Em

suma, eles poderiam não passar de máquinas. A metafísica O método cartesiano mostra a via que conduz às ideias «claras e distintas»; «claras», porque estão presentes num espírito que reflecte com atenção, e «distintas» porque não atribuem ao objecto conhecido senão aquilo que é próprio dele. O espírito humano considera tais ideias como absolutamente certas. No entanto, referir-se a ideias deste tipo não basta para legitimar a pretensão da ciência física a descrever o real. Essa legitimidade não pode achar fundamento seguro senão numa outra ciência, a metafísica. A tradução francesa dos Princípios de Filosofia, de 1647, é acompanhada por uma longa carta ao autor da tradução, o abade Claude Picot, na qual Descartes retoma a velha metáfora da árvore das ciências; na árvore imaginada por Descartes, as raízes são a metafísica, o tronco a física e os ramos a medicina, a mecânica e a moral. A metafísica desempenha pois um papel fundador para a física, que pode ser referido a duas doutrinas essenciais: por um lado a existência e a veracidade de Deus, por outro lado a distinção do corpo e do espírito. A primeira doutrina é necessária para garantir a verdade das ideias claras e distintas e, por conseguinte, para assegurar que a ciência matemática e a física descrevem verdadeiramente a realidade do mundo; a segunda doutrina permite justificar a teoria do conhecimento, graças à qual a essência das coisas é conhecida independentemente da experiência, através das ideias inatas do espírito. Descartes apresenta a sua metafísica em quatro obras distintas e ao longo de um período de quase quinze anos: uma primeira vez num tratado, redigido em latim em 1629, que não chegou até nós; seguidamente na quarta parte do Discurso do Método, e depois nas Meditações Metafísicas surgidas em 1641; finalmente, na primeira parte dos Princípios de Filosofia. Mas é à sua correspondência que confia uma das suas concepções metafísicas mais originais: aquela a que se chama a teoria da livre criação das verdades eternas, segundo a qual as verdades necessárias que concernem a matemática e a essência das coisas dependem da livre decisão divina, e onde se afirma que Deus, se o houvesse querido, teria podido instaurar uma lógica na qual tais verdades o não fossem. A tese é formulada pela primeira vez na carta de 15 de Abril de 1630 dirigida a Marino Mersenne, um frade da Ordem dos Mínimos, que mantinha relações com quase todos os sábios do seu tempo, e com o qual Descartes se correspondeu com regularidade após se instalar na Holanda. Descartes continuaria a desenvolver essa tese em missivas posteriormente

dirigidas a Mersenne e a outros interlocutores. Todavia, nas obras publicadas, tal doutrina só aparece ocasionalmente, em resposta às objecções dirigidas às Meditações, e Descartes não a utilizará explicitamente na exposição das doutrinas que ocupam os seus tratados de metafísica. Da dúvida ao eu A investigação metafísica cartesiana começa pela vontade de duvidar sistematicamente de todas as certezas aceites até então; por outro lado, essa investigação convida a não considerar como verdadeiro senão aquilo que resistir ao exercício exaustivo da dúvida. A dúvida cartesiana, ao invés da dúvida céptica, tem por finalidade a conquista da verdade ou da certeza. O que Descartes torna a pôr em causa é toda a bagagem teórica do homem de cultura média, impregnado das noções clássicas e da filosofia aristotélica. Tal como ele declara no resumo que antecede as Meditações, a dúvida visa principalmente as coisas materiais. São estas que devem ser objecto de um saber perfeito. Os conhecimentos vulgares que as concernem relevam todos eles de um princípio empirista, segundo o qual todos os nossos conhecimentos provêm dos sentidos. A validade desta opinião torna a ser posta em causa por dois tipos de argumentos: a infidelidade dos sentidos, que leva a duvidar da correspondência entre imagens mentais e mundo exterior, e a impossibilidade de distinguir com certeza a vigília do sono, que torna até incerta a existência do mundo exterior e do seu próprio corpo. Contudo, as operações matemáticas resistem à dúvida, dado que a verdade matemática não depende dessa existência. Coloca-se então a questão de saber se tal privilégio não permite nenhuma dúvida razoável da matemática, tal como as Regras pareciam mostrar, e justifica que se lhe atribua um papel fundador para a ciência, sem qualquer inquérito ulterior. A esse respeito, é certo que a matemática apresenta uma característica promissora: é impossível pensar o contrário do resultado de uma operação matemática simples. É no entanto possível encontrar um argumento susceptível de ameaçar a própria matemática: com efeito, se Deus é todo-poderoso, tal como estima a tradição cristã, ele pode ter dotado o homem de uma natureza tal que esta se engane mesmo nas verdades mais simples e mais evidentes. Assim, as operações matemáticas pareceriam necessariamente verdadeiras para um espírito humano, ao passo que seriam falsas para Deus. E se a hipótese de que Deus dotou as suas criaturas de uma natureza incapaz de atingir a verdade pode parecer indigna da bondade de Deus, poderemos substituí-la pela figura de um génio maligno muito poderoso que, armando-lhe ardis, conduza o homem para

o erro. A filosofia escolástica, quando se tratava de analisar o poder divino, colocara frequentemente a questão de saber se Deus poderia fazer com que o espírito humano aceitasse como verdadeira uma proposição falsa. É aliás nesse contexto que se deve ler a dúvida cartesiana: o fito que Descartes visa atingir é o de garantir que o conhecimento humano pode aspirar à verdade, apesar da omnipotência divina. Neste sentido ele opõe-se a todos os teólogos que julgavam a ciência humana provisória ou hipotética, arguindo com a distância entre a infinidade de Deus e o carácter finito e portanto imperfeito dos homens; apenas Deus conhece a realidade das coisas e o homem só lhes pode captar a aparência. Pelo contrário, Descartes – tal como Galileu – conta com a ciência para descrever a verdadeira natureza do mundo. É por isso que é necessário empenharmo-nos no estudo das questões metafísicas e examinarmos se a omnipotência divina e a verdade da ciência podem coexistir. O cogito e a natureza do eu Neste vazio de certezas que a dúvida cria, Descartes assenta a primeira pedra da reconstrução da ciência: a dúvida não pode referir-se à condição que permite duvidar, a saber a existência do eu que duvida. Ego cogito, ergo sum («Penso, logo existo») é a primeira certeza que Descartes adquire; ela servirá de fundamento à construção teórica que virá. O carácter de princípio primeiro que Descartes entende reservar ao cogito é igualmente estabelecido pela técnica argumentativa que permite estabelecê-lo como certo: tal como no caso dos primeiros princípios aristotélicos, é impossível que ele seja demonstrado, mas a sua verdade é estabelecida pelo facto de toda a tentativa de o refutar levar de facto a reafirmá-lo: se eu penso que não existo, existo; se sou enganado por um ser muito poderoso e ardiloso, existo. Apoiando-se na certeza adquirida da existência do eu, Descartes empenha-se seguidamente na investigação da sua natureza. A certeza de existir não depende senão do pensamento. Se eu parasse de pensar, não poderia mais estar certo de existir; pelo contrário, posso negar ter um corpo e continuar certo de que existo. Só o pensamento (com as suas diferentes modalidades: duvidar, conceber, afirmar, querer, imaginar, sentir) é inseparável do eu. A garantia de que o pensamento pertence à minha natureza é tão indubitável quanto a existência do eu: a própria hipótese de que o meu criador empregue todo o seu poder para abusar de mim confirma-a em lugar de a destruir. Por conseguinte, o pensamento constitui o atributo essencial do eu, o único que permite conhecê-

lo como uma coisa existente. O eu, conclui Descartes, é pois uma substância cuja natureza é constituída pelo pensamento. Uma vez mais, encontramo-nos perante uma tomada de posição oposta à doutrina de Aristóteles. Segundo este filósofo, tudo o que sabemos do espírito resulta da reflexão sobre os actos pelos quais o espírito conhece os corpos. Descartes sustenta, pelo contrário, que o conhecimento que o espírito tem de si mesmo é independente do do mundo exterior. Sustenta até que os corpos não são conhecidos senão por ideias que não provêm dos corpos. Descartes demonstra-o por meio de uma experiência teórica que tem por objecto o conhecimento de um pedaço de cera: as características percebidas pelos sentidos não permitem conhecer a natureza verdadeira desse corpo, dado que elas podem mudar, tal como sucede quando a cera se derrete sob o efeito do calor e nós não obstante julgamos achar-nos na presença do mesmo pedaço de cera, anteriormente apreendida como fria e dura. Como tal juízo não é legitimado pela experiência dos nossos sentidos, ele não pode resultar senão da intervenção do espírito que conhece o corpo através de uma ideia de origem não empírica e o descreve pelas suas propriedades geométricas e cinéticas, que se conservam apesar da mudança. Deste modo as ideias intelectuais tornam até possíveis os juízos fundados na experiência. Trata-se de uma verdadeira inversão do empirismo: até os juízos fundados na experiência seriam impossíveis se não se referissem a ideias de origem não empírica. A existência de Deus A afirmação indiscutível do cogito não basta para estabelecer os fundamentos da ciência: todas as outras ideias claras e distintas, e em primeiro lugar as da matemática, permanecem sob a ameaça de um Deus enganador. Porém, dado que a existência do sujeito que pensa é a única verdade que escapa à hipótese do Deus enganador, é no próprio interior do pensamento e a partir dele que se deverá procurar a verdade e tentar retomar a posse do mundo. Deste modo a demonstração da existência de Deus e do facto de que ele não poderia ser enganador, premissas indispensáveis à fiabilidade do saber humano, deverá partir da existência do eu pensante e dos conteúdos do pensamento, ou seja das ideias. As três provas da existência de Deus estabelecidas por Descartes supõem efectivamente como premissa a ideia de Deus. Na primeira prova, Descartes distingue, na ideia, o acto do pensamento de que o espírito está consciente e aquilo que a ideia representa, a que ele chama a «realidade objectiva» da ideia. Emprega aqui uma expressão escolástica, por

oposição à realidade que as coisas possuem em si mesmas, independentemente do facto de serem objecto do pensamento, realidade que ele qualifica de «formal». Seguidamente, Descartes supõe que a realidade objectiva deve ter uma causa que possua uma realidade formal. Com efeito, a ideia, definida como simples modificação do pensamento, jamais poderá justificar a diversidade dos conteúdos das suas representações e, portanto, é preciso procurar a causa da realidade objectiva da própria ideia na realidade formal dos objectos representados. Até aqui, só estamos certos da realidade formal de uma única coisa, a saber o eu, ou seja a substância pensante. Enquanto substância finita, o eu poderia ser a causa da realidade objectiva de todas as ideias, à excepção da ideia de Deus, ideia de uma substância infinita e infinitamente perfeita. Com efeito, a realidade objectiva da ideia de Deus excede a realidade formal do eu; daí resulta que o princípio de causalidade, segundo o qual o efeito não pode ter mais realidade do que a causa, seria transgredido se o eu fosse a causa da ideia de Deus. Portanto, só Deus pode ter causado a ideia de Deus e, a partir do instante em que o espírito possui verdadeiramente a ideia de Deus, Deus existe. Esta prova não é válida a menos que suponhamos que há uma ideia de Deus positiva e não decorrente de nada. Se o pensamento de Tomás de Aquino é justo – não pode haver do infinito senão uma ideia negativa que decorre da negação do finito –, então a ideia de Deus pode decorrer da ideia de um qualquer ser finito e ser produzida pelo eu. Descartes não hesita em inverter os pressupostos da teoria tomista: não é a ideia do infinito que deriva da do finito, mas, pelo contrário, é a ideia do finito que deriva da do infinito. Deve-se pois considerar a ideia do infinito como uma ideia original e positiva, mais clara e mais distinta até do que as outras ideias, embora o infinito não possa ser compreendido (ou seja, conhecido em todas as suas implicações) mas apenas concebido (ou seja, definido, a justo título, como sendo o que não tem limite). Podemos aliás dizer o mesmo acerca de tudo o que é infinito, e a matemática ensina que o facto de o infinito permanecer incompreensível não impede o conhecimento dele. Descartes havia percebido bem que, na sua filosofia, a metafísica precede a física; sabemos agora porquê: porque os seus princípios fundadores, e em primeiro lugar a ideia de Deus, não provêm de outra coisa. Consciente do carácter inédito da primeira prova, Descartes elabora logo de seguida uma segunda, onde procura a causa do único efeito finito cuja existência conhecemos: o eu dotado da ideia de Deus. Essa causa não pode ser outra senão um ser que traz em si mesmo o princípio da sua existência e que,

por esse motivo, pode atribuir-se todas as qualidades que a ideia de Deus contém. Descartes sublinha que também esta prova tem por centro a ideia de Deus de que o espírito finito está dotado. A terceira prova decorre da definição de Deus como ser infinitamente perfeito; ela supõe como premissa menor que a existência é uma perfeição e desta deduz necessariamente que Deus existe. Se alguém negasse a existência de Deus, seria levado a contradizer-se pois negaria a própria definição de Deus. Trata-se de uma prova a priori, ao invés das duas provas precedentes, que partiam ambas dos efeitos. Kant qualificará este argumento como «ontológico», uma vez que Descartes supõe como premissa maior a definição da essência de Deus. As provas da existência de Deus têm como resultado tornar impossível a hipótese de um Deus que me tivesse atribuído uma natureza irresistivelmente disposta ao erro. Deus existe e é veraz. A ciência humana já não está ameaçada de falsidade. Descartes foi acusado de haver caído num círculo vicioso ao demonstrar a existência de Deus e ao assegurar graças a essa existência a verdade das ideias claras e distintas. A acusação pode ser formulada assim: ele recorreu a Deus para garantir as ideias claras e distintas, mas a demonstração da existência de Deus é efectuada por meio de ideias claras e distintas, e portanto toda a demonstração é circular pois o que funda deveria por seu turno ver-se fundado. Descartes respondeu a esta crítica fazendo uma distinção entre os axiomas, dos quais é impossível duvidar-se, e as demonstrações que deles decorrem; tais demonstrações não podem ser postas em causa senão quando as suas etapas deixam de estar presentes ao espírito. No entanto, os resultados das demonstrações podem ser contestados se houver razões válidas para duvidar deles. Supondo-se que todas essas razões tenham sido eliminadas graças a métodos apropriados e conduzidos com ideias claras e distintas, como quando se demonstrou que Deus existe e que ele não é enganador, então já não é possível justificar razoavelmente a dúvida sobre o que nos parece evidente, e ainda menos sobre a própria prova da existência de Deus. Toda a tentativa de fornecer uma razão válida para duvidar se confrontará com a certeza doravante adquirida de que Deus existe e não é enganador. A hipótese de que a ciência seja uma impostura absoluta não é inquietante senão na medida em que a pudermos sustentar com argumentos e suposições realmente concebíveis, como era o caso quando não se chegara ainda a uma ideia clara e distinta de Deus e este podia ser pensado como um Deus enganador. Uma dúvida sem motivo e

contrária a todas as convicções adquiridas por meio de procedimentos racionalmente controláveis seria simplesmente insensata. As ideias e o mundo A matemática é o exemplo por excelência de conhecimentos claros e distintos e é exclusivamente constituída por ideias inatas. Descartes funda a sua oposição ao empirismo aristotélico num nítido retorno ao platonismo e numa retoma da sua teoria das ideias. Para distinguir as ideias inatas, ele sublinha que tais ideias, ao contrário das que provêm dos sentidos (ideias adventícias), se apresentam ao espírito de forma voluntária e precisa que o conteúdo delas, ao invés das ideias que resultam da imaginação entregue ao seu livre curso (ideias factícias), se impõe ao espírito de uma maneira tal que ele não pode ser modificado e é necessário. Descartes insiste em particular na resistência do conteúdo das ideias inatas a toda a tentativa de manipulação que o espírito humano quisesse operar. As verdades da matemática não são invenções, mas descobertas do homem; aliás, o facto de neste domínio os progressos se fazerem passo a passo atesta-o igualmente. A própria passividade do espírito em relação ao conteúdo das ideias inatas indica claramente que o que lhes corresponde se encontra fora do espírito e que se trata da essência das coisas, imutável e eterna. Eis porque Descartes retoma a definição clássica da verdade compreendida como adequação do pensamento e da coisa. Com efeito, os raciocínios matemáticos são verdadeiros porque descrevem de maneira adequada as realidades a que se referem, a saber os elementos constitutivos essenciais, imutáveis e eternos da matemática e da geometria. É assim claro que a veracidade divina, associada à teoria das ideias inatas, garante que a ciência descreve bem a estrutura real do mundo. Embora as ideias adventícias não tenham nenhuma legitimidade para nos informarem sobre a própria natureza do mundo exterior, é a elas que Descartes atribui a importante função de demonstrar a existência deste. Com efeito, elas incitam irresistivelmente a pensar que esse mundo exterior as suscitou. Ora, se os corpos não existissem, Deus seria enganador, dado que não dotou o homem de nenhum instrumento para corrigir essa forte propensão. Deve no entanto observar-se que Descartes não tentará demonstrar a existência do mundo senão uma vez conhecida a natureza deste graças às ideias inatas. Pode dizer-se que o projecto de se opor ao empirismo fica assim concluído: é possível conhecer a estrutura do mundo mesmo sem saber se esse mundo existe verdadeiramente.

A alma e o corpo O conhecimento da natureza da alma, adquirido independentemente do conhecimento dos corpos (e mesmo do corpo de cada um), é a premissa do dualismo cartesiano. Uma vez que são concebidos independentemente um do outro, a alma e o corpo constituem duas substâncias distintas. Isso não exclui que Deus tenha decidido uni-las de uma maneira tal que jamais estejam separadas uma da outra; mas como Deus pode sempre cumprir o que se concebe clara e distintamente, a alma e o corpo podem sempre ser dissociados pela omnipotência divina. O facto de a alma e o corpo serem duas substâncias diferentes dá à doutrina das ideias inatas o seu fundamento antropológico: uma vez que a alma é uma substância independente do corpo, ela pode estar dotada de ideias que não passam pelo corpo. Ainda que as duas entidades estejam separadas, une-as uma ligação estreita, e na verdade uma combinação única. Ao sentir o prazer e a dor, a alma percebe o corpo ao qual está ligada como um corpo diferente de todos os outros, como o seu corpo. Descartes inaugura assim uma via nova, entre o modelo aristotélico e o modelo platónico. Para Aristóteles, a alma e o corpo formam uma só substância, ao passo que, para Platão, são duas substâncias distintas, com o corpo a abrigar a alma e a mantê-la prisioneira. Descartes procura elaborar uma teoria que concilia os dois modelos. Platão tem razão quando estima que a alma e o corpo são duas substâncias distintas; porém só uma união como a que Aristóteles imagina, onde a alma e o corpo formam um todo, é susceptível de justificar o facto de a alma ser o lugar das ideias claras e distintas mas também o das ideias confusas e obscuras, no caso de a mensagem mecânica transmitida pelo corpo exterior ser deformada pela alma e achar a sua tradução em características que não tenham relação alguma com a realidade exterior. Com efeito, se a ligação não fosse dessa natureza, não teríamos mais do que ideias claras e distintas e não cometeríamos erro algum. A união da alma e do corpo, qualificada por Descartes como substancial, parece constituir um grave inconveniente para o homem. Isso parece evidente de um ponto de vista cognitivo, mas é o contrário que sucede de um ponto de vista prático. As sensações dão informações deformadas acerca do mundo exterior, mas susceptíveis de serem corrigidas, ao passo que, normalmente, elas dão informações justas acerca do que é útil ou nocivo para o conjunto alma-corpo. A finalidade da estreita união entre o corpo e a alma não serve senão para o domínio prático e o homem engana-se quando utiliza para os fins do conhecimento informações que lhe foram dadas para melhor guiar a sua vida (e

que não têm em si mesmas nenhuma finalidade especulativa). A distinção real e a união substancial do corpo e da alma são efectivamente duas teses opostas, e não obstante não se pode afastar nem uma nem a outra, pois a primeira é garantida pela razão e a segunda é um dado indubitável da experiência interior, e como tal garantida por Deus. A moral e as paixões A intenção cartesiana de elaborar uma moral científica havia sido anunciada desde o Discurso. Porém, nesse momento, a tarefa parecera difícil e Descartes havia-se limitado a indicar uma moral «por provisão» que pudesse servir de guia na vida enquanto se aguardava a elaboração da moral definitiva. A moral provisória comporta três máximas e uma regra de vida: a primeira máxima prescreve a obediência às leis e aos costumes do seu país, a observação da religião e quanto ao resto o acatamento das opiniões comuns mais moderadas; a segunda prescreve que se tenham opiniões pessoais enérgicas e firmes, desde que se decida assumi-las; a terceira propõe que adaptemos os nossos desejos ao que está realmente no nosso poder, o que somente é o caso para os nossos pensamentos, tudo o resto escapando largamente ao nosso controlo. Esta última máxima mostra claramente a influência do estoicismo em Descartes. A estas três máximas, Descartes acrescentava a decisão de confirmar a sua opção de vida, ou seja de cultivar a sua razão seguindo as regras do seu método. Descartes escreveu as suas cartas sobre a moral entre 1643 e 1649; os principais destinatários delas foram a princesa Palatina Elisabete, Pedro Chanut, embaixador junto da casa real da Suécia, e Cristina da Suécia. O fito do homem é a beatitude, que consiste numa satisfação interior que deve ser distinguida da felicidade, pois pessoas bem servidas pelo acaso ou pela fortuna também aí podem encontrar a felicidade. Pelo contrário, alcança-se a beatitude quando se limita o desejo às coisas que dependem de nós, como a virtude ou a sabedoria. Na carta a Elisabete de 21 de Julho de 1645, Descartes explica que será possível atingir essa satisfação interior observando os três preceitos já indicados no Discurso, aos quais ele acrescenta algumas modificações importantes. Contrariamente ao que fora enunciado no Discurso, o conhecimento do bem conduzido pela razão é doravante evocado. Com efeito, o exercício da virtude é tornado possível pelo conhecimento de certas ideias: na ocorrência, a da existência de um Deus de quem tudo depende, transformação cristã do destino estóico, a da distinção do corpo e da alma que impede o temor da morte, a da imensidão do universo que relativiza a importância do homem

no seio deste e, por fim, o sentimento de fazer parte da comunidade em que se vive, bem como do mundo inteiro. Os últimos trabalhos de Descartes são consagrados ao estudo das paixões. A obra As Paixões da Alma foi publicada em 1649; Descartes quer estudar cientificamente as paixões, sem objectivos retóricos nem moralistas, projecto que seguidamente será retomado por Espinosa. As paixões são emoções que o movimento dos espíritos animais suscita na alma; todas as paixões consideradas em si mesmas são boas e úteis; pode mesmo dizer-se que uma vida sem paixões seria uma vida miserável e desprovida de prazeres. De facto, nada está mais distante da atitude de Descartes do que o projecto estóico de eliminar as paixões. No entanto, elas devem ser dominadas e os seus excessos controlados. Mas, opondo-se uma vez mais à doutrina estóica, Descartes sustenta que o controlo dos excessos de emoção não pode resultar de um afrontamento directo entre a razão e as paixões, pois o movimento fisiológico do qual elas decorrem não pode ser combatido senão por um movimento idêntico e contrário. E portanto, se a razão quer dominar as paixões por meio de argumentos sólidos e certos, ela deverá suscitar paixões contrárias àquelas que não queremos sofrer, por uma reflexão sobre os pensamentos que estão habitualmente ligados à paixão que se deseja sentir. A razão pode além disso explorar o carácter arbitrário da relação entre a alma e o corpo. Em geral, os pensamentos do espírito estão ligados aos movimentos corporais devido a uma escolha livremente operada por Deus, da mesma maneira que as palavras estão ligadas arbitrariamente aos seus significados. É ao explorar o carácter arbitrário desta relação que o espírito, guiado pelo hábito e a experiência, poderá procurar religar os movimentos corporais a pensamentos diferentes daqueles aos quais a natureza os havia originalmente ligado e conseguir, por exemplo, que reajamos com dureza perante um inimigo em lugar de termos medo. Este investimento das paixões, semelhante àquele que permite criar uma segunda natureza num cão de caça, faz do homem o artesão da sua própria natureza. Descartes deixa surgir aqui o profundo laço que o liga à cultura do Renascimento e o seu apego à ideia de que o melhor do homem está ligado ao exercício da sua liberdade, que faz dele um ser repleto de qualidades e capaz de assumir a natureza com que decida dotar-se a si mesmo. De resto, para Descartes, o homem virtuoso é guiado por uma paixão que é igualmente uma virtude, a generosidade: ela consiste em julgar por si mesmo o que tem verdadeiro valor, o que, para ele, é o único uso correcto do livre-arbítrio, sendo o resto obra do destino.

EMANUELA SCRIBANO 267 Na tradição literária portuguesa também muitas vezes referido como Renato Cartésio. (N. do T.)

As Reformas

Os reformados e o pensamento histórico e filosófico Permitirá o estudo da história das ideias da época moderna afirmar que o espírito da Reforma trouxe um contributo maior à evolução das teorias filosóficas e à reflexão histórica? Não é possível imaginar que se possa dar uma resposta exaustiva a esta pergunta porque, quando se trata de definir e de analisar o contributo da Reforma tanto para a história das ideias como para a da filosofia, parece evidente que os aspectos culturais e sociais implicados nessas mudanças são inumeráveis, tal como são inumeráveis os seus actores. Por isso, para formar um quadro exacto da complexidade do contributo dos reformados para a história das ideias, há que distinguir as características e os principais períodos dessa evolução: a época dos reformadores, a época moderna (os séculos XVII e XVIII), e a historiografia dos séculos XIX e XX. Tais períodos não são definidos somente pela cronologia mas antes pela sua concepção e pela sua percepção da Reforma e pelo papel filosófico, e mais geralmente, pelo papel cultural e político que neles desempenharam os reformados. A época dos reformadores. Os pais da Reforma estão distantes das questões filosóficas; o seu propósito não é o de levar a um livre juízo crítico, quer seja a respeito da exegese bíblica, da política ou até da concepção do homem. A seu ver, a razão e a vontade dos homens não podem deixar de estar corrompidas. Lutero e Calvino, por exemplo, criticam, ou negam mesmo, o livre-arbítrio do homem e rejeitam a ideia segundo a qual todo o homem seria dotado de liberdades políticas. Embora as orientações filosóficas dos primeiros reformadores se coloquem sob o signo de uma retoma dos ideais e dos métodos próprios do aristotelismo, não se poderia negar que, nesta Europa do século XVI, a chegada da Reforma inaugura um verdadeiro laboratório de troca de ideias e de considerações teológicas. O advento da Reforma trespassa e abala não somente a teologia, a dogmática e a hermenêutica bíblicas mas também, involuntariamente, o

pensamento filosófico e a concepção de uma história da humanidade e das suas ideias, das suas escolhas, das suas acções políticas e dos seus projectos sociais; e era tudo isso que devia ser reconsiderado ao longo de todo o século XVI e da época moderna. A época moderna. O papel dos pensadores e dos clérigos protestantes dos séculos XVII e XVIII consiste em completar incessantemente o vigoroso requisitório pronunciado contra os princípios de autoridade, contra a hermenêutica dogmática e contra a ligação que une a Igreja católica e o Estado, embora ao tempo esta parecesse indissolúvel. Porém, os protestantes não são os únicos a considerar que a primazia de que beneficia a tradição, tanto na religião como na sociedade, pode ser criticada e abolida: autores e filósofos católicos, como Richard Simon e os jansenistas, filósofos como Espinosa, os materialistas e os ateus do século XVIII, como Diderot e d’Holbach, participam nesse combate, ainda que os seus campos de acção sejam diferentes, ou mesmo bastante distantes uns dos outros. A historiografia dos séculos XIX e XX. O esquema da cronologia e da problemática relativa ao papel dos reformados em matéria de cultura filosófica e histórica não poderia ser traçado sem evocar, embora sucintamente, o modo pelo qual os historiadores protestantes de orientação liberal dos séculos XIX e XX empreenderam revisitar o que caracteriza a Reforma e sobretudo os próprios reformados na época do Antigo Regime, quer fosse na cultura francófona ou nas culturas italiana e anglo-saxónica. Essas novas leituras da ideologia e da identidade da Reforma no seu início têm por objectivo discernir e sublinhar os aspectos característicos próprios desse liberalismo. Tais aspectos sempre foram avançados pelos historiógrafos reformadores para indicar o que define de maneira específica e inovadora o protestantismo moderno. Enfim, cometer-se-ia um erro fatal ao pretender tentar uma análise que se ativesse à dimensão de uma interpretação unitária e monolítica de um mundo que nada tinha de homogéneo mas pelo contrário formigava de homens e de iniciativas culturais tão diversas quanto possível. Ao retomar aqui a imagem do laboratório, é possível isolar certos elementos fundamentais da contribuição da Reforma para o desenvolvimento do pensamento filosófico, da época que se segue ao Renascimento até à das Luzes, sem esquecer que se impõem certas escolhas (escolha dos temas, dos autores e

dos pontos de vista). Que implicação teve a Reforma na história da filosofia? Três pontos essenciais estão na origem de uma verdadeira mudança de perspectiva: 1) a irrupção da pluralidade face ao estatuto unitário e absoluto do conceito de verdade religiosa e, consecutivamente, a confirmação da crise do estatuto único da verdade; 2) a manifestação de uma hermenêutica bíblica baseada na história e na crítica; 3) o esboço de uma antropologia nova e de uma sociedade civil fundada nos conceitos de tolerância e de direito. Uma vasta bibliografia propõe a análise da relação entre o Renascimento e a Reforma e do sentido semântico veiculado por esses dois termos (Renascimento, renascer, renovar, regenerar; Reforma, reformar, inovar). Ainda que se haja sublinhado utilmente que um ideal de restituição, de emenda e de refundação seja parte integrante do conceito de Reforma, e ainda que Calvino tenha plenamente consciência de que reformar o credo religioso significa antes de tudo «restituir» à religião cristã as suas características originais dos primeiros anos da Igreja, os pensadores do século XVI e dos séculos seguintes estão cientes de se encontrarem num novo terreno. Com efeito, os problemas teológicos e históricos sobrevindos com a ruptura da unidade da cristandade são problemas inéditos. Nos seus esforços para atingir uma síntese nova, o homem do primeiro período da época moderna acha-se levado a contemplar uma forma de utopia original: a de um mundo plural. Além disso, os novos instrumentos de que o filósofo se pode munir para o seu trabalho de laboratório multiplicam-se graças à Reforma. – A filologia transforma o Livro sagrado em livro histórico. – A história e a nova ciência transformam a verdade em verdade histórica e plural. – A relativização da verdade segue a par da afirmação do novo papel da reflexão e da ética próprias de cada indivíduo. São os pensadores pertencentes aos meios mais liberais, e que são portadores de concepções quase heréticas (quer elas sejam de origem reformada, católica ou hebraica), que vão levar as divisões sobrevindas na unidade católica saída da Idade Média até às suas consequências extremas. É a esses pensadores que cabe o mérito da afirmação inequívoca da libertas philosophandi.

A filologia. Os humanistas e os filólogos são os primeiros actores deste novo palco. A dissolução do ideal universalista da Igreja da Idade Média provocada pela Reforma abre um espaço onde a elaboração de novos conceitos em matéria de história da filosofia, de política e naturalmente de teologia, antecede a sua confrontação. Os filólogos, os heréticos dos heréticos268 (como escreveu sagazmente L. Canfora), estabelecem o princípio da liberdade de análise, sem qualquer limite ou constrangimento além dos das regras da ars critica, princípio primeiro da interpretação do Livro sagrado. Neste sentido, é efectivamente significativo que a «História eclesiástica das Igrejas reformadas no Reino de França, redigida no círculo de Bèze em finais do século XVI, faça começar a reforma da cristandade pelo retorno à fonte hebraica, com os trabalhos de Reuchlin, e à fonte grega, com os de Erasmo: e não pela predicação de Lutero contra as Indulgências269». Segundo Erasmo, precisa ainda François Laplanche, cada um dos textos sagrados deve ser interpretado com o auxílio dos mesmos meios e métodos que se utilizam para qualquer outro texto, ou seja, em primeiro lugar, com o auxílio dos instrumentos propostos pela gramática e a retórica. Porém, no decurso do século XVII, um tal uso da filologia não se limita a elaborar uma hermenêutica bíblica, sofisticada do ponto de vista da gramática e da paráfrase do texto, mas visa também recolocar os factos históricos no seu contexto e analisá-los, ou seja empreender um exame crítico. A Bíblia não é mais o livro que encerra a chave de todos os conhecimentos, antropológicos, linguísticos, físicos, científicos e políticos; as ciências devem confirmar esses conhecimentos ou concordar com eles. Quando afirma que os enunciados bíblicos devem ser distinguidos dos enunciados científicos, a nova hermenêutica coloca em primeiro plano a questão da diferenciação a estabelecer entre verdade do significado do texto sagrado e verdades reais. A única verdade que Deus ensina no texto sagrado exprime-se segundo as palavras dos homens e concerne a pessoa e a salvação da sua alma. Da verdade única à verdade plural. Deve recordar-se aqui a importância que assume, a partir do final do século XVI, a obra eminente de Filipe DuplessisMornay intitulada Tratado da verdade da religião cristã contra os ateus epicuristas, pagãos, judeus, maometanos e outros infiéis (Anvers, 1581); do mesmo modo, no decurso dos séculos XVII e XVIII, a apologética religiosa, tanto católica como protestante, instaura uma vasta produção de escritos, de obras e

de panfletos para defender os seus argumentos a favor da religião cristã, face aos indiferentes, aos heréticos e aos ateus. Uma verdade revelada por Deus é objectiva, inteligível, exclusiva, universal e absoluta pela sua própria natureza. Os textos cujo título se propõe defender a verdade da religião cristã, e cujo conteúdo é inteiramente dedicado à confirmação dessas verdades de maneira apologética, são muito numerosos. Eles testemunham inegavelmente o facto de que o conceito de verdade objectiva e exclusiva torna a ser posto em causa e a sua universalidade debatida. Os partidários de Descartes, que se esforçam por dissociar a filosofia da teologia, são reformados notáveis, e, entre estes, os teólogos e os filósofos holandeses desempenham um papel de primeiro plano. Interrogam-se sobre a verdade e a realidade das coisas e o método cartesiano torna-se o modelo ao qual a sua reflexão se conforma. «A razão», escreve Lodewijk Meyer, «não pode errar no que percebe claramente e distintamente, mas deve seguir a verdade270.» No decurso do século XVIII, a reflexão apologética de João Afonso Turrettini, tal como ele a expõe no seu Tratado da Verdade da Religião Cristã (Genebra, 1745), é particularmente representativa deste movimento e testemunha a abertura do protestantismo à filologia e a uma leitura racional da doutrina religiosa271. Um novo lugar atribuído à reflexão individual. Os pensadores huguenotes trazem um contributo particularmente notável ao domínio político-religioso. É este que traça as grandes linhas dos conceitos chamados a ocupar uma posição central na cultura das Luzes e no mundo contemporâneo. Daí decorre uma antropologia nova; ela substitui progressivamente a visão negativa do homem que caracteriza o pensamento dos pais da Reforma. Doravante, já não se pensa que a razão do homem esteja irremediavelmente corrompida e seja incapaz de atingir a salvação, o bem e a verdade. Com efeito, nos séculos XVI e XVII, um importante número de filósofos, de pensadores de ciências políticas, de teólogos e de letrados estabelece comparações culturais que levam a afirmar que a natureza do homem em sociedade apresenta valores positivos. As suas análises referem-se à tolerância e à coabitação política, no plano nacional e internacional. Procuram estudar e comparar as experiências e as aquisições de outras nações, a fim de descobrirem qual a via que conduz à tolerância, teórica e prática, supranacional e europeia. O debate sobre a religião e sobre a possibilidade de concórdia e de tolerância face à pluralidade das crenças religiosas, num mesmo território ou no seio de

uma nação, a questão do papel da coroa e do despotismo em matéria políticoreligiosa, a passagem de uma concepção da soberania política definida como concessão de privilégios a um outro que a define como aquisição de direitos, constituem outros tantos temas sobre os quais os autores protestantes da Europa e, em particular, os pensadores huguenotes franceses exercem a sua reflexão, ao longo de todo o primeiro período da época moderna. Neste contexto, a execução de Servet representa uma «viragem da história europeia272», não só porque ela suscita um grande debate (que começa precisamente nesse momento) sobre o banimento da perseguição, sobre a defesa da liberdade religiosa e sobre a afirmação da tolerância, mas também porque ela marca uma etapa na história das diferentes correntes heréticas. Estes temas complexos não só se difundem na sociedade francesa dos séculos XVI e XVII, como atingem igualmente a Inglaterra e sobretudo a Europa continental. Deve sublinhar-se aqui o papel da Holanda na avançada tornada possível pelo Refúgio273 e pela influência dos huguenotes; estes últimos conseguem tornar-se actores importantes da circulação das ideias, graças às suas obras, panfletos, correspondências pessoais e, sobretudo, graças a diversas revistas eruditas que florescem durante a segunda metade do século XVII e no início do século XVIII. Um tal processo faz parte integrante da ideia moderna de Estado e ultrapassa as fronteiras nacionais da reflexão política e religiosa. Os intelectuais que haviam criado a República das Letras, no decurso do século XVII e no século seguinte, participam directamente na elaboração dos conceitos de liberdade e de tolerância. Estes são elementos essenciais para a constituição e a consolidação da identidade intelectual europeia da época moderna. Cada país traz a esta contributos específicos, culturais, políticos e religiosos, num espírito de boa inteligência, onde a racionalidade é privilegiada e onde as ideias se reforçam mutuamente. Os reformados e a reflexão política moderna No século XVI, cerca de 1530, no momento em que a Reforma calvinista começa a afirmar a sua presença no território francês, este movimento precisa de se enraizar num reino cujos habitantes estão persuadidos de serem um povo cristão que frui de uma protecção divina particular e cujo soberano é qualificado como rei «Mui Cristão». Com efeito o rei de França tem o direito

de se munir desse título após o juramento que presta perante a Igreja, a unção e a coroação, rituais de sacralização que lhe garantem não só uma devoção absoluta mas também poderes taumatúrgicos. Após os éditos de pacificação, e no seguimento da política de reconciliação promovida por Catarina de Médicis que culminou no momento do édito de Nantes, várias décadas de coexistência permitem que as duas confissões partilhem não só o terreno propriamente teológico mas também as instituições políticas e a organização do Estado. Porém, no início do século seguinte começa um período de progressivo endurecimento, motivado tanto por uma parte do clero galicano como pelos representantes da coroa. Ele sucede pois a um regime caracterizado pela tolerância e a concórdia civil, obtidas após quarenta anos de lutas políticas e religiosas, acompanhadas por uma abundante literatura panfletária. Estas novas condições contribuem para fazer ressurgir as questões de legislação e de redacção inerentes ao édito de Nantes, reputado porém como édito de tolerância, e para fazer sobressair as ambiguidades e os limites, tanto políticos como sociais274. Embora tal édito constitua um momento determinante da formulação da política de tolerância que data do início da época moderna, nem por isso deixa de ser verdade que, principalmente devido aos católicos, a tónica é doravante posta nas grandes orientações políticas, determinadas por opções históricas ou pessoais, e na ideia de privilégio, ainda que concedido de forma inalienável. Ao mesmo tempo, as disposições inspiradas por um direito natural e social, efectivamente adquirido por todos os sujeitos, perdem terreno. A subida de Luís XIV ao trono assinala uma nova evolução da condição dos protestantes franceses, uma limitação da sua representação política e das suas liberdades religiosas. Na época de Henrique IV e no decurso do século XVII, a busca de legitimação da religião protestante em solo francês explica-se principalmente pelo apoio político e militar que os huguenotes forneceram ao rei, pelo seu reconhecimento da soberania absoluta deste e pela sua fidelidade à coroa. O seu apoio militar, a sua aprovação do regime jurídico e a sua fidelidade à monarquia são de novo confirmados na época da Fronda e durante os anos de perseguições perpetradas pelo Rei-Sol. Esse apoio perdura até que a Revogação, a coerção religiosa, a repressão social e os conflitos políticos europeus, nomeadamente aqueles que implicam os ingleses e os holandeses, impõem um reexame crítico do assentimento dado à coroa. As ideias políticas dos huguenotes não se resumem à aprovação completa e

passiva do absolutismo. Pelo contrário, a partir de 1670-1680, e mais ainda na época da revogação do édito de Nantes, florescem os escritos e os panfletos que se interrogam sobre a origem do poder do rei e sobre a legitimidade de uma limitação da sua omnipotência nos domínios religiosos e políticos. Durante as guerras de Religião, o debate interno sobre o tema da superação da clivagem confessional permitiu contemplar-se uma resposta que passava não só pela conversão mas também pela coexistência das «duas religiões». Essa problemática é retomada nos escritos e na acção do chanceler Miguel do Hospital. As obras e o empenhamento político de Filipe Duplessis-Mornay testemunham-no igualmente. Noutros países, como no reino da Polónia, fora promovida uma solução concordatária desse tipo para resolver os antagonismos que abalaram o regime em momentos críticos; ela havia dado origem a um regime de tolerância e apaziguado os conflitos políticos. Apesar do seu empenhamento a favor da coexistência das confissões, os ideais de liberdade religiosa professados por F. Duplessis-Mornay atingem o seu limite logo que se revela necessária a defesa da legitimidade do credo reformado face às polémicas católicas e protestantes, embora prosseguindo o esforço de reunião. Na mesma época, Miguel do Hospital, personalidade maior da família católica, mostra-se um ardente defensor de uma solução pacífica que permita a coexistência das duas religiões. Ele sustenta que todo o sujeito tem direito à liberdade de consciência e considera que, após todos aqueles anos de fraqueza política e de conflitos de corte, somente a liberdade e a concórdia permitem salvaguardar e mesmo reforçar a autoridade do soberano. No entanto, as duas soluções encaradas (conversão e coexistência) baseiamse, tanto uma como a outra, na certeza de que a doutrina de cada confissão se impõe de um modo imperativo e absoluto. Este postulado mina nos seus fundamentos toda a proposta de solução do conflito e toda a possibilidade de o superar recorrendo a uma concepção irénica e pacífica, quer ela seja política ou religiosa. A presença das «duas religiões» em solo francês é sentida pelos protagonistas católicos como contrária à ideia de unidade nacional, ao passo que, entre os huguenotes, ter uma religião diferente os impede de se reconhecerem no governo central, ao nível político e cultural. Esta questão vai muito além dos limites do domínio religioso para investir directamente o da política. Embora estejam em campos opostos, mas inspirados pelo mesmo zelo religioso e igualmente aplicados em fazer adeptos, os ideais políticos e

religiosos de que dão provas Filipe Duplessis-Mornay e Miguel do Hospital deixam em segundo plano a ideia de uma tolerância fundada no reconhecimento da dignidade religiosa e política do adversário. Privilegiam uma política de coexistência confessional fundada na partilha da vida civil e impregnada pelos valores de livre escolha das consciências. Na sociedade francesa, tais ideais irão durante muito tempo manter-se vivos e fecundos. Apesar da forte instabilidade política que se segue ao massacre de São Bartolomeu, a ideia de que «a legalidade é a primeira parte da equidade275» é amplamente partilhada. Presume-se que as garantias de justiça oferecidas pelos magistrados e pelo rei conduzam o navio do Estado até um porto seguro, tão distante dos furacões da guerra civil como das sedições internas, e recoloquem o conjunto dos cidadãos «sob o jugo da concórdia» fazendo-o «conspirar para o bem público, sob um mesmo desejo e vontade276». Assim se vê esboçar toda uma gama de análises e de proposições políticas e religiosas, avançadas pela literatura menor publicada por cada um dos partidos confessionais. O seu fito é o de promover uma pluralidade de soluções que permitam superar o estado de guerra civil e alcançar a paz, sob o governo estável da monarquia francesa, estando cada um verdadeiramente convencido de que as inquisições, os massacres, os cercos, os assassinatos e tudo o que foi praticado em França durante mais de trinta anos em nada favoreceram a causa religiosa e mais não fizeram do que suscitar a existência de novos ateus, de novos libertinos e de novos epicuristas. Tais escritos permanecem centrados no debate teológico e dogmático que permite preservar a integridade da doutrina, reformada ou católica, face ao adversário, mas também em relação àqueles que se fazem defensores de uma atitude de questionamento, à maneira de Nicodemo. Contra esta invoca-se, tanto de um lado como de outro, a necessidade de prestar abertamente um testemunho de fé e de fazer um activo proselitismo. Do mesmo modo se opõem a uma estratégia irénica susceptível de reunir todos os cristãos em torno de dogmas fundamentais comuns; esta solução é particularmente mal vista pelos católicos e pelos reformados que permanecem acampados nas suas certezas doutrinais e dogmáticas, e que consideram que ela abre uma brecha que leva à indiferença religiosa e ao ateísmo. As dificuldades doutrinais que bloqueiam o debate sobre os direitos das consciências, bem como a pressão dos eventos históricos contribuem para reforçar as ideias que remetem para a tolerância, e nomeadamente as que têm implicações políticas.

Reconhecer que o príncipe católico tem um papel de garante e de intermediário entre Deus e o povo, e que em França lhe cabe defender e consolidar as «duas religiões», sublinha o tema do fundamento e dos limites do poder do soberano, nomeadamente no que concerne a fé, sem prejuízo do debate teológico e dogmático. Ainda que os escritos estudados até esta data indiquem o carácter fundamental da autoridade real e a ausência de contestação do poder e da sua origem divina – poder ao qual cada um se submete independentemente do credo pessoal do soberano, como foi o caso após a conversão de Henrique IV. Não obstante, pode dizer-se que esses anos assistem igualmente a uma reflexão crítica substancial sobre os limites e as perversões tirânicas do poder real. Ela desenvolveu-se principalmente entre os homens políticos e os teólogos huguenotes. A sua formulação mais conhecida e mais conseguida encontra-se nos trabalhos de Étienne de La Boétie277, nos escritos de Inocêncio Gentillet278, e nos Vindicae contra tyrannos279. Os temas principais da obra de Étienne de La Boétie traduzem a sua exortação a satisfazer o desejo natural de liberdade inerente ao homem e encorajam a desobedecer e a resistir, incluindo pelas armas, a um soberano que exerça um poder tirânico, empobreça o seu povo e escravize as consciências. Apesar do seu difícil percurso editorial, esta obra constitui uma referência importante para a literatura panfletária huguenote cerca de 1570. Embora a política de conciliação conduzida pelo chanceler Miguel do Hospital inspire os empenhamentos parlamentares de Étienne de La Boétie, ao longo da sua breve existência, o Discurso da Servidão Voluntária exprime, de modo muito radical, a obrigação moral de cada cidadão em reconquistar e defender as liberdades esquecidas, e nomeadamente a liberdade religiosa. Do privilégio ao direito. O apelo à tolerância Deve antes de mais sublinhar-se que a produção dos libelos huguenotes da segunda metade do século XVII tira a sua inspiração das peripécias históricas e dos numerosos escritos que circulam em França na época das guerras de Religião. A célebre polémica que opôs P. Bayle e P. Jurieu, as publicações de J. Claude e de numerosos autores empenhados nos debates políticos e religiosos que acompanham nas suas últimas décadas as guerras de Religião, não constituem portanto episódios isolados; o mesmo sucede com o ulterior endurecimento da política de intolerância do Rei-Sol. Como se fossem um epílogo a esta, os

trabalhos destes autores propõem a expressão mais completa e mais estruturada de uma reflexão que trespassa em profundidade certas camadas da sociedade e da cultura francesas, entre o final do século XVI e as primeiras décadas do século XVII. Essa reflexão apresenta antes de mais características específicas ligadas às vicissitudes políticas da França do início da época moderna; doravante, sob o reinado do Rei-Sol, e devido à pressão coerciva decidida pela coroa quanto a um domínio ainda mais extenso e que abrange a política, a religião e a filosofia, os debates sobre a liberdade de consciência e de tolerância ganham novo ímpeto. Na base das formulações da época, já não se encontra somente a profissão de fé para com o rei, a sua política interna, a sua política externa e os seus éditos. A relação privilegiada entre os súbditos e o seu rei não é já o único fundamento que assegura a origem e estabelece a legitimidade do apelo à tolerância face à religião reformada. A reflexão política contida nos escritos que tratam desta questão ultrapassa os limites de uma tolerância compreendida como consentimento, como privilégio concedido, ainda que de forma irrevogável, a um povo, ou a uma parte desse povo, em razão dos méritos adquiridos ou porque a autoridade real se mostrou magnânima. Essa reflexão sobre a tolerância, acompanhada pelo debate intenso que ela suscita ao longo dos séculos XVII e XVIII, evolui e alcança o terreno da análise e da definição de uma legitimidade cujos fundamentos se inscrevem agora na teoria do direito natural e do direito das gentes (jus gentium). Pierre Bayle considera fundamental uma tal concepção da liberdade civil, quer seja nos seus Pensamentos Diversos (1682), onde considera legítima uma sociedade de ateus, ou no seu Comentário Filosófico (1686), onde defende a liberdade e o respeito devidos a qualquer consciência, incluindo aquelas que «erram» na heresia. Para este filósofo, se a dissensão é uma questão central em matéria de doutrina religiosa, ela não passa de um ponto secundário quando se trata do sistema e do funcionamento da sociedade civil. Tais ideias são aliás retomadas na Resposta de Um Novo Convertido à Carta de Um Refugiado (1689), onde o autor confirma de novo um dos pressupostos da sua teoria da tolerância, a saber a fidelidade dos súbditos para com o príncipe. Bayle retoma essas concepções no seu Dicionário Histórico e Crítico (1697), onde exprime as suas próprias ideias políticas, fragmentadas e dispersas ao longo dos seus artigos e das suas notas280. O documento intitulado Aviso Importante aos Refugiados (1690), em

particular na sua parte consagrada à crítica das obras sediciosas, oferece uma apresentação eficaz da complexa relação estabelecida entre o absolutismo e a tolerância. Pierre Bayle estima perigoso o apoio que tais escritos presta às ideias anti-absolutistas, opostas à monarquia e favoráveis ao regime republicano, que então circulam em França e se baseiam nos exemplos históricos da Gloriosa Revolução inglesa e do sistema político e cultural holandês. Segundo Bayle, as teorias e as formas de governo fundadas numa concepção de tipo contratual e republicano, defendendo «a superioridade dos povos sobre os Reis, e a justiciabilidade dos Reis perante o Tribunal do povo», conduzem inevitavelmente à anarquia e à decomposição da sociedade civil. As «heresias políticas» contidas nas Vindicia e nas obras inspiradas nestas, as de Buchanan e de Pareus, ou de Claude e de Jurieu, minam qualquer sistema de governo. Elas têm em comum com os intolerantes do período moderno, ou seja com os religiosos devotos, o princípio segundo o qual se deve submeter o poder do rei a uma autoridade, quer ela seja de tipo religioso, no caso dos fanáticos, ou de tipo oligarco-democrático, no caso dos monarcómacos281. Isso equivale a introduzir no corpo político o conceito da divisibilidade do todo e pode ser assimilado às teorias do atomismo natural de Epicuro. Ao tornarem múltipla a soberania, essas teorias destroem a existência desta, ao passo que uma soberania «pura e plena», ou seja obtida pelo povo na sua inteireza, é a única a poder protegê-lo, não só das sedições e dos crimes, mas também da arbitrariedade de uma oligarquia e de uma democracia que não conseguiriam ocultar as suas origens feudais282. Para Bayle, a monarquia absoluta é, entre as formas de governo que ele estuda (como a monarquia mista de tipo inglês), aquela que melhor garante a paz do Estado; é também a única que está em condição de proteger contra as revoltas, os conflitos religiosos e os ardis do proselitismo. No entanto, a soberania monárquica não pode e não deve intervir nas escolhas próprias a cada consciência. Bayle precisa: «Não se pretendia de todo com isto furtar aos príncipes o direito do gládio que eles tomam de Deus; só se pretendia dizer que tal direito não se estende aos erros da consciência, e que os soberanos não receberam de Deus o poder de perseguir as religiões283.» Ao contrário de Bayle, o campeão dos polemistas huguenotes, Jurieu, que não se reconhece de todo no modelo monarcómaco do século XVI, apresenta-se como um convicto defensor das ideias de Erasmo e do anti-absolutismo. Segundo ele, essas ideias são instrumentos privilegiados para a manutenção da

ordem política e para a garantia dos direitos do povo, incluindo a liberdade de consciência. Pierre Jurieu defende os direitos da consciência mas avança ao mesmo tempo uma concepção da tolerância que comporta uma propensão para a intransigência e hesitações quanto às escolhas políticas; a sua concepção permanece no entanto subordinada ao zelo doutrinário, onde ela encontra também os seus limites284. Na época do Antigo Regime, num contexto de lutas ferozes, militares e políticas, causadas pelas guerras civis, primeiro a Fronda e depois a Revogação e o Refúgio, a concepção da tolerância é elaborada em função do movimento de ideias suscitado pela história recente da França. Ela alimenta-se igualmente do confronto com as experiências políticas de outros países, do pensamento dos republicanos holandeses, do exemplo da sociedade inglesa e, finalmente, das teorias de Locke. Quando se examinam alguns dos escritos mais representativos da produção panfletária, política e religiosa, publicada entre os séculos XVI e XVII, vê-se nascer uma exigência de liberdade de consciência para todos os homens, bem como uma concepção da tolerância que prefigura por vezes a superação das fronteiras das crenças cristãs. Essa análise contribui para nos fazer conhecer melhor um momento importante do debate de ideias europeu, cujo trabalho permitiu transformar certos aspectos episódicos de prática política e certas formulações puramente utópicas em elementos constitutivos de uma ética social. As ideias trocadas codificam-se em direito à liberdade de consciência e à tolerância que encontrará plena expressão na filosofia das Luzes e na época moderna. Não se trata já de concessões temporárias e arbitrárias, mas de direitos reconhecidos – «os homens nascem e mantêm-se livres e iguais em direitos» – oriundos da natureza e consagrados pela lex, tal como é formulado pela Declaração de 1789. E essa é uma ética que se refere a um Deus fora da história, uma ética natural, sem Deus e com a tolerância universal definida como fraternidade: doravante a tolerância é uma virtude. No último capítulo do seu Tratado sobre a Tolerância (1763), caberá a Voltaire reabilitar esse termo, outrora degradado por uma semântica negativa. A época das Luzes exprime certamente a vitória da razão sobre a perseguição de indivíduos e de minorias; ela confirma a condenação sem apelo das práticas inquisitoriais e tirânicas, mas precisamente no momento em que se afirma a tolerância (e talvez devido a isso), a sua história parece impor-se como modelo a quem lhe queira compreender o sentido.

A consciência da falibilidade do saber e a incerteza da verdade, a impossibilidade de crer que ela faz autoridade e transcende tudo, substituíram a certeza de uma verdade única e superior. Essa ética da dúvida possui um correctivo teórico e prático: obrigar a reflexão sobre a tolerância a interrogar-se sem fim sobre o que ela abrange, mas também sobre as alterações de linguagem e de método que a afectam; só esse questionamento permite que ela não se feche sobre uma verdade, religiosa ou política, declarada única mas que, pelo contrário, proponha modelos de enriquecimento cultural e social, de emancipação e cosmopolitismo. LUISA SIMONUTTI 268 L. Canfora, Filologia e liberta, Milão, Mondadori, 2008, p. 13. 269 F. Laplanche, Bible, sciences et pouvoirs au XVIIe siècle, Nápoles, Bibliopolis, 1997, p. 11-12. Cf. igualmente id., L’Écriture, le Sacré et l’Histoire. Érudits et politiques protestants devant la Bible en France au XVIIe siècle, Amesterdão, Maarsen, APA-Holland University Press, 1986; M. Grandjean e B. Roussel (dir.), Coexister dans l’intolérance, Genebra, Labor et Fides, 1998. 270 Lodewijk Meyer, Philosophia S. Scripturae interpres. La philosophie interprète de l’Écriture Sainte, ed. francesa por J. Lagrée e P.-F. Moreau, Paris, Intertextes, 1988, cap. 3, p. 48. 271 Cf. «L’apologétique raisonnable de Jean-Alphonse Turrettini», in M. C. Pitassi (dir.), Apologétique 1680-1740: sauvetage ou naufrage de la théologie?, Genebra, Labor et Fides, 1991, p. 99-118. Devemos referir-nos agora a M. C. Pitassi et al., Inventaire critique de la correspondance de Jean-Alphonse Turrettini, Paris, Champion, 2009, 6 vols. 272 H. Méchoulan et al. (dir.), La formazione storica dell’alterità. Studi di storia della tolleranza nell’etá moderna offerti a A. Rotondó, Florença, Olschki, 2001, 3 vols. 273 Este termo designa as terras de exílio dos protestantes após a revogação do édito de Nantes. (N. do E.) 274 Cf. J. Garrison, L’Édit de Nantes et sa révocation. Histoire d’une intolerance, Paris, Seuil, 1985, em particular o cap. 1; id., L’Édit de Nantes, Biarritz, Atlantica, 1997. 275 Déclaration des causes qui ont meu ceux de la Religion à reprendre les armes pour leur conservation. L’an 1574. Montauban, 1574. 276 De la concorde de l’Estat. Pour l’observation des Edicts de Pacification, Paris, 1599, p. 40. 277 É. de La Boétie. De la servitude volontaire, in S. Goulard (ed.), Mésmoires de l’Estat de France sous Charles neufiesme, Genebra, 1577. 278 Innocent Gentillet, Remonstrance au Roy Tres Chrestien Henry III de ce nom, Roy de France et de Pologne, sur le faict des deus Edicts de sa Maiesté donnés à Lyon, l’un du X. de Septembre, et l’autre du XIII. d’Octobre dernier passe, presente année 1574. Touchant la nécessité de la paix, et moyens de la faire, Frankfurt, 1574. Id., Discours sur les moyens de bien gouverner et de maintenir en bonne paix un Royaume

ou autre Principauté, divisez en trois partes à savoir du Conseil, de la Religion et Police, qui doit tenir um Prince. Contre Nicolas Machiavel Florentin, Genebra, 1976. 279 S. J. Brutus, Vindicae contra tyrannos. Sive, de Principis in Populum, populique in Principem, legitima potestate, Edimburgo, 1579; De la puissance legitime du Prince dur le peuple, et du peuple sur le Prince. Traité tres-utile et digne de lecture en ce temps, Genebra, 1581. 280 Para uma análise aprofundada das implicações filosóficas cépticas da questão da tolerância em Bayle, convém referirmo-nos não só às obras monográficas e às numerosas publicações de É. Labrousse, mas também a G. Paganini, Analisi delle fede e critica della ragione nella filosofia de Pierre Bayle, Florença, La Nuova Italia, 1980, em particular nos caps. 4 e 6; H. Bost, Pierre Bayle, Paris, Fayard, 2006. Cf. igualmente W. J. Stankiewicz, Politics and Religion in Seventeenth Century France. A study of political ideas from the Monarchomachs to Bayle, as reflected in the Toleration Controversy, Berkeley, Los Angeles, 1960; E. I. Perry, From Theology to History. French Religious Controversy and the Revocation of the Edict of Nantes, Haia, Nijhoff, 1973. 281 P. Bayle, Réponse aux questions d’un provincial, terceira parte, Œuvres diverses, vol. III, caps. 17 e 18. 282 Cf. por exemplo os artigos: «Bodin», «Hobbes», in P. Bayle, Dictionnaire historique et critique, 5.a ed., Amesterdão, P. Brussel, 1740. Sobre a crítica do direito de resistência, cf. «Buchanan» e a «Dissertation concernant le livre d’Étienne Junius Brutus» (ibid., vol. IV, p. 569-577) e «Loyola», «Mariana». 283 P. Bayle, «Geldenhaur», Dictionnaire historique et critique, op. cit., nota: F. Cf. G. Paganini, Analisi della fede e critica della ragione nella filosofia di Pierre Bayle, op. cit., cap. 4; D. Taranto, Pirronismo e assolutismo nella Francia del’ 600, Milão, Franco Angeli, 1994, cap. 7. 284 Ver o opúsculo: «L’Affaire Bayle». La bataille entre Pierre Bayle et Pierre Jurieu devant le consistoire de l’Église wallone de Rotterdam, A. McKenna e H. Bost (dir.), Saint-Étienne, Institut Claude Longeon, 2006.

Blaise Pascal

Duas correntes se cruzam na obra de Pascal. A primeira é a da ciência; dessa ciência que aplica a matemática à compreensão da natureza e que Galileu, Torricelli e o próprio Pascal contribuem para tornar experimental. Matemática e experimental, ela fornece aos homens o modelo de uma concepção racional da natureza, e abre assim indefinidamente à curiosidade humana o continente do mundo físico. A segunda corrente é a da fé cristã. O objecto desta é sobrenatural e os seus princípios ultrapassam a razão. A fé possui as suas próprias verdades: ela revela aos homens a sua falibilidade e a sua corrupção, que decorrem da falta original. Ela ensina a Incarnação do Filho de Deus, a sua morte e a sua redenção na Cruz para resgatar o pecado dos homens, E ensina-os portanto a comportarem-se segundo a vontade de Deus, definindo assim uma moral. Conhecimento e moral Pascal é sábio e cristão. Cristão e sábio. Essas duas lógicas coexistem nele sem se misturarem. Sem mistura, mas também sem combate. A actividade científica não se refere às matérias de fé que não possa regular. A razão deve cessar a sua actividade onde começa o domínio das verdades reveladas: A derradeira iniciativa da razão é a de reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam285. Submissão e uso da razão: nisso consiste o verdadeiro cristianismo286.

Pelo seu lado, a teologia não pode ditar à ciência o que esta deve considerar como verdadeiro ou falso. É impossível, diz Pascal na décima quarta Provincial, obter «contra Galileu aquele decreto de Roma que condenava a sua opinião acerca do movimento da Terra. Não será isso a provar que ela permanece em repouso». Pode-se portanto ser sábio e cristão, ainda que esse cristianismo não seja efectivamente conforme às posições defendidas pela Igreja. Mas poderá ser-se filósofo e cristão? Uma tal pergunta define para

Pascal uma relação diferenciada com a razão segundo consideremos esta na sua função teórica ou prática, e poderá admitir-se que esta última releva para ele, como para a maioria dos seus contemporâneos, de uma parada de grande importância. Compreendê-la-emos facilmente se examinarmos a maneira como a filosofia moral e política moderna que se constrói sob os olhos de Pascal coloca o problema das relações da razão e da religião. Tanto Hobbes como Grócio haviam procurado mostrar que existe na realidade uma convergência entre as prescrições racionais em matéria de lei natural, de direito natural e de contrato social e as Leis divinas reveladas. Essa convergência é minuciosamente exposta no capítulo iv do Cidadão, intitulado «Que a lei de natureza é uma lei divina», onde se comparam as vinte leis naturais construídas pela razão com os correspondentes preceitos da lei divina. Ora, tal convergência apresenta a particularidade de poder ser interpretada num duplo sentido. Pode ver-se nela a ideia segundo a qual a razão se pode achar posta ao serviço da verdade e da justeza dos Mandamentos da religião ou, ao invés, a ideia segundo a qual a Escritura é chamada a confirmar a iniciativa da razão. Uma tal correlação revela-se particularmente ambígua: poderíamos ser tentados a interpretar este reforço respectivamente da razão e da Escritura como um possível enfraquecimento da religião. Com efeito, se cabe à razão justificar os Mandamentos da religião, isso poderá significar, por um lado, que a religião arrisca vir a achar-se submetida à justificação racional, e, por outro, que as prescrições racionais poderiam acabar por valer por si mesmas, sem que se tenha já de recorrer aos preceitos da religião. Por outro lado, se a Escritura oferece confirmação às construções normativas da razão, isso pode querer dizer que, para o filósofo, o essencial do recurso ao texto sagrado visa validar as prescrições desta e que, por esse motivo, a religião se acha posta ao seu serviço. Essa convergência das prescrições racionais e religiosas revela-se pois uma faca de dois gumes e é preciso saber perceber o perigo real de tal apoio nas aparentes vantagens de que a religião parece beneficiar. É essa situação que parece perigosa a Pascal e que explica não só a sua hostilidade relativamente ao apoio que a razão possa trazer à religião, ainda que de modo indirecto quando as provas da religião se alimentem dos limites da razão, mas também a sua crítica aberta à própria possibilidade de uma autonomia da razão na esfera prática. Ele tem portanto de recusar a ideia de uma moral e de uma política racionalmente estabelecidas, e atacar todos os elementos que formam a ossatura destas: a capacidade da razão para estabelecer ou conhecer normas morais, as leis naturais e o direito natural de onde decorre uma concepção da

justiça, a sua faculdade de justificar a existência de um pacto social constitutivo da ordem política e de exercer uma crítica do direito positivo caso este contradiga as leis naturais. É nesse ponto que Pascal vai ao encontro do cepticismo de Montaigne na crítica radical que este último dirige simultaneamente às vertentes teórica e prática da razão e que Pascal retoma por sua conta. Porém, o confronto de ambos permite estabelecer que o cepticismo de Pascal difere do do autor dos Ensaios. De facto, a crítica pascaliana da razão exprime-se a partir de uma posição que integra o trabalho da ciência moderna em via de ser construída e o da filosofia que a acompanha, e formula-se através de um «ponto de vista» que se inspira simultaneamente nas posições de Hobbes e de Descartes sem se reduzir a nenhuma delas: Pascal situa-se do lado de Hobbes quando se trata de compreender o estatuto da verdade na ciência, e situa-se do lado de Descartes (mas de um Descartes profundamente remodelado) quando se trata de compreender o estatuto do erro em matéria de moral e de política. Hobbes havia explicado, nas suas objecções às Meditações e contra a teoria cartesiana do papel da vontade na formação do juízo, que o assentimento da vontade nada tem a ver com o processo de formação do verdadeiro. Quando a razão estabelece com clareza a necessidade e o estatuto de uma ideia verdadeira, como no caso de uma demonstração por exemplo, embora o possamos querer de outra forma, só somos levados a crer nela por sermos forçados a isso por argumentos. Desta objecção decorre a negação da tese cartesiana da liberdade da vontade: a ideia verdadeira, em razão da necessidade interna dos encadeamentos demonstrativos, obriga a vontade a aquiescer. Assim, a produção da verdade não é sinónimo de liberdade, mas de constrangimento. Pascal parece aliar-se a esta posição quando explica que, nas ciências (geometria, física) e para certas proposições de tipo filosófico (o cogito por exemplo, no fr. 131), os princípios podem ser estabelecidos pelo «coração» apoiando-se no recurso a provas indirectas (a falsidade da tese da não-divisibilidade infinita do espaço valida a tese contraditória), e que as consequências são a seguir demonstrativamente deduzidas desses princípios que assim se impõem à vontade, seja o que for que ela possa desejar de diverso. Não se poderá no entanto concluir daí que a razão científica atinge uma certeza inabalável uma vez que, segundo Pascal, existe uma tal dissociação entre a ordem do conhecimento e a ordem do ser que esta transborda infinitamente daquela287, e cabe precisamente à razão perceber ela mesma os seus próprios limites288. Deve portanto admitir-se que o que é certo para nós não remete por natureza a uma realidade que ela conhecesse integralmente, posição que, ao

invés da de Montaigne, pode ser qualificada como de cepticismo moderado. Não é isso que sucede quando não dispomos de provas semelhantes, como mostra Pascal em A Arte de Persuadir. Neste caso, quando o prazer da vontade não pode renunciar ao seu objecto sob o efeito do juízo do entendimento, obtém-se uma interferência da vontade na formação do juízo, não sob a forma de uma liberdade de indiferença como em Descartes, mas sob a forma de uma estratégia de dissimulação dos desejos dela. Esta mascara as suas opções embora as mantenha, e é assim que pode «orientar» a relação do entendimento para com os seus objectos. A vontade, sem marcar abertamente a sua preferência, leva o espírito que caminha «unido com a vontade […] a contemplar o rosto que ela ama e é assim que ele o julga por aquilo que nele vê289». A multiplicidade de pontos de vista parciais – cada um dos quais se considera como um absoluto – e a oposição destes conduzem à única atitude racional nessa circunstância, o cepticismo. É assim que se pode compreender porque se opõem as escolas filosóficas ou as diferentes confissões: cépticos contra dogmáticos, cépticos contra estóicos, estóicos contra epicuristas, molinistas contra calvinistas, etc. Cada uma possui um ponto de vista fragmentário porque só vê um único aspecto das coisas, não podendo nenhuma delas defender um ponto de vista tal que, sendo o seu contrário necessariamente falso, este se revelasse verdadeiro. Por outras palavras, é por não existir prova demonstrativa convincente das suas teses que a vontade pode operar sobre o entendimento e levá-lo a não perceber mais do que um aspecto da verdade das coisas. De cada vez que nos encontramos perante uma contradição entre doutrinas, das quais nenhuma consegue impor-se, podemos considerar que estamos a lidar com um esquema semelhante de interferência da vontade no entendimento. Isso é verdade não só para a definição do homem acerca da qual disputam os estóicos e os cépticos, mas também para a da graça, a respeito da qual se opõem molinistas e calvinistas, bem como para a do conhecimento, que opõe dogmáticos e cépticos. Em todos esses casos de monta, a ordem de subordinação da vontade ao entendimento acha-se formalmente respeitada, mas realmente invertida. Ao não surgir abertamente como princípio de escolha, a vontade permite ao indivíduo ser estimado por outrem, coisa que ele procura antes de tudo, uma vez que não age abertamente senão segundo a razão, regulando a sua conduta pelas ideias do entendimento290. Mas ao constituir realmente e de forma disfarçada o princípio da escolha a partir do que pretende, a vontade obtém uma dupla satisfação: a do prazer que lhe traz a sua escolha contra o primeiro juízo do entendimento e a

do prazer de parecer conformar-se abertamente a esta para afirmar a potência do indivíduo (poder gabar-se abertamente de escolher por razão), enquanto o juízo do entendimento foi modificado para a satisfazer. É na base de uma tal contradição e do relativismo moral que dela decorre que Pascal pode apresentar simultaneamente uma crítica radical das virtudes morais naturais, tão impossíveis de estabelecer quanto de concretizar291, e o ensino das Escrituras como o único ponto de vista possível susceptível de fazer concordar essas verdades parciais, tal como mostra A Conversa com o Senhor de Saci. Uma tal crítica da moral acha-se no terreno da política. Uma política sem direito natural A crítica pascaliana da política dos filósofos (em todo o caso no momento em que Pascal redige os textos que formarão os Pensamentos) tem por objecto a possibilidade de conhecer pela razão ou pelo sentimento natural a lei natural de que eles formam o fundamento da justiça. O cerne da sua crítica consiste em mostrar, como no caso da moral, que a razão não pode encontrar um ponto fixo susceptível de lhe fornecer uma definição da justiça. É por isso que existem tantos princípios morais e jurídicos como pontos de vista relativos determinados pela vontade. É isso que explica, segundo o célebre fragmento 60 dos Pensamentos, que «a essência da justiça» tanto seja concebida como «a autoridade do legislador», «a comodidade do soberano» ou simplesmente «o costume». A justiça, por estar sujeita à disputa, revela-se então uma «qualidade espiritual da qual se dispõe como se quer292». Esta crítica céptica, segundo Pascal, elimina toda a possibilidade de apoio em normas susceptíveis de fundarem e de justificarem o contrato social, como defendem os filósofos clássicos. Por isso nenhum pacto social é concebível e, de facto, ele não tem lugar. O Estado começa a partir do momento em que os homens, achando-se em conflito numa espécie de estado pré-político, formam associações, e em que uma delas (o «partido mais forte») consegue uma vitória militar sobre as outras. Simplesmente, não é possível que o poder dos governantes se apoie na força pois isso não faria mais do que favorecer a continuação do conflito. Estes devem definir as leis fundamentais (um embrião de constituição, se quisermos) que deveriam ser consideradas como justas, o que permitiria ao poder exibir uma legitimidade293. É então que intervém um mecanismo complexo, formado por uma mistura de imaginação e de opinião, que leva a que os governantes acabem por crer que tais leis são justas e obedeçam então a esse poder294.

Porém, esta organização política também se reveste para Pascal de um sentido teológico. Trata-se de uma ordem paradoxal, que pune os homens pela sua falta (o pecado) submetendo-os ao reino da força e a uma falsa justiça. Mas essa ordem ao menos assegura a paz, e esta deve ser considerada pelos cristãos como o bem soberano da cidade terrestre. As leis do Estado dispõem assim de uma dupla justiça extrínseca: a que lhes é conferida pela imaginação dos governados e aquela que provém da vontade divina, devendo tais leis ser respeitadas para conservar a sociedade humana. Nestas condições, ter-se-ia desde logo a tendência de escolher a interpretação conservadora-autoritária da política pascaliana, mas isso seria sem dúvida parar demasiado rapidamente a meio do caminho. O problema, com efeito, é que, se uma tal construção consegue no limite obter para o poder um consentimento dos governados, ela de modo nenhum garante a estes que a autoridade não se venha a comportar de forma opressiva. Daí a necessidade – exigida pela perseguição político-religiosa do grupo jansenista – de nos precavermos contra ela. Mas onde encontrar uma tal garantia, na medida em que a lei divina se contente em pregar a obediência para manter a paz e onde já não exista princípio de justiça natural mobilizável que possa servir de recurso crítico em relação ao poder? De facto, Pascal dispõe de uma outra possibilidade teórica para construir um conceito de justiça, mas que desta vez já nada tem a ver com uma construção normativa. É no cruzamento das suas pesquisas matemáticas e de certas passagens das Escrituras que ele estabelece um novo conceito de justiça: a «justiça das ordens». Esta assenta na ideia segundo a qual existem tipos de operações e de acções específicas que se efectuam segundo regras singulares sobre objectos particulares e que não podem ser intervertidas umas com as outras. Por exemplo, a força que engendra o temor e age mecanicamente sobre os corpos não pode produzir um único conhecimento295. Pelo seu lado, a força e o conhecimento juntos não suscitam nenhum ímpeto de caridade296. Mas em troca, a autoridade da Igreja que só é válida nas «matérias mais incompreensíveis à razão» não pode prevalecer no que concerne «os temas que caiam sob os sentidos ou sob o raciocínio: a sua autoridade é aí inútil, apenas a razão tem ocasião de conhecê-los». Nenhuma demonstração pode conduzir ao amor porque este não responde senão à beleza ou à «concórdia», tal como o amor não pode interferir na ordem do conhecimento para estabelecer qualquer verdade que seja. Enfim, na esfera do próprio conhecimento, o coração que sente os princípios e a razão que demonstra as proposições não podem ser

intervertidos297. As ordens de justiça comportam, como vemos, duas propriedades fundamentais: a primeira é a ausência de interferência entre si e a impossibilidade de obter numa ordem resultados com as regras de uma outra; a segunda é a relação de conveniência própria de cada ordem entre as regras de operações e os seus objectos, e é essa relação interna que Pascal exprime por meio do conceito de justiça: «dever de amor à concórdia, dever de temor à força, dever de crença à ciência298». Daí resulta que é injusto e tirânico querer «dominar fora da sua ordem» e que isso se revela aliás impossível. Essa justiça, Pascal irá utilizá-la tanto a respeito do poder político como do poder religioso. Com efeito ele mostra que é impossível governar unicamente pela força ou converter crentes (os protestantes, por exemplo) pelo constrangimento, mas também constranger os sábios por meio de dogmas religiosos (Galileu) ou chamar a Igreja a pronunciar-se sobre questões científicas. Os governantes tãopouco podem exigir um culto da personalidade sem relação com as suas qualidades, tal como não é possível ao poder promulgar uma estética oficial. Em suma, a teoria das ordens de justiça tem por efeito a definição e a delimitação de esferas de liberdades incomprimíveis para os governados. Uma tal posição é de natureza a temperar fortemente a submissão à ordem política do cristão perfeito, tal como Pascal a podia justificar a partir da sua crítica do direito natural. Daí resulta uma denúncia do absolutismo e de todo o regime autoritário, mais favorável à segunda leitura da política de Pascal, embora se pudesse justificar tal crítica com argumentos porventura mais convincentes, mas não obstante complementares. CHRISTIAN LAZZERI 285 Pensamentos, fr. 188 (classificação de L. Lafuma). 286 Ibid., fr. 167. 287 Ibid., fr. 199. 288 Ibid., fr. 170, 174. 289 Ibid., fr. 539. 290 Ibid., fr. 470, 149, 372, 421, 423, 617, 668, 749, 796, 978. 291 Ibid., fr. 140, 208, 357.

292 Ibid., fr. 85. 293 Ibid., fr. 828. 294 Ibid., fr. 88, 828, 554, 665. 295 Ibid., fr. 58. 296 Ibid., fr. 308. 297 Ibid., fr. 110. 298 Ibid., fr. 58.

Bento Espinosa

Bento de Espinosa (Baruch em hebraico, Benedictus nas suas obras latinas) nasceu em Amesterdão em 1632, numa família de judeus de origem portuguesa. Banido da comunidade judaica em 1656 por um herem (decreto de exclusão) que o condenava pela impiedade das suas ideias e da sua conduta, viveu a partir de então de maneira modesta, combinando a feitura de instrumentos de óptica e a actividade especulativa de pesquisa da verdade. Participou igualmente na vida política das Províncias Unidas, independentes da Espanha a partir de 1648, em particular na experiência republicana levada a cabo por Jan de Witt, o homem que simbolizou a busca da independência absoluta até 1672, data do seu assassinato por uma multidão galvanizada pelos discursos de calvinistas fanáticos que Espinosa taxará então de ultimi barbarorum. Espinosa levou pois uma existência discreta, sem por isso se isolar do mundo: com efeito teve por correspondentes filósofos como Tschirnhaus e Leibniz, bem como célebres sábios, nomeadamente Robert Boyle e o secretário da Royal Society de Londres, Henry Oldenburg. Dedicou os últimos anos da sua vida à redacção e acabamento da sua obraprima filosófica, a Ética, bem como do Tratado Político, cuja escrita foi interrompida pela sua morte, em 1677. A formação cartesiana e os primeiros escritos A única obra que Espinosa publicou em vida e sob o seu nome são os Princípios da Filosofia de Descartes (Principia philosophiae cartesianae), texto que, embora se apresente como uma exposição didáctica da doutrina cartesiana inicialmente destinada a instruir o seu discípulo Casearius, nem por isso acolhe o conjunto das teses do filósofo francês. É aliás o que sublinha, com o assentimento do próprio Espinosa, o prefácio da obra, assinado pelo seu amigo Luís Meyer, filósofo e exegeta da Bíblia. Um dos principais pontos de divergência entre os dois pensadores concerne a questão da vontade: com efeito, Espinosa rejeita a distinção cartesiana da vontade e do entendimento e

recusa ainda mais a ideia de que esta possa ser livre. A sua concepção da liberdade faz abstracção tanto do pressuposto (católico e erasmiano) do livrearbítrio como da ideia (luterana) do servo arbítrio: a liberdade, como ilustrará a Ética, não pode ser concebida independentemente da ideia de necessidade natural. Outros pressupostos importantes da Ética devem ser procurados naquela que foi provavelmente uma obra de juventude, o Curto Tratado (Korte Verhandeling), texto redigido em neerlandês que teve de esperar até ao século XIX para ser conhecido, e no qual o autor nos expõe a sua teoria do conhecimento: ao distinguir três géneros de conhecimento (a imaginação, a razão e o entendimento), Espinosa afasta-se de novo da pura concepção cartesiana que opõe o conhecimento sensível-imaginativo à razão. Nesta obra, que legitimamente se pode aproximar do cristianismo não dogmático e extraeclesiástico, Espinosa apresenta igualmente uma teoria singular do amor, que possui dois rostos: o amor como fruição – e não como desejo da coisa amada –, e portanto como potência capaz de prevalecer sobre o ódio; o amor de Deus, do qual depende a nossa perfeição (teoria longamente exposta na Ética). Assim, a concepção espinosista do amor, que desemboca no amor Dei intellectualis e do qual os Diálogos de Amor de Leão Hebreu são uma das principais fontes, está já presente nas suas grandes linhas no Curto Tratado. Encontramos igualmente neste último texto aquilo que constituirá um dos principais temas da filosofia espinosista, a saber a tese, que se deve ao Manual de Epicteto, segundo a qual devemos distinguir nitidamente as coisas que dependem de nós daquelas que não dependem: a sabedoria consiste em não nos ocuparmos senão das primeiras, reconhecendo, no que toca às segundas, as inelutáveis e arrasadoras potências da natureza. É justamente esse o pressuposto no qual se fundará o Tratado da Reforma do Entendimento (Tractatus de intellectus emendatione), pequeno ensaio que se apresenta como uma narrativa que descreve a vida do autor e a sua busca da verdade, e menciona quase literalmente as Regras para a Direcção do Espírito (Regulae ad directionem ingenii), embora recorde à primeira vista o método cartesiano. Mas se é verdade que as dívidas em relação ao filósofo francês são aí numerosas, procuraremos aqui pôr em evidência os aspectos especificamente espinosistas, que consistem em primeiro lugar na ideia de que existe uma natureza humana superior à nossa e de que é possível atingi-la graças a um método de auto-educação cujo percurso nos é delineado; e em segundo (mas não último) lugar, na tentativa de que numerosos homens cheguem connosco a

tal resultado com o auxílio de um programa de organização pública dos saberes a adquirir, evocado por Francis Bacon na sua obra Do Progresso e da Promoção dos Saberes (De dignitate et augmentis scientiarum). Tal projecto esboça já aquilo que constituirá o principal cerne de toda a filosofia espinosista, a saber a ideia de uma ligação indissociável entre a busca pessoal da sabedoria e o desígnio de concorrer para a formação de uma sociedade melhor. Liberdade de pensamento e livre República A tese principal do Tratado Teológico-Político, exposta no prefácio da obra, concerne a liberdade de pensar, e por essa via de interpretar os textos que nos foram transmitidos como sagrados. Todo o obstáculo a essa liberdade não pode vir senão de autoridades despóticas ou de um poder eclesiástico organicamente ligado aos poderes monárquicos, cioso de manter as massas sujeitas e subjugadas pelas crenças e pelos preconceitos. Inscrevendo-se na esteira da revolução científica da sua época, Espinosa considera pelo contrário que as Escrituras devem ser conhecidas e estudadas segundo os seus próprios princípios, como o grande livro da natureza299. Os primeiros capítulos abordam de forma crítica os sacrossantos princípios da fé religiosa tirados das Escrituras; Espinosa examina aí sucessivamente as questões teológicas aferentes à profecia e aos profetas, à noção de lei divina e aos milagres. No tocante à profecia, o problema é colocado em termos que se referem em parte ao racionalismo de Maimónides300: o profeta, que não é nem um filósofo nem um sábio, mas um homem dotado de uma imaginação particularmente viva, é divinamente inspirado: a sua imaginação, associada a um coração que só tem inclinação para o que é justo e bom, permite-lhe captar e transmitir numa linguagem acessível à compreensão e à compleição do vulgo as mensagens que ele recebeu da natureza divina; natureza divina que na realidade não é mais do que a natureza das coisas, uma vez que Deus é a natureza. A mensagem imaginativa, não racional e não científica que o profeta daí tira tem um grande valor moral na medida em que incita os homens à caridade e à obediência, e portanto à concórdia que é necessária à vida comum. Espinosa não hesita pois em afirmar que, embora muitas das expressões dos profetas – em particular de Moisés – sejam impróprias e obscuras do ponto de vista da sã razão que não pode sustentar a ideia de que Deus possa ter emoções, tais expressões nem por isso são menos justificadas na medida em que possam ser

compreendidas pela multidão. Deverá observar-se que Espinosa inclui nesta os hebreus, os quais recusa classificar como povo eleito, nomeadamente durante o período imediatamente seguinte ao cativeiro deles no Egipto. Mostra-se com efeito que as possibilidades do entendimento humano estão ligadas às condições de vida oferecidas aos homens numa dada sociedade: a sujeição poderá nesse sentido ser concebida como uma causa directa da ignorância colectiva, já que a liberdade do comércio e das pessoas que reinam por exemplo em Amesterdão e são exaltadas no final do Tratado estará pelo contrário ligada à livre circulação das ideias, e desse modo à difusão de comportamentos racionais e livres dos cidadãos entre si, bem como nas relações deles com os estrangeiros. No tocante à lei divina, o capítulo que a aborda (o quarto do Tratado) resume de certa maneira o conjunto da filosofia espinosista que a Ética acabará por expor: Espinosa entende aqui por lei divina uma regra que tenha por objecto o soberano bem, ou seja o amor de Deus, do qual depende a nossa beatitude. Quanto à lei de Moisés, que é essencialmente adaptada à compleição própria e à conservação de um certo povo, a divindade dela não se funda senão numa crença de que ela haja sido estabelecida pela luz profética. O conceito central é aqui o da identificação de Deus com a natureza. O termo «lei», que na linguagem da moral e do direito designa a prescrição da conduta a seguir, tem desde logo aqui o sentido que se lhe atribui no domínio das coisas naturais. Conhecer a lei significa conhecer Deus. É da nossa capacidade para conhecer e para convir com a necessidade das coisas que depende a nossa beatitude. A crítica espinosista da crença nos milagres ganha então todo o seu sentido. A própria ideia de milagre constitui para Espinosa uma contradição nos termos, já que ela equivale a atribuir a Deus, ou seja à necessidade da natureza, a vontade de agir contrariamente à sua natureza, de infringir a sua própria lei, que não é outra senão o soberano bem: por outras palavras, se tudo o que procede de causas naturais participa unicamente da potência e da vontade de Deus, não se pode imaginar crença mais absurda e supersticiosa do que aquela que considera Deus como autor de milagres contrários à sua própria lei. Como nos ensina um grande historiador francês do século XX301, o Tratado Teológico-Político é uma das obras que marcaram a grande viragem moderna da crítica. Desse ponto de vista, após haver longamente demonstrado que os textos transmitidos pela Bíblia estão truncados, falsificados, alterados e são incoerentes, Espinosa nem por isso deixa de concluir que a lei divina universal ensinada pela Escritura chegou até nós incorrupta. Com efeito só importam os

ensinamentos elementares que ela possa conter: Deus existe, a sua providência é universal, e devemos prestar-lhe um culto consistente na justiça e na caridade; os homens que lhe obedecem serão salvos, e onde os homens vivam sob o domínio das paixões estarão perdidos, a menos que se arrependam. É esse o credo elementar, acessível a todos, que já professam na Europa os antitrinitários e um certo número de espíritos livres, aos quais Espinosa se associa, guiados pela busca de uma religião pacífica liberta das barreiras enclausurantes e conflituais dos dogmas. Encontramos no Tratado Teológico-Político o famoso conceito espinosista de beatitude. Esta última, que Espinosa apresentará na Ética como o fim supremo do sábio, pode igualmente ser atingida por uma alma vulgar: todo o espírito poderá, mesmo sem erudição, ser absolute beatus caso tenha opiniões salutares e observe a verdadeira regra de vida302. Em suma, é sempre através de um duplo prisma que Espinosa concebe a sociedade humana e o seu aperfeiçoamento potencial: ela compõe-se sempre de um grupo de homens que atingiu um nível de consciência de grau superior e de uma multidão ignorante e cada vez mais sujeita às paixões mas que, resignando-se à obediência, pode tomar parte nos benefícios da concórdia. Na última parte do Tratado Teológico-Político, inteiramente consagrada à política, Espinosa aborda no final a questão do direito natural, que identifica com a potência. Se o filósofo holandês jamais se aproximou tanto da filosofia política hobbesiana quanto nessa passagem – o que lhe valeu numerosas críticas –, nem por isso uma diferença fundamental deixa de opor ambos os autores: enquanto a identificação do direito com a potência em Hobbes leva necessariamente os homens a aceitarem submeter-se colectivamente, por um pacto social, ao direito do mais forte e portanto a uma forma de despotismo, Espinosa estima que a potência de um indivíduo é tanto maior quanto ele realiza a sua natureza. Ora, a realização do homem cresce na proporção da sua racionalidade, e por conseguinte da sua capacidade para regular as suas relações com outrem. Os homens são portanto tanto mais capazes de concórdia quanto eles exprimam a sua potência. A forma de organização civil mais adequada é desde logo a livre República, a qual exclui toda a forma de constrangimento, à excepção dos comportamentos criminosos e violentos que representem um perigo para a República e para a concórdia. Nenhum constrangimento pode vir limitar o pensamento e a expressão das opiniões: a liberdade de juízo é uma virtude que não pode ser reprimida. Também em matéria de religião, os cismas e os conflitos não são imputáveis aos homens

que buscam livremente a verdade, mas àqueles que usem de uma autoridade malévola e da força do despotismo para imporem os seus dogmas. As últimas páginas do tratado merecem a esse respeito toda a nossa atenção: Espinosa honra aí esses espíritos livres (entre os quais muito certamente o seu amigo Koerbagh, e vários outros homens que ele não nomeia) que sacrificaram a sua vida pela justiça e pela liberdade. A sabedoria A Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica compõe-se de cinco partes, respectivamente intituladas: «De Deus», «Da natureza e origem da alma», «Da origem e da natureza das afeições», «Da servidão do homem ou da força das afeições», «Do poder do entendimento ou da liberdade do homem». É fútil inquirir se essa «ordem geométrica» adoptada por Espinosa na Ética corresponde efectivamente à ordem codificada nos tratados de geometria a partir do modelo dado na Antiguidade por Euclides. O modo de exposição espinosista aqui retido corresponde de facto a um tipo de racionalismo que, embora inspirando-se, como já o havia feito Descartes, no modelo de rigor e de certeza incarnado pela matemática, elabora sob uma nova forma a sua própria doutrina da ciência. As noções fundamentais em que assenta a ontologia espinosista são as de substância, de atributo e de modo. A substância, o que é em si e é concebido por si, é uma e uma só: Espinosa liberta-se aqui da concepção cartesiana da dualidade das substâncias. Esta substância é constituída por uma infinidade de atributos, entre os quais o pensamento e a extensão: a coisa pensante e a coisa extensa, que Descartes concebia como duas substâncias, não passam de dois atributos, na ocorrência os únicos atributos entre os atributos infinitos que a alma humana é capaz de conhecer. Os modos, por fim, são as afeições de uma substância, as formas nas quais ela se exprime e pelas quais ela se torna concretamente cognoscível. O mundo inteiro das coisas finitas não é mais do que uma série infinita de expressões modais da substância. Quanto à identidade entre Deus e a natureza, que já havíamos encontrado no Tratado Teológico-Político, ela surge na Ética sob a forma de uma definição, a de um Deus pensado como substância única que existe necessariamente, que é e age pela mera necessidade da sua natureza: Deus é causa livre de todas as coisas uma vez que todas as coisas procedem necessariamente da sua natureza, que é idêntica à das coisas. A necessidade não se opõe portanto à liberdade, mas à contingência: opor a liberdade à necessidade, como fazem aqueles

homens para os quais a liberdade rima com a possibilidade de perturbar a ordem da natureza eterna e infinita, equivale a confundir a liberdade com a contingência. Na filosofia espinosista, nada nem ninguém pode subtrair-se à necessidade natural: quem crê agir livremente contra a lei divina ou contra si mesmo (os exemplos escolhidos por Espinosa vão da embriaguez ao suicídio) é na realidade movido por causas exteriores cujo poder ultrapassa a sua. A crítica dos milagres, já presente no Tratado Teológico-Político, fundava-se no facto de ser impossível a Deus, ou à natureza, agir contrariamente à sua própria natureza; aqui é a impossibilidade de que um ser finito como o homem possa agir livremente contra a necessidade da sua própria natureza que nos é demonstrada. Agir significa exprimir a necessidade da sua natureza; o contrário da acção não é outro senão a paixão, que consiste em sofrer a acção de causas exteriores: o que é precisamente o oposto da liberdade. A liberdade é portanto necessidade. Necessidade da natureza divina, da qual devem decorrer uma infinidade de coisas e uma infinidade de modos na medida em que a infinidade da natureza de Deus não é estática mas dinâmica: ela estende-se incessantemente até ao infinito. Estando estabelecido esse fundamento ontológico, a demonstração prossegue com a explicação das coisas que devem decorrer necessariamente da essência de Deus, ou do Ser eterno e infinito; não de todas porém, na medida em que elas são infinitas, mas daquelas que nos podem conduzir ao conhecimento da alma humana e à sua perfeição. Passamos assim da dinâmica do infinito em expansão à dinâmica do finito em tensão, que dá todo o seu sentido ao título da obra: o finito em que Espinosa se concentrará a partir daí será com efeito o «nós» humano, que a Ética considerará sob o duplo ponto de vista do que ele é e daquilo em que se pode tornar ao realizar-se. Como indica Espinosa no seio da Ética, a perfeição e a realidade são uma única e mesma coisa: considerar-se-á como perfeito o que é realizado segundo o projecto que é imanente a toda a coisa finita, onde, pelo contrário, a perfeição de Deus é em si e não deriva de projecto algum. Se seria erróneo conceber a natureza infinita de Deus de maneira antropomórfica, ao imaginá-la tendendo para qualquer fim, em compensação é essencial para a natureza humana finita tender para fins. Dizendo a ética precisamente respeito ao homem, ela deverá interessar-se pelo objectivo de perfeição que este último persegue naturalmente. O que é aperfeiçoar e realizar? O homem é corpo e espírito, os quais não são realidades separadas mas modos da substância divina. Para Espinosa, a alma é

a ideia do corpo, e a ordem das ideias é idêntica à das coisas, no sentido em que nós forjamos uma ideia de cada coisa e em que cada ideia é por seu turno ideia de qualquer coisa. A minha alma é portanto ideia do meu corpo, sendo este um certo modo da substância divina considerada sob o atributo da extensão; tal como a ideia é um modo dessa mesma substância considerada sob o atributo do pensamento, a alma humana é assim uma parte do entendimento infinito de Deus. É na pesquisa de conhecimentos universais que consistirá principalmente a busca de perfeição que a alma humana persegue. A via seguida para aí chegar não é porém única. Começamos com efeito por forjar ideias gerais a partir de experiências vagas, confusas e fragmentárias: por outras palavras, estamos naturalmente inclinados a generalizar as relações entre as coisas e os factos singulares que conhecemos e a extrair delas leis ou propriedades universais. É o que constitui o conhecimento do primeiro género, mundo da imaginação ou da opinião não científica de onde vêm todos os nossos preconceitos e todas as nossas superstições. O segundo género de conhecimento, o da razão, consiste em formar noções universais a partir de noções comuns e de ideias adequadas das propriedades das coisas: estamos aqui ao nível da ciência, definida como formulação de leis gerais às quais chegamos após haver adoptado, graças à experiência e ao procedimento demonstrativo, princípios evidentes e universalmente válidos. Existe por fim um terceiro tipo de conhecimento, a ciência intuitiva, que procede do conhecimento adequado dos atributos da substância para o conhecimento adequado da essência das coisas. Sabendo que não podemos perceber a substância divina senão através dos seus atributos ou propriedades, e não directamente, nenhum conhecimento é mais universal que o dos atributos; e esse conhecimento universal não é, para a alma, um meio de proceder para outros universais, mas para o conhecimento das coisas singulares. Notemos que este conhecimento das coisas é estranho à imaginação, a qual não percebe a essência mas as modificações das coisas; ela já não é o objecto da razão científica do segundo género que se interessa pelas leis gerais e não pela singularidade das essências. A essência das coisas é o objecto da ciência intuitiva. Espinosa dá disso uma aplicação concreta ao demonstrar como chegamos ao conhecimento adequado da essência humana – essência de uma coisa singular – a partir do corpo e do espírito: estes dois modos infinitos permitem estabelecer a relação entre os atributos (a extensão e o pensamento) e as coisas finitas. Cada coisa, escreve Espinosa, tende a perseverar no seu ser; essa tendência ou

esforço (connatus) que tende para a autoconservação apresenta-se como o dado mais profundo e mais essencial da natureza das coisas: «Cada coisa, enquanto está em si, esforça-se por perseverar no seu ser303.» O connatus que distingue o homem exprime-se sob a forma do desejo (cupiditas). A essência humana caracteriza-se pois por esse impulso consciente para a conservação e o desenvolvimento de si. Conhecer adequadamente essa essência implicará examinar as formas de expressão desse impulso, e analisar a partir daí a vida afectiva. As afecções podem ser activas ou passivas, segundo tendam a aumentar ou a reduzir, devido à influência de causas exteriores, o nosso poder de agir: falaremos neste segundo caso de paixões. A principal afecção activa, para além do desejo, é a alegria, pela qual a alma passa de uma perfeição menor a uma perfeição maior. Ao invés, a paixão de que dependem todas as afecções passivas é a tristeza, que faz passar a alma a uma perfeição menor. Todas as outras afecções se reduzem a essas três afecções primitivas: o amor e o ódio, a título de exemplo, não são mais do que uma alegria ou uma tristeza que acompanham a ideia de uma causa exterior. Como chegamos a partir de então à sabedoria, ou seja à perfeição humana? Como já pudemos indicar em diversas instâncias, Deus não é mais do que a natureza, ou seja o conjunto infinito das causas. É precisamente ao chegar a conhecer essas causas que passamos de uma perfeição menor a uma perfeição maior. Estas, para além de serem causas das coisas, são portanto igualmente as causas exteriores do aumento da nossa perfeição: é por termos chegado a conhecê-las que somos mais perfeitos, e isso de um ponto de vista intelectual, na medida em que essa perfeição releva do domínio do conhecimento. O conhecimento das causas é aquilo a que Espinosa chama amor intelectual de Deus, e não consiste, como entre os místicos medievais, no isolamento ascético do corpo e das coisas do mundo para aceder a uma visão extática do absoluto, mas no conhecimento mais rico e mais extenso das essências: quanto mais coisas conhecermos na natureza, maior e mais perfeito será o nosso conhecimento de Deus. A perfeição do homem, a sua maior alegria, consiste pois no desenvolvimento da sua potência natural, ou seja no uso do seu intelecto em benefício da sua própria utilidade, e no estabelecimento de relações com os homens, pois nada é mais útil ao homem do que o homem. É o tema ao qual Espinosa se consagra no seu último escrito que ficou inacabado, o Tratado Político: partindo da constatação de que os homens são

mais guiados pelas suas paixões do que pela razão, é necessário imaginar artifícios institucionais pelos quais os governantes, quer o queiram quer não, sejam espontaneamente levados a obrar pela segurança dos cidadãos ao prosseguirem o seu próprio interesse. Aqui, é ao realismo do acutissimus Machiavellus que se refere muito evidentemente Espinosa: não é ao elaborar modelos racionais a priori mas ao partir do conhecimento da natureza humana tal como no-la descreve a ciência intuitiva do terceiro género – bem como ao agir, quanto ao resto, na base da experiência – que será possível identificar os fundamentos do melhor Estado. Toda a forma de governo (monarquia, aristocracia ou democracia), desde que seja habilmente organizada, é susceptível de reduzir a esfera da potência privada e de aumentar a da liberdade comum. Compreender-se-á desde então que não é desejável determinar um modelo universal que fosse válido para todas as nações e em todas as situações. É assim à elaboração, para a Holanda, de uma constituição aristocrática rica de potencialidades liberatórias, numa época em que a realização da democracia parece comprometida, que se dedicará Espinosa neste último escrito, o qual no entanto não renuncia à possibilidade de um modelo democrático. Mas qualquer que seja o regime de um país, incluindo o regime monárquico, que porém apresenta para Espinosa os maiores perigos e os maiores limites, o objectivo da ciência política não é o de subverter as instituições, o que arriscaria a provocação de um desencadeamento irracional das paixões colectivas. O papel da ciência política consiste em elaborar instrumentos de controlo que permitam, por um lado, dissipar as esferas de despotismo e, por outro, criar um terreno propício ao desenvolvimento da liberdade pública graças à qual cada vez mais homens conseguirão conhecer e realizar a sua natureza, atingir, por outras palavras, a perfeição. PAOLO CRISTOFOLINI 299 L. Strauss, «Comment lire le Traité théologico-politique de Spinoza», in id., Le testament de Spinoza. Écrits de Leo Strauss sur Spinoza et le judaïsme, trad. francesa (do original alemão) de G. Almaleh et al., Paris, Cerf, 1991, p. 191-257. 300 Maimónides, Le Guide des égarés, trad. do árabe (para francês) por J. Wolf, Lagrasse, Verdier, 1979. 301 M. Bloch, Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien, Paris, Armand Colin, 1997, p. 87-94. 302 B. Espinosa, Tractatus theologico-politicus, cap. V. 303 B. Espinosa, Ética, parte III, prop. 6.

John Locke

Locke (1632-1704) foi um membro da Universidade de Oxford, onde se formou em Medicina, ligou a sua carreira ao primeiro conde de Shaftesbury, lorde-chanceler de Inglaterra em 1672, seguiu-o na sua desgraça, viveu algum tempo em Montpellier, frequentou o meio intelectual holandês e regressou a Inglaterra no seguimento da Gloriosa Revolução de 1688, cujo espírito defendeu através das suas obras surgidas logo a seguir. Não deu ao seu pensamento a forma de um sistema. Ele consiste numa série de investigações cuja maturação, jamais concluída, produz estratos sucessivos e que concernem diversos objectos: o espírito, o conhecimento, a crença; a moral e a política; as Escrituras e a religião. A filosofia de Locke nem por isso deixa de apresentar uma unidade sistemática: a de um projecto que entende pôr um método determinado ao serviço de uma única ambição. O método adoptado pelo Ensaio sobre o Entendimento Humano304 é a história do espírito, no sentido não de uma narrativa da formação deste, mas de um inquérito que descreva o que nele se passa sem pretender penetrar-lhe a essência ou a natureza305. O seu correlato é necessariamente uma certa reserva sobre as questões que tal método não permita averiguar. É no «método histórico», e não numa convicção fundadora como a de um céptico, que se encontra a razão do agnosticismo de Locke a respeito do que são no fundo os espíritos, ou ainda a respeito do detalhe da interacção entre o corpo e o espírito. Quanto à ambição, ela é simultaneamente teórica e prática: se se identificar para cada sector do saber a forma e o grau de racionalidade de que ele é capaz, saber-se-á o que é preciso fazer para o levar ao máximo de racionalidade que lhe convenha. Tal ambição supõe que o saber seja diferenciado e comporte zonas que sejam susceptíveis de variadas formas e graus de racionalidade. Locke não entende apenas delimitar o alcance do conhecimento em sentido estrito, mas enriquecer outro tanto a nossa concepção do que é a racionalidade. A delimitação do conhecimento que, na medida em que é «certeza», constitui certamente um ideal, não é porém redução da racionalidade a esse conhecimento.

A racionalidade no plural: graus de conhecimento, razões da crença O conhecimento em sentido estrito é a ciência pela qual um objecto é conhecido inteiramente. É o que Locke chama o «conhecimento científico306», que é realizado na matemática. Ao longo de todo o Ensaio, a aposta de Locke é a de que a teoria moral é capaz de realizar tal exigência. Para além do conhecimento, a crença, à qual se não poderia reprovar a não-realização do ideal de uma ciência perfeita, tem a sua própria racionalidade. Trata-se daquele aspecto do saber a que Locke chama «juízo» ou «opinião» e que se exerce principalmente na aproximação físico-química dos corpos e das suas operações e a propósito das coisas da religião. Na filosofia natural, Locke considera o atomismo como a hipótese mais provável e mais fecunda para justificar a constituição dos corpos. No entanto, o estatuto epistemológico que Locke atribui a essa hipótese corpuscular é o mesmo que ele reconhece à fé religiosa razoável. Nesse ponto, Locke rompe com o postulado cartesiano de uma afinidade profunda entre o físico e o matemático. É verdade que o paradigma da filosofia natural, a seu ver, se acha mais na química do que na mecânica. As crenças religiosas, por seu turno, não são convicções irracionalmente ancoradas em nós; são mais ou menos prováveis e nós somos responsáveis por elas. Com efeito há razões verosímeis para crer e é um dever moral, aos olhos do Criador que nos dotou de tal capacidade, «bem governar o nosso assentimento307» e, mais geralmente, empregar cientemente as nossas faculdades. Os principais problemas práticos que motivaram o trabalho de Locke prendem-se precisamente com a dificuldade dessa regulação da crença. O fanatismo e a intolerância ilustram as consequências de uma carência nesse domínio. O intolerante substitui à discussão legítima sobre as razões de crer, que constituem aquilo em que uma crença normalmente se baseia, uma inaceitável pretensão para reger arbitrariamente a crença de outrem, como se esta pudesse basear-se noutra coisa308. O fanático pretende dispensar-se a si mesmo de todo o exame das razões para crer. Ele ignora que a fé precisa de probabilidades, tal como o conhecimento, no seu domínio, precisa de provas demonstrativas. O conhecimento consiste com efeito na percepção do acordo (ou do desacordo) entre ideias309, o que constitui a proposição310. Quanto à crença, ela é uma presunção do acordo ou do desacordo. Conhecimento e crença são assim as duas maneiras pelas quais nós temos por verdadeira ou falsa uma

proposição311. Esse «ter por verdadeiro» não é arbitrário, mas baseia-se seja na evidência interna da proposição – estamos então perante uma certeza intuitiva –, seja noutras considerações que situam a proposição num contexto de raciocínio ou de experiência. No caso da crença, deve notar-se que ela nunca se baseia numa evidência interna da proposição, mas sempre num contexto. Deste ponto de vista, o fanatismo aspira a uma espécie de intuição num sector que a não suporta. As ideias, as proposições e as coisas Uma proposição é constituída por ideias que estão colocadas numa relação de acordo ou de desacordo. Locke chama «ideia» a «tudo o que é objecto do entendimento quando o homem pensa»312. Para que x seja uma ideia, não é necessário que x seja de uma natureza particular, basta que o espírito se ocupe a seu respeito. Sendo um objecto que está imediatamente sob os olhos do espírito e sobre o qual este pode operar, a ideia não pode ser concebida como um acto mental313. Para além das ideias, em certos casos, existem coisas às quais não temos acesso directo, mas em direcção às quais certas ideias apontam. Sabemos que tais coisas existem nomeadamente através dos efeitos que elas têm sobre nós e especialmente na medida em que elas causam as nossas ideias. O agnosticismo faz-se acompanhar de um realismo causal indirecto. As ideias distinguem-se em ideias simples, em ideias complexas de modo ou de substância, em ideias de relação e em ideias gerais. Cada um destes tipos de ideias corresponde a uma operação particular do espírito. O tipo de operação que dá origem à ideia simples é a afecção passiva; para a ideia complexa, é a combinação; para a de relação, a comparação; e para a ideia geral, a abstracção. A percepção do acordo ou do desacordo entre ideias, na qual consiste o conhecimento, pode ser intuitiva, demonstrativa ou sensitiva. Esta análise supõe que o espírito tem a capacidade de voltar a sua atenção para as suas próprias operações e de ter a partir delas ideias de reflexão. É por isso que o «método das ideias» não poderia apoiar-se nas meras sensações. Locke foi acusado por Stillingfleet, bispo de Worcester, de ser céptico nos planos epistemológico e teológico. Se toda a certeza se baseasse em ideias, estaríamos frequentemente em incerteza. De acordo com a Segunda Resposta ao Bispo de Worcester (1699), esta objecção confunde a questão da certeza com a da extensão do conhecimento. Locke precisa que um «pequeno

conhecimento é ainda um conhecimento, e não cepticismo». Se a razão puder ser assemelhada a uma candeia, esta poderá iluminar uma escassa zona, mas o suficiente para que nesta se veja com clareza. A definição do conhecimento como percepção (ou da crença como presunção) de um acordo ou de um desacordo entre ideias não limita o seu alcance aos seres dos quais temos ideias. Sabemos que certas coisas são, sem sabermos o que elas são. Por exemplo, a crença na existência dos anjos é altamente provável, na medida em que é garantida pela Revelação e também porque a admissão de uma imensa variedade de espíritos seria coerente com aquilo que a experiência nos ensina acerca da imensa variedade dos corpos314. Além disso, «tudo o que nós conhecemos ou cremos é uma proposição315». Ora nenhuma proposição pode ser formada sem que pelo menos duas ideias nela estejam juntas ou separadas. Isso responde à objecção de Stillingfleet, visto que se somos capazes de ter por verdadeiras proposições a respeito de coisas que não conhecemos, teremos de ter devido a isso as ideias que formam tais proposições. Locke tende assim a fazer das ideias ingredientes da proposição e a transformar a proposição em verdadeiro objecto da crença ou do conhecimento. Neste ponto, ele não é tanto o filósofo das ideias como o da proposição. Verdade e realidade Como concebe Locke a verdade de uma proposição e mais geralmente o acordo das ideias e das coisas? Sob a sua pena, em certos casos, como no das proposições que enunciam as propriedades das noções matemáticas, é o acordo entre as próprias ideias que assegura a verdade. Noutros casos, como quando as proposições mobilizam as nossas ideias das substâncias, a verdade consiste na conformidade do acordo enunciado pela proposição com o acordo entre as coisas para as quais as ideias apontam. A questão da adequação das ideias, ou seja das relações delas com as coisas, muda por inteiro consoante tenhamos de lidar com um ou outro tipo de ideias. Ela é complicada em superior grau quando juntamos à consideração das ideias a das palavras – objecto do livro III do Ensaio: com a distinção entre proposição verbal e proposição mental, o erro pode situar-se também ao nível da articulação destas. Em regra geral, as ideias são adequadas quando representam perfeitamente os seus modelos316. Mas, como sempre em Locke, há que desconfiar das generalidades e considerar a questão caso a caso. As ideias simples não são

adequadas senão no sentido em que, pela sua ocorrência, indicam a existência de qualquer coisa que as causou sem nos informar acerca da sua natureza. As sensações são adequadas à existência – e não à essência – de poderes que as coisas têm de as causar e que Locke, no seguimento do químico Robert Boyle, denominou «qualidades segundas317». Quanto às ideias complexas de modo e às ideias de relação, cujos exemplos mais imediatos são as noções matemáticas, elas são plenamente adequadas, mas num sentido bem diferente. Como são construídas pelo espírito, essas ideias são para si mesmas os seus próprios modelos. Finalmente, no caso das ideias de substância, há um afastamento muito grande entre a ideia e a coisa, embora essas mesmas ideias comportem como que a pretensão de descrever as coisas. Podemos justificar de duas maneiras muito diferentes as ideias de substância, segundo as acompanhemos pela pressuposição de uma essência real, ou as analisemos como uma colecção de ideias simples. A essência real é a constituição interna da coisa318, mas devemos constatar com Locke que ela não é objecto de conhecimento. Na segunda concepção, as ideias dos corpos são compreendidas como colecções de propriedades, cuja coexistência num mesmo sujeito constatamos. Esta concepção baseia-se na essência nominal, ou seja na significação do termo expresso na sua definição – mas a consideração dela não nos dá acesso à realidade da coisa e não nos permite compreender como surgem as propriedades desta, embora elas devam ter um fundamento real. Deve pois existir uma relação entre a essência real de uma coisa e as propriedades que detectamos nela e que nos servem para a definir nominalmente, mas ignoramo-la no seu detalhe. É por isso que «todas as nossas ideias complexas das substâncias são imperfeitas e inadequadas319». Quando tratamos dos objectos matemáticos, a essência real é por nós conhecida imediatamente e ela é a razão da conexão natural entre as ideias. A matemática incarna o ideal de um conhecimento adequado, mas não é o conhecimento de outra coisa senão as construções do espírito. Quando nos voltamos para as ideias das substâncias, não conhecemos a essência real da coisa, da qual decorrem as propriedades e que determina as relações e os efeitos delas320. À falta de uma «ciência perfeita», podemos no entanto ter uma opinião provável do quadro geral da explicação. Para isso, recorremos ao modelo corpuscular. Resta uma hipótese, mas que temos bons motivos para adoptar, em particular porque ela se apoia comodamente numa analogia entre as propriedades microfísicas que nos escapam e as propriedades macrofísicas que podemos observar.

Empirismo ou racionalismo? Devemos situar a filosofia de Locke em relação ao empirismo, sem minorar os seus aspectos racionalistas. Isso equivale a precisar o alcance da célebre crítica do inatismo, que é objecto do primeiro livro do Ensaio relativamente ao projecto geral de Locke. Os platónicos de Cambridge afirmavam que todo o conhecimento é reminiscência: o espírito, quando conhece, alimenta-se do seu próprio fundo. Uma primeira maneira de compreender a rejeição do inatismo consistiria em dizer que, se o conhecimento deriva da experiência sensorial, é preciso então rejeitar o princípio das ideias inatas. Não haveria ideias inatas pois todas as ideias seriam factícias e adventícias. Se essa hipótese, frequentemente atribuída a Locke, fosse a boa, o Ensaio deveria então ter começado pelo livro ii, que expõe a origem das ideias. O argumento efectivamente adoptado por Locke consiste em dizer que não há ideias inatas porque a teoria inatista é incoerente e inútil. A sua rejeição não assenta de forma determinante na tese de uma origem empírica do nosso conhecimento, que não passa de um argumento entre outros321. Consideremos a proposição «o branco não é o negro» ou «um quadrado não é um círculo»322. A interpretação empirista consistiria em dizer que os termos da proposição são tirados da experiência sensorial e que a própria proposição é uma cópia de uma experiência anterior. Para Locke, uma proposição desse tipo não é inata, não pelas razões invocadas pelo empirismo, mas porque o nosso conhecimento dessa proposição não assenta em conhecimentos inatos, mas simplesmente na nossa faculdade de intuição. Da mesma maneira, a proposição «Deus existe» não é inata, não porque a ideia de Deus derive de dados sensoriais, mas porque essa proposição é objecto de um conhecimento demonstrativo. Sem subscrever uma tese empirista que reduzisse o conhecimento à experiência sensível ou ao hábito, Locke subscreve inegavelmente uma tese empirista sobre a origem das ideias. Mas não é esta tese que motiva a sua rejeição do inatismo, antes uma outra, racionalista, que se prende com a natureza do conhecimento: ele é percepção (intuição, demonstração, ou conhecimento sensitivo) de uma proposição que consiste num acordo ou desacordo entre ideias. A quantidade de ideias simples directamente oriundas da experiência não basta, aliás, para constituir o conhecimento; deve acrescentar-se-lhe o «exercício da faculdade discursiva», o «uso da razão»323. O conhecimento das normas

A questão do inatismo em moral não se coloca nos mesmos termos que em matéria teórica. Ainda que a existência de um consentimento universal jamais seja a prova do inatismo de uma proposição, é notável que um tal consentimento, que podemos encontrar no caso de certas proposições teóricas, não tenha equivalente nas proposições normativas. Basta observar a diversidade dos costumes e das sociedades. Esta observação não conduz ao cepticismo, mas à conclusão de que as verdades morais não são evidentes. Com efeito, Locke não duvida da existência de regras morais verdadeiras. Pelo contrário, algumas dessas regras são para ele tão verdadeiras quanto os teoremas, ou seja as verdades demonstradas. Ainda aqui, o que permite refutar o inatismo é a tese segundo a qual um conhecimento intuitivo ou demonstrativo não se baseia numa quantidade de noções depositadas num mundo inteligível para o qual o espírito se devesse voltar. É por as regras morais serem demonstráveis que elas não podem ser inatas. Além disso, «não existe uma única regra moral para a qual não estejamos justificados em exigir uma razão324». O inatismo em moral é ainda mais perigoso que o inatismo na teoria, pois ele dispensa a justificação das condutas. Pelo contrário, se uma verdade moral é demonstrável, devemos fazer o esforço de descobri-la por meio de um «exercício do espírito325». Não esqueçamos que a nossa primeira responsabilidade moral se situa no uso que fazemos das nossas faculdades. Na psicologia moral de Locke, é preciso distinguir o nível das regras do dos motivos. O que motiva a acção não é a própria regra, mas o desejo da felicidade e a aversão à infelicidade326, que podem ser reduzidas ao desejo do prazer e à aversão à dor327. As regras indicam como se deve agir, mas não nos levam a agir. O respeito prático por elas não é a mesma coisa que a compreensão delas. Ele assenta nos aguilhões do prazer e da dor, na medida em que a motivação se prenda com a perspectiva de sanções positivas ou negativas – assinalemos, de passagem, que reside aqui a razão do interesse de Locke pela questão da identidade pessoal328, uma vez que as sanções, para serem justas, supõem a identidade da pessoa em causa através do tempo. Há uma parte de hedonismo na concepção da motivação da acção prática, embora Locke não faça do prazer o critério do bem moral. O valor depende de uma regra. As noções morais são com efeito relativas, uma vez que só podemos avaliálas relativamente a uma regra329. As regras são de três tipos: reveladas por Deus ou descobertas pela razão («lei de natureza», dita ainda «lei divina»); impostas pelo magistrado (lei civil); ou ainda operando de maneira implícita através dos códigos de conduta dominantes (lei de opinião). A distinção entre

os três tipos de regras permite conciliar o universalismo da lei divina, no sentido em que esta se dirige a todos, com o relativismo da lei de opinião ou da lei civil. Os nossos juízos morais em situação tanto estão relacionados com os nossos preconceitos como com um ingrediente universal. Os ensinamentos dos três tipos de leis não coincidem necessariamente. Uma das vantagens desta tripartição é que tanto se evita a teocracia como o moralismo e se reforça o pluralismo que torna a tolerância indispensável. Além disso, segundo a concepção voluntarista subscrita por Locke, a lei supõe um legislador que a quis330. No caso da lei divina, que me recomenda que conserve tanto os outros homens como a mim mesmo331, a existência do legislador é demonstrável, mas a dedução da lei divina é problemática. O Ensaio sobre o Entendimento Humano só muito parcialmente realiza a sua ambição de atingir o conhecimento científico no campo da moral. O capítulo 10 do livro IV procede efectivamente à demonstração da existência do legislador recorrendo a uma variante da prova cosmológica. Mas será uma demonstração da lei divina no seu conteúdo? Esta norma é a mais elevada no sentido em que ela pode virtualmente ser descoberta pela razão porquanto é actualmente objecto de uma revelação pela Escritura. Mas Locke acaba por afirmar que a instrução do Evangelho, sendo a mais clara, é, para a maioria dos homens, mais segura do que aquela que pudesse ser trazida por uma demonstração. Como que numa espécie de retractação, que é também uma denúncia de toda a interpretação hiper-racionalista do seu pensamento, Locke escreve o seguinte no seu Cristianismo Razoável (1695): A filosofia parece haver esgotado as suas forças e haver feito tudo o que lhe era possível. Se ela tivesse ido mais longe do que aquilo que constatamos, e se a partir de princípios incontestáveis ela nos houvesse dado uma ética na forma de uma ciência semelhante à matemática, demonstrável em todos os pontos, mesmo isso não teria sido eficaz para o homem na sua condição imperfeita, nem teria constituído um remédio apropriado332. LAURENT JAFFRO 304 O projecto de redacção começa em 1671. A primeira edição surge em 1689. Terá quatro edições durante a vida de Locke. 305 Ensaio sobre o Entendimento Humano, I, 1, 2. 306 Ibid., IV, 3, 26. 307 Ibid., IV, 17, 24.

308 Ver Lettre sur la tolérance et autres textes, ed. J.-F. Spitz, Paris, Flammarion, «GF», 1992. 309 Ensaio, op. cit., IV, 1, 2. 310 Ibid., IV, 5, 2. 311 Ibid., IV, 14, 4. 312 Ibid., I, 1, 8. 313 Locke não segue Descartes e Arnauld neste ponto. Sobre a querela das ideias, ver N. Jolley, The Light of the Soul. Theories of Ideas in Leibniz, Malebranche, and Descartes, Oxford, Clarendon Press, 1990. 314 Ensaio, op. cit., IV, 3, 27. 315 Segunda Resposta a Stillingfleet. 316 Ensaio, op. cit., II, 31, 1. 317 Ibid., II, 8. 318 Ibid., III, 6, 6. 319 Ibid., II, 31, 11. 320 Ibid., IV, 3, 29. 321 Ibid., I, 2, 23. 322 Ibid., I, 2, 18. 323 Ibid., I, 2, 15. 324 Ibid., I, 3, 4. 325 Ibid., I, 3, 1. 326 Ibid., I, 3, 3. 327 Ibid., II, 21, 42. 328 Ibid., I, 27. 329 Ibid., II, 28. 330 Ibid., II, 28, 5. 331 Segundo Tratado da Governação, II, 2, 6. 332 J. Locke, The Reasonableness of Christianity, cap. XIV, ed. J. C. Higgins-Biddle, Oxford, Clarendon Press, 1999, p. 157.

Nicolau Malebranche

Exacto contemporâneo de Luís XIV, o oratoriano francês Nicolau Malebranche (1638-1715) desenvolve uma filosofia que o situa na charneira da idade clássica e do século XVIII. Bebendo das duas fontes maiores que foram Santo Agostinho e Descartes, este filósofo exerceu contudo sobre as Luzes europeias uma influência tanto mais profunda quanto multiforme e difusa. Se teve poucos discípulos, Malebranche teve em compensação numerosos leitores, que viram nele um dos grandes escritores de uma época em que estes não faltavam. Embora o seu pensamento pertença àquela que já foi chamada a «era dos sistemas», os seus diversos elementos serão rapidamente desmembrados, ao ponto de fornecerem material tanto aos defensores do cristianismo como aos da religião natural, ou mesmo a pensadores mais ou menos explicitamente ateus. Oriundo de uma família da burguesia parlamentar, o jovem Malebranche, cuja saúde sempre permanecerá frágil, faz quase todos os seus estudos na casa paterna, e só aos dezasseis anos é admitido no Colégio de La Marche. Após haver estudado teologia na Sorbonne de 1656 a 1659, o jovem entra no Oratório a 18 de Janeiro de 1660; a partir de então passará a maior parte do seu tempo em Paris, à excepção de algumas viagens às residências provinciais da congregação. É durante 1664 que Malebranche é ordenado padre e se converte à filosofia, e muito especialmente ao cartesianismo, ao descobrir por acaso, durante um passeio no Quartier Latin, o Tratado do Homem de Descartes que acabara de surgir. Postulando o mecanismo e a estrita distinção entre a alma e o corpo, esse tratado de fisiologia é acompanhado por diversos textos e comentários dos seus editores (Claude Clerselier e o médico Louis de La Forge) que, com intenção apologética, insistem no valor religioso e na fecundidade científica da filosofia nova. Após dez anos de leitura e de trabalho, Malebranche publica em 1674 e 1675 Da busca da verdade onde se trata da natureza do espírito do homem e do uso que este deve fazer dele para evitar o erro nas ciências. Pela espantosa

profusão dos temas abordados, a Busca inclui numerosos desenvolvimentos que não voltaram a ter equivalente nas obras posteriores de Malebranche. A fim de dar ao seu pensamento uma forma mais acessível e condensada, o oratoriano inaugura em 1677 com as Conversações Cristãs o género do diálogo filosófico, que lhe continuará a ser caro. A Busca é enriquecida em 1678 com um terceiro volume de Esclarecimentos que retornam às questões principais, não sem inflectir já as perspectivas. Ao precisar, no décimo Esclarecimento, os contornos do seu racionalismo, Malebranche ultrapassa uma etapa decisiva no processo de reforma do cartesianismo, e prepara a anexação de novos territórios à filosofia. Contra Descartes, que declara Deus incompreensível por Ele criar livremente as verdades eternas (lógicas, matemáticas e éticas), Malebranche assegura que o homem participa imediatamente na razão incriada, divina e universal, razão à qual o próprio Deus se conforma no acto criador e na governação do mundo ao agir «pelas vias mais simples». Com a publicação em 1680 do Tratado da Natureza e da Graça, a filosofia malebranchista apropria-se das questões que, em parte, continuavam a ser até então apanágio da teologia. Embora sobrenatural, o dom da graça nem por isso deixa de obedecer a leis análogas às que regem a natureza material e os espíritos nas suas operações naturais. A década que se inaugura verá surgir as outras obras principais de Malebranche, das Meditações Cristãs (1683) ao Tratado de Moral (1684) e à imponente síntese que constituem as Conversas sobre a Metafísica e sobre a Religião (1688). É também nessa época que começa a longa e intensa polémica entre Malebranche e António Arnauld, inquieto com as consequências teológicas do Tratado de 1680 e descontente com o que julga ser uma traição do cartesianismo. Pelo seu âmbito propriamente filosófico (a questão da origem e da natureza das nossas ideias), esta polémica lança uma nova luz sobre a questão da representação e da intencionalidade dos actos cognitivos. O debate refere-se essencialmente à questão de saber se a concepção cartesiana da ideia como modo do espírito pode justificar o conhecimento de objectos eternos e infinitos. Como testemunham as suas obras matemáticas, os seus trabalhos sobre o movimento e a sua polémica com Leibniz a esse respeito, a sua nova teoria das cores exposta no último Esclarecimento ou as suas pesquisas relativas à impossibilidade da geração espontânea, Malebranche foi um actor importante da vida científica do seu tempo, o que lhe valeu ser eleito para a Academia das Ciências em 1699. Os últimos anos da sua vida testemunham uma actividade sempre mantida, marcada nomeadamente pelas reedições das suas principais

obras, que Malebranche retoca à medida das evoluções do seu pensamento. Há provavelmente várias maneiras de se ser cartesiano. Para os contemporâneos de Malebranche, o autor do Discurso do Método permanece mais actual que o das Meditações Metafísicas. Descartes mantém-se excepcional entre todos os filósofos, pelo seu esforço para romper com o método, e portanto com a visão do mundo dos seus antecessores escolásticos. No momento de concluir a sua primeira obra, Malebranche, que acaba de dirigir firmes críticas à física de Descartes, resume assim os princípios da sua atitude: «Confesso porém que devo ao senhor Descartes ou à sua maneira de filosofar os sentimentos que oponho aos dele, e a audácia de os retomar333.» Jogando com o duplo sentido do termo, Malebranche vai retomar (no sentido de uma adesão ou de uma repetição) o método para melhor retomar (no sentido de uma emenda) certas teses metafísicas e físicas. É portanto graças ao método cartesiano que é retomada em novos moldes a questão do fundamento dos conhecimentos humanos. De Descartes, Malebranche herda a eliminação do provável, a confiança na evidência das ideias claras e distintas334 e a afirmação da autonomia da razão; como ele, recusa a precipitação e desconfia dos preconceitos. O campo próprio de competência do filósofo e o do teólogo acham-se assim bem definidos e nitidamente delimitados. Enquanto o teólogo adere pela fé a mistérios que não seria capaz de sondar e se baseia na Revelação, na autoridade dos Pais da Igreja e no consenso da tradição, o filósofo reivindica tratar, somente pelas forças do seu espírito e sem se submeter em nada a uma qualquer tradição intelectual, todas as questões para as quais se pode obter evidência335. Mas, como o filósofo é esclarecido pela razão, que é igualmente a de Deus, ele não tardará a empreender sondar os caminhos dela. Em última análise, filosofia e Revelação constituem os dois modos distintos, mas afinal convergentes, pelos quais Deus se revela ao homem. A interrogação sobre o fundamento da verdade e a origem dos nossos conhecimentos não poderia porém ser dissociada de uma análise concreta das condições em que funciona o entendimento humano. Convém, para Malebranche, não subestimar o facto de o homem ser composto de um espírito unido a um corpo que pode perturbar – ou igualmente favorecer – o trabalho do espírito. Antes de propor um método no seu último livro, a Busca empreende assim a análise das múltiplas causas dos nossos erros, repartindo-os segundo as diferentes faculdades do espírito (sentido, imaginação, entendimento). A

própria vontade, bem como os múltiplos motivos que podem incliná-la para o erro, são objecto de um estudo minucioso, a tal ponto é preponderante o seu papel no juízo verdadeiro. Contrariamente às de Descartes ou de Espinosa, e nisso se aproximando mais do pluralismo leibniziano, as diferentes obras do oratoriano nem sempre apresentam o mesmo ponto de partida. Enquanto a Busca privilegia o estudo das faculdades do espírito e do seu funcionamento, as Conversas partem da distinção entre a alma e o corpo para seguidamente afirmarem a tese dita da «visão em Deus» das ideias. Pode-se porém entrar no «sistema» a partir daquela que foi uma das suas intuições fundamentais: os seres criados, tanto os corpos como os espíritos, estão, por natureza, desprovidos de todo o poder causal. Por si próprio, o homem nada pode. Tal intuição, a um tempo metafísica e religiosa, na medida em que desembaraça definitivamente a filosofia do paganismo latente que comprometia o seu valor desde a Antiguidade, justifica a concepção malebranchista da natureza, da antropologia, da teoria do conhecimento, ou ainda dos principais aspectos da ética. A concepção da causalidade desenvolvida por Malebranche releva simultaneamente do desejo de glorificar Deus na natureza e de acatar sem falhas o princípio das ideias claras e distintas. Se temos uma ideia clara e distinta da matéria extensa e das suas propriedades (figuras e movimentos), não poderíamos em compensação representar a causalidade que, por exemplo, produz o movimento de um corpo quando um outro o toca. Daí se segue que a causalidade não pertence aos corpos, cujos choques não passam de «causas ocasionais» segundo as quais Deus, única verdadeira causa eficiente, produz os movimentos na natureza. A ligação causal reduz-se à conexão constante e invariável da ocasião (aqui, o choque dos corpos) e da potência causal, que age observando constantemente as leis do movimento. A glória de Deus nunca se manifesta melhor do que no curso regular e uniforme da natureza – algo de que se recordarão os pensadores das Luzes. O mesmo princípio explicativo permite superar a contradição com que se confronta a antropologia cartesiana. Embora esforçando-se por estabelecer a distinção real da alma e do corpo, Descartes nem por isso deixa de afirmar que as duas substâncias estão realmente unidas na medida em que agem reciprocamente uma sobre a outra. À maneira de Espinosa e de Leibniz, que recorrerá à noção de harmonia, Malebranche vê nesta tese uma dificuldade cujo ocasionalismo oferece a solução. Sendo a interacção real de duas substâncias ontologicamente heterogéneas pelo menos tão ininteligível quanto a produção

de um movimento por um corpo, ele estende o princípio das causas ocasionais ao domínio da união da alma e do corpo. Nesta perspectiva, o que tem lugar na alma é a causa ocasional da produção por Deus das afecções corporais correspondentes: assim, é Deus quem efectivamente ergue o nosso braço quando nós o queremos. Reciprocamente, as afecções do nosso corpo são causas ocasionais das modificações da nossa alma, tais como as sensações: não é o espinho que efectivamente nos pica, mas Deus que nos afecta com uma dor correspondente à lesão que o espinho produz na nossa carne. A união psicofísica define-se portanto como um conjunto de conexões entre eventos sem relação intrínseca, cuja correlação constante é assegurada pela vontade divina. Desprovidos de toda a potência causal, os corpos não poderiam afectar o espírito, tal como o espírito não poderia produzir por si mesmo as suas ideias quando está em presença dos corpos. A teoria do conhecimento obedece portanto à preocupação de reservar a Deus o exclusivo da causalidade. Uma vez que as ideias não residem no nosso espírito e que não provêm dos corpos, resta que elas são vistas em Deus336. Segundo Malebranche, os caracteres de necessidade, de infinidade e de imutabilidade que se ligam às ideias confirmam a sua tese. Ao fazer isso, o filósofo entende oferecer uma solução para o problema do conhecimento tal como Descartes o havia formulado: como explicar que ideias nascidas connosco ou inatas, e definidas como os modos de um espírito finito, possam representar objectos situados fora deste, ou fazer-nos conhecer o infinito? Malebranche entende além disso procurar um fundamento inabalável para o saber, ao colocar o nosso entendimento em contacto imediato com as ideias, e portanto com a razão divina. É assim preciso distinguir mais claramente do que Descartes as ideias, claras, distintas e universais, e as sensações, sempre particulares e confusas, uma vez que elas não nos informam da natureza dos corpos, mas antes da utilidade que têm para nós. A «visão em Deus» permite pois atingir ideias universais, arquétipos ou essências das criaturas, tais como a ideia de matéria extensa, extensão que é dita «inteligível» por oposição à extensão criada que, em si mesma, permanece para nós perfeitamente invisível. O mesmo é dizer que não conhecemos tanto as coisas como as ideias delas. Acedemos com efeito às ideias contidas no Verbo divino, mas não às coisas existentes, que Deus produz e conhece na sua mera vontade. A existência dos corpos não pode pois, em rigor, nem deduzir-se das ideias, nem ser demonstrada racionalmente; ela será confirmada pela

Revelação, que ensina que Deus criou o mundo. O problema do conhecimento do individual permanece colocado com acuidade, como testemunha, por exemplo, a tese segundo a qual não temos nenhuma ideia clara da nossa alma337. A dependência cognitiva do homem em relação a Deus é redobrada por uma semelhante heteronímia na ordem ética. Se o homem não é para si mesmo a sua luz, como repete frequentemente Malebranche citando Santo Agostinho, ele não é também a origem dos valores que devem orientar as suas acções. É em Deus que vemos aquilo a que Malebranche chama ordem, ou seja a hierarquia das perfeições divinas, a partir das quais as criaturas foram produzidas e são mais ou menos dignas de amor. A moral dota-se assim de um fundamento comparável ao das ciências teóricas. Mas os textos relativos à ordem revelam uma dificuldade análoga àquela que assinalámos a propósito do conhecimento dos seres singulares: com efeito continua a ser perigoso fundar uma ética concreta a partir de uma ordem que hierarquiza perfeições necessariamente universais. Consciente da dificuldade, Malebranche fará inflectir a sua moral privilegiando, nos seus últimos textos, o sentimento de prazer, que se presume mover mais eficazmente a vontade. Por meio de uma daquelas inversões que se lhe tornaram habituais, o pensamento do piedoso oratoriano abrirá portanto perspectivas aos teóricos de um hedonismo que nem sempre será cristão. JEAN-CHRISTOPHE BARDOUT 333 De la recherche de la vérité, VI, segunda parte, cap. 9, OEuvres complètes, Paris, Vrin, «Bibliothéque des textes philosophiques», 22 vols. surgidos desde 1958, vol. 2, p. 449; ed. J.-C. Bardour et al., Paris, Vrin, 2006, vol. 2, p. 402. 334 Ibid., I, cap. 2, § 4. 335 Ibid., I, cap. 3, § 2. 336 Ibid., III, II, cap. 6. 337 Ibid., III, II, cap. 7.

A ciência da natureza humana Consciência, razão, afecto na idade clássica

Na alvorada da idade clássica, já não é tanto a razão mas a consciência aquilo que define o homem: «Sei melhor o que é homem do que sei o que é animal, mortal, ou racional. Para satisfazer uma dúvida, deram-me três338.» Tal como Montaigne, o homem apreende-se a si mesmo como consciência. Descartes retomará o argumento: O que é um homem? Direi eu que é um animal racional? Decerto que não, pois seguidamente seria preciso procurar o que é um animal, e o que é ser racional, e assim a partir de uma única pergunta cairíamos insensivelmente numa infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas339.

As razões de uma tal mutação340 são numerosas, mas todas se exprimem na desqualificação da lógica aristotélica, que compreendia o real sob os géneros e as suas diferenças específicas. Um tal distanciamento procede, em Montaigne, de um cepticismo que, prendendo-se com a língua, atinge a razão na sua pretensão de dizer o ser: «Não temos nenhuma comunicação com o ser341.» A partir daí, a pertença do homem ao mundo, e por conseguinte a relação feliz do homem e do ser, tal como ela é mediatizada pela razão, perde a sua evidência. Melhor, é a própria razão que se acha inquietada, pois na passagem do século XVI para o XVII as obras contemporâneas de Montaigne, de Shakespeare e de Cervantes transformam-na em possível loucura. Essa inquietação teórica é partilhada por Descartes, que dela se alimenta. Já não se trata apenas de pôr em causa a capacidade da razão para atingir a verdade, mas antes de afrontar a possibilidade de a razão ser louca, ou seja de ela produzir um sistema de ficções tão bem agenciado que não dispomos de qualquer meio de nos emanciparmos dele. É por isso que cabe ao sujeito estatuir sobre a razão, e não à razão determinar o estatuto do indivíduo. Antes de ser concedida à coisa, a razão é o pensamento de um sujeito; juízo antes de ser conhecimento. Por isso o pensamento, do qual a coisa agora carece, volta-se para si mesmo de maneira a perceber que é ele que determina o valor da razão, que é por ele e para ele

que há objectos a pensar: será preciso portanto que a própria razão seja fundada, garantida, assegurada; será preciso que, por seu turno, tal como os sentidos, ela exiba os títulos que lhe atribuem o direito de estatuir sobre os seus objectos. Este primado da consciência implica que a articulação dos elementos constitutivos do homem seja reconfigurada. Com efeito, quando a razão define o homem, as paixões já não podem ser compreendidas senão como aquilo que no homem participa ainda da animalidade, de uma maneira ou de outra. Mas quando a razão não é mais do que uma faculdade entre outras – ainda que fosse reconduzida como a mais digna e reconhecida como a única capaz de transportar o edifício da ciência –, a paixão não pode ser simplesmente determinada relativamente a ela, e de maneira negativa. A afectividade assume então uma nova significação. Sozinha, ela permite à filosofia da consciência escapar-se ao seu horizonte solipsista. Por estarem suspensas da reflexão, a razão e os dados da sensibilidade surgem como aptos a jogarem plenamente o seu jogo mesmo que o mundo não existisse. Em compensação, a afectividade instala-nos imediatamente na relação com uma realidade exterior inegável. É sempre possível dizer que não sabemos o que nos faz mal, nem como podemos sentir o mal; é ocioso para o filósofo afirmar que a queimadura não está na chama, nem mesmo, se quisermos, no seu corpo próprio, uma vez que, a bem dizer, é a alma que sente. Para o dizer na linguagem do século XVII, cor e dor estão, enquanto representações, situadas no mesmo plano. Mas, enquanto sentimentos, as coisas são diferentes, pois o prazer e a dor significam imediatamente para nós, por si mesmos, a nossa passividade, e por conseguinte dão-nos a experimentar a presença irredutível de uma realidade exterior que age sobre nós, qualquer que seja a sua natureza. Por isso, embora o ego se tenha tornado o princípio do conhecimento (ou do desconhecimento), ele nem por isso é a instância que define propriamente o ser humano: também Deus, ou os anjos, dizem ego. Não é portanto o ego que faz o homem, uma vez que eu não perderia nada desse ego, mas tudo da minha humanidade, se perdesse o meu corpo. O homem não é a sua alma mas um composto de alma e de corpo, pelo que não é tanto na pureza do sujeito pensante que o encontramos quanto na interpenetração, impura e opaca à razão, da consciência e do afecto. Da consciência ao desejo O dualismo cartesiano da alma e do corpo faz da paixão (que se deve entender no sentido lato de afecto, polarizado em prazer e dor) um objecto

teórico eminentemente original. Signos da minha corporeidade, as paixões nem por isso deixam de ser sentidas na e pela minha alma apenas, pelo que são espirituais nesse sentido. Não se deduzirá pois a paixão nem das leis da mecânica, que regem integralmente o corpo, nem das propriedades de uma alma que vivesse, sem a menor paixão, uma vida plena e inteira. Deste modo, por mais paradoxal que isso possa parecer, o dualismo cartesiano, logo que sai das suas paragens metafísicas e físicas para finalmente explorar o campo da antropologia, faz da paixão o centro da sua definição de homem342. A união da alma e do corpo, que se efectua na paixão, resiste à captação abstracta pelo entendimento, e mesmo à apreensão imaginativa. Ela é mais sentida do que pensada: As coisas que pertencem à união da alma e do corpo não se conhecem senão obscuramente pelo entendimento apenas, ou mesmo pelo entendimento auxiliado pela imaginação; mas conhecem-se muito claramente pelos sentidos343.

Descartes opera assim uma revolução filosófica que faz do homem um ser de paixão, definido pela sua passividade, pela sua relação com uma exterioridade que se oferece mais na confusão do vivido do que na distinção do concebido. A promoção da consciência faz do homem enquanto homem um ser de sentimento. Privado de toda a validade no que concerne o conhecimento metafísico e físico, o sentimento rege integralmente o domínio da vida. A percepção sensível não nos dá acesso ao real, sendo as representações que temos das coisas determinadas não pelo que elas são mas pelo uso que delas temos. É o útil e o nocivo, não o verdadeiro e o falso, que desenham e coloram as coisas, tornadas objectos. A percepção sensível está submetida à lei do prazer e da dor, e de todas as paixões que dela decorrem. A vida mantém-se, prossegue e reforça-se sem que para isso seja necessário um saber racional, com a natureza regulando o composto de alma e de corpo que nós somos. É por isso que as paixões «são todas boas pela sua natureza344». A percepção sensível enquanto é sentida, o prazer, a dor, as paixões preenchem uma função vital; são elementos do vivente humano, que cabem à organização material do corpo na medida em que esta deve absolutamente dispor um espírito que lhe é ontologicamente heterogéneo a reagir em vista da preocupação que ele reclama: «A utilidade de todas as paixões não consiste senão em que elas fortificam e fazem durar na alma pensamentos, os quais é bom que ela conserve, e que, sem isso, poderiam

facilmente ser apagados345.» Pelas paixões, e a ordem inteira da sensibilidade, o corpo e a alma pertencem-se mutuamente. Ora essa dupla pertença da afectividade ao corpo e à alma não oferece solução antropológica ao problema do dualismo metafísico senão reconduzindo o dualismo ao próprio interior do cogito. É que na realidade o dualismo metafísico da alma e do corpo envolve a desvalorização do corpo. Não foi somente em Berkeley que o corpo, no sentido de uma realidade material qualquer (esta mesa diante de mim, mas também a minha mão), desapareceu, foi em toda a filosofia clássica, incluindo a materialista. Se com efeito entendermos pelo termo pensamento «tudo o que está de tal modo em nós que dele somos imediatamente conscientes346», então a existência dos corpos escapa inevitavelmente a toda a apreensão intelectual. Segundo Descartes, não temos mais do que uma «grande inclinação para crer347» que as nossas ideias de corpo venham de corpos que existam realmente fora do espírito, e não é preciso menos do que a veracidade divina para fundar a nossa confiança em tal pretensão. Malebranche radicaliza essa tese: o que a sensibilidade me dá não é o corpo, mas uma simples modificação da minha alma. Sentimos decerto o corpo, mas, justamente, o corpo sentido não é o corpo real: «Nem o nosso corpo nem os das cercanias podem ser objecto imediato do nosso espírito; não podemos aprender pelo nosso cérebro que ele exista actualmente, e muito menos que haja corpos que nos cerquem348.» A existência não é de todo vista, ela é apenas experienciada. Há portanto uma cisão radical entre a ordem das ideias e a do sentimento. Essa pregnância da representação opera igualmente entre os empiristas, e Locke terá o cuidado de fazer do nosso conhecimento da existência das coisas materiais uma espécie à parte de conhecimento, diferente daquela pela qual tanto temos a intuição da nossa existência como da inferência que nos permite descobrir a de Deus349. Pode portanto dizer-se que há um horizonte berkeleyano em todo o pensamento moderno, até Hume e Kant. Certamente que, à parte Berkeley, para o qual «esse est percipi350», todos afirmam que o corpo, na sua materialidade, existe. Mas na realidade ele desapareceu efectivamente no plano teórico, uma vez que não é captado na sua essência senão por representação, e que, quanto à existência, esta é estabelecida pelo sentimento cego constitutivo do vivido. O corpo não é portanto objecto de ciência senão na medida em que é matematizado, ou seja determinado pela ideia da grandeza e das suas relações. Quanto à alma, ela ordena o seu pensamento para a racionalidade nos domínios físico e metafísico, e para o sentimento na esfera da vida. É de facto no interior do ego que se joga a tensão entre evidência racional e evidência sentida. Ora,

se a alma pode sentir-se dona de si mesma no exercício da razão, não é esse o caso na vivência do sentimento. Apesar da infinita diversidade dos seus objectos, a razão procede por ideias claras e distintas, ao passo que o sentimento releva do instinto, que o torna por natureza refractário à apreensão intelectual, pelo que a consciência, como abrange toda a realidade, toma a seu cargo a parte de opacidade que, outrora, relevava fosse da corporeidade animal, fosse da parte inferior da alma. Doravante, a consciência, por ser una, indivisível, integralmente espiritual, recolhe em si todo o peso do ser, ainda que, princípio fundador, ela se torne contudo sofrivelmente obscura, visto não poder justificar os seus conteúdos, sobre os quais constata que lhe chegam de alhures ao mesmo tempo que ignora o que eles poderiam ser fora dela mesma. Há aí um nó que seria preciso desatar – ou cortar. O preço a pagar para fundar toda a ontologia na consciência está à medida do paradoxo, uma vez que se trata de fundar a nossa relação com o ser numa instância que escapa, ela própria, à lógica do ser. Com efeito, toda a filosofia que faz da consciência a instância pela qual existe o ser se vê obrigada a cindir o conhecimento em dois pólos: o pólo objecto (isto é uma mesa) e o pólo sujeito (eu percebo a mesa, que não é mais do que a minha representação). Ora o pólo sujeito é por natureza inobjectivável. Pois se eu abandono o objecto para fazer da minha consciência que o vê o novo objecto do meu olhar, a cisão reproduz-se: há a instância que observa e a instância observada. A consciência jamais pode portanto captar-se a si mesma directamente; pior, nessa duplicação reflexiva, ela perde de vista o objecto – doravante longe do olhar, focalizado no trabalho da consciência –, sem com isso ganhar o novo objecto que deveria ser para si mesma. A estrutura sujeito/objecto torna opaco o sujeito ao tirar realidade ao objecto. O conhecimento acha-se assim inteiramente suspenso de uma instância que só pode dar luz permanecendo ela própria na obscuridade. O gesto pelo qual a consciência se torna princípio fá-la sair da ordem do conhecimento. Por isso Descartes legara como tarefa aos seus sucessores produzirem uma teoria da consciência que tivesse um conteúdo doutrinal, ou pelo menos gnoseológico. Mas isso implicava que a consciência fosse reintroduzida na natureza. A idade clássica não sairá dessa tensão, que a dinamiza em profundidade. Ou então basear toda a nossa relação com o ser e a razão – ou seja, também com Deus – na consciência, deixando-a pelo seu lado fora do campo do conhecimento, ou então investir a consciência com o conhecimento e, partindo do princípio de que o estava, constituí-la como objecto. De facto, independentemente das intenções de uns e de outros, é esta

segunda alternativa que será escolhida pela maioria dos grandes filósofos. O cogito havia dado a Descartes aquela evidência superior a partir da qual ele formara a «regra geral351» para julgar tudo, uma vez que, ao reflectir sobre essa evidência, ele não achara nada nela além da clareza e da distinção que o haviam constrangido a dar-lhe o seu assentimento. Ora esses mesmos critérios viram-se agora contra o cogito para mostrar que ele não é claro. Tal ataque, dirigido de resto não tanto à consciência como à absolutização desta, assume diversas formas no mundo filosófico após Descartes. É assim que Espinosa naturaliza integralmente o homem ao fazer dele um ser cuja essência, tal como a de todo o ser, é o esforço para perseverar no seu ser352. Quanto à consciência, pelo simples facto da reinscrição do homem no campo da natureza, ela torna-se mais um princípio de erro do que de saber. É com efeito por os homens terem consciência do seu desejo embora ignorem as causas reais que os levam a desejar que se crêem livres: Os seres humanos têm a opinião de que são livres por estarem cônscios das suas volições e das suas apetências, e nem por sonhos lhes passa pela cabeça a ideia das causas que os dispõem a apetecer e a querer, visto que as ignoram353.

A importância acordada à consciência mede-se pelo grau de efectiva ignorância que se tem de si. Leibniz, pelo seu lado, inscreverá o inconsciente no próprio cerne da consciência, com a sua teoria das pequenas percepções354. Mesmo num «cartesiano» como Malebranche, há uma destituição do cogito, pois não temos nenhuma ideia de nós mesmos, mas somente um sentimento355. Mas é sobretudo com a tradição empirista que a teoria da consciência irá oferecer resultados espectaculares, pois ela destrói a própria pertinência da noção de substância. Já com Locke, a substância é denunciada como um termo vazio356, um termo quimérico que obsta à constituição da ciência, e nomeadamente à compreensão do entendimento humano. Convém substituir esse vocabulário oco pela determinação da essência nominal357 de uma coisa, ou seja a colecção das suas qualidades sensíveis. Não mais do que o corpo, o espírito não permite apreender a substância. Quando ele reflecte, descobre as suas operações, não a natureza intrínseca do seu ser. O olhar filosófico, orientado para a descrição, assume como tarefa escrever a história natural do espírito, tratando-o no mero plano dos fenómenos358. Apesar de tudo o que separa as suas filosofias, Malebranche e Locke participam igualmente nesse grande movimento de naturalização do espírito.

Não se captando a alma mais a si mesma como um ser através da consciência, são apenas as modificações dela que se tornam susceptíveis de serem conhecidas. Ora a focalização do olhar sobre as maneiras de ser do espírito realça aquilo que até então não fora teorizado, a saber o facto de que, no fundo, o espírito é movido pelo desejo. Hobbes e Espinosa, pois também para eles o espírito não era uma substância, tinham podido ver que ele é essencialmente movimento, e que o desejo é a chave da sua compreensão. O que caracteriza o espírito humano em Hobbes é, com efeito, que as suas representações são encadeadas por associação, mas de tal maneira que, sem um desejo que lhe oriente sub-repticiamente a concatenação, a rede de ideias permanece vaga, errática, literalmente fantástica. É somente quando ela está orientada para um fim, e além disso um fim prático, que a cadeia das representações é susceptível de se racionalizar. A razão, como puro cálculo, não nasce senão pelo trabalho do desejo359. Para ser diferente, a teorização espinosista nem por isso deixa de propor a este respeito uma psicologia semelhante. As representações associamse em função do útil, e o sábio não difere do insensato senão por saber qual o útil que lhe é próprio, e não porque escape à lógica pragmatista. Segundo modalidades profundamente diversas, parece pois que à medida que o século avança, e por uma influência de Hobbes ter vindo desfazer tardiamente o triunfo cartesiano, a consciência, também ela já não captada em si mesma mas nas suas operações, aparece como que dinamizada, do interior e sem o saber, pelo desejo. Esse desejo chama-se «esforço» em Hobbes e Espinosa e, em Malebranche e em Locke, «inquietação»360. Considerar a vontade ou o desejo pelo ângulo da inquietação, é afirmar que só aspiramos ao bem na medida em que temos consciência de sofrer de uma carência; é inscrever o valor na consciência que temos de estarmos separados dele, e, por conseguinte, a consciência no movimento pelo qual buscamos o objecto valorizado pela carência. É pois a carência que anima o espírito, o facto de ele não ter o seu ser em si mesmo, o que significa que na prática ele é ordenado e radicalmente compreendido como estando inscrito na finitude361. Nascimento da ciência do homem Na passagem do século XVII para o século XVIII, as condições de emergência de uma ciência do homem estão pois estabelecidas, uma vez que para conhecer o espírito basta determinar as leis que regem a afectividade. É em meados do século XVIII que o homem se torna explicitamente objecto de ciência. A tensão

entre consciência e saber, ou por outras palavras entre o homem como sujeito e o homem como objecto da ciência, exprime-se então de maneira perfeitamente visível. A antropologia de Buffon é reveladora a esse respeito. O mero facto de estudar o homem no quadro de uma História natural testemunha o estado avançado da objectivação do fenómeno humano. Resta que a análise por Buffon da natureza do homem se inscreve no espaço dualista de um cartesianismo vulgarizado: «Há uma distância infinita entre as faculdades do homem e as do mais perfeito animal, prova evidente de que o homem é de uma natureza diferente362.» Estando estabelecida a espiritualidade da alma, a consideração do «homem interior» deve ser abandonada, e para o naturalista as coisas só começam verdadeiramente com a «história do seu corpo363». Uma ciência do homem de inspiração cartesiana, quaisquer que sejam a sua preocupação com os factos e a sua emancipação da doutrina dita do animalmáquina, não pode constituir-se como ciência total da natureza humana, porque o espírito, remetido para a sua espiritualidade, escapa ao conhecimento. É somente com Hume que a ciência do homem se liberta do duplo escolho do «espiritualismo» (não se pode conhecer nada do princípio espiritual pelo qual tudo é conhecido) e do «materialismo» (não se pode conhecer a natureza humana senão inscrevendo-a na natureza). Com efeito o homem é para Hume o ser pelo qual a natureza advém: não há natureza alguma fora da maneira pela qual o homem se torna para si mesmo natureza humana. Destacados uns dos outros, os materiais do espírito (as suas percepções – impressões e ideias) não se ordenam num modo mental senão pelos laços que entre si tecem os três princípios de associação que são a contiguidade, a semelhança e sobretudo a causalidade (a mais rigorosa das relações). A associação das ideias fabrica portanto antes de mais um sujeito364, e a realidade torna-se natureza porque o espírito projecta a sua própria elaboração física para o exterior de si mesmo. A natureza exterior, como totalidade regulada das coexistências e das sucessões fenomenais, é pois efectivamente uma manifestação das leis psicológicas que regem o espírito humano. Mas se é de facto essa a condição do aparecimento de uma ciência total do homem, ainda é preciso que esse objecto novo – o homem – seja susceptível de ser apreendido. Ora o espírito não pode servir de objecto a nenhuma experiência directa, nem mesmo a uma simples observação. Que ele se tenha tornado um objecto a conhecer, deixa incólume a questão das modalidades da sua apreensão efectiva. Locke já havia designado o problema: «O entendimento semelhante ao olho faz-nos ver e compreender todas as outras coisas, mas não

se apercebe de si mesmo. É por isso que são precisos arte e cuidados para o colocar a uma certa distância, e proceder de modo a que ele se torne objecto das suas próprias contemplações365.» Nem por isso ele deixara de basear as suas análises na instrospecção. É Hume quem, em primeiro lugar, elabora o problema em termos que o conduzem à solução. Antes da crítica comtiana da introspecção, Hume compreende que esta é não só um instrumento pobre e susceptível de nos enganar, mas também que ela é radicalmente nula no seu princípio. Pois o próprio gesto pelo qual nos observamos a nós mesmos modifica aquilo que é observado. É preciso pois sair de si para contemplar as obras do espírito, as suas manifestações diversas na vida vulgar. Com efeito a reflexão perturba «a tal ponto a operação dos meus princípios naturais que seria impossível tirar dos fenómenos uma conclusão justa. Nesta ciência [do homem], temos de colher as nossas experiências por uma observação prudente da vida humana, e tomá-las tal como a conduta dos homens em sociedade, nos seus misteres e nos seus prazeres, as fazem surgir no curso ordinário do mundo366». O espírito pode agora tornar-se objecto de um conhecimento, mas o conteúdo desse conhecimento será determinado pelo método, que comanda sempre a constituição do objecto que atribui a si mesmo: apreendido nas suas obras, o espírito não pode de todo surgir senão como um órgão integralmente prático. De facto, com Hume, a razão é integrada como um momento da paixão. O mesmo sucede com a própria inferência causal, a mais importante das relações. Sem ela, o real reduzir-se-ia ao conjunto lábil das nossas percepções: impressões actuais dos sentidos, recordações, ideias – nada que faça um mundo. Portanto só a causalidade organiza os dados da experiência num conjunto coerente que nos aparece como um mundo. Ora a inferência causal, e com ela o raciocínio experimental que é a sua forma rigorosa e cientificamente aceitável, está completamente interessada: A questão de saber, entre os objectos, quais deles são causas e quais são efeitos, não poderia apresentar o menor interesse se o conjunto das causas e dos efeitos nos fosse indiferente. Quando os próprios objectos não nos afectam, eles jamais podem ganhar influência pela sua conexão; e é evidente que, como a razão não é mais do que a descoberta dessa conexão, não pode ser por meio dela que os objectos são susceptíveis de nos afectar367.

É toda a razão, tanto a científica como a comum, que se organiza em torno da prática. A razão é então reabsorvida no instinto: «O próprio raciocínio experimental, que partilhamos com as bestas e do qual depende toda a conduta

da vida, não é mais que uma espécie de instinto ou de força mecânica que age em nós sem que o saibamos368.» Compreende-se a partir daí que a razão seja e não deva ser mais do que a «escrava das paixões369»: ela pode muito bem ensinar-me o que devo fazer para satisfazer a paixão, mas não poderia avaliar a paixão em si mesma. Com efeito é sempre a paixão mais forte que determina a minha vontade. Sucede simplesmente que, ao contrário do que crêem os padres, os moralistas e os filósofos, as paixões mais fortes não são as paixões violentas mas as paixões mais calmas, as que estão tão profundamente enraizadas em nós que constituem o fundo da nossa natureza: É evidente que as paixões não influenciam a vontade proporcionalmente à sua violência ou à desordem que ocasionam no humor; mas, pelo contrário, que, quando uma paixão se torna um princípio confirmado de acção e de inclinação predominante da alma, ela deixa de produzir nela, vulgarmente, agitação sensível. Como tudo acaba por ceder à sua repetição insistente e à sua força própria, a paixão dirige as acções e a conduta, sem encontrar oposição e sem a emoção que acompanha naturalmente todas as suas irrupções. Devemos por conseguinte distinguir entre uma paixão calma e uma paixão fraca; entre uma paixão violenta e uma paixão forte370.

Aquilo a que chamamos razão prática não é na realidade mais do que paixão calma. O mundo que a filosofia encontra em meados do século XVIII é um mundo invertido: motivando a imaginação e a razão, o afecto determina a figura que o mundo assume: o real fez-se meio. Vemo-lo muito claramente pela maneira como o laço social é teorizado. A partir de Descartes, a paixão está na ordem do dia: ela exprime mais do que perturba a natureza. As paixões já não são apenas o lugar do afrontamento dos homens, mas também o da sua socialização. Depois de Descartes, toda a ordem da sociedade se vê progressivamente pensada segundo o modelo da instituição de natureza: primeiramente com Malebranche, as relações afectivas familiares prolongam as relações naturais que Descartes estabelecera entre o corpo e a alma371. Bayle opera seguidamente uma verdadeira revolução teórica ao integrar no jogo da natureza os preconceitos e as crenças mais irracionais372; é o conjunto do mundo dos erros e das paixões que se acha explicado pela sua função de conservação da sociedade. O ciúme, a vaidade, a necedade são necessários à manutenção das sociedades humanas. Entre os jansenistas, o amor-próprio fabrica uma sociedade comparável nos seus efeitos àquela que poderia fazer a caridade se esta não desfalecesse373. O automatismo passional justifica a permanência social. Ora, enquanto a naturalização do espírito conquista o

campo das relações sociais, a vontade emancipa-se de todo o fundamento na natureza. A tensão, interna à consciência, entre actividade e passividade, focaliza-se numa tensão entre a actividade passionalmente motivada e o acto do querer. Ao mesmo tempo que vê nascer o projecto de uma ciência da natureza humana, ciência que se quer a si mesma naturalista nas condições anteriormente vistas, a época clássica faz triunfar a vontade no campo moral e político. Duas tradições se confrontam aqui, em função do papel que atribuem ao querer. Em Hobbes, Espinosa, Locke e Hume, a vontade não é mais do que o outro nome do desejo. Em Descartes, Malebranche, Rousseau e Kant, mesmo quando que integraram uma naturalização dos afectos, tudo é deixado à vontade livre. De resto, independentemente do estatuto metafísico atribuído à vontade, o pensamento político constrói-se em torno do conceito de vontade, e por conseguinte de obrigação374. No mundo antigo, a filosofia política organizava-se em torno do problema do saber específico requerido pela administração do bem público; no mundo moderno, a filosofia política subordina o estatuto do saber político ao da vontade. Esta mudança radical procede no essencial da herança cristã, que havia constituído os indivíduos em pessoas, iguais em valor, e definidos como livres pela sua vontade. Por outro lado, a viragem nominalista do direito375 fizera da vontade a instância suprema do espírito. Enfim, era inevitável que a subordinação da razão à consciência se fizesse acompanhar por uma vitória da vontade, que iremos encontrar em Rousseau e em Kant. Enquanto a razão se mostrasse sob as feições tradicionais da própria sabedoria do mundo, a vontade não podia de modo algum deixar de lhe estar subordinada. Mas logo que a razão se torna uma maneira de pensar, ela própria compreendida no interior de um quadro teórico geral da representação, a vontade emancipa-se e torna-se a instância da autonomia, pois ela é sentida como o único lugar da actividade pura. É pela vontade, não pelo entendimento, que nós somos deuses. A posição de Rousseau é a esse respeito reveladora, pois se, quanto ao entendimento, os homens não diferem dos animais senão em grau, já a vontade é própria deles: Não é […] tanto o entendimento que faz entre os animais a distinção específica do homem quanto à sua qualidade de agente livre. A natureza comanda todo o animal e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas reconhece-se livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma: pois a física explica de alguma maneira o mecanismo dos sentidos e a formulação das ideias; mas na potência de querer ou antes de escolher, e no sentimento dessa potência, não se encontram senão actos

puramente espirituais, nenhum dos quais se explica pelas leis da mecânica376.

O homem é portanto antes de mais um ser de vontade, pelo que a síntese antropológica fundadora não é mais a do saber e do querer, mas a da consciência e da vontade. Uma autonomia real supõe que a vontade esteja liberta da sua submissão à razão. O próprio Kant se permitirá integrar na sua filosofia prática uma antropologia naturalista, uma vez que, enquanto fenómenos, somos integralmente determinados pelas leis afectivas, que são leis naturais, pelo que as nossas decisões são sempre determinadas pelo amor «de si»377, enquanto considerados como númenos, permanecemos absolutamente livres, ou seja capazes de agir no mundo por causalidade livre. E em Kant (mas já em Rousseau, de maneira diferente), é a consciência que nos ensina imediatamente a liberdade, pois só a consciência que temos do carácter incondicional da lei moral nos dá um «facto de razão» a partir do qual devemos postular a liberdade do querer. Assim portanto, a época clássica é dinamizada por uma tensão teórica que articula com dificuldade o ponto de vista da consciência e o do mundo. Essa tensão cristaliza-se no papel predominante conferido à afectividade, como espaço onde o espírito e o corpo se sintetizam, o que torna possível a constituição do homem como objecto de saber. Mas a vontade pensada como acto puro resiste à naturalização, e reivindica a iniciativa de uma actividade livre. O século XVIII fecha-se sobre essa dupla exigência contraditória de cientificidade e de liberdade. Dois traumas encerram a época clássica: a Reforma378 e a Revolução Francesa, entre as quais se disputa de maneira cada vez mais dramática a difícil articulação do saber e da vontade. A modernidade, quando consente em não se interrogar sobre o que é ser moderno, reconhece-se de bom grado a si mesma como a conquista da autonomia científica, moral e política, ou seja como o triunfo da consciência que coloca o mundo diante dela e no exterior dela, bem como o projecto de um total domínio técnico e científico do mundo. O domínio do mundo, que passa pela consagração de uma ciência tão racional como experimental, não é de resto mais do que a figura da autonomia do sujeito quando ele se debruça sobre a natureza, tornada seu objecto – ao mesmo tempo sua propriedade e aquilo diante do qual ela se posta. Que se trate aí de uma narrativa, já não é preciso demonstrar379, e não tem a menor importância, uma vez que também as narrativas são forças históricas. Era preciso que a autonomia se cristalizasse na instância da vontade e, na

medida em que a vontade excede absolutamente toda a natureza, que ela se tornasse ao mesmo tempo um absoluto e um imperativo. Quando segue esse caminho da vontade, a modernidade deseja inexoravelmente tornar o próprio homem portador do seu querer. Tal como Deus criou o mundo em função da sua vontade, também o homem deve criar-se em função da sua vontade. Se ele é antes de mais e sobretudo vontade, deve instituir-se a si mesmo. Quando, no século XVIII, a interdição de querer que havia sido imposta pelo pecado original se achou completamente e definitivamente levantada, nada mais pôde impedir a vontade de se tornar voluntarismo, e de fazer advir enfim a «natureza humana», quebrando a amálgama arbitrariamente construída pela multidão dos séculos. É a linha voluntarista da antropologia incarnada por Descartes, Rousseau e Kant que triunfa na Revolução Francesa. A outra linha, que fora traçada por Espinosa, Montesquieu e Hume, subordina a vontade ao saber e procura determinar precisamente o conteúdo dessa «natureza humana». Esta tradição será por seu turno dominante nas recaídas do sismo revolucionário, pois o nexo dos saberes que se constrói ao longo do século XIX antes da especialização destes está centrado na questão das condições em que uma ciência natural do homem pode firmar as decisões amadurecidas da vontade. FRÉDÉRIC BRAHAMI 338 M. de Montaigne, Essais, ed. A. Tournon, Paris, Imprimerie nationale, 1998 e 1999, 3 vols., III, 13432. 339 R. Descartes, Méditations métaphysiques, II, Œuvres complètes, ed. de Ch. Adam e P. Tannery, Paris, CNRS/Vrin, 1996 (doravante assinalado como AT, seguido do volume e da página), AT-IX-20. 340 Sobre a articulação do antigo e do moderno, veja-se a exaltante obra de R. Brague, La Sagesse du monde. Histoire de l’expérience humaine de l’univers, Paris, Fayard, 1999. 341 Ensaios, op. cit., II, 12-434. 342 Veja-se D. Kambouchner, L’Homme des passions, Paris, Albin Michel, 1995. 343 À Élisabeth, 28 de Junho de 1643. 344 R. Descartes, As Paixões da Alma, art. 211. 345 Ibid., art. 74. 346 Texto modificado: a versão francesa propõe «cognoscentes» no lugar de conscii (Meditações, op. cit., AT-IX-124). Já para Montaigne, «mesmo as coisas presentes, só as temos por fantasia [representação]» (Ensaios, op. cit., III, 9-326).

347 Meditações, op. cit., AT-IX-63. 348 N. Malebranche, VIe Éclaircissement, Éclaircissements sur la Recherche de la vérité, ed. J.-C. Bardout, Paris, Vrin, 2006, p. 53. 349 J. Locke, Ensaio, 4, 11. Se não há nenhuma ligação necessária entre uma existência real e a ideia que dela temos (§1), resta que não podemos impedir-nos de ser afectados pela visão do sol, ao passo que podemos expulsar do espírito a ideia que dela temos (§5). Além disso, a sensação efectiva é acompanhada de prazer ou de dor, o que já não é o caso da sua ideia (§6). Temos de facto fundamento para confiar no nosso sentimento de que os corpos existem realmente fora da representação. 350 G. Berkeley, Notas Filosóficas, n.º 429. 351 Meditações, III, op. cit., AT-IX-27. 352 B. Espinosa, Ética, III, 7: «O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar no seu ser não é mais do que a essência actual da coisa». 353 Ética, I, Apêndice. 354 Veja-se o seu prefácio aos Novos Ensaios: «Essas percepções insensíveis […] constituem o mesmo indivíduo que é caracterizado pelos traços que elas conservam dos estados precedentes desse indivíduo, fazendo a conexão com o presente estado dele.» 355 N. Malebranche, Da Busca da Verdade, III, II, 7, 4. 356 J. Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, 2, 23, 2. 357 Ibid., 3, 3, 15. 358 Locke pretende examinar as faculdades do espírito «de uma maneira clara e histórica» (Ensaio, 1, Antelóquio, § 2), ou seja fazer uma história natural do espírito. 359 T. Hobbes, Elementos da Lei Natural e Política, I, IV, 2. 360 N. Malebranche, Da Busca da Verdade, IV, 2, 1; Locke, Ensaio, 2, 21. 361 Isto não é válido para Malebranche, que só reabilita o movimento indefinido do desejo para ver nele o signo de que o espírito, sempre insatisfeito, busca o bem em geral, ou seja Deus. Mas ele é o último grande pensador da aspiração ao Bem e da graça. 362 G. L. Buffon, De l’homme, Paris, Maspero, 1971, p. 47. 363 Ibid. 364 Veja-se G. Deleuze, Empirisme et subjectivité, Paris, PUF, 1953 365 Ensaio, 1, Antelóquio, § 1. 366 D. Hume, Tratado da Natureza Humana, I.

367 Ibid., II. 368 D. Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, IX, 6. 369 Ibid. 370 Ibid. 371 Da Busca da Verdade, II, I, 7. 372 Nouvelles lettres critiques, Œuvres Diverses, II, 1727, nomeadamente Cartas 15 a 17. 373 P. Nicole, «De la charité et de l’amour-propre», Essais de morale. Choix d’essais, ed. L. Thirouin, Paris, PUF, 1999. 374 Sobre este ponto veja-se o estudo decisivo de B. Bernardi, Le Principe d’obligation, Paris, Vrin/EHESS, 2007. 375 Sobre este ponto veja-se a obra clássica de M. Villey, La Formation de la pensée juridique moderne, Paris, PUF, 2003. 376 J.-J. Rousseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. 377 E. Kant, Crítica da Razão Prática, exame crítico da analítica da razão pura prática (nomeadamente AK V-94 e segs.) 378 R. Popkin faz da rejeição por Lutero da autoridade papal em matéria de fé o momento inaugural da modernidade filosófica. Decerto que a consciência luterana não é a consciência de Rousseau nem de Kant, pois ela não é critério senão quando é iluminada por Deus. Resta que, ao negar a autoridade do papa, Lutero colocou a questão, que se haveria de estender a todos os domínios, do critério de verdade, forçando os partidários da tradição a argumentarem a favor da tradição, ou seja a justificarem na razão a preeminência da tradição, e portanto a saírem da esfera da tradição. Veja-se The History of Scepticism from Savonarola to Bayle, Oxford, Oxford University Press, 2003. 379 Veja-se B. Latour, Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique, Paris, La Découverte, 1991.

Gottfried Wilhelm Leibniz

Dois lugares comuns caracterizam frequentemente o pensamento de Leibniz. Há o de um pensamento sistemático transportado por um sugestivo vocabulário leibniziano (mónada, entre-expressão, harmonia pré-estabelecida) onde tudo remete para tudo, e isso até ao infinito. Não o diz ele, de resto? «Cada porção da matéria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas, e como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota dos seus humores, é ainda um tal jardim ou um tal lago.» (Monadologia, § 67) Um outro remete para a ironia mordaz de Voltaire contra o optimismo do «cândido» defensor de uma harmonia pré-estabelecida, capaz de se acomodar ao mal para defender a ordem do mundo, grande fazedor de hipóteses que justifica até ao absurdo o «melhor dos mundos possíveis», insensível ao sofrimento real, de que o terrível tremor de terra de Lisboa em 1755 é uma ilustração póstuma380. Afirmar que Leibniz foi uma figura excepcional da história do pensamento não é correr grande risco. Dotado de uma erudição imensa, de uma inteligência muito acerada e de múltiplos talentos, ele foi sucessivamente, e entre outras coisas, historiador, diplomata, filósofo, jurista, matemático e lógico de génio, conselheiro político, engenheiro e inventor de uma máquina de calcular. Nascido a 1 de Julho de 1646 em Leipzig, é oriundo de uma família protestante universitária onde recebeu uma educação precoce, fornecendo-lhe a biblioteca paterna a matéria das suas abundantes leituras, e alimentando o seu eclectismo e a sua erudição futura. O autor do artigo «leibnizianismo» na Enciclopédia, em 1756, exclama o seguinte: «Perdeu o seu pai com a idade de seis anos, e a sorte da sua educação recaiu sobre a mãe, mulher de mérito. Mostrou-se igualmente habilitado a todos os géneros de estudos, e neles se empenhou com o mesmo ardor e o mesmo sucesso. Quando caímos em nós e comparamos os pequenos talentos que recebemos com os de um Leibniz, somos tentados a deitar para longe os livros, e ir morrer tranquilamente no fundo de um qualquer recanto ignorado.» Nasceu no final da Guerra dos Trinta Anos, naquela Alemanha de meados do século XVII (Tratado da Vestefália em 1648) arruinada,

empobrecida, sangrada demograficamente, dividida tanto politicamente como religiosamente: isso explica todos os ulteriores esforços de reconciliação de Leibniz entre católicos e protestantes e a sua obsessão com a «concórdia». Apesar de um doutoramento em Direito, não escolheu a carreira universitária e pôs-se ao serviço do arcebispo de Mogúncia de 1667 a 1671. Fez uma estadia em Paris de 1672 a 1676, o que lhe permitiu conhecer Malebranche, Arnauld e Huygens. Estudou muito precisamente a obra de Pascal, o que alimentou a sua invenção do cálculo infinitesimal em 1675. No caminho de regresso para a Alemanha, detém-se em Amesterdão para conhecer Espinosa. Em 1676 aceita o cargo de bibliotecário da família do duque de Brunswick, em Hanôver, que conservará até à sua morte em 1716. Em nome das suas funções de historiógrafo, fará uma importante viagem a Itália (1687-1690), que uma vez mais alimentará as suas múltiplas pesquisas. No final da vida, participa na fundação da Academia de Berlim (1700), mas apesar da sua audiência europeia morre em Hanôver a 14 de Novembro de 1716, doente, desabusado e solitário. Um ano depois ser-lhe-á prestada uma bela homenagem em Paris, por Fontenelle, em nome da Academia de Ciências parisiense, da qual era membro a título estrangeiro. A filosofia leibniziana não se deu a conhecer de maneira imediata e igual por todas as obras, nem por todas as épocas. Devem levar-se em conta essas descontinuidades para se analisar a posteridade do pensamento de Leibniz. O que se pode ler de Leibniz no século XVIII? Em França, o conjunto das suas obras só está parcialmente difundido: podia ler-se a Teodiceia que ele publicara ainda em vida, em 1714, e a Correspondência com Clarke (1717). Os Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano só estarão acessíveis em meados do século XVIII nas duas edições de textos escolhidos, incompletas, as de Raspe (1765) e de Dutens (1768). A Monadologia, embora escrita em francês, só será editada em 1840, embora surja uma tradução latina em 1721. Os enciclopedistas dedicam vários artigos à sua filosofia («leibnizianismo», «optimismo», «harmonia pré-estabelecida», «força viva»). Na Alemanha, a difusão do seu pensamento é a um tempo evidente mas reinterpretada à luz de Wolff, que lhe transforma diversos pontos da doutrina. À recepção lacunar das obras somam-se polémicas ferozes acerca da invenção do cálculo infinitesimal em 1675 e aquela a que também se chama a «querela das forças vivas», cujos protagonistas são Leibniz e Newton obrando contra a física cartesiana. É somente no final do século XIX e no início do século XX que as edições completas de Gerhardt e a da Academia das Ciências de Berlim são

estabelecidas, oferecendo um panorama completo dos seus textos. Metafísica e substância A articulação entre metafísica, lógica, física, teologia e moral está presente em toda a parte na sua obra, segundo modalidades em ruptura com a epistemologia contemporânea. Leibniz não separa a metafísica dos restantes domínios do saber e, mais do que isso, sendo Deus o princípio das coisas e dos conhecimentos, metafísica e lógica não só se confundem entre si, mas também se confundem com a teologia. Neste sentido, há nele uma jamais desmentida conformidade da fé e da razão, ao encontro de alguns dos seus próprios contemporâneos, como Descartes. As ciências particulares não são autónomas em relação à teoria do ser e, de um modo mais profundo, o próprio método do saber visa pensar essa interdependência: o mundo, objecto das ciências, deve exprimir a realidade metafísica e teológica. Há uma constante preocupação de unificação daquilo que parece díspar, e não há tema do conhecimento que se ache desligado do conjunto do que é e do que ele deve conhecer. A consequência de tudo isto é que existe efectivamente em Leibniz um «sistema», a um tempo enciclopédia de todos os saberes possíveis e totalidade fechada por um mesmo método, que é também um mesmo projecto, o da glória de Deus manifestada em todas as coisas. Num sistema deste tipo, foi frequentemente deduzido que o seu primado era na verdade a arquitectura, decerto brilhante, em detrimento da sua evolução interna. A imagem do sistema monadológico, onde cada parte remete para o todo e vice-versa, é porém um ecrã para a captação do próprio sistema. Uma vez constatado que Leibniz se repete frequentemente, o que é certo, deduz-se com demasiada rapidez que ele diz sempre a mesma coisa, ao correr do tempo, ao ponto de a sua própria escrita ser monadológica, tal como o seu sistema. A Monadologia seria assim a forma e o conteúdo desse sistema de pensamento. Ora, importa corrigir esta visão sistemática e arquitectónica percebendo a evolução histórica interna do corpus, única maneira de respeitar o teor conceptual deste. O primeiro paradoxo, e não dos menores, é que o termo «monadologia» é muito pouco utilizado pelo próprio Leibniz, e não teve para ele a função de resumir ou de sistematizar a sua metafísica: foi inventado pelo editor Heinrich Köller em 1720, ao publicar a tradução alemã do opúsculo muito classicamente intitulado Esclarecimento sobre as Mónadas. Neste sentido, a monadologia não é um conjunto real, constituído por mónadas numerosas e exteriores umas às outras; o termo só designa um discurso sobre

as mónadas381. Além disso, esse termo só interveio tardiamente na obra do filósofo, a partir de 1696. A cronologia dos textos acha-se pois recomposta, ou antes aprofundada. Um primeiro conjunto, constituído nomeadamente pelo Discurso de Metafísica de 1686 e pela correspondência com Arnauld que a ele se segue, permite estabelecer a «noção completa», primeira formulação conseguida da entidade ontológica fundamental. Um segundo conjunto, que vê surgir o termo «mónada», elabora-se graças às renovadas reflexões de Leibniz sobre a noção de força física, ou seja é exactamente contemporâneo da constituição da sua «dinâmica». Este segundo momento compreende o Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias (1695), onde a citação do termo «mónada» continua a ser alusiva, o Da Produção Original das Coisas Tomada na Sua Raiz, o Ensaio de Dinâmica e o Da Natureza em si Mesma (1698). Enfim, torna-se possível falar de monadologia na Monadologia de 1714, nos Princípios da Natureza e da Graça de 1715-1716, na Correspondência com Clarke, mas também na Teodiceia, surgida em 1710 e único livro de filosofia que Leibniz publicou durante a sua vida. Qual é o sentido desta evolução? Uma mesma ambição habita estes textos: explicar o sistema do universo propondo uma definição da substância, evitando sempre os ardis do atomismo e do mecanismo. Trata-se efectivamente de uma ambição metafísica, no sentido que Leibniz atribui a esse termo: discurso sobre o que é, a metafísica é também lógica, lugar da invenção regulada das nossas representações e das suas regras de demonstração, e não se compreende sem a referência a Deus, ser que permite todos os outros seres. O princípio de ordem que rege o universo é assim válido em todos os seus aspectos: «Deus não faz nada fora de ordem» (Discurso de Metafísica, § 13); e segundo a bela imagem desse mesmo parágrafo «não há por exemplo rosto algum cujo contorno não faça parte de uma linha geométrica e não possa ser desenhado num traço só por um certo movimento regulado». No entanto, a ordem do mundo não se satisfaz com a mera explicação mecanista saída de Descartes (Discurso de Metafísica, § 17). Leibniz reintroduz portanto o que foi banido: «a forma substancial», saída da escolástica, mas sobretudo de uma necessidade oriunda das suas investigações em mecânica. A forma substancial quer pensar a unidade do que é. Ora a mera matéria não pode oferecer a resposta, sendo uma colecção de partes, uma soma de átomos que não chega a dar a ideia de um todo. É necessário fazer intervir uma forma que reúna o múltiplo numa unidade que o ultrapasse. Ele explicá-lo-á ao retomar a sua própria iniciativa: «Apercebi-me

de que a mera consideração de uma massa extensa não bastaria, e de que seria preciso empregar ainda a noção de força, que é muito inteligível, ainda que provenha do domínio da Metafísica382.» Ao reintroduzir a forma substancial, Leibniz não se contenta em reactivar um conceito desvalorizado. Ele autoriza-se a reconsiderar o conjunto da física cartesiana e nomeadamente as leis do movimento desta, mas também as da causalidade. A partir dos seus primeiros trabalhos de filosofia, ele interessa-se de muito perto pela física. Em 1678, tirando as consequências da sua estadia em Paris, onde pôde tomar conhecimento das teses mais contemporâneas, chega a corrigir Descartes ao mostrar que a lei da conservação da força é o produto da massa do corpo pelo quadrado da velocidade (mv2). Não sendo a força uma mera questão de deslocamento, portanto de substância extensa geométrica, como afirmava Descartes, Leibniz confessa retomar uma dimensão metafísica sem que isso signifique no entanto reintroduzir o incompreensível. Pelo contrário, ele estima tornar acessíveis as relações entre o corpo e a alma, onde Descartes criara entre ambos uma ruptura impossível de superar. O conceito que então permite religar o que parece não poder ser religado é o de «expressão». Contrariamente ao que pensava Descartes, a causalidade é metafísica, ideal e não material. A unidade do díspar resolve-se numa relação fundada por todos os elementos das coisas; Leibniz manterá durante toda a vida a seguinte definição: «uma coisa exprime uma outra quando há relação constante e regulada entre o que pode dizer-se de uma e de outra. É assim que uma projecção de perspectiva exprime o seu geometral» (XXI carta a Arnauld de 9 de Outubro de 1687). O conceito de expressão define pois a relação da ideia e da palavra, tal como a da alma e do corpo. Trata-se de uma analogia estrutural cujo fundamento está em Deus, de modo algum no espírito humano, sendo ele próprio uma expressão do universo ordenado. A física deve ter a consciência de que não descreve senão o mundo dos fenómenos, o mundo aparente, e não a causalidade ideal das substâncias, o que Descartes não teria compreendido. E se Leibniz está convencido de haver conseguido oferecer leis justas em física, o que é certo para a conservação da força, é porque sabe que seria preciso admitir essa dimensão metafísica. Todavia, o Discurso de Metafísica usa reformas não só físicas mas também lógicas para pensar a teoria da substância. Não basta dispor da forma substancial e da expressão, é preciso ainda inquirir em que é que uma substância se reconhece, enquanto tal, e semelhante a nenhuma outra. Retomando a ideia antiga de que uma substância inclui os seus predicados,

Leibniz concebe a derradeira entidade metafísica como uma «noção completa». O § 8 oferece dela uma imagem de grande impacto: Assim a qualidade de rei que pertence a Alexandre, o Grande, fazendo abstracção do sujeito, não está suficientemente determinada a um indivíduo e não encerra de todo as outras qualidades do mesmo sujeito nem tudo o que a noção de príncipe compreende, ao passo que vendo Deus a noção individual ou hecceidade de Alexandre, vê nela ao mesmo tempo o fundamento e a razão de todos os predicados que verdadeiramente se podem dizer dele, como por exemplo que ele venceria Dário e Poro, até conhecer nela a priori (e não por experiência) se ele morreu de morte natural ou por veneno, o que nós só podemos saber pela história. Por isso, quando consideramos efectivamente a conexão das coisas, podemos dizer que há em todo o tempo na alma de Alexandre restos de tudo o que lhe sucedeu e as marcas de tudo o que lhe sucederá, e mesmo vestígios de tudo o que se passa no universo, ainda que só a Deus caiba conhecê-las todas.

Pela leitura deste extracto, compreende-se bem que a noção completa é mais do que uma simples soma de predicados: ela responde a uma ordem, a uma razão, que ultrapassa o que dela possamos conceber, e não está completa senão aos olhos de Deus, que lhe funda a coerência. A história integra a classe de coisas que apreendemos, a partir da nossa finitude, ao passo que Deus pode apreender num só acto tudo o que é em Alexandre. Se a definição da expressão perdura ao longo de todo o corpus leibniziano, a da substância, essa, modifica-se. A passagem da noção completa à da mónada efectua-se graças a novas transformações no seio da teoria física, que permitem conceber um dinamismo interno do elemento metafísico, uma clara tendência para a expressão que o corpus leibniziano não entrega de imediato. É assim que, dez anos após o Discurso, em 1696, aparece o termo «mónada», veiculado por um neologismo importante: o de «dinâmica». A consequência muito visível dessa evolução manifesta-se na impossibilidade de ligar um nome próprio a uma mónada: não há mónada de Alexandre sob a pena de Leibniz. Como explicá-lo? Ganhando em maturidade, o sistema leibniziano depura-se de uma certa maneira, encaminha-se para uma cada vez maior simplicidade e unidade, ou para uma cada vez maior ordem, libertando-se da consideração do individual. A dinâmica resulta, entre outros, do importante trabalho de reflexão efectuado aquando da sua viagem a Itália nos anos 1689-1690, de que um primeiro manifesto será o texto de 1694: Sobre a Reforma da Filosofia Primeira e sobre a Noção de Substância. Mas é no Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias, de 1695, que se apaga toda a noção em proveito de um «ponto metafísico». Este último é doravante dotado de uma força primitiva, de uma enteléquia, vocabulário antigo ainda aí reapropriado

por Leibniz, significando aqui uma forma substancial activa. Este ponto metafísico novamente definido exprime-se num ponto matemático, correspondendo portanto a uma posição definida na ordem do mundo. Tudo está no devido lugar para dar sentido ao termo de mónada. Os «mecanistas», como diz Leibniz, não têm uma ideia suficientemente vasta da «majestade da natureza», e ignoram assim que ela releva de uma espécie de atemporalidade da qual não captamos senão as formas empíricas da morte e do nascimento. As leis físicas de conservação do movimento e do choque mostram finalmente que cada corpo reage a um outro pela presença nele de um dinamismo, de uma «elasticidade» que o faz ressaltar segundo uma direcção que lhe é própria. Nada se perde nem nada se cria, se pudermos parafrasear essa célebre fórmula, tudo se transforma; o universo é constituído por uma energia vital, orgânica, que tem o seu fundamento em Deus. A «máquina natural» permanece aquilo que é, mas dobra-se e desdobra-se, instaurando a imensa variedade dos seus possíveis. O sentido metafísico das leis físicas é então consideravelmente alargado, vertendo-se numa redefinição do orgânico e na recusa dos «animais máquinas». O universo caracteriza-se por uma ordem fabulosamente enriquecida em relação aos textos anteriores. A monadologia desmultiplica-o, articulando os seus diferentes níveis como melhor lhes convier, organizando ao mais alto grau cada elemento: «assim nada há de inculto, de estéril, de morte no universo, nenhum caos, nenhuma confusão senão na aparência; mais ou menos como pareceria um lago em que à distância se visse um movimento confuso e um formigar, por assim dizer, dos peixes do lago, sem discernir os próprios peixes» (§ 69). Essa ordem magnífica releva do que Leibniz chama a «harmonia préestabelecida» (§ 78), noção característica do seu sistema e que vem de algum modo aprofundar a de «harmonia universal», presente muito anteriormente. A mónada unifica em definitivo aquilo que dividia o campo da metafísica: as relações da alma e do corpo, de cada parte com o todo e reciprocamente. Deve no entanto notar-se que essa harmonia mantém uma hierarquia estrita, onde Deus domina, e acerca da qual testemunham as referências finais do texto a Deus como Arquitecto e como Monarca. Finalmente, como sublinham com radicalismo os Princípios da Natureza e da Graça, e como a Monadologia vem ilustrar, Leibniz sente-se apto a responder à derradeira pergunta: «Porque há qualquer coisa em vez de nada?» Torna-se possível conceber uma ordem geral, onde ordem e hierarquia pertencem à constituição interna de cada mónada, estabelecida em Deus. O

individual supõe uma resolução até ao infinito, um «detalhe sem termos». A razão de tudo isso deverá estar fora da série do detalhe (Monadologia, § 37): a sua necessidade está em Deus. O § 403 da Teodiceia poderá assim dizer que não sabemos mais nada acerca dessa razão suprema a não ser que ela está em Deus; nem sempre sabemos e não precisamos de saber como tudo se faz. Liberdade e determinismo Convém não esquecer que se toda a natureza é um sistema, uma harmonia pré-estabelecida, isso também é válido do ponto de vista moral. Um universo bem «ligado» deve ser moral. A Monadologia também visa pois provar que o nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis graças a Deus e convidar o homem a realizar-se plenamente nele. Ora a hipótese da harmonia préestabelecida provoca o espanto, ou mesmo a incredulidade: como pode o mal ser possível se Deus faz sempre pelo melhor? Como conciliar a imperfeição que o mal representa com a perfeição de Deus? Este problema é um labirinto383, no sentido em que não parece permitir senão duas soluções igualmente insatisfatórias: ou que o homem está condenado a fazer o mal, caso em que ele não é livre, ou que Deus não é Deus, pois não é omnipotente. Se relermos a passagem acima indicada relativa a Alexandre, também duvidamos de que o objectivo resida na necessidade de saber se ele é ou não livre de vencer Dário e Poro, embora Deus o possa saber em toda a eternidade. Mas isso não é tudo: um homem livre é um homem responsável, sendo preciso pois poder imputar-lhe os seus actos a fim de que responda por eles. Leibniz tenta resolver o problema distinguindo três níveis diferentes de análise que se resumem numa fórmula a ser esclarecida: Deus inclina sem necessitar. Deus quer o melhor e não quer nada arbitrariamente, só o quer racionalmente. A sua perfeição é infinita, o que garante que a sua vontade se dirige para o bem, sendo o mal uma imperfeição. A Monadologia conclui-se no § 87 com a imagem de um Deus arquitecto e monarca. O fim do texto concerne a finalidade moral do mundo, reinando o monarca sobre uma cidade dos espíritos que o arquitecto construiu segundo uma física óptima, assegurando a harmonia entre o reino da natureza e o da graça: «se pudéssemos entender suficientemente a ordem do universo, acharíamos que ele ultrapassa todas as aspirações mais sábias, e que é impossível torná-lo melhor do que é» (Monadologia, § 90). Se a ordem do mundo é perfeita a esse ponto, como se explica que o mal sobrevenha? É preciso distinguir entre o que releva da vontade dita

«antecedente» e o que releva da vontade dita «consequente». Se Deus quer a priori o melhor, resta que a criação do mundo induz uma escolha entre compossíveis. Esse limite nas combinações, mesmo levado ao seu máximo de riqueza, implica assim uma forma de privação, de imperfeição. Há portanto uma causa ideal do mal (Teodiceia, § 20), inseparável do próprio acto de criação. Leibniz ousa aliás uma interessante comparação entre a inércia física da matéria e a imperfeição humana no § 30: em ambos os casos, há um defeito de perfeição, não querido por Deus mas inerente ao que ele criou. Em suma, como diz Leibniz no § 230, o mal é uma condição sine qua non da existência do mundo, sem ele o nosso mundo não seria o nosso mundo, mas ele não é um decreto de Deus, não foi querido mas permitido. Isso implica que tudo esteja já escrito, como se tivéssemos de seguir a ordem das coisas, sem nada tentarmos? Ainda aí, o texto de Leibniz é delicado: há que distinguir entre a «necessidade absoluta» ou metafísica e a «necessidade moral» ou ainda a contingência. Se a contingência é sempre um defeito na captação da determinação de Deus, ela é também o que oferece um espaço à actividade humana. Os «futuros contingentes», ou seja a questão de saber se os eventos futuros se produzirão ou não, recebe aqui uma resposta subtil: é certo que o futuro será, mas tal determinação não implica a fatalidade. O contingente não é sem razão, «uma vez que nada sucede sem que para ele haja uma causa ou uma razão determinante, isto é qualquer coisa que possa servir para lhe dar razão a priori, porque é isso mais existente do que não existente, e porque é isso mais assim do que de maneira diversa» (Teodiceia, § 44). Mas se há uma razão, o contingente não se explica para nós senão em retrospectiva, uma vez que se tornou efectivo. Se a necessidade não reina na ordem das acções humanas, em que sentido é o homem livre e como opera ele uma escolha da qual é responsável? A raiz da liberdade está na infinitude da criação, ou ainda na continuidade, que não cessamos de reencontrar, entre a ordem do mundo e a transcendência. Temos em nós uma marca daquele que nos criou à sua imagem, embora não possamos evidentemente igualá-lo. Essa marca é simultaneamente um incitamento ao bem e um dever de o fazer, é nisso que reside a nossa salvação. É importante perceber que jamais a liberdade estará no excesso, na ruptura com a ordem do mundo, pois isso é válido apenas para os milagres, que só Deus pode permitirse. Ela reside na apreensão das leis metafísicas e físicas, à medida da nossa imperfeição; ela não está portanto em mais lado algum a não ser nesse universo bem «ligado» que é gabado por Leibniz. Se Deus sabe tudo e vê tudo, nós

estamos reduzidos a não apreender as coisas senão a partir dos efeitos e não das causas. Leibniz deduz daí que temos duas vias para nos determinarmos: a experiência e a razão, sendo esta última evidentemente a que mais importa. O conhecimento de si, o do princípio de razão ou do mundo como ordem, cristalizam uma única e mesma iniciativa e não têm mais do que um único e mesmo objecto. Mas só Deus é capaz de seguir sem falha o seu entendimento, o homem, pelo contrário, está sujeito a ideias inadequadas que provêm de uma infinidade de percepções confusamente sentidas. O juízo prático é portanto atravessado de um lado a outro por inclinações insensíveis (Teodiceia, § 310), o que explica as suas errâncias. A racionalidade da escolha não é garantida senão na conformidade à ordem geral e portanto às aspirações de Deus. É preciso reencontrar em si essa inclinação que Deus impulsiona, mas que não pode ser uma necessidade «fatal». A liberdade caracteriza-se assim pela inteligência daquele que age, capaz de conhecer distintamente, pela espontaneidade, que releva dessa força interna que Deus põe em cada mónada, e pela contingência, a saber um motivo que incline sem necessidade (Teodiceia, § 288). Leibniz propõe assim uma pragmática da escolha, a par de uma racionalização da escolha melhor. Na articulação entre escolha, saber e acção, sugere uma arte da «conjectura» que releva de uma teoria da prudência – tal arte já se encontrava nos seus primeiros projectos, em que Leibniz buscava uma arte da invenção regulada nos nossos conhecimentos. A Teodiceia (§ 326) relembra que o homem é dono de si desde que saiba fazer uso da sua razão, devendo pois preparar-se para bem querer por meio de uma reflexão oportuna e da habilidade adquirida. Quando há vários partidos a tomar, a alma é bem mais do que uma balança, ela é como uma força que faz um esforço para vários lados e que tenderá a agir onde encontrar menor resistência, indo a sua espontaneidade na direcção do bem (Teodiceia, § 325). O que importa pois, é a «prevalência» (Novos Ensaios, II, 21, § 8 e § 47-48), essa inclinação que se sente por aquilo que sentimos mais, e que não se separa de uma certa confiança em si e nas coisas. Longe de se contentar com uma liberdade de indiferença, onde tudo se equivale ao ponto de já não se escolher, longe também de promover uma vontade que se contente em querer, há para Leibniz uma vontade que se conjuga com a razão conduzindo ao bem. A «razão prevalecente» adere à escolha do melhor, que Deus não pôde deixar de fazer, e tira a sua legitimidade da bondade do próprio Deus. É preciso pois tomar gosto pela virtude, e de uma certa maneira aprender a querer. Trata-se aí de uma educação que conjuga sensibilidade e entendimento,

mas também, por mais paradoxal que isso possa parecer, uma certa forma de cegueira (Teodiceia, § 403): porquê querer sempre saber como se fazem as coisas? Há uma qualidade própria ao «autómato espiritual», a de aproveitar da ordem das coisas que o ultrapassa. Existe, com efeito, uma forma de automatismo do pensamento que releva por exemplo dos procedimentos de cálculo que se fazem sem reflectir, mas também das acções que se fazem sem as decompor em cada uma das suas etapas. Também neste sentido, Leibniz vê no amor de Deus a resposta a tais dilemas morais (o que não significa que ele os resolva assim): «Tudo deve culminar no bem dos bons, ou seja daqueles que não estão de todo descontentes neste grande Estado, que se fiam na Providência, após haverem cumprido o seu dever, e que amam e que imitam, como deve ser, o Autor de todo o bem, regozijando-se na consideração das suas perfeições segundo a natureza do puro amor verdadeiro, que faz tomar prazer na felicidade daquilo que se ama.» (Monadologia, § 90) CAROLE MAIGNÉ 380 Voltaire, Romans et contes, Paris, Flammarion, «GF», 1966. Para além do célebre Cândido ou o optimismo (1759), Leibniz é largamente ridicularizado em Zadig ou o destino (1747) e Memnon ou a sabedoria humana (1750). [Cf. Voltaire, O Desastre de Lisboa, trad. Jorge Pereirinha Pires, Lisboa, Frenesi, 2005 (N. do T.)] 381 Estas análises e tudo o que concerne seguidamente a evolução interna do sistema leibniziano são as de M. Fichant, na sua edição do Discurso de Metafísica e da Monadologia, Paris, Gallimard, «Folio Essais», 2004. 382 Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias. 383 Ensaios de Teodiceia.

George Berkeley

Nascido na Irlanda, perto de Kilkenny, em 1685, o jovem Berkeley empreende estudos universitários no Trinity College de Dublin a partir de 1700. Aí ensina como fellow a partir de 1707, antes de receber a sua ordenação na Igreja anglicana em 1709. Após uma estadia em Londres em 1713, efectua viagens a Itália e a França entre 1714 e 1720. De regresso à Grã-Bretanha, concebe o projecto de fundar um colégio nas Bermudas, longe do declínio espiritual que vê na Europa. Após haver obtido fundos privados graças a uma subscrição, e enquanto aguarda uma subvenção prometida pelo Parlamento inglês, atravessa o Atlântico em 1728 e instala-se com a sua esposa em Newport, Rhode Island. Tendo-lhe sido recusado o financiamento prometido pelo Parlamento, regressa à Irlanda, onde se ocupa ciosamente dos assuntos do seu bispado. Morre em Oxford em 1753, pouco depois de aí se ter instalado para zelar pela educação de um dos seus filhos. A obra Um dos fitos principais da filosofia de Berkeley é manifestar a presença íntima de Deus nos nossos espíritos. Esse fito requer a elaboração de um sistema que comporte dois aspectos estreitamente solidários, um negativo, o outro positivo. A vertente negativa é o imaterialismo, o qual afirma que a matéria não existe. A vertente positiva é o fenomenalismo, segundo o qual os corpos não são substâncias, mas colecções de fenómenos imateriais bem regulados, chamados qualidades ou ideias sensíveis. Estas, bem como os corpos que elas constituem, são os objectos da percepção e do conhecimento sensível. O universo empírico, objecto da ciência física, tira em larga medida a sua realidade e a sua objectividade da sua coerência interna, conforme às leis naturais. Imaterialismo e fenomenalismo são elaborados principalmente no Tratado dos Princípios do Conhecimento Humano (1710) e nos Três Diálogos entre Hylas e Filonos (1713). Mas o fenomenalismo expresso nas suas obras apela a importantes complementos teóricos. Ele exige uma concepção original da

percepção e em particular uma teoria da visão, quanto mais não fosse a fim de explicar, por exemplo, como podemos nós realmente ver corpos à distância se eles são colecções de ideias sensíveis. Tal teoria é formulada segundo a via analítica em Um Ensaio para Uma Nova Teoria da Visão (1709), e depois sinteticamente em A Teoria da Visão Defendida e Explicada (1733). O fenomenalismo apela também a uma filosofia das ciências naturais e a uma filosofia da matemática. Berkeley dedica o De motu (1721) à primeira, e à segunda O Analista (1734) e a Defesa do Livre-Pensamento em Matemática (1735), onde critica os fundamentos do cálculo infinitesimal. Enfim, uma vez que se trata de manifestar a presença íntima de Deus aos nossos espíritos, o sistema requer uma teologia filosófica, uma apologética e as grandes linhas de uma filosofia moral. Estas são apresentadas em Alcífron ou o filósofo minucioso (1732). Assinalemos o interesse particular que apresentam as Notas Filosóficas, habitualmente datadas entre 1707 e 1708. Trata-se de cadernos nos quais o jovem Berkeley assenta as suas notas de leitura, nomeadamente sobre Descartes, Hobbes, Espinosa, Malebranche, Locke e Bayle, bem como reflexões filosóficas em constante evolução. É um laboratório onde se colocam progressivamente no devido lugar os contornos do sistema, ainda como tacteamentos, tentativas frustradas, faíscas de génio e de paciente construção. Aí se assiste à génese paralela da Nova Teoria da Visão e dos Princípios. O estranho Siris (1744) – última grande obra do autor – é um pleito em favor das pretensas virtudes terapêuticas da água de alcatrão. A partir de uma reflexão sobre a química, Berkeley desvenda a cosmologia grandiosa, inspirada pelo platonismo, de uma cadeia de seres que culmina em Deus, manifestando a actividade omnipresente do espírito no mundo. Embora Siris prolongue e desenvolva diversos temas metafísicos anteriormente elaborados, a sua coerência com o resto da obra filosófica de Berkeley pôde ser posta em causa. O imaterialismo A Introdução dos Princípios contém as grandes linhas da filosofia da linguagem de Berkeley, à qual o Alcífron trará mais tarde preciosos complementos. Berkeley procura mostrar que uma falsa teoria da linguagem conduz a uma crença errónea na possibilidade de formar ideias abstractas gerais, apesar de estas serem psicologicamente e logicamente impossíveis. Berkeley não rejeita porém toda a forma de abstracção. Podemos generalizar a função representativa das ideias particulares, sem por isso formarmos ideias

intrinsecamente gerais. Se acrescentarmos a isso um uso bem compreendido dos signos linguísticos e dos símbolos matemáticos, podem explicar-se os nossos conhecimentos gerais, sem postular mais do que ideias particulares e as relações destas. As ideias abstractas gerais não são portanto nem necessárias, nem possíveis. Berkeley emprega o termo «materialismo» para falar da tese que afirma a existência da matéria, contrariamente ao actual uso corrente, em que a expressão designa a doutrina segundo a qual tudo o que existe é material. Assim, do seu ponto de vista, não só Hobbes que deve ser contado entre os materialistas, mas também Descartes, Malebranche e Locke, uma vez que estes crêem na existência da matéria. Aos olhos de Berkeley, essa crença sempre foi, desde a Antiguidade até aos tempos modernos, a principal fonte do cepticismo e do ateísmo que ele pensa ver florescer na sua época. Ao demonstrar a inexistência da matéria, Berkeley procura cortar pela raiz a fonte de tais males. A noção de matéria, segundo Berkeley, é a de uma substância não pensante cuja existência é ontologicamente independente da dos espíritos; uma tal substância seria provida de qualidades ditas primeiras (propriedades espaciais e mecânicas) e de poderes causais. Através dos seus argumentos centrais a favor do imaterialismo, Berkeley visa dois objectivos estreitamente solidários. Por um lado, Berkeley quer negar toda a distinção entre ideias sensíveis e qualidades sensíveis, bem como entre os compostos dessas ideias e os corpos. Por outro lado, quer demonstrar que a hipótese da existência de uma substância material encerra uma contradição. Um primeiro argumento central é o argumento dito semântico, que se refere ao significado do termo «existir» aplicado às qualidades sensíveis e aos corpos. Dizer que tais entidades existem significa ou que elas são percebidas por mim, ou que eu poderia percebê-las em certas condições, ou ainda que elas são percebidas por um outro espírito, finito ou infinito. Em segundo lugar, o argumento da abstracção estabelece a impossibilidade de abstrair da percepção das coisas sensíveis a existência delas. A conclusão dos dois argumentos é a mesma: o esse das qualidades e dos corpos sensíveis é inseparável do seu percipi. Um terceiro argumento central chega à mesma conclusão após haver estabelecido a tese da identidade das qualidades sensíveis e das ideias sensíveis. Assim: não percebemos mais do que ideias; ora, nós percebemos qualidades sensíveis e corpos; portanto essas entidades são, respectivamente, ideias e colecções de ideias. Como uma ideia não existe a menos que seja percebida, daí se segue que as qualidades sensíveis e os corpos não existem a

menos que sejam percebidos. Uma vez instaurada esta conclusão, Berkeley pode demonstrar o carácter contraditório da noção de substância material. Com efeito, uma substância material seria por definição um substrato não percebente dotado de qualidades sensíveis. Ora, é verdade que estas existem necessariamente em qualquer substância. Mas, como as qualidades sensíveis são ideias, é preciso que as substâncias de que elas dependem ontologicamente as percebam. Por conseguinte, a própria definição de uma substância material encerra uma contradição: ela supõe que as qualidades sensíveis, cujo ser é ser percebido, existam numa substância não percebente. Estes argumentos centrais deverão supostamente alcançar uma conclusão metafísica, a da inexistência da matéria. Mas Berkeley instaura também argumentos secundários, cuja conclusão é epistémica: ainda que, por hipótese, a matéria existisse, ela seria incognoscível. Embora tal conclusão seja mais fraca do que a conclusão metafísica, os argumentos secundários, não obstante, são muito importantes. Eles explicam com efeito porque está Berkeley firmemente convencido de que todos os sistemas filosóficos que afirmam a existência da matéria implicam o cepticismo – e isso apesar das intenções dos seus autores, que não pareceram aperceber-se de tal consequência. Antes de mais, se as qualidades sensíveis são idênticas a ideias, ao percebêlas nós não apreendemos nenhuma qualidade que pertença a uma substância material, já que uma ideia, cujo ser é ser percebido, não pode pertencer a uma substância não percebente. Ora, se nenhuma das qualidades percebidas é um modo de uma substância material, daí se segue que a matéria, a existir, será imperceptível. O amigo da matéria retorquirá aqui que as ideias nos nossos espíritos são, decerto, percebidas imediatamente, mas que os objectos materiais possuem qualidades que podem ser conhecidas mediatamente, ou seja por meio das nossas ideias sensíveis. Não se poderiam então conhecer objectos materiais dessa maneira, pela percepção? De todo que não. Se a matéria existisse e se ela possuísse qualidades distintas das nossas ideias sensíveis, o conhecimento das primeiras dependeria necessariamente, segundo Berkeley, do conhecimento de uma conformidade entre elas e pelo menos algumas das nossas ideias sensíveis. Ora, para saber se uma coisa é ou não conforme a uma outra, é preciso poder compará-las. E seria impossível comparar as nossas ideias sensíveis com as hipotéticas qualidades da matéria. Pois estas não nos seriam dadas senão sob as feições do conteúdo das ideias percebidas imediatamente, que supostamente as

representam. A matéria, se existisse, seria portanto empiricamente incognoscível. Além disso, nem mesmo a hipotética matéria seria concebível, estima Berkeley, pois não poderíamos imaginar-lhe as qualidades. Todas as qualidades sensíveis de que temos a experiência são com efeito ideias sensíveis, e nenhuma delas pode pertencer a uma substância não percebente. Caso se objecte que as nossas ideias sensíveis poderiam ainda assim assemelhar-se a certas qualidades da matéria, Berkeley responde que isso seria tão inconcebível como imaginar-se uma semelhança entre as cores e qualquer coisa invisível. Não será preciso apesar de tudo postular a existência da matéria, quanto mais não fosse para atribuir uma causa às nossas ideias sensíveis? Estas são produzidas independentemente da nossa vontade; têm portanto uma causa exterior a nós. Certamente. Mas coloca-se a questão de saber de que causa exterior se trata. Ora os próprios «materialistas» declaram incompreensível a causalidade da matéria sobre o espírito. Aliás, Malebranche e os ocasionalistas dizem-na impossível. Berkeley alinha com Malebranche e Locke ao afirmar que a única causalidade de que temos uma ideia clara é a da vontade. Segundo ele, a causa exterior das nossas ideias sensíveis não pode ser senão a vontade de um outro espírito. Ora este deve ser infinitamente potente e sábio, pois as nossas ideias sensíveis, em número infinitamente grande, apresentam uma ordem e uma coerência conformes às leis naturais. Por conseguinte, a causa delas não pode ser outra senão Deus e é dessa maneira que Berkeley entende provar-lhe a existência. O fenomenalismo Na base do fenomenalismo de Berkeley encontra-se uma invenção metafísica fundamental: a de uma categoria de entidades que possuem certas propriedades das ideias sensíveis lockeanas e outras propriedades das qualidades sensíveis lockeanas. É por isso que, não sem o risco de alguma confusão entre os seus leitores, Berkeley tanto nomeia tais entidades como ideias sensíveis, como lhes chama qualidades sensíveis. Por exemplo, tal como as ideias em Locke, as ideias sensíveis de Berkeley são imateriais. Elas têm uma causa exterior à substância finita que as percebe e não existem a menos que sejam percebidas. Quando são percebidas imediatamente, são-no exactamente tal como são. Por outro lado, sendo verdadeiras qualidades sensíveis, elas não são nem entidades intencionais, nem modos das substâncias percebentes; o seu ser é heterogéneo ao dos espíritos; e elas – tal como os objectos físicos que compõem – são os

objectos da percepção e do conhecimento perceptual. A realidade das ideias ou qualidades sensíveis deve ser tomada em sentido forte. Mesmo que seja estranho falar assim, segundo Berkeley nós comemos e bebemos ideias sensíveis, e vestimo-nos com elas. Mas o que é que constitui a realidade dessas ideias por oposição às ficções da imaginação? Três factores são constitutivos da sua realidade: a sua força e a sua vivacidade; a sua independência causal em relação às substâncias finitas; e sobretudo a sua ordem e a sua coerência, conformes às leis naturais instituídas por Deus. Por este último factor, Berkeley junta-se ao seu antecessor, Leibniz, e ao seu sucessor, Kant, ao fazer a realidade e a objectividade do universo fenomenal dependerem largamente da sua coerência interna, regida pelas leis naturais. Deus produz as ideias sensíveis segundo uma ordem regular que manifesta a sua sabedoria e a sua benevolência. Ele institui entre as ideias relações de signo com a coisa significada, que fundam a previsibilidade de fenómenos futuros. Essas relações são exemplificadas em dois domínios efectivamente distintos: a percepção mediata e a causalidade empírica. Consideremo-las por essa ordem. Em Um Ensaio para Uma Nova Teoria da Visão, Berkeley oferece uma teoria filosófica da visão que se distingue tanto da óptica geométrica como da fisiologia do olhar. Certas combinações de ideias visíveis, acompanhadas por certas sensações cinestésicas, constituem signos visuais complexos. Estes são instituídos por Deus para significar as ideias da figura, da distância, da grandeza e da situação de sólidos que percebemos – ou poderíamos perceber – imediatamente pelo tacto, mediante certas condições empíricas. Como não há nenhuma conexão necessária entre signo e significado, é somente por observação, experiência e hábito que aprendemos progressivamente que uma ou outra combinação de ideias visíveis e de sensações cinestésicas significa uma ou outra ideia tangível. Uma vez correctamente adquirida a aprendizagem empírica, ao percebermos tal signo visual imaginamos desde logo – ou seja, percebemos mediatamente – as ideias tangíveis significadas, de maneira análoga à que se produz quando lemos um livro: a nossa percepção visual das frases cede o lugar, na nossa consciência, à compreensão do seu significado. É possível uma percepção mediata não verídica da figura, da distância, da grandeza e da situação de objectos tangíveis; ela é causada pela má interpretação de certos signos visuais devido a uma má aprendizagem do seu significado. Assim sendo, os signos visuais formam conjuntamente um sistema instituído por Deus: a linguagem do Autor da natureza. A teoria da visão tem diversos corolários. Todas as qualidades sensíveis são

próprias a um sentido; é portanto impossível perceber imediatamente uma qualidade sensível por dois ou mais sentidos. Por outro lado, as ideias próprias a cada sentido são inteiramente heterogéneas; não só elas não estão ligadas por nenhuma conexão necessária, como também não há semelhança entre elas. Nenhuma semelhança, portanto, entre a extensão visível e a extensão tangível, nem mesmo entre um quadrado visível e um quadrado tangível. Não se poderia pois formar por abstracção uma ideia da extensão, ou de uma figura, que fosse comum à visão e ao tacto. Enfim, os objectos da geometria são exclusivamente a extensão e as figuras tangíveis; essa ciência não se refere aos seus homónimos visíveis. Uma das consequências do princípio esse est percipi é a de que todas as características sensíveis das ideias aparecem necessariamente na percepção imediata. Como nós não percebemos nelas nenhuma força ou eficácia causal, daí se segue que as ideias são causalmente inertes. Por conseguinte, como em Malebranche, nem há causalidade física real entre corpos, nem causalidade do corpo sobre o espírito. Na realidade, segundo Berkeley, as relações entre aquilo a que erradamente chamamos causas e os efeitos físicos são relações de significação, instituídas por Deus. Elas devem ser apreendidas pela observação e pela experiência. A sua finalidade é permitir aos espíritos finitos fazer previsões sobre o curso dos eventos futuros e assegurar por esse meio a sobrevivência e o bem-estar deles. Nem por isso Berkeley entende rejeitar a física contemporânea, nomeadamente as leis do movimento. Ele procura integrar a física no imaterialismo mediante uma reinterpretação dos pressupostos metafísicos com que os «materialistas» a sobrecarregaram. É por isso que rejeita a distinção newtoniana entre espaço, tempo e movimento absolutos e relativos, bem como a divisibilidade da extensão até ao infinito. Espaço, tempo e movimento são somente relativos. As leis estabelecidas pela ciência não passam de formulações teóricas das regularidades observáveis entre os fenómenos produzidos por Deus. O enunciado das leis naturais tira a sua legitimidade da sua utilidade. Ele não consiste de modo algum em nos oferecer uma compreensão das causas reais dos fenómenos naturais, e ainda menos em nos aproximar de um conhecimento daquilo a que certos «materialistas» chamam a constituição interna submicroscópica dos corpos. As leis científicas só são úteis na medida em que permitam uma previsão mais exacta dos fenómenos. No De motu, Berkeley explica que a noção de força, ainda que desprovida de objecto, desempenha um papel legítimo, embora puramente teórico, justificado do

ponto de vista instrumental pelas previsões empíricas tornadas possíveis pela teoria de que tal noção faz parte. Os espíritos finitos Berkeley estabelece um dualismo radical entre os espíritos e as ideias; são dois géneros de entidades inteiramente heterogéneos, que só têm em comum os nomes «ser» e «coisa». Porque, enquanto o ser das ideias é serem percebidas, o das substâncias é perceberem. Os espíritos finitos são substâncias activas e indivisíveis, que pensam constantemente. As ideias são causalmente inertes, fugazes e ontologicamente dependentes das substâncias que as percebem, ainda que não sejam modos destas. A dependência ontológica das ideias em relação aos espíritos é precisamente um dos motivos que fundam a heterogeneidade e a distinção delas, uma vez que a dependência não é recíproca. Esse dualismo situa-se entre por um lado os espíritos, e por outro lado a totalidade das ideias, tanto as da sensibilidade quanto as da imaginação e da memória. Esta maneira de estabelecer o dualismo acarreta duas consequências importantes. Em primeiro lugar, não pode existir nenhuma ideia do espírito, nem mesmo uma ideia da imaginação. Pois uma tal ideia deveria representar um espírito, e para isso ela deveria assemelhar-se a ele, o que é impossível do ponto de vista da heterogeneidade de ambos. É por isso que, segundo Berkeley, o conhecimento de si de um espírito se realiza por uma consciência reflexiva imediata, sem a intermediação de uma ideia. Em segundo lugar, como as ideias da imaginação e da memória são tão distintas das substâncias quanto o são as ideias sensíveis, e como também não são modos delas, é somente no interior do domínio geral das ideias que se efectua a distinção entre as ficções da imaginação e a realidade sensível, conformemente aos três critérios anteriormente mencionados. Daí a necessidade de estabelecer uma diferença, em Berkeley, entre a simples existência de uma ideia e a sua realidade, a saber a sua pertença ao mundo empírico. Se todas as ideias imediatamente percebidas existem, só as ideias sensíveis são constitutivas da realidade empírica. Isso significa que o dualismo radical de Berkeley não é precisamente o do espírito e do corpo. Decerto que a distinção espírito-corpo é com efeito um dualismo, mas ela está subordinada, porque se situa entre as substâncias percebentes e somente uma parte das ideias, a saber as ideias sensíveis, constitutivas dos corpos. A teoria berkeleyana dos espíritos finitos dá lugar a uma tensão: se o ser do espírito é perceber, e se a percepção é passiva, como diz Berkeley, como

afirmar que o espírito é uma substância activa? Antes de mais, o espírito está também dotado de vontade, poder essencialmente activo. Seguidamente, é apenas a percepção imediata que é passiva. A percepção mediata, por seu turno, supõe ao invés uma actividade importante por parte do espírito. Ora, ao dizer que o ser do espírito é perceber, Berkeley tanto compreende a percepção mediata, activa, como a percepção imediata. Nenhuma contradição ao sustentar, nestas condições, que o espírito é uma substância activa e que o seu ser consiste em perceber. A teoria berkeleyana do espírito finito ficou infelizmente inacabada, pois não se saberia que estatuto ontológico atribuir a numerosos géneros de eventos mentais. Que fazer, por exemplo, com as emoções, as volições e as operações cognitivas como o juízo, o raciocínio e a deliberação? Na condição de evitar conceber as substâncias finitas como substratos, nada impediria Berkeley de dizer que esses eventos mentais, contrariamente às ideias, são modos das substâncias percebentes. Todavia, ele nada diz quanto a isso, deixando indeterminado o seu estatuto ontológico. Deus e a apologética As ideias sensíveis percebidas imediatamente pelos espíritos finitos são éctipos, são produzidos por Deus a partir do modelo das ideias arquetípicas eternas que existem no seu espírito. Contrariamente ao que por vezes se pretendeu, esta concepção do conhecimento divino não está portanto ameaçada pelas implicações cépticas de uma teoria representativa. Pois as ideias pelas quais Deus conhece os éctipos são as ideias arquetípicas segundo o modelo das quais Ele as pensa e as produz. Uma outra pergunta que muitas vezes se faz é a de saber se Deus, que não tem sensibilidade, pode não só conhecer mas também perceber os éctipos, porquanto estes sejam sensíveis. Mas a pertinência da pergunta é duvidosa, pois ela supõe em Deus uma distinção entre conhecimento e percepção, que Berkeley, tal como outros filósofos, não está disposto a aceitar. Aliás ele tem toda a latitude para determinar, por analogia, uma noção eminente da percepção que conviesse propriamente a Deus, em conformidade com a doutrina da analogia exposta no Alcífron. No Alcífron, Berkeley ataca os livres-pensadores em matéria de moral e de religião, nomeadamente Shaftesbury, Mandeville e Collins. Sabendo que o seu imaterialismo é mal recebido pelo público, defende a sua apologética sem a fazer depender estreitamente do imaterialismo. É nesse espírito que defende a verdade da teologia natural, depois a utilidade e a verdade da religião e da

moral cristãs. Devido às suas posições acima de tudo muito conservadoras sobre tais questões, não é fácil classificar Berkeley entre os pensadores das Luzes. O campo de convergência do pensamento de Berkeley, comum ao Alcífron e a toda a sua obra, é a presença íntima de Deus nos nossos espíritos. Se a presença de Deus está tão próxima, é porque Ele produz as ideias sensíveis directamente, sem intermédio de nenhuma causa segunda material, e porque essas ideias, constitutivas da realidade física, são perceptíveis imediatamente. No Alcífron, tal como anteriormente, Berkeley põe em primeiro plano a organização do universo fenomenal em diversos sistemas de signos que nos permitem prever os seus significados empíricos. Os signos sensíveis, pela sua origem causal, testemunham a omnipotência de Deus, a sua complexidade manifesta a inteligência e a sageza d’Ele, e a sua coerência regular, conforme às leis naturais, exprime a bondade e a providência d’Ele. Do ponto de vista metafísico, o universo físico é um local de encontro, nesta vida, dos espíritos finitos interpretantes e do seu autor transcendente. RICHARD GLAUSER

A filosofia natural no século XVII: Galileu, Huygens, Newton

«Homens de Galileu, porque olhais vós para o céu com tamanho espanto?384» Reconhece-se vulgarmente à ciência que nasce entre a publicação do livro de Copérnico e a síntese newtoniana das leis da dinâmica tanto celeste como terrestre, o estatuto de um fundamento dado à ciência moderna. Limitar-nosemos aqui a evocar as modificações que se seguiram imediatamente a esse novo dado no seio do que se convencionou chamar a física, e a que ainda se chama de filosofia natural no momento em que Newton lhe conclui a primeira transformação. Excluir-se-á portanto desta apresentação o rico e rápido desenvolvimento das ciências médicas, que, na mesma época, sofreram também elas profundas mutações, associando a norma da observação na natureza ao rigor das deduções possíveis no regime mecanista. Tais desenvolvimentos poderiam, de facto, pôr em evidência uma idêntica promoção da fenomenalidade enquanto tal, as transformações que afectam a mecânica terrestre e a ciência do movimento em geral não são separáveis de uma modificação do olhar médico. Mas um tal estudo afastar-nos-ia em demasia do tema principal deste capítulo385. É significativo que, no desenvolvimento de uma física votada a buscar na geometria as regras das operações fenomenais, os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Philosophiae naturalis principia mathematica) de Newton, em 1687, sucedam aos Princípios de Filosofia de Descartes, e lhes instruam o processo. Foi com efeito a matemática que se substituiu ao regulamento lógico da relação das causas com os seus efeitos. Descartes, nas Regras para a Direcção do Espírito, havia-lhes estabelecido o programa, sensivelmente modificado no momento de abordar o problema da fenomenalidade, ao longo das partes II, III e IV dos Princípios de Filosofia. Ora o que havia sido esboçado por Galileu e teorizado por Descartes na mesma época, antes de 1630, acha-se

acabado nos seus principais contornos seis décadas mais tarde. A cinemática galilaica, pela qual se deve começar, não está certamente isenta de censuras. A historiografia do início do nosso século não deixou de mostrar a que ponto as ideias de Galileu estavam em continuidade com as da tradição medieval dos comentários à Física de Aristóteles. A leitura dos físicos de Oxford e da Sorbonne, nos séculos XII e XIII, oferece um certo número de pontos de vista sobre os principais elementos que a ciência galilaica poderá desenvolver. Duhem dá dessa sequência uma interpretação continuista386 desfavorável à construção de um mito fundador galilaico e, conjuntamente, uma defesa e ilustração da posição instrumentalista em astronomia: a interdição ditada em 1616 a Galileu procede segundo Duhem da própria sabedoria, na medida em que seria Galileu que teria ultrapassado os limites atribuídos ao conhecimento. Desde então seria preciso dizer que a interpretação da natureza puramente instrumental de uma hipótese é mais conforme ao ideal científico do que o é a doutrina grosseiramente realista dos copernicianos. Pierre Duhem387 revela um aspecto essencial do pensamento de Galileu: é a partir das noções elaboradas em cinemática que se deve abordar a astronomia. Esta última é um vasto campo de observação, de experimentação e de especulação que se oferece à mecânica racional. Mas é precisamente a unidade de um projecto inteiramente dedicado ao conhecimento do movimento que, embora impondo limites à contribuição astronómica galilaica, lhe explica as intenções e o sucesso. Por não ser, no fundo, astrónomo, Galileu consegue estabelecer em termos nítidos o movimento dos planetas no interior de uma cinemática onde ele acabará por se resolver, e indica assim o caminho que Newton seguirá na sua obra de 1687. Em Galileu as duas análises do movimento não pertencem a uma mesma ordem conceptual uma vez que uma, relativa aos corpos celestes, se apodera das condições que são prestadas, cá em baixo, aos corpos pensados pela outra ciência do movimento. O facto da gravidade estrutura comportamentos específicos nos corpos graves e é efectivamente preciso aguardar a extensão da lei da queda aos próprios corpos celestes, sendo a elipse de Kepler a trajectória dinamicamente formada por essa tendência para a queda combinada com uma tendência radial do corpo em revolução, para compreender que uma única e mesma ciência deve pensar o conjunto dos efeitos do movimento. Ao optar por não considerar a astronomia mais do que um meio de obter confirmações físicas do movimento da Terra, Galileu tornava credível a ideia segundo a qual a física nova tinha doravante necessidade de um sistema do mundo que,

embora fosse novo, se substituía a vários séculos de distinção radical entre o céu e a terra. A escola galilaica e a mecânica nova Ao atribuir à filosofia natural uma forma e um estilo dos quais ele próprio problematizou o estatuto de pensamento em ruptura com as antigas formas da filosofia natural, Galileu abria a porta a uma autêntica escola galilaica. É com Benedetto Castelli, o seu primeiro verdadeiro «discípulo», que se inaugura uma tradição que não é já a de uma mera exegese dos textos do mestre, mas a de um aprofundamento das noções e das máximas obtidas por meio desse utensílio comum que é a física geometrizada. Castelli, nomeado matemático-chefe directamente adstrito a Urbano VIII em 1623, fora até essa data um aluno dotado e leal em Pádua e em Pisa, onde se tornara lettore de matemática pouco tempo após a chegada de Galileu. É a este que é dirigida a primeira das Cartas Copernicianas na medida em que ele próprio fora alvo de um insistente interrogatório por parte de uma Cristina de Lorena preocupada em saber até que ponto de refutação das Escrituras tencionava Galileu levar os resultados das suas observações. É ainda Castelli que em 1615 escreve uma obra388 dedicada à refutação dos pontos de vista aristotélicos de Ludovico delle Colombe, colocando-se assim resolutamente contra o partido dos beneditinos empenhados na luta palaciana que acelerou o desenvolvimento do processo de 1633. À data do processo, Castelli escrevera já uma obra de hidrodinâmica, Della mistura delle acque correnti389. Nesse tratado que mostra um grande domínio das propriedades físicas do escorrimento, Castelli mostra-se galilaico no cuidado escrupuloso que atribui à operatividade das condições pertinentes de idealização. Nascidas das suas reflexões sobre os estragos causados pelas cheias da Romanha390, as leis do escorrimento que ele propõe afirmam em particular uma relação inversamente proporcional entre a velocidade de escorrimento e o tamanho da secção de tubo em que a água é idealmente contida. Galileu apresenta Castelli como «um dos [seus] alunos, um homem inteligente, livre de preconceitos391», ou seja um homem que coloca a sua condição de intérprete científico da natureza acima do respeito que também deve às Escrituras. Continuador da obra cinemática de Galileu, ele foi também um dos seus primeiros conhecedores eruditos, uma vez que as suas Annotazioni alla Bilancetta di Galileo representam a primeira tentativa de publicação de manuscritos

galilaicos inéditos. No movimento dos Lincei, a obra e a acção de Castelli contribuíram, de maneira discreta ainda que real, para o estabelecimento de autênticos cânones da ciência galilaica do movimento: uma ciência operatória, tão empenhada na determinação teórica de condições de matematização quanto na busca de efeitos úteis à engenharia moderna. Castelli, que não sobreviveu mais de dois anos ao seu mestre, teve em Roma um aluno, Evangelista Torricelli, que viria a ser um dos mais brilhantes faróis dessa imediata herança galilaica. Torricelli é, com Bonaventura Cavalieri, aquele que terá marcado de forma mais decisiva a capitalização das conquistas galilaicas. Nascido em Outubro de 1608, morreu prematuramente em 1647, deixando por assim dizer Galileu sem herdeiro imediato provido de alguma envergadura. Após essa data, é com efeito para alhures, do lado dos continuadores, que convém dirigir o olhar para tentar perceber o que foi o legado galilaico ao pensamento mecânico clássico. Quaisquer que sejam as incertezas relativas à juventude de Torricelli, encontramos-lhe os vestígios no formulário de inscrição do colégio jesuíta de Faenza, depois em Roma, onde, a partir de 1626, ele se torna aluno de Castelli. A sua contribuição para o aprofundamento das ideias e princípios mecânicos de Galileu é multiforme. Dele sabemos que assistiu Galileu na composição de uma jornada suplementar392 dos Discorsi, nos últimos meses de vida do recluso de Arcetri. Mas é numa espécie de tese de final de estudos, publicada em 1644 na própria Florença, que Torricelli assinala a sua perfeita mestria dos utensílios desenvolvidos em Pádua por Galileu. No De motu gravium naturaliter descendentium et projectorum, Torricelli pergunta-se qual deve ser o comportamento, nos fenómenos de queda, de dois corpos ligados: Estabelecemos em princípio que dois graves ligados conjuntamente não se podem mover por si mesmos, a menos que o seu centro de gravidade comum desça393.

Ao referir ao centro de gravidade comum o movimento de dois sólidos ligados, Torricelli não só dá uma interpretação geral do trabalho mecânico de um corpo, como também permite pensar claramente a passagem da análise teórica do movimento de queda a uma aplicação prática e concreta das leis que dela se obtêm. Na teoria, os graves não são mais do que seres de razão. Na prática, são compostos de uma soma finita ou infinita de pequenos corpos ligados à maneira dos dois corpos referidos por Torricelli no enunciado do seu princípio. É ao determinar o centro de gravidade comum a todos esses corpos,

por somas infinitesimais cada vez mais finas, que se conseguirá superar o afastamento que subsistia, a justo título, em Galileu, entre as determinações especulativas da geometria e a arte concreta dos engenheiros. Outra consequência desse princípio: é impossível que o centro de gravidade comum a vários corpos se eleve por si mesmo acima da sua altura inicial. O movimento automaticamente mantido supõe que o centro de gravidade desça e que nessa queda ele ganhe energia suficiente para retornar à sua altura inicial. Num relógio ou noutro qualquer artefacto mecânico em que as forças de fricção não possam ser suprimidas, é portanto um amortecimento progressivo que é previsto pela teoria. Um movimento mecanicamente auto-suficiente é impossível neste mundo de baixo: a relojoaria saberá reter todos os ensinamentos de tal princípio quando substituir ao pêndulo mecânico totalmente dependente do princípio de Torricelli outros movimentos reguladores, como a mola em espiral, que, a cada vibração, mantém o seu movimento acrescentando-lhe uma energia de torção. Esta aquisição mecânica fundamental baseia-se no mesmo fundamento teórico que o dos cadernos paduanos de Galileu, bem como no conjunto das afirmações dos Discorsi relativas ao movimento do centro de gravidade dos graves. Tal como Castelli, Torricelli brilha na hidrodinâmica, onde enuncia uma lei do escorrimento notável pela sua semelhança com a que governa a queda: por um pequeno orifício, a velocidade de escorrimento elevada ao quadrado é proporcional à altura da coluna de água. As propriedades do escorrimento verificam também quase perfeitamente a hipótese mecânica da igualdade entre altura de queda e altura de retorno, ilustrada nos Discorsi pelo isocronismo do pêndulo. Com efeito, a água torna a subir quase até à altura da coluna de água que lhe dá a sua força. Deve-se a Torricelli a invenção do barómetro, ou seja também uma noção precisa da pressão atmosférica, pela qual, juntamente com Pascal, ele inventa um protocolo experimental que ficou famoso. Galileu havia notado a impossibilidade de elevar mecanicamente uma coluna de água, fosse qual fosse a força da bomba, até uma altura determinada. Viviani executa a experiência utilizando a partir de 1643 uma bacia de mercúrio, um tubo fechado numa extremidade e ele próprio repleto de mercúrio. Conseguiu pôr em evidência o vazio torricelliano. Essa altura mede, segundo ele, a pressão intangível da coluna de ar que oprime o dispositivo. O vazio é definido muito claramente na Física de Aristóteles como uma noção contraditória, quando muito a designação de um espaço ou de um lugar privado de corpos394, como o seria a mera descrição geométrica de uma posição. No

capítulo IX do livro IV da Física, Aristóteles enuncia contra o vazio objecções ligadas à sua doutrina do movimento: com efeito no vazio um movimento determinado numa direcção, ou seja para o seu fim, é impossível. Todo o movimento supõe um pleno de matéria para se cumprir. É aliás nessas passagens da Física que o movimento dos projécteis, contestado pelos físicos medievais e, no seguimento destes, por Galileu, é definido como continuação, por meio da acção impulsiva do motor. Ao afirmar assim a existência do vazio torricelliano, Viviani realiza portanto dois aspectos da mecânica galilaica. Ele responde em particular a uma observação anotada por Galileu nos Discorsi quando examina o poder da atracção exercida pelo vazio: SAGREDO: Sucedeu-me um dia observar uma cisterna na qual se havia adaptado uma bomba […] tal que atingindo a água um nível determinado na cisterna, a bomba a tirava em abundância, mas ela deixava de operar aquém de uma certa altura. A primeira vez que assisti a tal incidente julguei que o aparelho estava deteriorado; mas o artesão que eu encontrara para fazer a reparação disse-me não haver defeito algum, senão do lado da água que, estando demasiado baixa, já não sofria ser elevada tão alto; e acrescentou que bomba alguma teria o poder de a fazer subir um cabelo acima dos 18 côvados395.

Galileu havia dado a mesma explicação numa carta a Baliani de Agosto de 1630396, limitando-se a explicar pela atracção do vazio o conhecido fenómeno dos fontanários, dignos representantes desses «artesãos» aos quais Galileu não cessa de fazer referência nos seus problemas de mecânica. É muito evidentemente a pressão atmosférica, e não o vazio, que explica que nessa cisterna em forma de tubo a coluna de água não suba na tubagem senão até ser atingido um ponto de equilíbrio. Por outro lado, a experiência de Viviani desfere um temível golpe aos apoiantes do aristotelismo, uma vez que a utilização do mercúrio torna mais credível a ideia de ausência de matéria na parte superior do tubo tapado. É sabido que coube a Pascal, na companhia do seu cunhado Florin Périer, pôr em prática essa relação entre a altura da coluna de água ou de mercúrio e o peso do ar. Pascal publica em 1647 as suas Novas Experiências acerca do Vazio, nas quais retoma os resultados das experiências realizadas com o concurso de Pierre Petit, em Rouen, sobre o vazio torricelliano. Tal prática havia aliás adquirido a envergadura de uma competição europeia bastante renhida. Descartes e Roberval pela França, mas ainda Hobbes e Boyle pela Inglaterra, investigam também eles essa questão cuja origem galilaica é atestada pelo facto de ter sido Torricelli quem, em primeiro lugar, evocara tal questão na sua correspondência e fizera a

demonstração a Mersenne aquando da viagem deste a Florença em 1644397. Os aristotélicos não desarmam. O padre Étienne Noël dá à estampa em 1648 O Pleno do Vazio, desenvolvendo os argumentos que são também os de Simplício nos Discorsi: no tubo há ar, mas ar tal que está rarificado em extremo, de onde nasce a pressão interna no tubo que retém o ar. A 19 de Setembro de 1648, Pascal e Périer demonstram, fora de todo o debate retórico, a derradeira consequência da ideia torricelliana. No cimo do Puy de Dôme398, a coluna de ar pesa menos do que no sopé deste; a diferença é mensurável e a coluna de mercúrio menos elevada. A experiência, delicada mas possível, havia sido planificada tanto por Mersenne como por Pascal, com um serenamente afixado desprezo por Descartes, que refuta também ele o vazio por razões que se prendem com o seu próprio sistema. A via seguida por Torricelli e depois por Pascal é, contrariamente às refutações palavrosas dos professores aristotélicos, ou à filosofia natural de gabinete que é a de Descartes, uma ciência activa que prolonga imediatamente aquela de que Galileu fora um dos iniciadores em Pádua e, doravante, a figura emblemática na Europa. Christiaan Huygens tem por cumprido o conjunto das promessas contidas no princípio de Torricelli quando consegue, no Horologium Oscillatorium de 1673, referir o movimento de um número qualquer de corpos ligados ao do seu centro de gravidade. O momento de inércia de um sistema de corpos é inteiramente determinado pelas relações de distância e de peso que os diferentes corpos mantêm com o centro de gravidade que conjuntamente engendram. Mas é com Newton que se cumpre verdadeiramente a escola galilaica. A interrogação por Newton da sua própria epistemologia só surge na segunda edição dos Principia, em 1713. Encontra-se nessa data o famoso Scholium generale acrescentado ao Livro III, onde se inscreve o não menos famoso «Eu não forjo hipóteses» (hypotheses non fingo). Embora não possamos retomar de forma demorada a interpretação desta fórmula, podemos tentar discernir-lhe o significado geral: basta de arrazoados como um geómetra e de descrever matematicamente o movimento dos planetas. A busca da causa é remetida para um alhures da filosofia experimental: Até ao presente expus os fenómenos celestes e os do nosso mar pela acção da força da gravidade, mas não estabeleci ainda a causa da gravidade. Em todo o caso essa força nasce de uma causa qualquer, que penetra até aos centros do Sol e dos planetas, sem que a sua virtude seja por isso diminuída; e ela age não em função da quantidade das superfícies das partículas sobre as quais actua (como o fazem as causas mecânicas), mas em função das quantidades de matéria sólida; e a

sua acção estende-se em todas as direcções a distâncias imensas, decrescendo sempre na razão dupla das distâncias399.

Newton havia indicado noutro local o resultado das suas especulações sobre a causa da gravidade e situara-as então no horizonte de uma matéria etérea: «Quando eu digo que a estrutura do universo não pode ser outra coisa senão o éter condensado por um princípio de fermentação, em lugar destas palavras escrevei que ela não pode ser outra coisa senão as composições diversas de um certo espírito ou vapor etéreos condensados, por assim dizer, por precipitação400.» Como vemos, o engendramento da qualidade por uma causa pode revelar-se (sem chegar a afirmar o enfeudamento do pensamento científico de Newton à Cabala) extremamente estranho ao primado do movimento local, tal como o definiam os apoiantes da mecânica. A carta, datada de 1675, não é precisamente destinada ao segredo da confissão, uma vez que é dirigida ao secretário da Royal Society, lugar da publicidade e da comunicação por excelência. Independentemente dessa maneira fermentativa ou precipitante de estabelecer a causa, Newton mostra-se aqui atento ao esboço de um meio activo, suporte e sede das operações naturais. Essa orientação interna do pensamento de Newton é prolongada (e não contradita, ao que parece) pelas tomadas de posição fortemente mecanistas401 adoptadas a partir de 1687: Que a gravidade deva ser inata, inerente e essencial à matéria, de tal modo que um corpo possa agir sobre um outro à distância através de um vazio, sem a mediação do que quer que seja por outra parte e através da qual a sua acção e a sua força possam ser transportadas de um ao outro, é a meu ver uma tão grande absurdez, que eu creio que nenhum homem, que tenha em matérias filosóficas aptidão suficiente para pensar, jamais se poderá ater a ela402.

É um lugar comum afirmar-se, no seguimento de Fontenelle, que «pouco depois os newtonianos, admitindo o mesmo vazio que Newton, afirmam porém que o Peso é uma qualidade essencial dos corpos planetários403». Não é improvável que o hypotheses non fingo de Newton tenha a sua origem na observação apontada por Galileu no mais formalizado dos seus diálogos, os Discorsi: SALVIATI. A ocasião não me parece favorável para procurar a causa da aceleração do movimento natural, problema acerca do qual diferentes filósofos formularam diferentes opiniões, alguns explicando-o pela aproximação em relação ao centro, outros pela redução progressiva das partes do meio que ficam por atravessar, outros ainda por uma extrusão do meio cujas partes, ao

virem reunir-se nas costas do móbil, o empurrariam e o impeliriam continuamente; teríamos de examinar todas essas imaginações [fantasie], com muitas outras, e sem grande proveito404.

Fantasie, fingere: para além da necessidade, expressa por Descartes nos Princípios de Filosofia, de produzir sistematicamente a ligação entre as causas segundas ou leis da natureza e a causa primeira, mas também entre as causas segundas e as propriedades particulares dos movimentos dos corpos, há um laço a unir o método galilaico e o método newtoniano. Esse laço é o de uma ciência que produz essencialmente uma descrição dos efeitos na natureza e se pode acomodar por não poder referir o efeito a uma causa inteligível. O princípio é discurso e de facto, sempre suspeito de tagarelice. A lei descritiva é uma medida e termina quando uma regra matemática puder ser oferecida como traço de união entre os fenómenos que ela torna mais fáceis de conceber. A causa de Copérnico: física celeste e filosofia natural Debater-se-á por muito tempo ainda a própria existência de uma «revolução coperniciana». A ideia dela foi completamente formada por Alexandre Koyré, cuja introdução ao De revolutionibus orbium cœlestium de Copérnico recorda porém todas as reservas que se devem avançar quando se afirma o carácter revolucionário do sistema coperniciano: Copérnico […] não é coperniciano. Não é, também, um homem moderno. O universo dele não é um espaço infinito. É limitado, tanto quanto o de Aristóteles ou de Peurbach. Maior, decerto, mas finito, inteiramente contido na e pela esfera dos fixos. […] Ordem esplêndida, geometria luminosa, cosmo-óptica que substitui a astrobiologia dos antigos405.

Assim, Copérnico, que ainda faz largo uso das técnicas ptolomaicas de correcção dos movimentos celestes por epiciclos, excêntricos e equantes, vale essencialmente por haver introduzido, com o heliocentrismo, um método geométrico de descrição que se basta a si mesmo, sem suposições relativas à natureza dos planetas ou da causa física (força ou esfera406) que os retém na sua orbe. O teólogo Osiandro, que redige sem que Copérnico o saiba uma Advertência ao Leitor, sobre as hipóteses contidas neste livro407, colocada antes do prefácio escrito pelo astrónomo, mostra bem que no contexto da Contra-Reforma as teses copernicianas podiam ser interpretadas como uma violação das Escrituras. Com efeito, em certos pontos, parece evidente que a Bíblia se apoia numa representação geocêntrica do universo. O Concílio de

Trento408 é chamado a reunir-se a 8 de Abril de 1546, ou seja três anos após a publicação do De revolutionibus. Ora é no termo desse Concílio, em 1564, que será afirmada uma posição intransigente da Igreja. Osiandro afirma que as teses de Copérnico não devem ser tomadas senão como hipóteses matemáticas desligadas de qualquer ancoragem na percepção ou na descrição do mundo. Teses semelhantes encontravam-se já no nominalismo medieval409, e antecipam uma certa tradição epistemológica que só atribui aos enunciados científicos um mero valor de coerência formal, sem relação com as coisas. Enquanto instrumentos formais, as hipóteses não são mais do que as descrições de um conjunto de relações convergentes – tais relações são as leis em si mesmas. Essa tradição é a do instrumentalismo, que será ilustrada, a títulos bem diversos, por Emanuel Kant410 e por Pierre Duhem411. O livro de Copérnico é publicado entre uma relativa indiferença: o seu conteúdo, à excepção do Primeiro Livro, não é acessível ao vulgo, e será preciso combinar os esforços interpretativos sucessivos (e mais ou menos conformes ao texto do cónego polaco) de Kepler, de Giordano Bruno e depois de Galileu, para que a substância subversiva do heliocentrismo, que transvaza largamente o quadro da astronomia, seja apreciada na sua justa medida. É preciso pois esperar por Março de 1616 para ver o texto de Copérnico inserido no Índex dos livros proibidos: esse instrumento de censura intelectual foi contudo instaurado a partir do fim do Concílio de Trento, em 1564, ou seja no próprio ano do nascimento de Galileu. Como outros antes dele, Copérnico introduz uma suposição heliocêntrica. Os movimentos desordenados dos planetas adquirem então uma significação mais simples, que não permite porém fazer economia dos artifícios matemáticos forjados pela escola ptolomaica: os excêntricos, mas também os epiciclos, aparecem no sistema de Copérnico. A mudança de referência cosmológica é anunciada por Copérnico no capítulo vii do livro i do De revolutionibus, numa evocação imagista do princípio de relatividade óptica. Levado pelo movimento regular de um navio, um observador é incapaz de discernir o sujeito do movimento, como já Virgílio bem dizia: «O porto e a cidade recuam412.» O universo de Copérnico permanece fechado, ele nada pode opor à física aristotélica e, nesse sentido, todo o edifício pode, a bem dizer, reduzir-se ao objecto puramente instrumental descrito por Osiandro: uma hipótese matemática, sem relação com os factos ou com qualquer valor de verdade. O manual dominante da astronomia pré-coperniciana – e que sobreviverá por muito tempo à data de 1543 – é o tratado conhecido pelo nome da Sphæra de

Sacrobosco, porque ele é um dos primeiros a beneficiar da vasta difusão das ideias tornada possível pela invenção da imprensa. Tradução e ajustamento do Almageste de Ptolomeu, ele é o fundamento matemático limitado mas durável a partir do qual a astronomia ptolomaica opera a ligação do período helenístico e romano à época pré-coperniciana. São propostas numerosas tentativas matemáticas de refinamento, como as de Peurbach (Theoricæ novæ planetarum) e de Regiomontanus. Deve recordar-se que a astronomia é, desde a injunção de Platão, transmitida por Aristóteles e por toda a tradição ptolomaica, essencialmente uma questão de matemática. Ora o De revolutionibus pode legitimamente surgir aos olhos dos seus contemporâneos como mais uma construção matemática, seguindo nisso a ortodoxia metodológica da astronomia dos Antigos. O contributo de Galileu para a astronomia permanece estritamente observacional. A observação sucessiva da Lua, da Via Láctea, de Júpiter e dos seus satélites, das fases de Vénus, das manchas solares, fez-se com a manifesta intenção de construir uma tese física menos dedicada à investigação astronómica pura do que ao conhecimento do movimento da Terra. São as três leis de Kepler que dão à astronomia simultaneamente a sua estrutura calculatória moderna e a força de persuasão necessária ao estabelecimento do heliocentrismo. Nem Copérnico nem Galileu foram com efeito capazes de encontrar, no interior da tradição dos orbes circulares que mantêm, um argumento decisivo a favor da verdade de uma hipótese heliocêntrica já adquirida em parte em Aristarco de Samos. As razões que explicam essa adesão ao heliocentrismo por todos aqueles que deram à ciência nova os seus maiores impulsos prendem-se mais, de facto, com a rejeição do bloco objectivo formado pelo aristotelismo e pelo ptolomaísmo do que com a crítica objectiva dos méritos de um ou outro sistema do mundo. Foi antes de mais pela sua rejeição da física aristotélica, da sua identificação do centro do mundo com o centro da Terra413, bem como da sua análise não matematizável do movimento, que os autores desejosos de produzirem outra ciência do movimento encontraram na hipótese coperniciana uma representação do mundo conforme às noções centrais da sua mecânica renovada. Neste sentido, se Galileu não era coperniciano antes de 1609, parece temerário afirmar-se que ele não vira a que ponto a sua cinemática exigia que se pusesse o Sol no seu lugar414. A adesão de Galileu ao sistema coperniciano não é alimentada pela retoma das ideias keplerianas415, tal como não é estimulada pelas ricas hipóteses de Brahe416. Ela faz-se portanto às arrecuas,

lateralmente, por ocasião da elaboração de princípios decisivos para a mecânica, como o princípio do movimento relativo, que não têm correspondência nos céus a menos que se considere que a Terra se move. No entanto, a via traçada por Galileu é aquela que encontrará o seu auge na unificação das leis do movimento, contida nas leis de Kepler mas só revelada por Newton. Galileu falha totalmente a viragem que consistiria em matematizar verdadeiramente a astronomia. Mas, embora permanecendo afastado desse domínio, passa com razão para aquele que soube dar à astronomia coperniciana a mecânica terrestre de que ela precisava para se estabelecer. Kepler continua a ser essencialmente um homem do Renascimento para o qual não existe uma chave única na explicação das tendências profundas que conduzem a criação divina ao equilíbrio e à simetria. Galileu é por seu turno adversário da profusão barroca das causas: uma estrutura única, universal, está na base da produção de todos os efeitos naturais. Há portanto na natureza uma necessidade que concorda bem com aquela que se encontra na matemática, e que deve portanto poder reduzir-se a esta. É essencialmente por conceber os fenómenos naturais como redutíveis ao seu índex matemático, ou seja aos parâmetros de grandeza, figura e movimento, que Galileu acaba por dar ao heliocentrismo a consistência de uma representação do mundo. É por ele o fazer avançar um passo, da geometria para a mecânica, do abstracto para o concreto, que Galileu faz do heliocentrismo um problema que confronta a estrutura bem estabelecida da ciência que se ensina à maneira de um dogma: o aristotelismo. A síntese newtoniana A obra maior de Newton, os Philosophiæ naturalis principia mathematica, começa pela cinemática (livro i), prolonga-se numa mecânica dos meios fluidos em que uma resistência modifica as leis puras do movimento (livro ii) e culmina com o duplo esboço de um sistema do mundo e de um método para «bem filosofar». Bem filosofar é começar sempre pelo observável, a experiência, de onde são tiradas as leis mais gerais. As doutrinas cujas proposições não sejam tiradas da experiência são obras ficcionais. Newton, pelo seu lado, «não finge hipóteses», não constrói nada que não seja antes de mais uma propriedade atestada dos corpos submetidos à experiência e aos sentidos. Paradoxalmente, dessa afirmação derivou a noção vaga, obscura e certamente não observável, de atracção. É que a força em questão tira a sua

ambivalência de ter sido pensada em diversas ocasiões por Newton enquanto analogia com o choque dos corpos, sem que o domínio ao qual a atracção se aplica jamais se possa satisfazer com tal orientação mecânica. Depois de Newton, torna-se difícil pensar o universo em termos de turbilhões, esses grandes artefactos mecânicos de que Descartes, Leibniz e Huygens haviam tentado estabelecer a necessidade, para guardarem à filosofia natural o sentido de uma interrogação racional. A atracção newtoniana é com efeito simultaneamente uma lei que faz entrar a astronomia na sua fase moderna, e uma ideia que faz surgir uma vez mais, no próprio cerne da demanda científica, qualidades ocultas de que ninguém poderá dar razão – mas que servem para o cálculo. Moderna, a física newtoniana exprime o conjunto dos progressos da física galilaica em três leis sintéticas. A lei de inércia, a lei de composição das forças e depois a lei da acção e da reacção são os fundamentos de uma mecânica que ignora a distinção da terra e do céu. A relação fundamental da dinâmica escreve-se geralmente , mas Newton escreve-a antes no sentido de uma igualdade da força e da variação da quantidade de movimento expressa segundo uma direcção: a impulsão ou força imprimida compõe-se então com o movimento inicial do móbil. É no livro III que Newton ataca a teoria cartesiana dos turbilhões. Para irem ao encontro das leis de Kepler, os turbilhões deveriam estar sujeitos a leis de velocidade diferenciadas. Newton observa além disso que os cometas atravessam o sistema solar (segundo órbitas elípticas bastante planas), tornando assim a física turbilhonária totalmente inadequada para os explicar. A obra de Newton permite concluir uma certa época da astronomia. Com ele a unidade das mecânicas celeste e terrestre torna-se tangível porque as leis que regem os corpos do universo inteiro estão sob a dependência de uma certa relação, ao que parece universal, inversamente proporcional ao quadrado das distâncias. Newton não produz apenas o fim da astronomia de posição: ele reduz a astronomia cartesiana dos turbilhões a nada (ela não subsiste senão nas tentativas de Christiaan Huygens, que faz publicar a sua teoria do peso num Discurso apenso ao Tratado da Luz de 1690) e opera a síntese das leis de Kepler, cuja importância nem Galileu nem nenhum dos astrónomos clássicos havia visto. Os problemas encontrados por Newton na determinação de uma expressão geométrica que exprimisse a força de atracção exercida pelo Sol sobre os

planetas são comparáveis àqueles com que Christiaan Huygens se confrontara, na década de 1650, por ocasião da medida da força centrífuga. A homenagem que Newton lhe presta é pois perfeitamente legítima, mesmo se Huygens confessa pelo seu lado, no Discurso da Causa do Peso, publicado em 1690, que jamais pensara estender desse modo a acção do peso aos corpos celestes. Matematicamente sedutora, a construção newtoniana introduz no entanto no seio da ciência clássica uma anomalia (a atracção), cujo obstáculo só será redimido pelos avanços da relatividade geral, mais de dois séculos após o aparecimento dos Principia. Um corpo que se mova numa elipse kepleriana, caso particular de cónica interceptada por um plano, ao sofrer a acção permanente de uma força dirigida para um dos focos é portanto submetido, segundo a lei newtoniana, a uma atracção que tem a fórmula geral 1___ r2. Facto notável, esta lei supõe que a acção do peso se estende sem demora no espaço, embora a virtude ou a força dessa acção se amenize consideravelmente com a distância. A posteridade imediata de Newton, a partir de D’Alembert, poderá pôr em evidência uma dificuldade: se se souberem calcular as interacções entre dois corpos, ou seja o caso da figura estudada nos próprios Principia, em compensação, desde que um corpo suplementar entre na relação de atracção, insinuam-se erros de previsão do movimento e da posição. O problema dito «dos três corpos», que só será rigorosamente tratado por Poincaré nas correcções de uma célebre Memória de 1889, no seguimento do prémio do rei da Suécia e que constitui o primeiro passo para um estudo das condições iniciais caóticas de um sistema mecânico não linear, será objecto de numerosas e vãs correcções da atracção newtoniana por Laplace, ao longo de todo o século XVIII. Deve reconhecer-se às leis de Newton o seu carácter realmente sintético: nelas se prolongam porém as conquistas da escola galilaica que desvendam o carácter operatório do princípio do movimento relativo e do movimento inercial para a análise das leis concretas417. A questão cosmológica terá, de parte a parte, marcado a viragem da filosofia natural, instando-a a pensar os fenómenos segundo um ponto de vista radicalmente modificado. É por fim a viragem matemática induzida pela aplicação dos instrumentos da análise infinitesimal nos diferentes campos abertos pela mecânica (mecânica celeste de Newton, mecânica teórica de Wallis ou de Huygens) que vai verdadeiramente cunhar o legado da física clássica, até à extinção, após três séculos de bons e leais serviços, dos seus métodos, com o aparecimento de novas mecânicas

(estatística, relativista, mas sobretudo quântica). FABIEN CHAREIX 384 Intróito das missas das Ascensão, citado in Huysmans, L’Oblat. OEuvres complètes, Paris, Cres, 1934, vol. 17, p. 143. Este sermão terá constituído o ataque do sermão de Lorini contra Galileu em 1614. 385 Deverá consultar-se, acerca desta questão, entre uma muito rica literatura, T. S. Hall, History of General Phisiology, 600 BC to AD 1900, 2 vols., Chicago, University of Chicago Press, 1969; F. Duchesneau, Les Modeles du vivant de Descartes à Leibniz, Paris, Vrin, 1998, ou P. Rossi, La Naissance de la science moderne en Europe, Paris, Seuil, 1999, com, por exemplo, o paralelo que é estabelecido por Rossi entre o método de Borelli e os «pressupostos de ordem galilaico-cartesiana» (p. 215). 386 Esta leitura é mesmo admitida pelos defensores de uma abordagem social dos saberes científicos, pois ela dificulta o conceito de revolução científica. Ver S. Shapin, La Révolution scientifique, Paris, Flammarion, 1998: «A continuidade entre a filosofia natural do século XVII e o seu passado medieval está todavia hoje em dia largamente reconhecida.» A interrogação suscitada por Shapin é esta: não será a «revolução científica» mais do que uma invenção de historiadores? J. Henry, em The Scientific Revolution and The Origins of Modern Science (Londres/Nova Iorque, McMillan/St. Martin Press, 1997) responde a essa questão de uma maneira bem mais matizada, e sem dúvida mais exacta, do que Shapin. 387 Duhem é certamente o autor de uma Física de Crente, mas a sua crítica da ideia da revolução galilaica comporta uma análise que esclarece as relações entre a ciência clássica e os seus «precursores», oxonianos ou parisienses. Cf. P. Duhem, Études sur Léonard de Vinci. Les précurseurs parisiens de Galilée, Paris, Hermann, 1913. 388 Riposta alle oppositioni del Sig. Lodvico, etc., contro al trattato del Sig. Galileo, Delle cose che stanno sopra acqua, Bologna: 1655. 389 Publicada em Roma em 1628, traduzida para francês por Saporta em 1664, e que conheceu numerosas edições até ao século XIX. 390 Onde havia sido enviado em missão de estudo pelo cardeal Corsini em 1625. 391 Ed. Naz. V, 136. 392 A Sexta Jornada, relativa à força de percussão, só é publicada em 1674, ver o cap. 6 da primeira parte. 393 E. Torricelli, Opere, II, Faenza, 1919, p. 105 sq. 394 Aristóteles, Física, 214b12. Consultar o dossier completo por J.-L. Poirier em Leçons de physique, Paris, Presses Pocket, 1990. 395 Discorsi, ed. Naz, VIII, 64. 396 Ed. Naz, XIV, 130. A altura da água equivale a 10,3 metros, corresponde a uma pressão de 1,033 kg/cm2, normal ao nível do mar. 397 Consultar C. de Waard, L’Expérience barométrique, Paris, 1936, C. Licoppe, La Formationn de la

pratique scientifique, Paris, La Découverte, 1996. Este último reduz, erradamente, os textos de Pascal sobre tais questões a simples dispositivos retóricos, numa argumentação que contesta a presença de um verdadeiro dispositivo de prova experimental. 398 O Puy de Dôme é um vulcão extinto que integra o chamado Maciço Central francês e constitui a segunda maior montanha da região de Auvergne (1464 metros de altitude). Situa-se a dez quilómetros de Clermont-Ferrand. (N. do T.) 399 I. Newton, Principia mathematica philosophiæ naturalis, Lib. III, Scholium Generale, p. 530 [terceira edição, 1726], in Isaac Newton’s Principia Mathematica Philosophiæ Naturalis, ed. I. B. Cohen e A. Koyré, 2 vols. Cambridge, Harvard University Press, 1972, vol. II, p. 764. 400 I. Newton, Carta a Oldenburg de 25 de Janeiro de 1675. Citado em Isaac Newton’s Papers and Letters on Natural Philosophy, and related documents, ed. I. B. Cohen e R. E. Schofield, Cambridge, Harvard University Press, 1958. 401 Cf. as Cartas a Bentley de 1692, publicadas em 1756, citadas em Isaac Newton’s Papers and Letters on Natural Philosophy, and related documents, op. cit.: Carta I, p. 20; Carta II, p. 23 e 26; Carta III, p. 26. 402 Ibid., Carta III, p. 26. 403 B. Le Bovier de Fontenelle, Théorie des tourbillons cartésiens, Œuvres complètes, I, Genebra, Slatkine reprint, 1968. 404 Discorsi, op. cit., VIII, 202. 405 A. Koyré, introdução a N. Copérnico, Des révolutions des orbes celestes, Paris, Diderot Éditeur, 1998, p. 22-23. 406 Ver M.-P- Lerner, Le Monde des sphères (2 vols.), Paris, Les Belles Lettres, 2000-2001. 407 A. Koyré, introdução a N. Copérnico, Des révolutions des orbes celestes, op. cit., p. 27-29. 408 P. Sarpi, Historia del Concilio Tridentino. Nella quale si scoprono tutti gli artifizi della Corte di Roma per impedire che né la veritá dei dogmi si palesasse, né la riforma del Papato & della Chiesa si trattasse. Di Pietro Soave Polano, Londres, Giovanni Billio, 1619 (reed. Turim, Einaudi, 1974). 409 A. O. Lovejoy, «Pragmatism and Realism», The Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Method, 6, 1909, p. 575-580. Ver também M. R. Gardner, «Realism and Instrumentalism in Pre-Newtonian Astronomy», Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol. X, 1983, p. 201-265. 410 E. Kant, Crítica da Razão Pura. O criticismo, verdadeiro ponto de partida do instrumentalismo contemporâneo, apoia-se inteiramente na constituição dos fenómenos pela actividade esquematizante do sujeito do conhecimento. Nesse sentido não podemos conhecer senão sob a espécie da lei, formada e distante de toda a determinação de uma coisa incondicionada. 411 P. Duhem, La Théorie physique, son objet, sa structure, Paris, Chevalier et Rivière, 1916 (reed. Vrin, 1989). 412 N. Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, livro I, cap. VIII. Esta imagem, que descreve bastante

bem a relatividade do movimento percebido, está já presente em Lucrécio, Dererum natura, Canto IV, v. 387 e segs. A fonte comum de Lucrécio e de Virgílio não é outra senão Cícero, Académicas, II, 25, 81. 413 Tal rejeição é expressa com todas as letras no texto de Copérnico. 414 É uma das teses de M. Clavelin, La Philosophie naturelle de Galilée, essai sur les origines et la formation de la mécanique classique, Paris, Albin Michel, 1996. 415 Recordemo-nos da sua tímida profissão de fé coperniciana, em Agosto de 1597, numa carta a Kepler em que mal lhe agradece o envio de uma obra da qual parece não ter lido mais do que o prefácio. 416 Muito pelo contrário, como vimos aquando da análise galilaica da natureza dos cometas. 417 As regras do choque tornam-se assim objecto de um tratamento geral por C. Huygens ao interpretar as forças em presença graças, por um lado, à equivalência da velocidade do choque e das alturas de queda que foi preciso atribuir aos corpos para atingir tal velocidade, e por outro lado ao uso sistemático do princípio de Torricelli e, por fim, à suposição segundo a qual o centro de gravidade comum permanece no mesmo estado de movimento antes e depois do choque. Ver o nosso artigo «La découverte des lois du choc par Christiaan Huygens», Revue d’histoire des sciences, 56-1, 2003, p. 15-58.

David Hume

David Hume nasceu em Edimburgo, na Escócia, a 26 de Abril de 1711. Após estudos em Direito, empenhou-se numa carreira de homem de letras ao publicar a sua primeira obra, o Tratado da Natureza Humana. Uma tentativa de introduzir o método experimental nos sujeitos morais, em dois volumes, em 1739 e 1740. Como o Tratado «saiu nado-morto da imprensa, sem mesmo ter a honra de suscitar um murmúrio entre os fanáticos», Hume adopta a forma do ensaio e dela retira um certo sucesso, a partir da publicação dos seus Ensaios Morais e Políticos de 1741 e 1742. Nos Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano418, retoma certos problemas abordados no primeiro livro do Tratado. Quando três anos mais tarde surge o volume complementar, Inquérito sobre os princípios da moral, ele está no auge da sua notoriedade, e é considerado um dos maiores filósofos do seu tempo. À excepção dos Diálogos sobre a Religião Natural, Hume consagra todo o fim da sua carreira a diversos ensaios e à obra que viria a conhecer maior sucesso, História de Inglaterra, desde a invasão de Júlio César à revolução de 1688419. Morre em 1776. Os princípios da filosofia de Hume O estudo da natureza humana é de primeira importância para o filósofo: os seus primeiros princípios dizem respeito ao conjunto da actividade humana, cognitiva e conativa, incluindo «a matemática, a filosofia natural e a religião natural» que «estão em certa medida dependentes da ciência do homem, uma vez que relevam da competência dos homens e que são as forças e as faculdades deles que as julgam»420. O nível mais fundamental de análise da natureza humana é o das percepções e das relações destas na imaginação associativa. Hume entende por «percepção» aquilo que Locke entende por «ideia»: ela remete para os objectos imediatamente presentes à consciência, quer seja sob a forma de uma sensação ou de uma reflexão421, ou ainda das suas imagens no pensamento. As percepções dividem-se em dois géneros: as impressões e as ideias. As primeiras distinguem-se pela «sua força e a sua vivacidade». A

vivacidade é ao que parece constitutiva da diferença entre elas422. Isso não significa necessariamente que as impressões se imprimam fortemente no espírito: elas podem seguramente passar desapercebidas quando são brandas. Por isso não se deverá entender o termo «vivacidade» num sentido vulgar: um véu pardacento na noite escura é em certo sentido mais vivaz do que a imagem luminosa e distinta de um sonho. Para compreender o que Hume entende por «força e vivacidade», podemos compará-las à «emoção ou [ao] sentimento423» que permite distinguir o que existe verdadeiramente (e em virtude do qual pensamos e agimos) e o que releva da ficção424. Assim, «a crença ou o assentimento que acompanha sempre […] os sentidos não é mais do que a vivacidade das percepções que eles apresentam425». Esse sentimento aplica-se também às ideias, porém de maneira derivada em relação às sensações e às reflexões, e somente em certas condições. A tese principal de Hume acerca das impressões e das ideias é a seguinte: «Todas as nossas ideias simples derivam de impressões simples que lhes correspondem e que elas representam exactamente426.» Ela está no cerne da sua filosofia. Na paisagem dos debates metafísicos tradicionais, Hume deseja estabelecer um método analítico das ideias mais fecundo que o da definição: Quando levamos as nossas definições a remontar às mais simples ideias e ainda encontramos mais ambiguidade e obscuridade, que recurso possuímos nós então? […] Devemos produzir as impressões ou sentimentos originais, dos quais as ideias são copiadas. Essas impressões são inteiramente fortes e sensíveis. Elas não admitem ambiguidade. Não só elas próprias estão em plena luz, como podem lançar luz sobre as ideias que lhes correspondam e que se achem na obscuridade427.

Hume distingue dois tipos de relações entre as percepções. O primeiro compreende aquelas que não podem modificar-se sem que sejam modificadas ao mesmo tempo as ideias dos objectos correspondentes. Na medida em que temos razão ao dizer que a falsidade delas é inconcebível, essas relações – a semelhança, a contrariedade, os graus de uma qualquer qualidade, as proporções de quantidade e de número – são conhecidas a priori, ou seja podemos ou ter a intuição da evidência delas, ou demonstrar a verdade delas428. Mas as relações que mais ocupam Hume são as que podem variar sem que mudem as próprias ideias; não podemos portanto descobri-las senão por elas serem factos e existirem realmente. Essas relações são a contiguidade espacial e temporal, a identidade e a causalidade. São transições do pensamento: ou a relação consiste numa certa facilidade sentida aquando dessa

transição, é o caso das relações naturais; ou então ela procede dessa impressão, são as relações filosóficas429. A facilidade da transição entre diferentes percepções tem por efeito associálas na reflexão ou no pensamento; a relação consiste nessa associação. Influenciado por Newton, Hume descreve esta última como «uma espécie de atracção acerca da qual se constata que possui efeitos tão extraordinários no mundo do espírito quanto no mundo natural, e se manifesta aí sob formas igualmente numerosas e igualmente variadas430». À falta de conexões reais, que tanto os grandes espíritos como o senso comum atribuem erradamente às percepções, os laços associativos entre as percepções constituem a origem de toda a forma de ordem e de unidade entre elas. Em último lugar, e conformemente ao ideal científico newtoniano segundo o qual um princípio deve ser o mais geral e o mais simples possível, Hume reduz todas as espécies de associações à manifestação de três relações fundamentais: a contiguidade das percepções no espaço e no tempo, a sua semelhança, e a sua conexão enquanto causa e efeito, pois «são esses os únicos laços dos nossos pensamentos, e são realmente para nós o cimento do universo e todas as operações do espírito, em larga medida, devem depender deles431». A facilidade das transições, que constitui a relação, e a sua vivacidade têm tendência para andar a par na teoria de Hume. Quando uma relação de ideias pode ser conhecida por intuição ou por demonstração, os sentimentos de facilidade e de vivacidade sobrepõem-se, na medida em que uma pessoa «é necessariamente determinada a conceber [as ideias] dessa maneira432». É somente quando somos livres de considerar uma alternativa que o assentimento surge então mais como uma questão de sentimento do que como um acto de pensamento. Na ocorrência, um dos princípios mais importantes da teoria do conhecimento humeano é que quanto mais fácil for a transição entre uma percepção viva e a formação de uma ideia, ou por outras palavras quanto mais sólida for a relação, mais a vivacidade da ideia, ou seja a crença de que essa coisa existe realmente, se aproxima da da percepção433.

Teoria do entendimento As relações causais estão no cerne da teoria humeana do entendimento. Sem elas, «seria o fim de toda a inferência e de todo o raciocínio sobre as operações

da natureza; a memória e os sentidos passariam a ser os únicos canais que poderiam dar acesso no espírito ao conhecimento de uma existência real434». Entre todas as relações que ligam as ideias às impressões, nenhuma é tão potente quanto a causalidade para produzir crenças, que são ideias vivas. Por exemplo, se eu vejo fumo entrar na sala, penso naturalmente no fogo que o causa, e creio na existência real do fogo tanto como na do fumo, ainda que eu represente para mim o fogo graças a uma ideia, sem dele ter a sensação sob a forma de uma impressão. Assim, de cada vez que, para um dado efeito, eu lhe infiro a causa, ou para uma causa dada o seu efeito, eu alargo aquilo que para mim é o campo da realidade: «É este último princípio que povoa o mundo e nos permite conhecer as existências que, pelo seu distanciamento no tempo e no espaço, se acham para além do alcance dos nossos sentidos e da nossa memória435.» Há segundo Hume quatro elementos necessários à ideia de causa e de efeito: os objectos ligados pela causalidade devem ser diferentes no sentido específico do princípio de separabilidade; eles devem ser contíguos no tempo e no espaço quando os objectos em causa se acham num lugar; a causa deve preceder o efeito; e deve existir uma conexão necessária entre ambos. Os três primeiros elementos compreendem-se facilmente; Hume dedica-se pois a esclarecer o quarto delimitando a impressão originária de que ele deriva. Que a conexão entre a causa e o efeito seja necessária parece paradoxal segundo Hume, uma vez que ela pressupõe a distinção entre os objectos, ou seja as percepções, que liga. As montanhas e os vales, por exemplo, não estão ligados causalmente, porque é impossível conceber a existência de umas independentemente dos outros. O fogo e o fumo, em compensação, existem de maneira distinta e podemos assim conceber ligá-los enquanto causa e efeito. Mas é aqui que reside o problema: se conceber os objectos como distintos equivale a pensar a possibilidade da existência de um mesmo sem a existência do outro, e concebê-los como necessariamente ligados equivale a dizer que é impossível pensar a existência de um sem que o outro o tenha precedido, então a combinação da distinção e da necessidade numa só e mesma ideia parece contraditória. A fim de encontrar a origem das ideias de conexões necessárias, Hume põe-se em busca de uma percepção que, sem dar lugar a essas ideias entre os objectos (o que é impossível), satisfizesse o pensamento e a acção. Segundo Hume, as impressões produzidas pelas ideias de conexão necessária provêm de associações costumeiras, formadas pela experiência de cada vez que certos objectos se sucedem a outros objectos da mesma maneira. Essas

impressões têm por conteúdo os actos e os sentimentos que se experimentam na própria imaginação: a facilidade com que sentimos a transição entre uma percepção e a que lhe está habitualmente associada, e a vivacidade com que sentimos a formação da ideia que lhe está associada quando a transição provém de uma impressão. «A conexão necessária entre as causas e os efeitos» e «a transição que nasce da união costumeira […] são portanto idênticas436.» A fim de explicar porque atribuímos invariavelmente aos próprios objectos, ainda que de maneira inteligível, uma impressão cuja origem é o conhecimento associativo, Hume postula a intervenção de uma ilusão projectiva semelhante à que leva a localizar os odores, os sabores e outras propriedades num local que, a bem dizer, não existe em parte nenhuma437. Hume define a «causa» ao mesmo tempo como uma relação de associação costumeira e como uma relação filosófica de sucessão constante438. Na medida em que nenhuma ideia de conexão necessária pode ser tirada da constância de uma sucessão de eventos sem o efeito do hábito, a definição filosófica dessa relação procede da sua definição natural439. Mas precisamente graças a essa origem, a causalidade filosófica permite inferir conexões necessárias onde se carecer do hábito, prolongando então consideravelmente o domínio de aplicação das relações causais. E as duas definições garantem a validade da máxima geral segundo a qual tudo o que vem a existir tem necessariamente uma causa440. Nada na filosofia de Hume atraiu mais atenção do que a solução para o problema dito da indução: ou inferimos da experiência conexões necessárias «por intermédio do entendimento ou da imaginação; ou então pela razão ou por uma certa associação441». Para justificar a racionalidade da inferência, seria preciso que a crença nesse princípio em que assenta a inferência fosse ela própria racional: «que os casos de que não tivemos experiência se devam assemelhar àqueles de que tivemos experiência, e que o curso da natureza permaneça sempre uniformemente idêntico442». A razão demonstrativa, ou seja o conhecimento, é desde logo desqualificada, uma vez que «podemos conceber uma mudança no curso da natureza443», o que funda a sua possibilidade. Mas o raciocínio provável não vale mais: Tentar provar esta última suposição [que o futuro será conforme ao passado] por argumentos prováveis, por argumentos que concernem a existência, é portanto necessariamente e evidentemente andar em círculo e tomar por acordado o próprio ponto que está em questão444.

Na medida em que não se poderia produzir um raciocínio provável se não se acreditasse já que os factos passados servem para avaliar os factos presentes e futuros, esse raciocínio não poderia estar na origem da crença na uniformidade da natureza. Só a associação costumeira pode justificar uma crença tão essencial, tão universal e tão inabalável445. Hume serve-se da associação para explicar a formação de outras ideias, além da da conexão necessária, as de entidades complexas (corpos, espíritos, substâncias) que aparecem num momento dado (é a «simplicidade»), e na duração (a «identidade»). A simplicidade que se pode reconhecer nos objectos é manifestamente incompatível com a complexidade: as percepções podem ser simples, e nesse caso há somente um único indivíduo, ou complexas, caso em que deverá haver mais do que um; mas na medida em que elas não podem ser simultaneamente unas e múltiplas, a noção de um indivíduo complexo é ininteligível. A situação é ainda mais delicada a propósito da identidade na duração: na medida em que «todas as impressões são existências internas e perecíveis e aparecem como tais446», a ideia de identidade não poderia ser estabelecida a partir dos próprios objectos. Uma vez que a origem da identidade e da simplicidade não se encontra nos objectos representados no pensamento, Hume fá-los derivar das acções e dos afectos da própria representação. Se um sentimento de facilidade na transição entre duas percepções qualitativamente similares cria uma associação de semelhança, então a sucessão dessas transições produzirá um sentimento de invariabilidade e de continuidade; é essa disposição afectiva que Hume toma por impressão originária da «identidade perfeita447». Afirmamos a identidade de uma coisa a despeito da sua interrupção ou da sua variação se, em lugar da sucessão de percepções similares, há uma sucessão de percepções de relações entre percepções similares. Assim, mesmo se as percepções ligadas dessa maneira variam ou se interrompem, a facilidade das transições de pensamento produz um sentimento de constância e de estabilidade que se aproxima da identidade perfeita ao ponto de se confundir com esta448. Essas «identidades imperfeitas449» estão na origem das ideias dos corpos ou de si mesmo, consoante as relações e as circunstâncias. Assim, Hume justifica a simplicidade destes objectos complexos pela constância dessa confusão que releva da afectividade450. A vontade

A vontade é a «impressão interna que sentimos e da qual temos consciência, quando suscitamos cientemente um novo movimento do nosso corpo ou uma nova percepção do nosso espírito451. A sua natureza não é conceptual mas afectiva; e uma vez que, em virtude do princípio de separabilidade, os actos da vontade são distintos das ideias, Hume confronta-se com o problema da sua relação causal, afirmando que «a razão jamais pode ser por si só um motivo para uma acção da vontade452». A experiência mostra que só as paixões despertam a vontade. A razão é e não deve ser senão a escrava das paixões; […] não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão no meu dedo […]. Tão-pouco é contrário à razão que eu prefira, mesmo com conhecimento de causa, um menor bem ao meu maior bem, e que eu experimente uma afecção mais ardente pelo primeiro que pelo segundo453.

O livre-arbítrio racional, caso exista, remete simplesmente para as acções que são mais susceptíveis de realizar um dado desejo. A razão produz uma crença que suscita uma paixão, causa imediata da acção. Quando se fala de «liberdade», é somente no sentido em que nenhum constrangimento exterior impede a acção voluntária de atingir o seu fim. Senão, as acções voluntárias são sempre causadas pela necessidade. As causas podem ser complexas, e compreendem uma grande variedade de paixões; algumas são violentas mas efémeras, outras, mais subterrâneas e mais potentes, são dificilmente perceptíveis dado que a sua íntima mistura com outras paixões as torna indiscerníveis. Em todas as circunstâncias, segundo Hume, não só as causas dos nossos actos voluntários apresentam a mesma necessidade que as causas que regem a matéria inanimada, como todos nós somos nas nossas acções, se não nos nossos discursos, deterministas convictos454.

Paixões indirectas As paixões que melhor se prestam à análise por associação são aquelas a que Hume chama indirectas: é o caso dos pares orgulho/humildade, amor/ódio, mas também da ambição, da vaidade, da inveja, da piedade e da malevolência. Elas têm em comum serem uma «dupla relação de impressões e de ideias455». Dado um objecto que produza um certo tipo de prazer, se eu associar o objecto a mim mesmo por uma relação suficientemente potente, essa relação de ideias

acompanhada pela qualidade agradável do objecto leva-me a sentir a paixão de orgulho que se lhe assemelha, pois ela é igualmente agradável; se, pelo contrário, o mesmo objecto, ligado a mim mesmo, causa um sentimento desagradável, então serei inclinado à paixão que se lhe assemelha, a saber a humildade. Se, enfim, eu suprimir a relação entre mim e o objecto, não sentirei nem orgulho nem humildade em reacção à sua qualidade agradável ou desagradável. Se pelo contrário eu restabelecer essa ligação mas suprimir a sua qualidade agradável ou desagradável, não experimentarei nenhuma dessas duas paixões. O orgulho e a humildade só existem em virtude de uma dupla relação de associação que implique impressões e ideias. Hume sabe que os aparentes contra-exemplos não faltam; ele esforça-se por refutá-los ou usá-los para sua vantagem456. A maior parte dessas críticas aprecia mal o carácter associativo destas duplas relações; elas consistem em transições fáceis e são sentidas como tais entre impressões e ideias457. Quando se examina cada um desses aparentes contra-exemplos prestando atenção à dimensão afectiva das associações, parece que são circunstâncias excepcionais que conferem a uma transição do pensamento oposta à das duplas relações uma maior facilidade, anulando então o seu efeito sobre as paixões. É portanto efectivamente a facilidade que determina principalmente não só as crenças, mas também as paixões indirectas. A simpatia A extensão das nossas paixões reduzir-se-ia ao círculo dos nossos próximos se a simpatia não triunfasse da indiferença, dando uma vivacidade renovada às ideias que nós fazemos dos sentimentos daqueles que não nos são próximos ou que o são pouco. A simpatia é simplesmente uma extensão do princípio de associação na esfera social, que torna mais vivazes as ideias ligadas às impressões458. O sentido moral As teses de Hume sobre a moral são solidárias do resto da sua filosofia. Existirão ideias especificamente morais? Ou, acerca das percepções, o discurso moral não poderá pretender atribuir algum sentido objectivo às suas prescrições? Se há ideias, então, ao referi-las às impressões que as produzem, poderemos esclarecer suficientemente a função delas no conjunto das actividades cognitivas e/ou conativas do espírito humano de modo a pôr termo

aos sempiternos debates sobre os princípios do juízo moral e da acção moral. Hume pensa que as ideias morais não podem ser cópias, nem dos objectos, ou seja das percepções, nem das suas relações; a origem dessas ideias é uma certa maneira de as perceber. Ele afirma que as ideias morais não provêm da imaginação, mas de um certo tipo de sentimento, de paixão ou de impressão de reflexão. Assim, julgar que um acto ou o carácter de um indivíduo é virtuoso, é simplesmente sentir de maneira agradável tal sentimento, e julgá-lo vicioso é simplesmente experimentá-lo de uma maneira desagradável459. A causalidade dos sentimentos morais, tal como a das paixões indirectas, implica uma dupla relação entre as impressões e as ideias: um objecto ou ideia, ligado a uma pessoa ou a uma outra ideia, suscita um sentimento agradável ou desagradável que, em virtude da relação entre os objectos, produz um sentimento moral aparentado, agradável ou desagradável. Assim, os prazeres e as penas que suscitam os sentimentos morais acabam por ser precisamente aqueles que suscitam os sentimentos de orgulho ou de humildade, e de amor ou de ódio para com outrem460; pode então considerar-se que os sentimentos morais não são mais do que formas «mais fracas ou mais imperceptíveis» dessas mesmas paixões461. Para Hume, é claro que numerosas qualidades consagradas como virtudes ou vícios nas sociedades contemporâneas poderiam significar o contrário se certas influências exteriores, como a religião, não entravassem os esforços de cada um para atingir um ponto de vista estável e universal, bem como um empenhamento baseado na simpatia que permite ao seu sentido moral julgar os actos e os comportamentos com o desprezo ou o assentimento que eles suscitariam naturalmente e universalmente462. Hume distingue a verdadeira da falsa moral, tal como diferencia o raciocínio provável «filosófico463» do «não filosófico464»: ainda que não haja provavelmente facto objectivo que permita discernir o bom do mau e o bem do mal, o juízo moral é mais consequente quando é guiado pelos princípios constantes e universais da natureza humana do que quando o é por princípios arbitrários e efémeros. Certas virtudes são seguramente «artificiais»: a justiça ou a propriedade, a lealdade ou ainda a castidade são absolutamente solidárias das instituições que as determinam: a propriedade, os contratos, a governação, as relações intergovernamentais, o casamento, outros tantos artifícios que não existem no estado de natureza. Uma vez estabelecidas essas instituições, atribuímos-lhes naturalmente uma função e esforçamo-nos por as manter e lhes reforçar a eficácia. Os indivíduos tomam então um prazer interessado nas qualidades que

fazem deles homens justos. Quando tais qualidades são finalmente consideradas de um ponto de vista suficientemente geral, não se acantonando ao círculo imediato dos mais próximos, pode então falar-se de sentido moral; o que inicialmente era valorizado do estrito ponto de vista do interesse pessoal é então consagrado como uma virtude. A religião Em concordância com Locke e com outros opositores do inatismo, Hume afirma que a ideia de um «Ser infinitamente inteligente, sábio e bom nasce da reflexão sobre as operações do nosso próprio espírito quando aumentamos sem limites essas qualidades de bondade e de sabedoria465». No entanto, reconhece também que «a capacidade do espírito é limitada e não pode em caso algum atingir uma concepção plena e adequada do infinito466». As ideias de Deus que formamos de maneira empírica a partir das qualidades do espírito humano jamais poderão produzir uma ideia que se aproxime por pouco que seja daquilo que os teólogos dizem acerca delas. Hume mostra-se igualmente muito crítico contra os argumentos que visam demonstrar a existência de Deus. Rejeita o argumento ontológico a priori, uma vez que este considera a existência como uma propriedade necessária de Deus, no mesmo plano que os outros atributos da natureza divina. Antes de mais, a existência não pode ser considerada como uma propriedade, quer se trate de Deus ou de qualquer outro objecto: «Quando penso em Deus, quando o penso como existente, e quando creio que ele existe, a ideia que tenho dele não se acresce nem se diminui467.» Em segundo lugar, ainda que possuíssemos essa ideia da existência, nada permite dizer que ela fosse aplicável a um qualquer objecto de maneira necessária. Tudo o que concebemos como existente, podemos também concebê-lo como não existente. Não existe portanto ser cuja não-existência implique contradição468.

Hume rejeita igualmente os argumentos cosmológicos a posteriori que partem da existência de uma coisa (por exemplo, si mesmo), a qual requer uma causa, e que afirmam que a regressão ao infinito é impossível por faltar à cadeia das causas e dos efeitos tomada na sua inteireza uma causa da sua própria existência. Segundo ele, a explicação da causa das partes é insuficiente. Hume examina os argumentos teleológicos da existência de Deus sob a forma de um diálogo («A providência particular e o estado futuro469»). Para a

salvação do argumento, o seu porta-voz, Epicuro, concede que a ordem, a beleza e a inteligência que transparecem por toda a parte na disposição do universo, não poderiam provir exclusivamente de causas materiais. Epicuro sustenta que não temos outra escolha senão a de vergarmos o nosso raciocínio à «máxima segundo a qual, se uma causa é conhecida somente pelos seus efeitos particulares, é necessariamente impossível concluir dessa causa novos efeitos470». Isso significa que se deve também integrar na concepção da causa as numerosas marcas empíricas de desordem, de feiura e de indiferença para com o bem humano, bem como a iniquidade da repartição dos dons, dos bens e dos destinos individuais. Assim, ainda que admitíssemos que a matéria e o movimento não bastam para justificar o mundo, a única causa à qual teríamos a garantia de chegar por inferência estaria muito longe dessa inteligência suprema e benevolente à qual os partidários do argumento teleológico afirmam chegar. Os Diálogos sobre a Religião Natural visam desmantelar os argumentos que pretendem descobrir a natureza de Deus a partir do mundo natural que é o produto da sua sabedoria e do seu poder divinos. Este diálogo filosófico condena a teologia natural, concedendo-lhe somente esta conclusão muito débil: «A causa ou as causas da ordem no universo apresentam provavelmente uma qualquer analogia longínqua com a inteligência humana471.» Será meramente racional tomar a religião revelada por verdadeira? Os que respondem pela afirmativa remetem comummente para as profecias que se revelaram verdadeiras e para os milagres. Na medida em que tais provas nos chegam invariavelmente por testemunhos orais ou escritos, Hume pergunta-se se lhes poderemos racionalmente atribuir crédito em certas condições, e depois se a revelação preenche estas últimas472. Responde pela negativa a ambas as questões. Para qualificar um evento como «milagre», é preciso que ele contradiga uma lei da natureza. As leis da natureza são o que há de mais imutável entre as conjunções constantes, e são portanto confirmadas pela maior autoridade de que a experiência é capaz. Mas o testemunho também tira a sua autoridade da experiência. Mesmo imaginando que um testemunho relativo a um milagre possua o mais alto grau de fiabilidade imaginável, Hume mostra que não poderíamos fiar-nos nele: a sua autoridade pode quando muito equivaler àquela que a experiência confere às leis da natureza, mas nunca ultrapassá-la. Assim, face a diversas crenças empíricas que se contradigam, aquele que raciocina bem deve subtrair a autoridade dos resultados menos frequentes à dos mais frequentes e em consequência dar crédito a estes últimos;

e quando a autoridade é igual nos dois partidos, como é o caso entre o testemunho mais fiável e as leis da natureza, não é racional crer mais no primeiro do que nas segundas. Hume mostra não só que a autoridade empírica da religião revelada não ganha peso perante a da lei natural, mas também que ela é extremamente fraca («não filosófica»). Cepticismo Se o céptico é aquele que põe em causa o uso da razão como meio de chegar à verdade, então Hume não é céptico. Na condição de sermos guiados pela intuição nas nossas inferências em matemáticas, e pela experiência quanto aos factos, «podemos considerar o nosso juízo como uma espécie de causa, cuja verdade é o efeito natural473». Não é pertinente duvidar de numerosas crenças, porque somos literalmente incapazes de não crer nelas e de não as considerar como evidências nos nossos raciocínios, incluindo certos postulados filosóficos como a existência dos objectos exteriores, do sujeito, do espaço e do tempo e da necessidade de todo o evento ter uma causa. Isto não significa porém que o cepticismo humeano se contentasse em afirmar que as nossas crenças escapariam às refutações cépticas por não estarem fundadas em razão alguma. A natureza verdadeira e radical do seu cepticismo torna-se manifesta quando ele explica porque atribuímos crédito a certas ideias. Ao procurar as impressões que estão na origem das ideias de conexão causal, do indivíduo complexo (simplicidade e identidade) e de muitas outras, Hume mostra que é impossível «conceber» tais coisas sem que as ideias contenham cópias de impressões irredutivelmente subjectivas, como são a dor ou o nojo. Que importa então se a crença que atribuímos a tais ideias torna o céptico impotente para as refutar, na medida em que as próprias ideias são de uma natureza tal que nenhum céptico as poderia atacar? Se, por exemplo, «supusermos que a necessidade e o poder residem nos objectos que nós consideramos e não no espírito que os considera», então «não nos é possível formar uma ideia, mesmo a mais remota, dessa qualidade»474; assim, «ou nos contradizemos, ou as nossas palavras não têm sentido nenhum475». Esta restrição do campo de aplicação das nossas ideias mais fundamentais nos limites de uma consciência formada pela experiência pode incontestavelmente ser qualificada como forma extrema de cepticismo – o bastante, pelo menos, para que Kant faça dela a destruidora da metafísica. WAYNE WAXMAN

418 De 1748, e rebaptizados Investigação sobre o Entendimento Humano em 1758. 419 Em seis volumes, 1754-1762. 420 Tratado da Natureza Humana, I, introdução, § 4. 421 O termo «reflexão» remete para todos os objectos que se representam pelo «sentido interno» ou pelo «sentimento interior». Ele inclui portanto as paixões, as emoções, os desejos, as vontades, de uma maneira geral todas as operações do espírito. 422 Tratado da Natureza Humana, I, I, 7; I, III, 7; I, III, 8; I, III, 10; II, I, 11; II, II, 4. 423 Ibid., apêndice, § 2. 424 Investigação sobre o Entendimento Humano, V, 2, § 12. 425 Tratado da Natureza Humana, I, III, 5. 426 Ibid., I, I, 1. 427 Investigação sobre o Entendimento Humano, VII, 1, § 4. 428 Tratado da Natureza Humana, I, III, 1. 429 Ibid., I, III, 8; ver igualmente I, IV, 2; I, IV, 3; I, IV, 6. 430 Ibid., I, I, 4. 431 Súmula do Tratado da Natureza Humana, § 35. 432 Tratado da Natureza Humana, I, III, 7. 433 Ibid., I, III, 8. 434 Investigação sobre o Entendimento Humano, VIII, 1, § 5. 435 Tratado da Natureza Humana, I, III, 8. 436 Ibid., I, III, 14. 437 Ibid. 438 Ibid. 439 Ibid., I, III, 6. 440 Ibid., I, III, 3; I, III, 14. 441 Ibid., I, III, 6. 442 Ibid.

443 Ibid. 444 Investigação sobre o Entendimento Humano, IV, II, § 19. 445 Ibid., VI, II, § 2-4; Tratado da Natureza Humana, I, III, 16. 446 Tratado da Natureza Humana, I, IV, 2. 447 Ibid. 448 Ibid. 449 Ibid., I, IV, 6. 450 Ibid., I, IV, 3; I, IV, 6. 451 Ibid., II, III, 1. 452 Ibid., II, III, 3. 453 Ibid. 454 Ibid., II, III, 2; Investigação sobre o Entendimento Humano, VIII, I. 455 Tratado da Natureza Humana, II, I, 5. 456 Ibid., II, II, 2. 457 Ibid., II, I, 5; II, I, 9; II, II, 4; II, II, 8. 458 Ibid., II, I, 11. 459 Ibid., III, I, 2. 460 Ibid., III, III, 1. 461 Ibid., III, III, 5. 462 Inquérito sobre os Princípios da Moral, IX, § 3. 463 Tratado da Natureza Humana, I, III, 10. 464 Ibid., I, III, 10-13. 465 Investigação sobre o Entendimento Humano, II, § 6 466 Tratado da Natureza Humana, I, II, 1. 467 Ibid., I, III, 7. 468 Diálogos sobre a Religião Natural, IX.

469 Investigação sobre o Entendimento Humano, XI. 470 Ibid., § 26. 471 Diálogos sobre a Religião Natural, XII. 472 Investigação sobre o Entendimento Humano, X, «Sobre os milagres». 473 Tratado da Natureza Humana, I, IV, 1. 474 Ibid., I, III, 14. 475 Ibid., I, IV, 7.

Jean-Jacques Rousseau

Quando se impõe um retorno crítico ao curso da modernidade, em particular à viragem decisiva das Luzes, Rousseau suscita um novo interesse. Por se dizer voluntariamente autodidacta, subestimou-se a sua inscrição nas problemáticas da sua época. Contudo, o seu conhecimento da modernidade política está desde há muito estabelecido. Numerosos estudos mostraram a intensidade com que leu os modernos (Descartes, Locke, Leibniz, Malebranche, etc.) e a acuidade do diálogo que manteve com os seus contemporâneos (Montesquieu, Diderot, Condillac sobretudo…). Tais trabalhos, para além do seu contributo erudito, permitem reconhecer na obra de Rousseau uma verdadeira «autocrítica das Luzes». É essa posição simultaneamente central e marginal em relação ao seu tempo que faz dele um interlocutor especial para o nosso.

Os locais do afastamento: o primeiro e o segundo Discursos Quando irrompe na cena filosófica, em 1750, Rousseau gravita em torno daqueles a que se chama «os filósofos» (que acabam de lançar a Enciclopédia), mas o seu lugar junto deles é marginal e secundário. Ele é «Rousseau, o músico», a quem se deve um sistema de notação e algumas peças líricas: nessa qualidade, é ele que redige os artigos de música da Enciclopédia. É tido também como um homem de letras, mas nada do que já publicou anuncia o pensador. Por isso, quando a academia de Dijon premeia a sua resposta à pergunta que a instituição pusera a concurso – «Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para depurar os costumes» –, o seu Discurso sobre as Ciências e as Artes é recebido como um paradoxo. Afirmar que os progressos das artes e das ciências são solidários de um processo de corrupção dos costumes não seria contradizer o projecto enciclopédico – fazer do desenvolvimento e da difusão dos conhecimentos o vector da racionalização e da humanização da sociedade476? Num certo sentido, a obra de Rousseau é um esforço para reflectir sobre esse afastamento inicial e para transformar o

paradoxo de figura retórica em postura teórica: pôr em causa os pressupostos comuns, iluminar o cone de sombra das Luzes. O homem é um ser naturalmente racional e sociável, afirmam os jusnaturalistas, de Grócio a Burlamaqui. A sociedade civil, instituição de pacificação das relações inter-humanas, é o espaço no qual tais faculdades se desenvolvem. Os filósofos das Luzes, ao esclarecerem os soberanos e os povos, dedicam-se a levantar os obstáculos que se opõem a ele: a ignorância e a intolerância. Ao interrogar-se, no segundo Discurso (1755), «sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens», Rousseau é levado a abalar tais pressupostos. A sociedade civil constituiu-se efectivamente como espaço de rivalidade, de apropriação exclusiva e de dominação, gerando o despotismo e a guerra477. Para se compreender como tal pôde suceder, deve reconhecer-se que os homens não vivem naturalmente em sociedade, mas que se tornaram seres socializados, e que o desenvolvimento do espírito humano foi determinado pelo modo como essa socialização se fez. O despertar das paixões como princípios de referência, da razão como capacidade de distinguir e de ligar, a instituição da linguagem, do trabalho como modo de satisfação das necessidades, o aparecimento da propriedade, a formação das sociedades políticas, são os constituintes da civilidade, que, ao mesmo tempo, se encadeiam necessariamente e relevam de uma irredutível contingência (não os podemos deduzir de uma natureza humana pré-formada). A história conjectural que é proposta pelo segundo Discurso tem como objecto justificar o processo contraditório que, simultaneamente, fez «de um animal estúpido e limitado um ser inteligente e um homem478», cegou tal inteligência com as paixões e votou a existência social à dominação e à servidão. Como atribuem à natureza o que pertence ao homem civil, os «modernos» (tanto Hobbes como os jusnaturalistas) não podem compreender as contradições da sociedade civil, nem dispor dos princípios que possam servir de auxílio para julgá-las, nem discernir os remédios que lhes possam ser trazidos. A crença no carácter natural da razão, na sua independência das paixões, na sua capacidade para formar por si só os princípios da moral e da política: são esses, segundo Rousseau, os pressupostos comuns do seu tempo. A sua obra é dedicada a pô-los em causa. Vontade geral e luzes públicas: a problemática política de Rousseau Rousseau é herdeiro da «questão comum» da modernidade: se se reconhece

que o indivíduo é dotado de liberdade, como compreender que ele possa estar ligado por uma relação de obrigação? Rousseau diz ainda partilhar o quadro da sua resposta com «o mais são partido entre aqueles que trataram tais matérias» (Locke e Sidney): apenas uma convenção pode obrigar um ser livre479. Mas transforma radicalmente a pergunta e a resposta ao pensar a convenção ao abrigo da vontade geral e do contrato social, duas faces do mesmo conceito. O primeiro livro d’O Contrato Social (1762) refunda a problemática da obrigação. A liberdade do indivíduo não é só um princípio moral tirado da natureza do homem, ela decorre também da natureza do corpo político e distingue a associação da agregação. Para que uma decisão se possa apresentar como lei (uma vontade que obriga, não um mandamento que constrange), ela deve dirigir-se à vontade daqueles que obriga e tem de poder apresentar-se como emanando desta. Deve portanto não só reconhecer a sua liberdade, mas proceder dela480. O contrato social, esse empenhamento pelo qual cada um se submete à vontade comum como se esta fosse a sua, é a solução formal do problema da obrigação. Mas esse quadro principial só pode ser preenchido se as vontades particulares se puderem reconhecer numa vontade geral. Para isso, é requerida uma tripla condição: é preciso que a vontade geral proceda da vontade de cada um, que a identificação seja possível entre o que cada um quer para si e o que todos querem para o todo, e finalmente que cada um reconheça a sua vontade própria nas decisões comuns. A primeira determinação implica a inalienabilidade da vontade geral e a sua universalidade. A vontade não é da ordem do ter mas da do ser: não podemos demitir-nos dela nem remeter o cuidado dela a outrem. Uma vez que ninguém pode querer por ela, a vontade geral não pode ser representada481. Os membros do corpo político não podem reconhecer senão as decisões para que também contribuíram e que valem igualmente para todos: esse duplo carácter define a lei482. A aplicação da lei, sendo particular, não releva da soberania mas da administração (ou governação): o poder de execução está-lhe naturalmente cometido. Essa distinção constitutiva de toda a sociedade legítima (ou república) não é porém evidente, porque implica dificuldades para a constituir e para a impedir de degenerar: fazer com que a vontade geral possa declarar-se, defendê-la contra a tendência de toda a governação para usurpar a soberania. Longe de serem apenas processuais, as condições de formação da vontade geral são também substanciais. Querer é sempre querer o próprio bem, o próprio interesse. Para que a vontade geral seja possível, é preciso um interesse comum com o qual os interesses particulares possam concordar483. Esse

interesse comum – Rousseau sublinha-o a partir da formação do conceito de vontade geral, no Discurso sobre a Economia Política (1755) – é a vida, a liberdade e o bem-estar «do todo e de cada parte484». Essa tese opõe-no simultaneamente aos jusnaturalistas e a Hobbes. Para os primeiros, o direito natural, fundado na natureza razoável e sociável do homem, é anterior à instituição civil e deve servir-lhe de critério. Para Hobbes, não há outra lei senão o comando do soberano que decide o que é justo e injusto. Num caso, a norma precede a decisão, no outro procede dela. Rousseau procura pensar, sob a égide do conceito de vontade geral, a unidade do processo cognitivo (a generalização das vontades particulares) e político (a declaração da vontade geral) de formação das «luzes públicas» pelas quais o corpo social aprende a «conhecer o que quer»485. Podemos portanto ler O Contrato Social como um ensaio sobre as condições da racionalidade política. Mas, se tal projecto inscreve Rousseau no horizonte das Luzes, as condições da sua realização separam-no radicalmente deste. É preciso antes de mais desfazermo-nos da ilusão de que «o corpo político é sem paixões486». Para o melhor (os afectos de coesão, como o amor à pátria) e para o pior (os afectos de exclusão, que são o reverso daqueles), não há sociedade sem uma dimensão passional. Os costumes, a opinião e sobretudo o sentimento de obrigação que constitui o efeito dela são as condições de efectividade da vontade geral. Mas – este aspecto menos conhecido do pensamento de Rousseau é porventura o mais importante – são também as condições passionais de formação da vontade geral. Para que o público possa «conhecer o que quer», é preciso que as vontades particulares estejam em estado de reconhecer o interesse comum, que elas se «generalizem». É isso que não se pode esperar do homem da natureza, como Rousseau objecta a Diderot487. Daí também o papel do «legislador» nas sociedades principiantes: ele supre uma vontade geral ainda muda. Daí o lugar da educação, da religião civil e em geral de tudo o que, na ordem política, contribui para «prender o coração dos cidadãos ao Estado» e os leva até a reconhecerem no interesse comum o seu interesse próprio. A vontade geral é princípio da generalização que, simultaneamente, ela requer. Esse círculo necessário circunscreve para Rousseau o espaço do político. Nessas três dimensões, O Contrato Social é menos a definição de um modelo normativo do que a exploração dos problemas que a política deve resolver. Existência absoluta e existência relativa: a condição do homem

Se recusa atribuir a sociabilidade e a razão ao homem da natureza, Rousseau nem por isso faz dele um ser indeterminado. Como ser vivo, ele tende para a conservação de si; como ser sensível, repugna-lhe ver sofrer outro ser sensível. O amor de si e a piedade são os sentimentos primitivos que respondem a tais princípios. Daí a célebre afirmação da «bondade natural do homem488». Mas desprezou-se muitas vezes o estatuto de tal enunciado. A bondade natural não é moral: ela não é portadora nem da representação de um dever nem de uma obrigação. O dever supõe o reconhecimento de um princípio, a obrigação implica relações com outrem: condições que não são preenchidas pelo homem da natureza. Ao transformar-se do ser independente que era, num ser de relação e, de um ser que agia por instinto, num ser conduzido pelas suas representações, o homem torna-se susceptível de moralidade. Porém, ao mesmo tempo que produz tal possibilidade, a socialização anula-a: os desejos de se distinguir, de parecer, de possuir, de dominar, substituem o amor de si pelo amor-próprio e a piedade pela rivalidade. A partir daí, estando excluído todo o retorno aquém da existência civil e relativa, não há outro caminho para o homem senão o de «restabelecer com base noutros fundamentos» os princípios da sua existência. Emílio ou Da Educação (1762) expõe este aspecto do pensamento de Rousseau. Esta obra, sem dúvida a mais complexa, é aquela cuja leitura permanece mais aberta. Construída como uma ficção pedagógica, ela segue, até à sua entrada na vida adulta, a educação física, sensorial, intelectual, afectiva, moral e religiosa do jovem Emílio. Em todas essas dimensões, trata-se de formar um homem capaz de tomar o seu lugar na sociedade civil embora preservando-o de toda a corrupção de que esta é portadora. Como Rousseau caracteriza essa educação como negativa (é preciso subtrair a criança à corrupção civil), pôde acreditar-se que ele entendia fazer renascer o homem da natureza. A obra é antes uma longa experiência de pensamento destinada a mostrar que é possível um terceiro termo e que um homem pode viver em conformidade com a sua natureza na sociedade: Há com efeito diferença entre o homem natural que viva na natureza, e o homem natural que viva no estado de sociedade. Emílio não é um selvagem que se deva relegar para os desertos; é um selvagem feito para habitar as cidades489.

A conformidade à natureza não consiste em reproduzi-la, mas em imitá-la na ordem civil. É uma dupla conveniência que deve ser assegurada: com o que

importa ao ser humano, com o que ele deve ser enquanto ser de relações490. Para garantir o primeiro tipo de conveniência, é preciso que o homem conheça os seus deveres para consigo mesmo. Para garantir a segunda, é preciso que ele se reconheça como ser relativo que tem obrigações para com a sociedade e aqueles a quem a sua existência está ligada. À primeira questão responde a religião natural (livro IV), à segunda a moral política e a moral conjugal, com as quais culmina o livro V. Rousseau atribuía uma importância primordial à Profissão de Fé do Vigário Saboiardo, ao ponto de a extrair de Emílio para fazer dela uma obra à parte, que deveria ser preservada caso a obra inteira viesse a desaparecer491. Isso sem dúvida por ela constituir uma parte essencial daquilo a que ele chama o seu sistema. Mas, mais do que uma parte, podemos pensar que ela representa o seu espírito e define a iniciativa da «verdadeira filosofia», como indicam Os Devaneios do Caminhante Solitário492. Num primeiro sentido, a religião natural é aquela à qual o homem pode aceder se não reconhecer outra autoridade que não a da razão. A esta primeira definição respondem positivamente a primeira parte da Profissão de Fé, que se esforça por raciocinar sobre o que podemos conhecer de Deus, e, negativamente, as páginas polémicas contra os dogmas absurdos ou inúteis e todo o argumento de autoridade. Mas num segundo sentido, mais essencial, a religião natural procede daquilo em que a nossa natureza nos exige que acreditemos. Deste segundo ponto de vista, a razão é o crivo dos princípios (não podemos crer naquilo a que ela se opõe), mas não os forma. Este papel é o da consciência que, precisamente, nos diz o que nos importa como sendo indispensável à nossa existência por determinar aquilo que precisamos de esperar e aquilo em que devemos crer493. Aqui, mas também de uma maneira geral, a «verdadeira filosofia» supõe que se desfaça a crença na auto-suficiência da razão para a tarefa de constituição dos princípios. BRUNO BERNARDI 476 S. Campbell Howard e J. T. Scott, «The Politic Argument of Rousseau’s Discourse on the Sciences and the Arts», American Journal of Political Science, vol. 49, n.o 4, Outubro de 2005. 477 J.-J. Rousseau, Principes du droit de la guerre, texto estabelecido e apresentado por B. Bernardi e G. Silvestrini, Annales J.-J. Rousseau, t. 46, Genebra, Droz, 2005, p. 201-282. 478 O Contrato Social, I, 8. 479 Lettres écrites de la montagne, Œuvres complètes, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de la Plêiade»,

1959-1995, 5 t., t. 3, p. 806-807. B. Bernardi, Le Principe d’obligation, Paris, EHESS/Vrin, 2007, cap. 1 e 6. 480 B. Bachofen, La Condition de la liberté. Rousseau critique des politiques, Paris, Payot, 2002, p. 228239. 481 O Contrato Social, II, 1. 482 Ibid., II, 6. 483 Ibid., II, 1. 484 B. Bernardi (dir.), Discours sur l’économie politique, edição, introdução e comentário, Paris, Vrin, 2002, p. 46. 485 O Contrato Social, II, 6. 486 Principes du droit de guerre, op. cit., p. 248. 487 Manuscrit de Genève, Œuvres complètes, op. cit., t. 3, p. 286-287. 488 A. M. Melzer, Rousseau et la bonté naturelle de l’homme. Essai sur le système de pensée de Rousseau (trad. francesa por J. Mouchard), Paris, Belin, 1998 489 Émile, III, Œuvres complètes, op. cit., t. 4. p. 483-484. 490 F. Guénard, Rousseau et le travail de la convenance, Paris, Champion, 2004. 491 Profession de foi du vicaire savoyard, apresentada e anotada por B. Bernardi, Paris, Flammarion, «GF», 1996. 492 Œuvres complètes, op. cit., t. 1, p. 1012-1013. 493 «Somente a esperança do justo não engana de todo», Profession de foi, op. cit., p. 126. «Aquilo que se deve fazer depende muito daquilo em que se deve crer», Rêveries du promeneur solitaire, Œuvres complètes, op. cit., t. 1, p. 1013.

Emanuel Kant

Emanuel Kant nasceu em 1724 em Königsberg, onde morreu em 1804. Estas datas situam a sua vida na charneira da filosofia moderna e da filosofia contemporânea. Quando Kant morre, Fichte tem com efeito quarenta e dois anos, Hegel trinta e quatro, Schelling vinte e nove, e o idealismo alemão já instaurou a sua busca multiforme de um acabamento da filosofia enquanto sistema, abrindo assim a via, através da crítica dessa mesma ambição, à maior parte das filosofias contemporâneas. Em compensação, quando Kant nasce, alguns dos principais representantes da emergência cartesiana da filosofia moderna estão ainda no primeiro plano da paisagem filosófica: Malebranche morreu há nove anos apenas, Leibniz há oito, e Wolff, o seu discípulo, tem quarenta e cinco anos. Hume, que dará toda a sua amplitude à tradição alternativa que viria a constituir o empirismo, tem somente treze anos e só publicará o seu Tratado da Natureza Humana em 1737. Locke, que o havia precedido no esforço de dar à modernidade filosófica uma configuração anticartesiana, falecera apenas em 1704, e Berkeley, de que Kant fará grande caso embora o critique, iria viver até 1753. Biograficamente, Kant achou-se assim apanhado entre duas vagas da racionalidade filosófica, a do racionalismo moderno, cartesiano ou empirista, e a do debate contemporâneo sobre a potência, real ou ilusória, da razão no seu esforço de abranger a totalidade do real. A Crítica da Razão Pura (1781, 1787), a Crítica da Razão Prática (1788), a Crítica da Faculdade do Juízo (1790) constituem nesse sentido os principais momentos de uma tentativa única: a de elaborar uma configuração da razão que escape às suas pretensões cartesianas e, por antecipação, às do idealismo alemão, sem por isso abandonar o terreno às diferentes formas de cepticismo que, incitadas pelo empirismo, iriam constituir para a filosofia contemporânea uma das maneiras de gerir a derrocada dos grandes sistemas. O facto de, após as três Críticas, as obras do fundador do criticismo terem sido consagradas sobretudo à filosofia prática – Doutrina do Direito, Doutrina

da Virtude, culminando em 1797 com essa Metafísica dos Costumes de que Kant entendera logo em 1785 estabelecer a Fundamentação, ou ainda o Projecto de Paz Perpétua, 1795, e a Antropologia de Um Ponto de Vista Pragmático, 1798 – já oferece, por si, uma ideia daquilo que se jogava na tentativa kantiana. A insistência com que o pensamento de Kant continua hoje em dia a afirmar a sua presença e a sua fecundidade filosóficas, muito para além da época em que foi concebido, convida a interrogar essa situação particular: entre os filósofos anteriores a Nietzsche, não há outro na esteira do qual se pudesse reagrupar uma tão grande diversidade de autores marcantes do debate imediatamente contemporâneo. É tal a «actualidade» do kantismo, se quisermos, que nos devemos efectivamente interrogar sobre o que pôde fazer com que um certo paradigma kantiano continuasse, mais de dois séculos após a sua elaboração, a servir de emblema a toda uma parte da filosofia contemporânea. Os dados dessa interrogação precisam-se se registarmos este outro dado da situação actual do kantismo: a referência a Kant é hoje em dia particularmente acentuada do lado da filosofia prática. Sob a forma da ética da discussão elaborada por Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas ou sob a da teoria rawlsiana da justiça, ou ainda através do debate francês sobre a recomposição de um humanismo pós-metafísico, a referência kantiana intervém mais na ordem da razão prática do que na da razão teórica. Estas constatações convocam as duas perguntas que servirão de guia a esta evocação do contributo kantiano: 1) Porque é que o kantismo continua a ser uma filosofia contemporânea, sem dúvida a mais antiga das filosofias contemporâneas? 2) Porque é que o legado kantiano manifesta a sua fecundidade em primeiro lugar na ética e na filosofia política, ao ponto de, com grande frequência, os debates parecerem desenvolver-se entre «kantianos», ou pelo menos, para parodiar uma fórmula que Alexis Philonenko aplicava a Hegel há quatro décadas, «por ou contra Kant»? O kantismo como filosofia pós-metafísica Para se mostrar em que sentido o kantismo é uma filosofia contemporânea, mais contemporânea hoje em dia, por exemplo, do que o hegelianismo, deve partir-se do facto de que o kantismo é uma filosofia pós-metafísica. Entendo

por isso que se trata no fundo da primeira grande desconstrução das ilusões da razão especulativa. No trajecto que conduz de Leibniz a Hegel, é com efeito notável que o criticismo elaborado por Kant constitua uma excepção da qual convém identificar o exacto teor. Por um lado, o criticismo elimina a própria ambição do sistema, ou do saber absoluto. Inequivocamente, a fórmula dos Prolegómenos, «a totalidade das condições de possibilidade da experiência não é ela própria uma experiência» (§ 59), vem oferecer uma paragem brusca à totalização dos fenómenos sob a forma de um conhecimento (correspondente a uma experiência possível). Em suma, o discurso que entendia totalizar o diverso a partir de um princípio incondicionado entrava aí no registo daquilo que Kant designa como a própria «ilusão» dessa metafísica cujos raciocínios são desconstruídos pela dialéctica transcendental. Por outro lado, contra as ilusões da metafísica e como desconstrução dessas ilusões, o kantismo faz ressurgir a radicalidade da finitude: por a totalização não ser mais do que um horizonte de sentido e jamais se acabar, há sempre para nós, devido à radicalidade da nossa finitude, um afastamento ou uma diferença entre o real e o racional. Dessa diferença «ontológica», se quisermos, no sentido heideggeriano do termo, nós fazemos a experiência na medida em que para nós só há objectos porque nos é dada uma experiência: não produzimos os objectos, mas construímo-los a partir de um momento de doação – e portanto, correlativamente, de receptividade – que corresponde à intuição e marca uma distância que não pode ser reabsorvida entre os nossos conceitos e a objectividade. Por todos estes aspectos, o kantismo está pois estruturado como uma filosofia contemporânea – entendo por isso que as suas linhas de força correspondem às principais opções das filosofias contemporâneas. Contudo, que o kantismo esteja estruturado do mesmo modo que as filosofias contemporâneas não explica que possa ser necessário fazer-lhe referência hoje em dia, depois de Nietzsche, depois de Husserl, depois de Wittgenstein, depois de Heidegger, ou seja depois de muitas outras filosofias pós-metafísicas. A pergunta que coloquei de início deve pois ser precisada: após essas filosofias pósmetafísicas, porquê ainda Kant? Essa presença mantida da referência kantiana obriga a considerar que se encontravam na desconstrução kantiana da metafísica certos recursos menos disponíveis nas outras filosofias pósmetafísicas.

Da originalidade do kantismo como crítica da metafísica Com efeito é preciso registar, antes de mais, o facto de, pese embora constituir a primeira crítica tão elaborada das ilusões da razão especulativa, o criticismo permanecer no terreno da racionalidade e se lançar na aposta, grandiosa, de conferir um estatuto à razão após a crítica desta. O que há portanto de especificamente kantiano na crítica da razão especulativa é a tentativa de transformar as ideias (essas moradas da ilusão metafísica que são as ideias de alma, de mundo e de Deus) em ideais reguladores da racionalidade pós-metafísica. Operação que torna possível uma articulação entre metafísica e ciência: a razão, aqui, não é esse inimigo vencido cujas sobrevivências ou cujos vestígios o pensamento pós-metafísico persegue até ao infinito; a desconstrução não é tão-pouco um processo interminável em que doravante se esgotassem todas as forças da reflexão, precisamente porque após a sua desconstrução o estatuto da metafísica se acha expressamente e positivamente tematizado. Esse momento extraordinário da primeira Crítica que constitui o apêndice à dialéctica transcendental com efeito transforma mais a razão do que a destrói, fazendo das ideias princípios heurísticos para o trabalho do entendimento. Não são portanto obstáculos à ciência, mas horizontes de sentidos que dinamizam o trabalho científico. Mais transformação do que destruição da razão, o criticismo encontra aí, sem dúvida, uma parte do que o torna tão pertinente quando nos perguntamos como filosofar ao fim de um século cujos episódios mais trágicos misturaram intimamente razão e desrazão, pondo a razão ao serviço do irracional. Tão intimamente quanto sejamos forçados a desejar, não o abandono do terreno da racionalidade (porque Auschwitz ou o Goulag é também o irracional puro, aquilo contra o qual se deve reafirmar a razão e os seus direitos), mas a reconfiguração de uma razão suficientemente recuperada das suas ilusões para se precaver contra os seus próprios delírios. Deste ponto de vista, o kantismo, como autocrítica ou como crítica interna da racionalidade, corresponde perfeitamente a essa exigência propriamente contemporânea, não de um momento pós-racionalista da filosofia ou de uma pós-modernidade filosófica, mas de um racionalismo crítico ou de uma modernidade consciente das suas derivas. O segundo elemento que faz do kantismo, entre as filosofias contemporâneas, uma referência privilegiada, leva-nos para a filosofia prática, e permite, para concluir a minha resposta à primeira das perguntas de que parti – porque é que o kantismo está hoje tão presente filosoficamente? – responder

também à segunda: porque é que essa presença se afirma mais particularmente no terreno da ética e da filosofia política? Para proceder a um golpe duplo e fornecer um elemento de resposta a esses dois níveis de interrogação, é preciso pôr em evidência o que leva Kant a fornecer um conceito profundamente original – ainda aí transformado – da verdade ou da objectividade. A questão da objectividade prática Fazer sobressair esse contributo particular do kantismo e a sua importância para a filosofia prática exige que se parta, neste ponto, de uma indicação sobre a própria natureza do principal problema que a filosofia prática tem hoje em dia a resolver. A melhor formulação desse problema é aquela que dele oferece Habermas a partir de Razão e Legitimidade (1973): existirão verdades de ordem prática, e em que sentido? Formulação que corresponde muito bem à demanda surgida do devir das sociedades democráticas, que é a de normas ou princípios meta-individuais, irredutíveis àquele que os estabelece, e capazes de figurar uma dimensão de «verdade prática» ou, segundo a expressão de Kant, de «objectividade prática». Esta maneira de apresentar as coisas tem igualmente o mérito de fazer surgir aquilo que, de um ponto de vista interno à filosofia prática, constitui sem dúvida a mais temerosa dificuldade à qual ela se acha exposta para responder às questões que lhe são dirigidas, a saber a dificuldade relativa ao tipo de verdade ou de objectividade susceptível de ser atingida ou reivindicada na esfera dos valores. Ao ver hoje em dia ressurgir uma filosofia prática tão poderosa quanto aquela que se desenvolveu, em grande parte por referência a Kant, desde há trinta anos, não podemos com efeito deixar de atentar no que poderia ter feito com que, poucas décadas somente após o momento kantiano, a filosofia prática tivesse pelo contrário entrado numa profunda e duradoura obsolescência. Não recordarei aqui de maneira detalhada o conjunto dos factores que, na segunda metade do século XIX, haviam com efeito convergido para deixar pensar que à interrogação normativa sobre o que deve ser se deveria substituir um inquérito referido exclusivamente ao que é. Por exemplo, à filosofia moral veio substituir-se a ideia de uma «ciência dos costumes»; à filosofia política a sociologia, e pouco depois à filosofia do direito o projecto, forjado por Hans Kelsen, de uma «ciência do direito». Deslocações que, como hoje em dia se sabe, não deixavam de colocar sérios problemas, quanto mais não fosse na medida em que a referência a normas não deixa de ser necessária para julgar, condenar e transformar aquilo que é. Problemas temíveis em virtude dos quais

se reafirmou precisamente desde há trinta anos uma necessidade de filosofia prática. Se esta ressurgência contemporânea da filosofia prática não deve ser uma moda (e, como tal, condenada a passar), é todavia forçoso constatar que ela se confronta com uma dificuldade devida à associação da desvalorização do discurso normativo com a ideia de progresso. A coisa é em si mesma bem conhecida: sobre o que é, sabemos que a reivindicação de uma objectividade das sentenças tem um sentido – o de uma verdade do discurso, se quisermos – e o enunciado objectivo sobre os factos deixa-se mesmo designar como enunciado científico. Em compensação, sobre aquilo que deve ser, sobre aquilo a que Kant chamava os «fins», existirá o mais pequeno enunciado que possa pretender à verdade no sentido da objectividade? Os discursos normativos, quer sejam filosóficos ou intervenham para animar e justificar as diversas práticas (políticas, éticas, etc.), não são a expressão de escolhas subjectivas, irredutivelmente subjectivas, entre as quais não poderia desde logo haver outras relações além do conflito (no sentido daquilo a que Max Weber chamara a «guerra dos deuses»), ou mesmo da violência, para impor uns ou outros ideais, ou uns ou outros fins? Dificuldade clássica, mas à qual a sorte da filosofia prática se encontra ligada, segundo a resposta que se traga a esta questão extremamente delicada. Ora, é muito particularmente a consideração desta dificuldade que explica o privilégio hoje em dia concedido à referência kantiana no campo da filosofia prática. E isto por razões que se prendem com a maneira como Kant renovou profundamente o próprio conceito da objectividade ou da verdade, como aqui tentarei demonstrar. O problema crítico como problema da representação O problema maior do kantismo, aquele cuja descoberta assinalou o acto de nascimento da filosofia crítica, é o da representação, tal como é formulado por Kant a partir de 1772 na famosa carta a Markus Herz: Perguntava-me com efeito [escreve Kant] qual o fundamento em que assenta a relação daquilo a que se chama em nós representação com o objecto.

Tal poder-se-á explicitar indicando que se trata de um problema com quatro termos: a actividade representativa liga com efeito um sujeito em si (S1) que eu posso representar para mim (S2), e um objecto ou uma coisa em si (O1) da qual forjo para mim uma representação (O2). Se deixar aqui de lado a questão da

relação entre S1 e S2 – que é a da génese da consciência de si –, o problema colocado comprometia portanto a relação entre O1 e O2, entre a coisa em si e o objecto da representação. Este problema da consciência de objecto apresenta por seu turno dois aspectos: antes de mais, o da verdade: como pode haver acordo ou adequação entre O1 e O2? Seguidamente, o do em si: para se representar esse acordo, como pensar alguma coisa de O1, já que desde que pensemos alguma coisa de O1 este se torna para nós, e não se trata mais da relação entre O1 e O2? Em suma, a questão da verdade só se coloca porque, mais fundamentalmente, se coloca a do em si: com efeito, para formularmos sem precauções o problema da verdade (ou da objectividade) como problema da adequação, implicamos já a dissolução de um dos seus termos, e não chegamos portanto a colocar verdadeiramente a questão. Colocar a questão da objectividade em termos de adequação é estabelecer algo como existindo em si fora da representação independentemente do sujeito – o que parece impossível por definição, uma vez que estabelecer alguma coisa é já representarmo-la: a posição é representação. Partindo destas questões, o criticismo reencontrava assim o problema que fora levantado pela primeira vez por Berkeley ao estabelecer a tese, insuperável aos olhos de Kant, segundo a qual quando estabelecemos um em si, o em si que estabelecemos é sempre, pelo próprio facto de o estabelecermos, um em si para nós. A partir disto, Berkeley deduzia – e aqui, pelo contrário, Kant recusou-se a segui-lo – que o em si não existe, segundo a posição dita do idealismo material: há apenas o sujeito e as suas representações (esse est percipi vel percipere). Conclusão que toda a tradição idealista aceitará ao considerar que a posição de um objecto em si é impossível. Kant, pelo contrário, recusou esta evacuação do problema do em si: a convicção de Kant era a de que a recusa do em si impediria a justificação de uma componente constitutiva da representação – a saber a sua dimensão de passividade. De facto, na vivência subjectiva de toda a representação acha-se compreendido um efeito de passividade, ao qual se alude na carta a Herz onde Kant convém que, se «aquilo a que chamamos em nós representação fosse activo para com o objecto, ou seja se por isso mesmo o objecto pudesse ser produzido», decerto que «a conformidade das representações aos objectos seria então inteligível» (uma vez que a representação seria por definição conforme àquilo que emanaria dela). Porém, Kant observa duas dificuldades insuperáveis que daí decorrem: por um lado, a estrutura do conhecimento seria a do conhecimento divino, mas não a do conhecimento humano enquanto conhecimento finito: «O

nosso entendimento não é, pelas suas representações, a causa do objecto.» Por outro lado, divina ou não, essa estrutura não justificaria um dado incontornável da representação, a passividade, onde «a representação se refere a um objecto» como se pudéssemos dizer que «essas coisas nos são dadas». Contra a solução idealista de Berkeley, o reconhecimento da passividade da representação reconduz-nos portanto irrecusavelmente, segundo Kant, à hipótese do em si para justificar essa passividade: foi precisamente por isso que Kant acreditou dever conservar no seu sistema a noção complexa de «coisa em si», com todas as dificuldades às quais ela o expunha e que levaram os seus sucessores, nomeadamente Fichte, a tentar fazer economia dela. Assim levado, contra Berkeley, à hipótese do em si, Kant constata então, como escreve a Herz, que nestas condições «tais questões acarretam sempre uma obscuridade relativa à faculdade do nosso entendimento: de onde lhe vem esse acordo com as próprias coisas?» Por outras palavras: a questão da verdade ou da objectividade surge efectivamente aqui como consequência da do em si, ou, se preferirmos, a questão da conformidade (ao em si) emerge como consequência do problema da exterioridade (do em si). Sem entrar no detalhe das soluções impossíveis, vemos sem dificuldade a que ponto essa problemática, tal como ela se impôs a Kant, era árdua: com efeito as duas soluções mais clássicas encontravam-se por definição excluídas. A solução idealista pura (idealismo material) é rejeitada porque, como já observámos, ela não justifica o efeito de passividade da representação. Mas o criticismo rejeita igualmente a solução simétrica, ou seja a solução realista pura que faria da representação o produto da causalidade do em si sobre as nossas faculdades, sob a forma de uma teoria da afecção. A bem dizer, Kant nem sente a necessidade de justificar essa rejeição do realismo, na medida em que, se o realismo fosse assumido, ele nos levaria de volta para montante do problema da representação formulado por Berkeley: se a representação deve ser pensada como uma afecção do sujeito pela coisa em si, como conceber a objectividade de uma representação que, para ser medida, suporia que o sujeito saísse de alguma maneira de si mesmo para comparar o objecto tal como ele o representa (O2) e o objecto em si (O1) – iniciativa desprovida de sentido, uma vez que se ele capta o objecto em si para o comparar com O2, não será já O1 o que ele capta? Por conseguinte, Kant pode limitar-se a interinar essa rejeição implícita da solução realista escrevendo que toda a dificuldade está em se conceber «uma representação que se refira a um objecto sem ser de maneira alguma afectada por ele494». E nesse caso, acrescenta Kant ao assentar o problema da

representação, «por que meios nos são dadas essas coisas, se o não são pela maneira como elas nos afectam»? Do que Kant se apercebe a partir de 1772, e que é constitutivo da posição criticista do problema da objectividade, é que nem o realismo nem o idealismo resolvem o problema da representação. A questão crítica será portanto essa questão decisiva, que segundo Kant a metafísica não soube resolver, e que constituirá, escreve ele então numa fórmula célebre, «a chave de todo o mistério, o da metafísica até então escondida de si mesma». É com efeito a consideração de uma tal questão e o reconhecimento da impossibilidade da sua resolução segundo as iniciativas até então efectuadas pela metafísica que vão levar Kant a abalar e a, literalmente, «revolucionar» os termos da problemática da consciência de objecto, e portanto a, de certa maneira, revelar a metafísica a si mesma ao forçá-la a um decisivo deslocamento da sua interrogação. A teoria kantiana da objectividade Reduzida ao seu princípio, a solução elaborada por Kant reside inteiramente numa nova maneira de apreender o problema da verdade ou da objectividade. Colocado nos termos da metafísica (como problema da relação entre O1 e O2), ele conduz às insuperáveis aporias do idealismo e do realismo; para sair de tais impasses, é preciso modificar os próprios termos do problema – o que se pode explicitar negativamente, e depois positivamente. Antes de mais, o problema da representação deixará de ser definido em termos de relação entre O1 e O2: a passagem entre O1 e O2 (entre coisa em si e fenómeno) é impossível por definição, uma vez que consiste em negar a finitude – pretendendo o sujeito sair de si mesmo e coincidir com o em si: é por haverem tentado essa passagem que realismo e idealismo, negando a finitude, produziram discursos onde o sujeito já não pode pensar aquilo que enuncia, discursos onde o sujeito se acha por assim dizer iludido, uma vez que se tenta então (é isso que é próprio da metafísica especulativa) ultrapassar os limites da subjectividade e que, para fazê-lo, o sujeito é como que constrangido a esquecer-se a si mesmo. Dito de maneira mais positiva, o gesto kantiano consistirá em resolver o problema da objectividade por um retorno ao sujeito: tratar-se-á de um movimento de retorno ao interior da representação que consiste em fundar a objectividade não na comparação da representação e do em si, mas na distinção no interior da representação – no interior da subjectividade – das representações subjectivas (particulares) e das representações objectivas (universais, ou seja intersubjectivas).

O método de resolução da questão crítica reside pois no facto de colocar a questão da objectividade em novos moldes, inquirindo o que pode o sujeito ter de objectivo nele. Questão que convida a indagar, se quisermos formulá-la em termos tomados a Husserl, uma transcendência (relativamente às representações irredutivelmente subjectivas, no sentido da subjectividade particular) na imanência. Nesse sentido cumpre-se aqui, na própria definição de objectividade, uma mudança decisiva reveladora do teor próprio do idealismo crítico: antes de Kant, a objectividade corresponde ao que é em si, fora da minha representação, e o par subjectivo/objectivo equivale então ao par interno/externo. A partir de Kant e em referência a ele, a objectividade designa o que vale universalmente, para todo o sujeito: o par subjectivo/objectivo corresponde doravante ao par para mim/para todos, ou ainda particular/universal. A partir daí, a questão da objectividade, na tradição do criticismo, passa a estar intrinsecamente ligada à questão da intersubjectividade. Assim, no tocante à objectividade teórica (a do conhecimento), a Crítica da Razão Pura esforçar-se-á por mostrar que existem no sujeito leis ou regras a priori, necessárias e universais. A objectividade teórica ou cognitiva consiste então na síntese ou na ligação das representações graças a essas regras universais (categorias e princípios). Não nos demoraremos por aqui, a fim de em vez disso traçarmos o alcance dessa redefinição da objectividade para a filosofia prática. Dos fins objectivos Regressemos com efeito à questão de saber se é possível apreender verdades no domínio prático – aquilo que Habermas designa como «verdades práticas». Parece, à luz da transformação kantiana do conceito de objectividade, que esta questão equivale a perguntarmo-nos se podemos conceber fins susceptíveis de serem tidos por «objectivos», ou seja de valerem, não por mim apenas, mas por todos. Ou, à falta disso, de abandonar o terreno da ética, do direito, e da política ao relativismo, ao decisionismo ou ainda àquilo a que hoje em dia chamamos o contextualismo. Antes de fazer surgir os recursos que o kantismo põe à nossa disposição, importa medir qual é actualmente, para nós, o estado desse questionamento. Para o formular brevemente: a fundação de verdades práticas tornou-se hoje em dia impossível sob a forma de uma referência à ideia de um Bem ou de um Justo em si ao qual deveria corresponder um fim para ser bom ou justo, e isso

por múltiplas razões. Essa definição da objectividade prática como adequação ou conformidade a um Bem ou a um Justo em si pré-existente – para além de capitular perante as dificuldades gerais inerentes a toda a captação da objectividade em termos da conformidade a um em si – exigiria investimentos metafísicos a tal ponto pesados que hoje em dia já não é imaginável mobilizálos. Deste ponto de vista, filosofamos após a derrocada dos fundamentos ontológicos ou cosmológicos da objectividade prática, e qualquer iniciativa da filosofia prática não poderá deixar de se achar profundamente modificada. Por filosofarmos após essa derrocada, não é difícil compreender como a tentação do decisionismo subjectivista pôde e pode ainda ser tão forte na filosofia contemporânea: uma vez que nenhum fim pode já ser considerado como correspondendo a um Bem ou a um Justo em si, qualquer fim – poderia ser essa a conclusão à qual nos entregaríamos com facilidade – só é válido para aquele que o estabelece. Independentemente das dificuldades propriamente práticas às quais esta conclusão nos exporia (que são as dificuldades do relativismo), existe em todo o caso uma falha neste raciocínio sedutor, mas erróneo: com efeito, a conclusão só se impõe na exacta medida em que o único conceito de objectividade que retemos for precisamente o da correspondência a um em si. Ora, pode pensarse que um tal conceito de objectividade está caduco desde Kant, e se ele está caduco na ordem da filosofia teórica, porque o não estaria na ordem da filosofia prática? Quero dizer: porque é que também aí, no registo da filosofia prática, não poderíamos nós retomar o empreendimento da fundamentação da objectividade a partir desse outro conceito de objectividade que está disponível na herança do idealismo crítico e que consiste em medir a objectividade de uma representação (incluindo nela, porque não, uma representação prática, ou seja um fim) não pela sua conformidade com um em si, mas pela sua capacidade para valer para todos e não somente para mim, pela sua validade intersubjectiva portanto, ou seja pela sua comunicabilidade e pela sua faculdade de suscitar uma adesão partilhada? Tal iniciativa, de resto, estava já presente no próprio Kant, nomeadamente sob a forma da doutrina do imperativo categórico. Ela esclarece em todo o caso esse facto assaz singular de, na Alemanha, nos Estados Unidos e em França, se assistir hoje em dia, sob diferentes intitulações, a diversas utilizações da referência criticista para refundar a noção de uma objectividade prática. Essa presença do kantismo no registo da filosofia prática contemporânea não é verdadeiramente compreensível a menos que a relacionemos, como se tentou

fazer aqui, com a determinação específica do pensamento crítico, porquanto esta consiste em fornecer os instrumentos necessários a uma profunda reelaboração da própria noção de objectividade. É por isso que os debates internos à filosofia prática contemporânea são tão frequentemente, de facto, «querelas familiares», como conveio o próprio Habermas ao apresentar assim as suas próprias desavenças com Rawls: querelas familiares, ou seja disputas entre kantianos. Dito isto, restaria compreender em que é que há lugar, nesta herança, para disputas. No essencial, o idealismo crítico elaborado por Kant a partir da questão da representação e sob a forma de uma filosofia do sujeito ou da consciência (como consciência de si e consciência de objecto) acha-se contestado, nomeadamente pela ética da discussão em Apel ou Habermas e nos seus próprios discípulos, como procedendo de um paradigma caduco: precisamente, o paradigma da consciência ou da subjectividade. Não temos de evocar aqui em detalhe a objecção dirigida desse ponto de vista por Habermas ou Apel ao kantismo. Ela consiste em estimar que, desde a viragem linguística do pensamento contemporâneo (para simplificar: desde Wittgenstein), a filosofia já não pode, como em Kant, partir do sujeito, mas deve partir da comunicação e do intercâmbio linguístico. Não procurarei aqui sublinhar nem a força nem as fraquezas dessa objecção, que, não obstante aparece como paradoxal ainda que apesar de tudo se encontre um ponto comum de importância entre o criticismo de Kant e a ética contemporânea da discussão, a saber a definição da objectividade em termos de intersubjectividade. Simplesmente, Habermas e Apel consideram que o que fora entrevisto por Kant não poderia ser plenamente efectuado no quadro do criticismo tal como ele o havia concebido enquanto filosofia do sujeito ou da consciência centrada no problema da representação, uma vez que hoje em dia seria preciso substituir pelo paradigma da consciência o da comunicação dialógica mediatizada pela linguagem. Apreciação que explica em grande parte não só a circunscrição da ética da discussão no debate francês sobre uma eventual figura pós-metafísica da subjectividade, mas também o distanciamento em relação a um empreendimento como o de Rawls, que teria ele próprio integrado muito escassamente as exigências do paradigma da comunicação. Serão estas clivagens insuperáveis? Não estou de modo algum convencido disso. Mas, seja como for, a sua existência indica que a referência kantiana não conduz a nenhum dogmatismo: sinal, caso ele ainda fosse necessário, de que o kantismo

continua seguramente a ser uma filosofia viva. ALAIN RENAUT 494 Nosso sublinhado do termo que indica a exclusão da teoria realista da afecção.

A economia política

A economia política elevada ao nível de ciência A expressão economia política já é assinalada na Antiguidade grega; reaparecerá no século XVII, mas é somente a partir de meados do século XVIII que ela designa de maneira comum uma nova ciência que se refere a todos os actos relativos à riqueza. Essa ciência corresponderá a uma forma inédita de interrogação. Já não se pergunta «Qual é o bom uso das riquezas?» ou «Quais são as formas pelas quais se pode obter uma justa distribuição das riquezas numa troca ou numa partilha?», mas antes: «Em que condições se reproduz a riqueza global de uma nação?» A primeira pergunta é ainda a de um filósofo que associa à ética das virtudes os actos relativos às riquezas – consumo, produção e as três formas de distribuição que são a troca, a partilha e o empréstimo. A segunda pergunta marca o advento daquele a que se chama então o economista. O filósofo formula a sua pergunta de economia ética em nome de todos os actores de uma comunidade. O economista empresta a sua voz ao Príncipe ou ao homem de Estado que se preocupa com as condições de reprodução da riqueza global tendo em vista governar o melhor possível o seu povo ou uma nação. Para ele, as noções de reprodução, de riqueza global ou de «sistema de reprodução» adquirem um sentido. É enquanto meio e em vista dos seus fins políticos que há portanto uma «economia política». A este título, o economista surge como o conselheiro do Príncipe e a economia política como uma ciência interessada. Na verdade ela é antes uma arte como a medicina – à qual aliás é comparada de bom grado no seu início – ou, segundo o termo de origem grega, uma «técnica». Tudo isso é muito bem dito por A. Smith (17231790) na sua obra de 1776 Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações: A economia política, considerada como um ramo dos conhecimentos do legislador e do homem de Estado, propõe-se dois objectos distintos: o primeiro, procurar para o povo um proveito ou uma subsistência abundante ou, para melhor dizer, pô-lo em estado de procurar para si mesmo tal proveito ou tal subsistência abundante; o segundo, fornecer ao Estado ou à comunidade um proveito suficiente para o serviço público; ela propõe-se enriquecer a um tempo o povo e o soberano495.

Sem dúvida que a Europa não esperou pelos fisiocratas e pelo seu chefe de fila F. Quesnay (1694-1774) para ver homens de Estado colocarem a questão das condições de enriquecimento global do povo ou da nação no primeiro lugar nas suas preocupações. Desde os primeiros bulionistas496 de Portugal e de Espanha no final do século XV até aos últimos colbertistas franceses do início do século XVIII, o mercantilismo alça os diferentes saberes económicos a uma arte política maior e separa as questões relativas às riquezas da ética das virtudes. Mas a economia política vai muito mais longe. Antes de mais, aquilo a que ela chama «as leis naturais» da economia são agora reunidas num único sistema de causalidades interdependentes cujo equilíbrio se torna a chavemestra. Seguidamente, os diferentes actos relativos ao consumo, à produção e à distribuição das riquezas são referidos a uma única paixão ou a um único interesse cujo carácter universal se exprime para o agente num cálculo espontâneo. Todo o homem em relação com as riquezas é levado a agir no fito de um máximo de fruição para um mínimo de pena ou de despesa. A economia política é assim a ciência das sociedades humanas nas quais todas as riquezas são contadas como as grandezas de um sistema único e todos os indivíduos são percebidos como agentes movidos pelo mesmo cálculo de interesse ou de prazer máximo. Fala-se então de sistema das necessidades ou de sociedade civil cuja base é uma mecânica geral dos interesses e uma aritmética individual dos prazeres. Um sistema de necessidades, uma sociedade civil, uma mecânica do interesse ou uma aritmética dos prazeres é aquilo pelo qual o homem de Estado imagina agora o limite que a natureza opõe ao seu poder. A filosofia política e moral correspondente ao naturalismo da economia política é então uma composição particular de liberalismo e de utilitarismo. É certo que todos os que se dizem «economistas» nem sempre se dizem ao mesmo tempo «filósofos» e que o liberalismo e o utilitarismo de uns e de outros nem sempre relevam da mesma forma. D. Ricardo (1772-1823) quer-se mais economista positivo do que filósofo doutrinal; os fisiocratas são pré-utilitaristas; o liberalismo ou o utilitarismo de A. Smith (1723-1790) não é o de J. Bentham (1748-1832), de J. S. Mill (1806-1873), de J.-B. Say (1767-1832) ou de F. Bastiat (1801-1850). Mas, vista durante um longo período de cerca de um século – dos começos fisiocráticos até ao apogeu, cerca de 1850, com Bastiat e Mill – e por contraste com o mercantilismo, a economia política tem efectivamente uma unidade característica. O génio de Karl Marx (1818-1883) consiste em tê-lo observado em primeiro lugar, referindo essa unidade à sua substância e ao seu princípio. A

economia política tem por substância uma certa valorização do trabalho e o princípio que a anima e que ela simultaneamente repele é precisamente o enriquecimento pelo dinheiro que o mercantilismo exibe sob uma forma bárbara. «A economia política», escreve Marx num texto de 1859, «não quer reconhecer no mercantilismo a forma bárbara do seu princípio fundamental497.» Tudo isso vale ainda para o período seguinte e até aos nossos dias? A resposta é matizada. Sim, porque a questão das condições da reprodução da riqueza global comanda a própria ideia de um sistema de forças interdependentes que na sua unidade abrangem todo o espaço económico; sim, ainda, porque o naturalismo liberal e utilitarista continua a ser a base filosófica mais comum; não, porque a economia política, a partir de 1870, quer-se mais especulativa e menos interessada; não, ainda, porque a natureza da riqueza global se modifica profundamente com a promoção do mercado e do individualismo mercantil. Essa riqueza já não tem por substância o trabalho e o seu produto líquido; as condições da sua reprodução não se acham já na repartição dos proventos que garantem a reprodução dos meios pelos quais se exerce a força de trabalho – terra e capital; a ciência económica já não é «uma anatomia do capitalismo» – a expressão é de Marx –, nem uma «ciência da repartição» – segundo os termos de Ricardo. A economia política torna-se uma «ciência económica»; a riqueza global, um bem-estar óptimo; a condição da sua reprodução, um conjunto de preços de mercado determinados pela confrontação entre a oferta e a procura. O capitalismo desaparece; a repartição é absorvida pela troca; a ciência económica, dita também «neoclássica», rejeita ou integra a economia política «clássica» a título de momento erróneo, insuficiente ou particular no seu desenvolvimento teórico geral. Para a maioria dos economistas actuais que se reconhecem na ciência económica nascida na época de L. Walras (1834-1910), de C. Menger (1840-1921) ou de A. Marshall (1842-1924) cerca de 1870, a economia política «clássica» e o seu prolongamento crítico em Marx não têm mais do que um interesse histórico. Para eles, só alguns heterodoxos dispersos ou alguns keynesianos isolados vêem nela ainda uma fonte de inspiração. Ricardo. A economia capitalista A economia política, entendida nas suas formas fisiocrática e «clássica» – Marx à parte –, abrange milhares de páginas de obras ou de revistas e conta dezenas de autores, principalmente franceses e ingleses. Para pôr em destaque

os aspectos específicos desta nova ciência das riquezas, devemos dirigir-nos à sua figura central. Ora, nesse ponto a hesitação não é possível. Os fisiocratas têm sem dúvida o imenso mérito de, pela primeira vez na história, haver desenhado a representação da vida social sob a forma de um quadro da circulação das riquezas – aquilo a que se chama o «quadro económico». A grandeza de Smith é ter percebido na multiplicidade das instituições políticas, comportamentos morais e costumes económicos das sociedades do seu tempo, a génese de uma mesma forma social dominada pela divisão do trabalho e a operação de um mecanismo único e subterrâneo, identificado pela expressão «mão invisível». Mas deve-se ao génio de Ricardo a força da análise económica clássica498. David Ricardo retoma a ideia fisiocrática de um circuito das riquezas e a ideia de Smith segundo a qual um mecanismo único desse circuito envolve o exercício da divisão do trabalho. Mas Ricardo rejeita mais vivamente do que Smith o privilégio atribuído pelos fisiocratas à produção agrícola na reprodução da riqueza global e, contra as obscuridades de Smith, ele precisa como o mecanismo do capital regula a divisão mercantil do trabalho. As suas conclusões gerais sobre as economias modernas marcaram os espíritos por diversas gerações. Elas não relevam de observações empíricas mas de deduções que assentam em princípios ou em proposições primeiras. O que ele propõe ao homem de Estado são verdades logicamente demonstradas. Elas apresentam-se sob dois humores. Antes de mais, optimismo a curto prazo, igual ao de Say: face aos repetidos desajustamentos entre os diferentes sectores de produção em curso de desenvolvimento, aquilo a que os historiadores chamam agora «a lei de Say» ou «a lei dos escoamentos» garante uma reabsorção automática dos excessos ou dos afastamentos acidentais e um retorno natural ao pleno emprego, pois «a oferta cria a sua própria procura», se ninguém voluntariamente lhe causar obstáculo. Nenhuma crise local de sobreprodução pode pois degenerar em crise geral e destruir o capitalismo. As forças do mercado protegem-no de um desaparecimento prematuro. Pessimismo a longo prazo, igual ao de T. R. Malthus (1766-1834): se é verdade que nenhuma crise pode abater o capitalismo prematuramente, é também verdade que devido à evolução desfavorável a longo prazo da taxa de lucro em relação às evoluções da renda e do salário, a hora do seu fim se aproxima inexoravelmente, pois os empresários que dele são o pólo activo perdem com a baixa da taxa de lucro o motivo que os faz investir. O enriquecimento das nações por acumulação do capital tem portanto um limite absoluto. A escassez das terras ou dos recursos

naturais é a causa profunda disso. O progresso técnico e uma política avisada de livre câmbio podem sem dúvida retardar o aparecimento e afrouxar por um instante o torno do mecanismo, mas não podem evitá-lo. A questão que retém Ricardo é portanto a de saber como se dirige uma economia capitalista para o seu fim natural. Que se trata exactamente de demonstrar? Quais são os princípios e as definições estabelecidas e desenvolvidas, quais são os factos constatados, onde estão as deduções? A análise divide-se em quatro pontos. 1) O princípio das vantagens comparativas na divisão individual ou colectiva do trabalho enuncia-se assim: ninguém pode perder quando cada um se especializa na produção em que a sua produtividade é a mais elevada. Por outro lado, a divisão do trabalho está organizada sob o regime do salariado e do capital e a acumulação de capital tem por motor a taxa de lucro, que é por seu turno o fim desejado por todos os empresários. No decurso dessa acumulação à escala de uma nação, a taxa de lucro declina, a renda aumenta e a taxa de salário permanece relativamente estável. Isso para Ricardo é uma questão de facto, cujo alcance geral deve ser evidenciado. Trata-se então de demonstrar a proposição segundo a qual a evolução a longo prazo da repartição dos proventos se faz em detrimento da taxa de lucro; 2) A evolução dos proventos a longo prazo é o efeito da dos preços relativos – definição de uma economia marcada pela divisão mercantil do trabalho. Essa evolução toma a forma de uma distorção: qualquer que seja a economia do tempo de trabalho na produção directa ou indirecta dos produtos agrícola e do trigo em particular, o preço da última unidade produzida na terra menos fértil sobe inexoravelmente à medida que a população cresce e que as terras cultiváveis passam a ser exploradas. É esse o facto fundamental da escassez cuja pertinência Ricardo não discute. Essa subida dos preços tem como primeiro efeito arrastar consigo a evolução dos salários. Ainda aí se trata de uma questão de facto: a parte do trigo é considerável na alimentação do trabalhador. A subida dos preços agrícolas tem por segundo efeito provocar uma subida da parte do valor do produto global entregue aos proprietários das terras mais férteis sob a forma de renda. Aquela a que se chama a teoria da renda diferencial é ainda a tradução de um facto – o facto institucional da propriedade privada e o facto natural do espírito da economia em todo o homem que procura cultivar antes dos outros as terras mais férteis. Destes diferentes pontos resulta a afirmação

segundo a qual o declínio da taxa de lucro deve assentar numa lei natural que comanda a evolução dos preços; 3) Trata-se portanto de esclarecer essa lei partindo de uma noção clara e distinta do preço. A este respeito, Ricardo afasta sucessivamente duas noções. Primeiramente rejeita o preço monetário ou o preço indicado em quantidade de uma unidade monetária diversamente expressa segundo os países. Sendo todas as coisas iguais para além disso, as variações dos preços monetários nada indicam das condições de produção, da acumulação de capital e do emprego do trabalho. Há aí um princípio ou um axioma, inspirado pela oposição de Smith ao mercantilismo, de onde são deduzidas a noção de economia real de produção e a definição do dinheiro como mercadoria. Seguidamente, ele reduz a importância do preço de mercado real ou não monetário. A lei que lhe governa as variações – dita «lei de gravitação» – exprime uma forma de ajustamento e de equilíbrio entre oferta e procura, mas não indica as razões pelas quais o nível desse equilíbrio é um e não outro. Ora é esse nível que importa num estudo de longa duração. Ricardo chama nível natural do preço de produção à grandeza que assegura a reprodução da riqueza global. Assim, a validade das suas declarações sobre o declínio da taxa de lucro baseia-se numa teoria dos preços de produção. Eis a conclusão que resume o encadeamento de todos os princípios e de todas as definições anteriores; 4) A teoria dos preços de produção tem por ponto de partida uma definição do valor de câmbio. O preço de produção ou o valor de uma mercadoria qualquer – trigo, dinheiro, tecido ou máquina – traduz a sua dificuldade de produção e o seu nível é determinado pelo tempo de trabalho simples despendido ao longo de todo o processo que conduz ao seu resultado final. Trata-se de mostrar a validade geral deste conceito através das diferentes formas de uma economia real de produção. Achamo-nos então no cerne da análise. Ricardo classifica as formas de economia segundo uma ordem de complexidade crescente, desde a simples troca até uma estrutura de produção de composição variável do capital fixo segundo os sectores. Dependendo cada preço de todos os outros – isso é claro a partir da troca –, o preço de uma qualquer mercadoria não pode servir naturalmente de grandeza de referência ou de unidade de medida para apreciar o efeito de uma variação das dificuldades de produção sobre cada preço. Para escolher por convenção o melhor padrão no caso de uma economia de complexidade máxima, Ricardo imagina então intuitivamente uma mercadoria abstracta cuja

dificuldade de produção correspondesse à média das dificuldades de produção de todos os sectores da economia – notar-se-á que a construção dessa mercadoria-padrão só será explicitamente proposta um século e meio mais tarde por P. Sraffa (1898-1983). A honestidade de Ricardo força-o a reconhecer no termo do seu percurso que aquilo a que ele próprio chama o princípio do valor não se aplica completamente nas situações mais complexas. Daí resulta que, como ele próprio diz, a lei do declínio da taxa de lucro não é efectivamente exacta. A convicção de que o capitalismo está ameaçado a longo ou a muito longo prazo é suficiente para guiar o homem de Estado numa política de livre câmbio, mas o economista deve reconhecerlhe uma margem relativamente elevada de apreciação. Isso atribui à intervenção pública um lugar mais importante do que o projecto teórico permitira prever. É esse reconhecido fracasso que Marx, no seguimento de todos os ricardianos, toma como seu ponto de partida. As críticas do modelo ricardiano Pode medir-se a importância de Ricardo pelo facto de as críticas que lhe são dirigidas acompanharem os diferentes desenvolvimentos ulteriores da teoria económica. Há cinco tipos de críticas. Somente a última nos deverá reter porque ela define a ambição de Marx. A primeira crítica é obra dos economistas históricos de língua alemã cerca de 1850, que denunciam a ideia evocada por Smith e consolidada por Ricardo segundo a qual todas as sociedades modernas relevariam de uma forma homogénea de evolução única. A segunda crítica inaugura a era neoclássica da ciência económica. Ela apresenta-se de uma maneira particularmente subtil em A. Marshall a partir de 1870. O preço de produção de Ricardo não seria mais do que o preço de mercado considerado durante um período longo em condições tão particulares que eclipsam o papel da procura e permitem acreditar que a oferta seja o único factor que determina o nível do preço. A terceira crítica, devida a Keynes cerca de 1936, opõe a noção de economia monetária de produção à economia real de Ricardo. O papel decisivo do dinheiro de crédito no capitalismo deve conduzir à ideia de um equilíbrio patológico do sistema económico: as forças do mercado são insuficientes para lhe garantir a reprodução com pleno emprego. A quarta crítica é contemporânea da edição completa das obras de Ricardo por Sraffa cerca de 1960. Da evolução dos preços de produção à partilha do produto entre os lucros e os salários, a relação de causa a efeito nem é suficiente, nem linear. Um dos

dois proventos deve ser dado para estabelecer a evolução do outro. Sraffa, tal como o fazem os historiadores alemães, Marshall e Keynes, cada um à sua maneira, alarga portanto um pouco mais a função e as margens de apreciação do homem de Estado em detrimento do naturalismo. O principal aspecto da crítica de Marx, que é também a quinta espécie de crítica, não consiste em salvar a análise do seu formalismo, dos seus expedientes particulares, das suas negligências acerca do dinheiro bancário ou dos seus círculos viciosos. A crítica pretende atribuir o sentido histórico do próprio empreendimento científico. A economia política de que Ricardo é «o melhor representante» assinala o advento do trabalho humano, mas ela fá-lo sob uma perspectiva que lhe mascara a realidade. É preciso simultaneamente, segundo Marx, concluir a ciência ricardiana colocando a lei da baixa da taxa de lucro em bases mais sólidas e mostrar como tais bases revelam por seu turno a substância do capitalismo. Os humores de Marx invertem os de Ricardo. Podemos ser pessimistas a curto prazo, porque o tempo do capitalismo é um tempo de crises dolorosas, mas devemos ser optimistas a longo prazo porque a morte do capitalismo é ao mesmo tempo o nascimento de uma sociedade mais humana e mais justa. Qual é o cerne da crítica de Marx? Ricardo, diz ele, erra ao atribuir a baixa da taxa de lucro a factores naturais, como a demografia e a escassez das terras, e comete o erro de acreditar que o progresso técnico e o maquinismo retardam o declínio do capitalismo, ao passo que pelo contrário lhe provocam a queda. Ricardo não vê a contradição interna do capitalismo: é ao quererem aumentar a produtividade do trabalho pelas máquinas e o progresso técnico, que os empresários contraem cada vez mais a parte do trabalho que cria valor para além da quantidade necessária à reprodução do capital total. Ora é dessa criação de valor ou mais-valia que se tira o lucro. O alargamento da economia às dimensões mundiais pela livre troca em nada poderá alterar isso. «A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital499.» A fraqueza de Ricardo advém de ele não ter feito as distinções necessárias; primeiro, entre capital constante e capital variável, em correspondência com a distinção entre objecto e meios de trabalho, por um lado, e força de trabalho pelo outro; seguidamente, entre lucro, provento obtido por repartição, e maisvalia, grandeza extraída na produção e depois repartida como lucro, renda e juro; enfim, entre preço de produção, grandeza construída por conta do empresário – custo de produção mais taxa de lucro média – e valor, grandeza

que exprime o ponto de vista do trabalhador e é igual à quantidade de trabalho directo e indirecto necessária à produção e à reprodução de um bem nas condições capitalistas dessa produção. Estas distinções supõem portanto que a análise do capitalismo não se faça apenas sob o ponto de vista dos empresários que tomam as decisões de investir, mas também e antes de mais sob o ponto de vista dos trabalhadores cuja acção constitui a riqueza ou o verdadeiro valor. Os contemporâneos de Ricardo, com Malthus e Sismondi à cabeça, censuraram-no por abandonar a observação e se comprazer na abstracção. A censura de Marx é exactamente oposta. «Ricardo não é suficientemente abstracto», repete ele com frequência. A sua insuficiência provém de ele não ter querido levantar o véu das contas, afastar-se do ponto de vista dos actores do momento e procurar a realidade ou a substância profunda do trabalho vivo sob aquilo a que chama o princípio do valor. O que lhe falta e o que ele recusa é o fundamento histórico dessa ciência. Ricardo viu bem que a economia política é uma maneira de medir em grandezas mercantis o trabalho social e a riqueza que ele produz. O que não viu ele foi que a mercadoria pertence ao reino da quantidade e do desejo de dinheiro. Sob o capitalismo, o trabalho concreto dos homens surge apenas sob a forma de uma quantidade de trabalho abstracto e a felicidade para cada um de usar as suas riquezas segundo um desejo de bem viver já não é mais do que a fruição amarga de ter sempre mais. Para Marx, toda a economia política clássica se inscreve assim sem o saber naquilo a que Aristóteles chama a má crematística – ou a falsa ciência da acumulação infinita. ARNAUD BERTHOUD 495 A. Smith, Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, t. 2. 496 O bulionismo – ou metalismo – é a teoria económica que define a riqueza pela quantidade de metais preciosos possuídos, forma arcaica do mercantilismo. (N. do T.) 497 K. Marx, Crítica da Economia Política, vol. 1 498 Veja-se o primeiro capítulo dos seus Princípios de Economia Política e do Imposto (1817). 499 K. Marx, O Capital, III.

Iena. Pós-kantismo e romantismo

A escrita da Revolução Às capitais empobrecidas de um império sem forma, chegam os ecos da Revolução Francesa. Entre essas cidades da Alemanha, Königsberg é então sobretudo a fortaleza de Kant, cuja obra já nem por isso tem o aspecto de um edifício acabado. Em compensação, Iena caracteriza-se pela profusão das suas actividades culturais, universitárias, editoriais, franco-maçónicas. Schiller vive lá, onde se encontrou com Goethe, e tanto um como o outro deram a sua mais alta expressão ao classicismo alemão, outorgando a ideia tumultuosa de um génio espontâneo e a exigência de regras que dirigem a natureza e a criação artística. Iena revelar-se-á portanto particularmente receptiva ao pensamento kantiano da Revolução, apresentada como a suprema conciliação da espontaneidade do povo e da lei. É aí que os estudantes seguem os cursos de um kantiano afamado, Reinhold. Fichte sucede-lhe entre 1794 e 1799. Schelling é nomeado em 1798. Três anos mais tarde, ele forma equipa com um antigo amigo, Hegel. É claro que Iena é o berço do idealismo alemão. Mas não só: A. W. Schlegel torna-se lá professor em 1796. Ao redor dele, da sua esposa Carolina e do seu irmão Friedrich, forma-se uma constelação (em parte berlinense) de pensadores e de poetas: Doroteia Veit, Tieck, Schleiermacher, Wackenroder, Novalis, bem como Fichte e Schelling. Esta família próxima do idealismo chama-se a si mesma Frühromantik e conhece o seu apogeu com a redacção de uma revista, a Athenaeum (1798-1800). Durante algum tempo, Iena vê-se no centro do pensamento pósrevolucionário. Mas depressa a solidariedade interna dos dois movimentos é sujeita a uma série de provas que misturam os conflitos teóricos, pessoais ou passionais à factualidade das mudanças de residência ou dos desaparecimentos. Em 1800, Fichte, acusado de ateísmo, refugia-se em Berlim, e Schelling reivindica pouco depois a originalidade do seu sistema. Ele próprio abandona Iena em 1803, e rompe com Hegel em 1807. Quanto aos românticos, separamse antes mesmo de sofrerem a morte de Novalis (Março de 1801); o grupo renasce, mas em Berlim, ainda ao redor dos Schlegel, e depois em Heidelberga.

Iena, pouco antes de ser o local onde se desmoronará o exército prussiano diante de Napoleão, estilhaça-se em múltiplos nomes, nomes de pessoas mas também de cidades; e às tentativas de unificação do sistema crítico junta-se a profecia de Novalis: «É por caminhos diversos que vão os homens. Quem os seguir e os comparar verá nascer estranhas figuras.» O acto infinito do eu (Fichte, 1762-1814) «Que Deus não deixe de nos proteger dos nossos amigos, pois quanto aos nossos inimigos saberemos bem cuidar de nós mesmos», escreve Kant a Fichte em 1799. Este estranho protesto de amizade dirigido àquele que o havia defendido contra os seus censores não obstante justifica-se. Kant reprova a Fichte que este não o tenha seguido à letra no seu esforço para articular os três interesses da razão: o conhecimento, o dever, a esperança. Fichte, movido por uma esperança rebelde a toda a necessidade cega, com efeito não adere senão à expressão do dever descoberta durante a leitura da Crítica da Razão Prática: o dever é a afirmação absoluta da liberdade pela lei que um sujeito se atribui a si mesmo. Fichte fez-se defensor público dessa mesma liberdade, tal como ela se impôs contra a letra do direito no decurso da Revolução Francesa. Deseja pois plenamente a revolução coperniciana anunciada por Kant: só um sujeito que faça de si o centro de toda a legislação, tanto a das suas acções como a da natureza, pode apreender o sentido e a unidade tanto do seu destino individual como da política. Mas, segundo ele, Kant foi infiel ao seu anúncio: a Crítica da Razão Pura restringe o conhecimento à mera apreensão conceptual de uma variedade fenomenal cuja razão escapa ao sujeito para se alojar numa coisa incognoscível em si. Sacudir o jugo da coisa em si, cumprir a revolução coperniciana, encontrar (no seguimento de Reinhold) o verdadeiro princípio de um sistema do qual Kant apenas deu uma ideia, são esses os objectivos da obra fichteana. Todos eles exigem que a letra kantiana seja desligada das suas figuras quase animais (papagaios, falsos sábios que vestem os fragmentos do sistema como se fossem uma pele de leão) em benefício do espírito vivificante que a habita. Fichte, em Iena, tira o seu impulso da vida real do espírito e do único facto que não poderá ser imposto a esta: a sua acção imediata sobre o mundo. Voltada para o ser das coisas, a consciência real pensa obscuramente conhecerse, mas sem acreditar nisso, como ser particular ou modo de ser do mundo (Descartes, Espinosa) ou como a forma de um acto separado do ser que lhe

fornece a sua matéria sensível (Kant). Mas o espírito livre pode ainda apreender o acto da consciência na consciência imediata, intuitiva, de si; ele pode decidir abstrair essa intuição do seu alcance mundano e da sua receptividade sensível para a recolocar tal como ela é: uma intuição intelectual. Fichte chama «doutrina da ciência» (Wissenschaftslehre) ao acto de reflexão que atinge o princípio de todo o saber ao redobrar a intuição de si, e eleva assim ao conceito aquilo que a consciência sempre acreditou ser: o próprio princípio do mundo. Este acto desdobrado formula-se Eu = Eu: o espírito da doutrina da ciência requisita a letra do princípio de identidade (A = A) para reconduzir toda a identidade à unidade de um eu que se estabelece assim literalmente como princípio absoluto. A dualidade desse princípio, que identifica sujeito estabelecente e objecto estabelecido, eu e eu, abre este, em si mesmo infinitamente activo, à possibilidade de ser afectado e limitado pela acção de um não-eu. Tal acção sobrevém, sem ser deduzida, na brusquidão de um choque que exprime um segundo princípio: o oposto de mim = não-eu. O choque é portanto um limite que o eu sente sem si e deve estabelecer em si. Se o não faz, torna a cair sob o império da coisa em si. Se o faz, tende de novo para o infinito que ele é primordialmente. E para isso, é preciso que ele restabeleça a sua oposição com o não-eu como uma simples diferença quantitativa entre duas actividades: uma, real, de posição, a outra, ideal, de limitação. Esse acto de síntese exprime-se num terceiro princípio – o eu e o não-eu são divisíveis – e depois desenvolve-se em múltiplas sínteses. Em cada uma delas a intuição do eu implica uma imaginação que ultrapassa a divisão do eu finito e do não-eu, tende para o eu infinito, e finalmente oscila entre o finito e o infinito. Essa imaginação implica ela própria um entendimento que reflecte sobre si, a fixa, e assim determina um novo limite, ou seja um novo conceito. Os conceitos primeiros do entendimento a que Kant chama «categorias» tornam-se assim outros tantos estados-limite que o eu estabelece no decurso de uma construção livre e necessária, e portanto autolegislativa. Enquanto o eu se estabelece como limitado pelo não-eu, as sínteses sucessivas desenvolvem a génese da sua actividade teórica. Mas o espírito da doutrina da ciência permanece essencialmente prático: o eu, ao agir realmente, estabelece-se enquanto estabelecendo o não-eu, num esforço de autodeterminação que tende para o infinito. Ele liberta-se então verdadeiramente na posição de um outro eu, que se determina também livremente: é esse o fundamento do direito, que põe de acordo todos os sujeitos

segundo as mesmas leis e coloca a sua esfera de actividade sob a garantia do Estado. Cada sujeito ultrapassa porém a sua esfera jurídica ao exigir de si mesmo a posição de todo o não-eu: ele deve tornar-se o legislador do mundo dos espíritos. Pergunta-se então como pode um mesmo mundo moral ser construído por sujeitos múltiplos. Abandonando Iena, Fichte dá à sua resposta os contornos de um misticismo racional: é preciso que a intenção da acção livre se realize verdadeiramente numa ordem inteligível, graças ao autor supraobjectivo dessa ordem. Um Deus vivo torna-se o fundamento último da moral e a fonte de uma beatitude que anima o eu. O espírito da Wissenschaftslehre visa ainda estabelecer sem resto um absoluto subjectivo, mas este eleva-se acima do eu que, tornado saber penetrante ou manifestação do ser absoluto, se devota a construir o inconstrutível. Historiógrafo e não legislador do espírito, é normal que o filósofo não tenha podido fixar a agilidade constante do eu à letra ou em conceitos definitivos. Assim se explicam estas múltiplas versões da doutrina da ciência, obrigando a distinguir diversos Fichte. Só o primeiro Fichte (1794-1800) habitara em Iena; mas já estava em companhia do seu alter ego, Schelling. Versões do absoluto (Schelling, 1775-1854) Entre as paredes do seminário de Tubinga, antes da grande época de Iena, três internos cantam A Marselhesa. São Schelling, Hegel e Hölderlin. Atribuem-se uma divisa grega e espinosista: En Kai Pan, «Um e tudo». Plantam – mas isso é muitas vezes contestado – uma árvore da Liberdade em 1791. Um deles redigirá mais tarde – mas ainda não se sabe qual, nem se o autor ditou o seu pensamento nas costas de Hegel – o «mais velho programa do idealismo alemão», um curto manuscrito que prevê a supressão do Estado e a instauração de uma paz universal fundada na poesia e na mitologia. Uma coisa é certa: tiveram diversas ocasiões de ouvir Fichte. Assim nasce em Schelling o projecto de se impor como seu continuador e «amigo», se tomarmos essa palavra à letra… de Kant. Schelling entende também ele atingir o fundamento da filosofia, deixado por Kant no alto dos degraus que o seu génio o fizera galgar. Nos seus primeiros escritos, esse princípio era efectivamente o eu da doutrina da ciência. Mas, já então, a iniciativa é singular: Schelling faz da intuição intelectual do eu absoluto o órgão disponível do pensamento e não o nó de uma iniciativa metódica. O absoluto eleva-se então muito rapidamente acima do eu. Ou antes,

é o eu que se afasta dele estabelecendo-se como princípio teórico, ainda que só tenda para ele ao suprimir livremente todo o objecto. Mas responde-lhe então um eu que se perde no objecto e se identifica jubilosamente com a necessidade. Uma decisão prática cinde estas duas posições, uma crítica (Kant, Fichte), a outra dogmática (Espinosa), mas permanecendo estas teoricamente indecidíveis. O absoluto realiza então as suas possibilidades quando se desdobra em duas direcções opostas: é essa a ideia directriz de Schelling ao chegar a Iena. A intuição intelectual percorre portanto agora as duas vertentes do absoluto e dá origem a duas ciências filosóficas, separadas pela escolha arbitrária do seu começo. Se o sujeito intuicionante se abstrai de si mesmo, a intuição objectivase: ela torna-se o órgão da filosofia da natureza, «espinosismo da física» que apreende a realidade objectiva na sua tendência para se idealizar ou para se tornar subjectiva. Uma produtividade inconsciente depara aqui com a objectividade como seu limite. Mas essa luta não é mais do que a sua separação em duas forças, uma de expansão ilimitada, a outra de limitação ou de contracção reflexiva; cada produto natural não é então mais do que um «ponto de indiferença» onde se fixa esse duplo movimento. Três processos (magnético, eléctrico, químico) marcam os graus de indiferença relativa, ela própria suprimida pela produtividade infinita que, ao re-produzir todos os processos, engendra outras tantas potências (material, inorgânica, orgânica). Na sua mais alta potência, a natureza apresenta-se como um grande organismo que reavivou tanto quanto possível todas as suas formas adormecidas. Mas falta-lhe ainda a potência do sujeito, ou seja a reflexão que instaura arbitrariamente no começo do saber o próprio eu, e inverte o acto de idealização do real em realização do ideal. Assim começa a filosofia transcendental (com os seus próprios graus e potências). Schelling obtém então o derradeiro assentimento de Fichte; mas sob o idealismo acoita-se a natureza, esse passado eterno e cego da consciência. Daí decorre que a mais alta instância do eu não é a acção livre cumprindo-se na história – e na Revolução – mas antes a arte, essa produtividade simultaneamente consciente e inconsciente que unifica o eu e a natureza: a arte é o órgão da filosofia, e esta uma corrente no oceano da poesia. Deve no entanto falar-se, não só de vertentes, mas também de versões do absoluto. Porque em 1801 Schelling repensa este como o novo campo de indiferença no qual se suprime a irredutibilidade das duas ciências fundamentais. A «filosofia da identidade» desdobra-se então num luxo de fórmulas. O absoluto já não é subjectivo (Eu = Tudo), mas totalizante (Tudo =

Eu). A identidade Eu = Eu é elevada à indiferença formal, A = A. E a diferença quantitativa do eu e do não-eu, neutralizada pela identidade A = B, faz com que toda a diferença exceda o absoluto em quantidade, ou objectivamente (A = B+), ou subjectivamente (A+ = B). A intuição partilha-se então em duas totalidades relativamente excessivas, a natureza e o mundo ideal, que tendem a suprimir as suas variações quantitativas internas ao afirmarem em B a potencialização de A (A = A2 = A3). Todas as diferenças finitas são quantificadas por essa nova teoria das potências, enquanto a unidade quantitativa do absoluto e do finito implica uma nova teoria das ideias: informadas pelo absoluto e nele, estas informam todos os seres finitos. Assim jamais se intui uma planta, mas o absoluto sob forma vegetal. As próprias potências são então outras tantas vitórias da informação ou da imaginação sobre os seres singulares, que reflectem ou simbolizam cada vez melhor o infinito ao mesmo tempo que se reflectem umas nas outras. A unidade orgânica (da planta, por exemplo) é assim a terceira potência da natureza; ela simboliza o absoluto, mas reflecte-se também na obra de arte (terceira potência do mundo ideal), ainda que a arte seja a intuição idealizada do organismo, mas também a intuição realizada do absoluto, ou ainda a intuição de todas as ideias, apresentadas idealmente e realmente num mundo de deuses. Mas a versão do absoluto que apresenta a filosofia da identidade modificou a tal ponto a situação do sujeito que implica neste uma outra ainda. O sujeito é a alma informada pelas ideias, pode tender para elas, mas, contudo, ele é o único responsável da finitude: é preciso que ele caia, e se separe reflexivamente da intuição do absoluto, para que o absoluto caia na natureza. Trocando Iena por Munique em 1806, Schelling faz da natureza o fundo dissociado e caótico de Deus, que só resgata a auto-revelação progressiva deste último na consciência finita. A mitologia, esse passado real da consciência, refunda a arte. E toda a filosofia anterior se torna finalmente um pensamento negativo, que não apreende mais do que a possibilidade, ou mesmo a necessidade, do absoluto, ao passo que só um pensamento positivo se abre à liberdade do seu advir. A intuição torna-se, nesse estádio último, revelação. A obra romântica O século faz-se acompanhar também pelas suas glosas marginais, o «breve texto» da filosofia pelo seu subsequente comentário, e o próprio comentário pelas suas figuras épicas: aquelas ou aqueles que, atentos ao curso do tempo, «não querem calar-se nas passagens difíceis», diz a Athenaeum500 ao designar

do fundo do seu anonimato os poetas românticos. Se seguirmos com eles os complexos contornos desse tempo, seguro de que «a Revolução Francesa, a doutrina da ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as três grandes tendências da época501», as efusões da Athenaeum parecem o lugar plural onde essas mesmas tendências se quebram e se encontram. A Revolução é afectada por uma dualidade: assinalando a passagem definitiva à idade moderna, ela volta-se porém para o antigo (o mundo greco-romano), pronta a projectá-lo no futuro. Esse futuro começa com Fichte no sentido em que as verdadeiras revoluções passam pelo meio, pela interioridade do Eu. Mas sob o nome de Fichte, ouve-se agora – para além do de Kant – o de Schelling. O primeiro encontro (em 1798, em Dresden) entre os dois filósofos e o grupo romântico foi livremente reescrito pela Athenaeum e por F. Schlegel. Essa Conversa sobre a Poesia atribui a Schelling, alias Ludoviko, uma experiência poética – recordação, porventura, do seu contributo para a revista: um poema epicurista cuja publicação fora interditada por Goethe. Depois confia-lhe um discurso fundador (e fiel), que vê na arte o cumprimento do idealismo e prevê a instituição de uma nova mitologia em acordo com a nova filosofia da natureza. A unidade filosófica da filosofia e da poesia faz portanto tender uma para a outra, e é afinal por isso que o Meister escrito por Goethe é a mais alta tendência da época. Esse romance proteiforme é como que a própria ideia do romantismo, porque ele reflecte a sua individualidade na das suas personagens e transforma a arte em arte de viver. Mas, evidentemente, sob o nome de Goethe, há que ouvir outros, Jean Paul, Sterne, Cervantes, Dante ou Shakespeare, embora levando em consideração a nova relação filológica que mantêm essas obras modernas e as obras antigas desde a Revolução. E então vê-se bem como os românticos procuram uma síntese infinita: a de uma sinfilosofia que fosse igualmente simpoesia. A obra simpoética oferece mais do que uma versão do absoluto: ela é a sua tradução filológica. Com efeito o absoluto já se enunciou na arte antiga, naquela totalidade individual que é a poesia grega. A epopeia, género misto e originário, é a expressão maciça dessa individualidade; ela imita o nascimento da linguagem, ela própria imitando ou simbolizando a natureza. A linguagem poética é portanto inata, no sentido em que, como diz W. A. Schlegel, ela não cessa de nascer. Desde logo, toda a poesia é tradução da epopeia originária, imitação da linguagem nascente, língua da língua, poesia da poesia. E o passado não está simplesmente revoluto, tal como não deve ser coagulado num ideal que o separe do moderno (é o impasse neoclássico). Ele é eterno, ele é o

primeiro elemento de uma estrutura orgânica do tempo da qual Schelling, no limiar da sua última filosofia, deixará o sistema inacabado. Enfim, se os gregos são os filhos do passado, é por serem os guardiões jubilosos e inconscientes de uma unificação da linguagem e da natureza que uma nova epopeia, moderna e consciente, se esforça por atingir. Compreende-se então que os românticos se vejam como os profetas do passado, do presente e do futuro; ou como os heróis de uma «poesia universal progressiva» movida pela nostalgia da idade de ouro, essa idade absolutamente antiga, inalterável, dissimulada e esperada. A filosofia é o espírito, a filologia é a letra, mas os românticos nem por isso mudam a letra do idealismo, correndo o risco de fazer dos actos do eu outros tantos espíritos independentes. F. Schlegel concentra a agilidade ou a genialidade do eu na fulgurância da intuição intelectual, que sela a amizade de dois pensamentos incompatíveis; a poesia assenta então na matemática obscura, ao mesmo tempo instintiva e consciente, do Witz (o dito espirituoso). O idealismo mágico de Novalis liberta antes a imaginação produtiva; a alma do poeta torna-se o espelho interior e caótico da natureza, o lugar onde as coisas alheias se encontram, se animam, ou se ensombram num sonho mortal. Mas o génio romântico culmina numa reflexão infinita: a autolimitação do sujeito situa então a sua escrita num ponto em que se equilibram criação e destruição. A imaginação torna-se potência crítica, o Witz ganha a forma (infinita) da ironia, e a obra poética torna-se o reflexo da individualidade característica do poeta, mas também o símbolo de um inacabamento, ou o fragmento fechado sobre si mesmo da obra absoluta. É por isso que os fragmentos da Athenaeum são o apogeu do primeiro romantismo. Após a sua publicação, este último é como que conquistado pela sua fulgurância e depressa se funda sob a pena de F. Schlegel, convertido ao misticismo religioso de Schleiermacher: à ironia substitui-se o sacrifício do artista. Mas ao mesmo tempo esse romantismo renasce das suas cinzas porque não parou de se retraduzir: nos contos e nos romances (Novalis, Tieck), no romance teórico (a Lucinda de F. Schlegel), e depois nas obras de Brentano, Kleist, Hoffmann, Lenau, e muitos outros. Não saímos de Iena afinal? Decerto que as suas paredes continuam a reflectir-se na natureza, se virmos nesta, como Novalis, uma cidade mágica petrificada. Mas nada nelas ficou intacto; só a exigência da obra indefinidamente atingida deixa um vestígio neste lugar por onde passaram filósofos, e onde, porventura, nasceu a literatura tal como a compreendemos ainda.

JÉRÔME LÈBRE 500 Fragmento 332. Os fragmentos da Athenaeum foram traduzidos para francês e publicados em P. Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy, L’Absolu littéraire, Paris, Seuil, 1978, p. 98-178. 501 Fragmento 216.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu a 27 de Agosto de 1770 em Estugarda, numa família de pequena burguesia luterana, que o destinou à carreira de pastor. De 1788 a 1793, recebe no Stift de Tubinga uma formação teológica e filosófica. Com os seus condiscípulos Schelling e Hölderlin, segue com paixão os acontecimentos franceses. O Terror arrefece-lhe o entusiasmo, mas Hegel jamais retomará por si mesmo a sua adesão aos princípios de 1789, que são para ele os da modernidade política. Em 1793 torna-se preceptor em Berna, onde aproveita a biblioteca do seu empregador para ler Hume, Gibbon, Montesquieu, Rousseau e Kant, bem como os pais da economia política. Dessa estadia em Berna datam fragmentos inéditos sobre a «positividade» da religião cristã numa Vida de Jesus. De 1796 até ao final de 1800, Hegel é preceptor em Frankfurt, onde se encontra com Hölderlin, que pouco depois cairá na demência. Esta estadia é fecunda. Decerto que Hegel só publica uma tradução anónima de um libelo republicano suíço, mas começa a redigir aquilo que se tornaria um livro sobre a situação do Império alemão caso Bonaparte não lhe houvesse abreviado a agonia; esse manuscrito, descoberto um século mais tarde, é marcado por um republicanismo de inspiração maquiavélica. Mas o interesse principal de Hegel vai sempre para problemas filosófico-religiosos. Menos kantiano do que em Berna, Hegel inventa uma conceptualidade original para pensar aquilo que escapa à linguagem comum, e elabora já a sua própria filosofia num vocabulário imaginado. Para ele, trata-se de superar a «separação» que caracteriza a vida dos modernos, mas assumindo-a; é dialecticamente que se chegará à «reunião com o tempo502». Em 1801, Hegel junta-se a Schelling em Iena, onde se define a sua orientação filosófica definitiva; ela implicará pouco depois a sua ruptura com Schelling. Publica o seu primeiro escrito, a Diferença dos Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling; nela se faz porta-voz do seu amigo, mas dando já a entender uma tonalidade que lhe é própria. Depois publica alguns artigos importantes e difíceis no Jornal Crítico da Filosofia que edita com Schelling. Além disso, redige para os seus cursos cadernos que são o laboratório da grande obra que

marca para o público o seu nascimento enquanto filósofo original: a Fenomenologia do Espírito (1807). Após um parêntesis de um ano e meio, Hegel obtém o cargo de professor de Filosofia e provisor do liceu protestante de Nuremberga. Aí permanece cerca de oito anos durante os quais, paralelamente ao seu ensino, redige o seu segundo grande livro, a Ciência da Lógica (1812-1816). Deseja então conseguir uma posição académica adequada à sua notoriedade, e em 1816 obtém uma cátedra em Heidelberga, onde fica dois anos e publica a primeira edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817), súmula do sistema enfim exposto na sua inteireza. Daí em diante, o seu ensino toma por base esse manual (cujas duas reedições muito aumentadas aparecem em 1827 e 1830): cada curso desenvolve um segmento do conjunto. Hegel publica também o seu escrito político mais liberal, um estudo das Actas dos Estados do Reino de Wurtemberga em 1815-1816: no contexto da Europa pós-revolucionária, a hora não é de Restauração mas de uma política reformista impulsionada do alto e posta em execução por uma burocracia devotada ao bem público. Hegel não voltará a tal assunto. Em 1818, junta-se à jovem Universidade de Berlim, onde se ilustram alguns dos grandes nomes da época (Humboldt, seu fundador; Fichte, do qual Hegel é sucessor; Schleiermacher; o jurista Savigny), numa Prússia que é então um Estado moderno e reformador. Até à sua morte, Hegel ensina aí perante centenas de auditores que, como Feuerbach, podem vir de muito longe. Rodeiase de uma equipa de fiéis discípulos, aqueles aos quais após a sua morte se chamará os «velhos hegelianos» para os distinguir dos «jovens hegelianos» rebeldes à letra do sistema, entre os quais Marx. Poucas publicações novas durante esse período: para além das duas reedições da Enciclopédia, a mais notável é constituída pelos Princípios da Filosofia do Direito (1820), que desenvolvem a teoria do «espírito objectivo» da Enciclopédia. Esse livro tem um vasto eco; ele contribuirá, à custa de muitos contra-sensos, para a má reputação do «filósofo do Estado prussiano». Hegel dedica-se também aos Anais de Crítica Científica por si fundados: aí publica longas recensões, nomeadamente à tradução por Humboldt do Bhagavad-Guitá. Mas o seu interesse pela política não cessou: um dos seus últimos escritos é o artigo A Propósito da Reform Bill Inglesa (1831), o qual contém juízos tão severos sobre a situação social e política da Grã-Bretanha que o governo prussiano lhe censura a publicação! Pouco antes de sucumbir à cólera, Hegel conclui em 1831 uma segunda edição reformulada do primeiro livro da Lógica e empenha-

se na reedição da Fenomenologia. Todavia, o essencial da sua actividade em Berlim não dá lugar à publicação: semestre após semestre, Hegel faz cursos sobre uma ou outra parte do sistema. Editadas pelos seus alunos graças às suas próprias notas e a cadernos dos auditores, essas lições formam, com os escritos por ele publicados em vida, o grosso da edição póstuma das obras, que surge a partir de 1832. Daí em diante, os cursos irão desempenhar na recepção do hegelianismo um papel pelo menos igual ao dos escritos publicados. A partir da década de 1970, começaram a editar-se os múltiplos cadernos de estudantes que prestam testemunho das lições de Heidelberga e de Berlim. Nenhuma interpretação informada pode ignorar essa massa de documentos de que as adições à Enciclopédia ou à Filosofia do Direito, compostas pelos discípulos de Hegel para a edição póstuma, são uma espécie de condensado. A vida de Hegel não teve nada de original. De resto, ele desconfiava da busca da originalidade: «Cada um pretende e crê ser melhor do que o mundo que é o seu. Aquele que é o melhor só exprime melhor do que os outros esse mundo503.» Hegel não foi melhor que o seu mundo. Mas os seus escritos são dele a expressão poderosa; não é a vocação da filosofia ser «o seu tempo apreendido em pensamentos»504? As lendas As interpretações de Hegel desafiam por vezes as regras de uma hermenêutica razoável. Algumas teses que lhe são atribuídas fazem ofício de véu para a leitura dos textos, já de si tão exigente. Não é inútil verificar os principais lugares comuns que organizam a percepção dominante do hegelianismo. 1) «[Tudo] o que é racional é real, e [tudo] o que é real é racional.» Esta fórmula, a mais (mal) citada do corpus hegeliano505, desperta a suspeita. Não traz ela uma caução filosófica aos aspectos mais contestáveis da realidade? Hegel teria uma propensão para conceder a bênção do conceito a tudo o que acontece. Por isso a imputação política de conservadorismo está frequentemente associada à suspeita metafísica relativamente ao «necessitarismo hegeliano». Chegar-se-á até a perceber nessa filosofia uma justificação antecipada dos totalitarismos do século XX (Popper)… Ora a Enciclopédia recusa uma tal interpretação da fórmula dos Princípios506. Fazer dizer a Hegel que «o real é racional» é ignorar a distinção entre a realidade de

ser-aí contingente, de que trata o início da lógica do ser, e a efectividade, conceptualizada pela lógica da essência. O real, «ser com um não-ser507», é aquilo que pode sempre ser outra coisa do que é e se torna incessantemente outra coisa do que é; é o ser-aí na sua insuperável factualidade. A efectividade, pelo contrário, é «a essência que é uma com o seu fenómeno508». Considerando a instabilidade do real, o efectivo é «subtraído à passagem509», porque a sua existência não supõe nenhum fundo do qual dependa o seu sentido. A realidade é portanto completamente diversa da efectividade; elas correspondem a níveis diferentes de inteligência daquilo que é. Que a efectividade seja racional, é algo que se prende com a sua definição. A equivalência do efectivo e do racional não é uma verdade de facto; é uma tese metafísica que arrasta a concepção processual do ser exposta na Lógica. Em compensação, a realidade não poderia sê-lo absolutamente, por a instabilidade lhe ser inerente. Hegel conclui: «quem não seria suficientemente avisado para ver naquilo que o rodeia muitas coisas que de facto não são como deveriam ser510?» Muitas vezes o real empírico é nada menos que racional. 2) A dialéctica, diz-se, comporta três tempos: a tese, a antítese e a síntese (manifestação da mania da forma ternária atribuída a Hegel…). Ficamos pois surpreendidos ao constatar que ele próprio critica tal travessura noutros, e denuncia a absurdidade que consiste em aplicar um esquema triádico a tudo o que é. Se permitiu que o «conceito da ciência» visse a luz do dia, esse modelo poderia facilmente ser reduzido a um «esquema sem vida» quando a sua «significação absoluta» é desconhecida511. É em Kant que Hegel detecta «o esquema – ele é verdadeiramente destituído de espírito – da triplicidade»; foi ele que «afirmou por toda a parte a tese, a antítese e a síntese512». Hegel, pelo seu lado, julga que esse é apenas «o lado superficial, exterior, da maneira do conhecer513»; e quando enumera os momentos do método especulativo, conclui que, «se apesar de tudo quisermos contar», ele tanto pode ser apresentado enquanto «quadruplicidade» como enquanto «triplicidade»514. Com efeito, no «método do conceito», o momento mediano (impropriamente chamado antítese) desdobra-se. Ele é antes de mais a negação da tese inicial; por exemplo, à proposição «o ser é» opõe-se «o ser não é». Mas, e é nisso que a progressão do conceito é dialéctica, essa primeira negação volta-se contra si mesma. Assim o «negativo primeiro e formal» cumpre-se na «negatividade absoluta»515 e dá lugar a uma síntese especulativa que é bem mais do que a

simples justaposição da tese e da antítese: ela nomeia o processo do qual tese e antítese são os momentos isolados. O esquema ternário oferece certamente «o modelo do ritmo do conhecimento516», mas corre o risco de coagular o movimento do pensamento. Esse esquema «tese-antítese-síntese» induz com efeito uma visão errónea da dialéctica. Tal termo não designa em Hegel senão um momento, sem dúvida capital, do processo lógico: o momento mediano, que é o «princípio motriz do conceito517» e que se desdobra a si mesmo (negação primeira; negação da negação). Esse momento negativamente racional tem vocação para ser negado, ou antes para se negar ao trazer à luz o momento positivamente racional, especulativo, no qual ele se supera518. A imagem da síntese parece pôr tese e antítese ao mesmo nível, tornando-as duas quantidades de sinal oposto. Ora, no sistema hegeliano, é sempre um dos dois termos da oposição dialéctica que opera a Aufhebung, a superação/conservação/ab-rogação desta, ao afirmar o seu domínio sobre o outro. Cada um dos dois termos é negado ao mesmo tempo que conservado pela virtude dialéctica de um deles: exactamente o contrário de uma síntese artificial e exterior. 3) Kojève, que fez dela o eixo de uma interpretação global da obra de Hegel, julgou poder fazer da «dialéctica do amo e do escravo» simultaneamente o paradigma do que se deve entender por dialéctica e uma parábola sobre a génese da humanidade e da sociedade. O tema aparece no início do capítulo 4 da Fenomenologia do Espírito. Segundo Kojève, essa passagem significa que o acesso à consciência de si, portanto à humanidade, não passa tanto pelo conhecimento como pelo reconhecimento; ele procede de um confronto no qual o vencedor imediato (o amo) é no fim de contas dominado pelo vencido (o escravo). Este, condenado pelo seu temor da morte ao trabalho servil, empenha-se por isso num processo de aculturação que lhe irá permitir triunfar sobre o mestre, votado à fruição ociosa e estéril. Há lugar para contestar esta interpretação. A própria escolha dos termos «amo» e «escravo» é discutível. Traduzir Herr por amo ilude o parentesco da palavra com Herrschaft, o exercício de um poder (legítimo ou não) do homem sobre o homem; herrschen é mais reinar do que dominar, e em todo o caso não é reduzir à escravatura. Quanto à tradução de Knecht por escravo, ela induz uma confusão entre a servidão originária e política que constitui o reconhecimento extorquido instaurado por ocasião do confronto e o estatuto económico e social do escravo (Sklave) nas sociedades antigas. Para mais, a interpretação de Kojève forma um

impasse acerca daquilo a que Hegel chama o espírito absoluto (a arte, a religião e a filosofia) e confere um privilégio excessivo àquilo a que chama o espírito finito. Enfim, o próprio Hegel ofereceu na Enciclopédia uma apresentação do combate pelo reconhecimento que proíbe fazer da «dialéctica do amo e do escravo» a matriz de uma interpretação do conjunto da sua obra: O combate pelo reconhecimento e a submissão a um amo são o fenómeno no seio do qual surgiu a vida em comum dos homens, como um começo dos Estados. […] Esse é o começo exterior, ou o começo no fenómeno dos Estados, não o seu princípio substancial519.

A «dialéctica do amo e do escravo» descreve sem dúvida a origem protohistórica da sociedade; ela não indica nem o princípio racional da relação política de subordinação, nem o modo de constituição da humanidade, em todo o caso na sua inteireza; pois esta, para Hegel, empenha toda a esfera do espírito, incluindo o espírito absoluto. 4) O sistema hegeliano é «a morada científica do espírito da restauração prussiana520»: esta tese é, para muitos, uma evidência. O Estado racional exposto na Filosofia do Direito seria uma espécie de apologia antecipada de uma Prússia autoritária, conservadora e belicista. As coisas são mais complexas. Berlim é decerto para Hegel, desde o fim da ocupação francesa, o «centro» da Alemanha em movimento521, por oposição à Áustria reaccionária de Metternich. Mas é antes de tudo porque, desde 1805-1806, a Prússia está na ponta do progresso social e político: a servidão é abolida, o ensino primário tornado obrigatório, os privilégios das antigas corporações restringidos e é estabelecido um regime de auto-administração das comunas. Humboldt dota a ciência com instituições prestigiosas e relativamente independentes: a Universidade e a Academia das Ciências. Enfim, a Prússia parece prestes a instaurar aquele regime constitucional que é para Hegel a expressão eminente do «direito eterno da razão522». O Estado que ele admira é, numa Alemanha em plena Restauração, um dos pólos de resistência das «ideias francesas», dos princípios de 1789. Ora, no próprio momento em que Hegel se une à Prússia, ela adopta, sob a pressão de Metternich, um curso francamente reaccionário. Desde a sua chegada a Berlim, onde a caça aos liberais está em pleno, Hegel acha-se inseguro. Não se opõe abertamente às medidas repressivas, mas tenta, no seu ensino, salvar o que possa ser salvo. Por exemplo, enquanto o rei da Prússia enterra a sua promessa de dotar o país de uma constituição (o que só

acontecerá em 1851), o Estado racional hegeliano é uma monarquia constitucional, pois ela é «a constituição da razão desenvolvida523». Num tempo em que a história parece fazer marcha-atrás, Hegel «[apega-se] a essa ideia a que o espírito do tempo deu ordem de avançar524». 5) A «malícia da razão» é um dos principais argumentos utilizados contra «o hiper-racionalismo hegeliano». Ela negaria a liberdade humana e justificaria os crimes cometidos em nome da razão histórica. Ora tal motivo aparece em Hegel não a propósito da história, mas na análise da produção material. Um texto de 1805-1806 apresenta assim o utensílio como a «malícia» que «eu interponho entre mim e a coisificação exterior»: graças à máquina, o homem «retira-se inteiramente do trabalho» e «deixa a natureza usar-se» a si mesma525. Do mesmo modo, a Lógica opõe à «violência» que é o uso do objecto para fins que lhe são estranhos a «malícia da razão», que consiste em que «o fim se ponha em relação mediata com o objecto, e intercale entre ele e este um outro objecto», o utensílio526. A malícia da razão participa portanto em primeiro lugar de uma reflexão sobre a mediação técnica. No entanto, é o uso desse tema na filosofia da história que foi retido pela posteridade. Uso parcimonioso, aliás: só se encontra nesse contexto uma ocorrência da expressão (seis no conjunto do corpus). Hegel diz: Não é a ideia universal que se expõe ao conflito, ao combate e ao perigo; ela mantém-se ao fundo, ao abrigo de qualquer dano. Pode chamar-se malícia da razão ao facto de ela deixar agir em seu lugar as paixões […]. A ideia paga o tributo da existência e da caducidade não por si mesma, mas através das paixões dos indivíduos527.

Tal como, no trabalho, o homem parece ausentar-se da sua actividade para melhor satisfazer as suas necessidades pela mediação das técnicas, também «a ideia», a razão objectiva, deixa confrontarem-se as paixões humanas (incluindo as dos «grandes homens», cujo interesse particular coincide pontualmente com o teor objectivo do espírito do tempo) para colher o produto delas. A malícia da razão significa pois que o alcance histórico das acções humanas nunca é redutível às motivações subjectivas dos actores; que historiador não adopta este princípio? Este motivo não implica o sacrifício da liberdade sobre o altar da necessidade histórica; ele sublinha que as paixões humanas, que são factores de alienação, podem também servir para o «progresso na consciência da liberdade». A bem dizer, não é a malícia da razão, aplicação moderadamente audaciosa

de um modelo técnico no campo da interacção humana, que faz problema. O que parece bem mais aventuroso é a tese de que haja razão na história. Inverificável, ela supõe uma concepção da racionalidade que transborda do quadro habitual em que esta é pensada: uma racionalidade objectiva (a do «espírito objectivo») de que a historicidade é a dimensão constitutiva. A razão nem é uma simples faculdade do espírito humano, nem o encenador oculto do drama histórico; ela é simultaneamente «razão que pensa» e «razão que é», exercício de capacidades discursivas subjectivas e instauração objectiva da racionalidade de práticas e de instituições. Todavia, a razão hegeliana não é apenas simultaneamente subjectiva e objectiva, ela é subjectiva-objectiva: para além da subjectividade (a razão humana) e da objectividade (a razão histórica), ela releva na verdade do espírito absoluto, do qual a filosofia é a expressão consciente. Só esta última pode afirmar que há razão na história. Longe do fantasma totalitário ao qual é frequentemente reduzida, a malícia da razão releva de uma concepção do desenvolvimento histórico da racionalidade que se enraíza ela própria na não-historicidade do pensamento: Sob a relação da história lidamos com o que foi e com o que é, mas em filosofia não se trata apenas do que foi ou do que será, mas do que é e do que é eternamente: da razão, e com ela já temos para fazer quanto baste528.

6) Hegel, diz-se, é o pensador do fim da história. Ora, esse tema raramente aparece nos seus escritos, e tem neles um sentido sensivelmente diferente daquele que se lhe atribui. Antes de mais há que prevenir um mal-entendido. A palavra «fim» pode significar o termo (Ende, em alemão) ou o fito (Zweck): um fito objectivo, e não aquele que seja perseguido por alguém. Não se encontra quase nenhuma evocação de um termo da história em Hegel. Ele diz efectivamente que a Ásia e a Europa são «o começo e o fim [Ende] da história do mundo529». Mas «fim» não significa evidentemente que não se passe mais nada: o fim da história não é o fim do mundo! Hegel quer antes dizer que a história tem, para o filósofo, um telos que corresponde àquilo a que ele chama o Estado moderno, tal como ele é instaurado na Europa pós-revolucionária. Só tal convicção lhe permite escrever que a Europa é o «Ocidente absoluto530». Que haja um Ocidente e um Oriente absolutos, que a terra não seja historicamente redonda531, que a história, que não tem termo empírico, tenha um «fim último» objectivo: isso releva da especulação filosófica, não de uma constatação. De resto, para quem há uma história do mundo, senão para o

filósofo? O postulado que a filosofia projecta sobre a história é claramente o da racionalidade. O tema do fim da história não exprime portanto senão essa «parcialidade para com a razão» de que o filósofo deve fazer prova, tal como o juiz é animado por uma parcialidade para com o direito532; é por isso que o «fim último do mundo» é, para além do Estado moderno, «o pensamento tal como ele se apreende a si mesmo»533. O sistema A ideia de sistema está no centro da filosofia moderna, singularmente desde Kant. O que é próprio de um sistema científico é que os conhecimentos estejam nele organizados segundo um «conceito racional» que determina «o fim e a forma do todo»534. Mas, para os pós-kantianos, a sistematicidade não concerne apenas o mero modo de exposição; ela exprime o carácter autofundador da filosofia. Seguindo essa concepção forte da sistematicidade, Hegel faz da apreensão da totalidade («o verdadeiro é o todo») a pedra de toque da liberdade do saber: a «ciência do absoluto é essencialmente sistema» porque «o verdadeiro não o é senão enquanto totalidade», e a «necessidade» da sua organização é a própria expressão da «liberdade do todo»535. Essa preocupação de sistematicidade não é incompatível com a do concreto: o pensamento hegeliano combina os interesses especulativos mais elevados e a atenção às realidades comuns. É o próprio Hegel que concebe ambiciosos programas metafísicos e que lê os economistas e os historiadores ou se interessa pelo destino da Alemanha. Esse sistema do real, essa Realphilosophie na qual ele trabalha não deve ser o seu sistema, mas o sistema da filosofia, que deve pensar na sua totalidade (natural e espiritual) a dialecticidade do real. É preciso atribuir um nome e achar um lugar para aquilo que permite pensar «a identidade da identidade e a não-identidade536»: esse nome será o conceito, e esse lugar, a lógica. O prefácio da Fenomenologia do Espírito expõe essa compreensão do sistema como filosofia do conceito: «A figura verdadeira na qual existe a verdade não pode ser senão o sistema científico desta537.» Mas, por o conceito ser um processo dialéctico que inclui o momento da negatividade, a Fenomenologia propõe uma concepção dinâmica da sistematicidade, opondose à representação comum de um acabamento do saber. O sistema não é um «círculo que repouse fechado em si mesmo538»; ele é antes «o devir de si mesmo539». Essa circularidade dinâmica exprime-se no carácter subjectivo do

processo de verdade: «Aquilo de que tudo depende […] não é de apreender e exprimir o verdadeiro como substância, mas de o apreender e de o exprimir enquanto sujeito540.» Mas o sujeito não é a subjectividade finita (humana). A subjectividade é antes de mais a propriedade do conceito enquanto produção de si, e não de uma substância, ainda que ela fosse pensante. Esta última é antes uma imagem mutilada da verdadeira subjectividade. Conceito, sujeito, sistema: estas determinações formam corpo. Há que acrescentar-lhes o termo que procura unificá-las, o espírito: Que o verdadeiro seja efectivo apenas como sistema, ou que a substância seja essencialmente sujeito, está expresso na representação que enuncia o absoluto como espírito541.

É porque o absoluto é espírito que o verdadeiro não pode dizer-se a não ser como sistema. Mas o que se deve entender por espírito? É ao redigir a Fenomenologia que Hegel se apercebe da necessidade de superar uma concepção estritamente consciencial do espírito, o que lhe permite identificar a «ciência» (o sistema) e o «espírito que se capta como espírito». O sistema da ciência é a explicitação pelo espírito do seu próprio conceito. Círculo de círculos, o sistema acolhe a contingência no que esta tem de aparentemente irredutível ao conceito. Mas a contingência não é a liberdade; convém portanto justificar também a ligação necessária da necessidade e da liberdade. A Lógica apresenta tal ligação como aquilo que há de mais difícil para pensar. A transição da substância para o conceito, da «lógica objectiva» para a «lógica subjectiva», descreve a constituição da liberdade no próprio seio da necessidade. A necessidade não é suprimida, mas aufgehoben, elevada pela sua superação à sua significação verdadeira; a um tempo estabelecida como necessidade e ordenada para a livre processualidade do conceito. Mas se «a verdade da necessidade é a liberdade», e se esta última é a mais alta determinação do conceito, então o próprio sistema deve ser entendido como dinâmica de autoprodução da verdade. O sistema não é aberto no sentido em que seria indefinidamente revisível: há apenas um sistema. Mas esse sistema está em processo. Um tal processo não pode fechar-se num ponto qualquer, e é por isso que a verdade do sistema se joga em cada um dos seus momentos. O absoluto hegeliano é utópico: ele não reside em parte alguma, embora as suas expressões sejam ordenadas pelo movimento do conceito. A circularidade do saber sistemático é a manifestação última da capacidade deste para engendrar a sua própria alteridade: no termo da Lógica, a ideia «despede-se livremente de si

mesma542» para se fazer natureza, «ideia na forma do ser-outro543». É na completa alienação que ela faz prova da sua liberdade: o conceito demonstra a sua potência ao reconhecer-se num elemento de radical alteridade. A Enciclopédia executa o programa de um sistema que expõe o ponto de vista, não de um sujeito singular (isso seria um sistema), mas do espírito captado como dialéctica da constituição de si: Por sistema, entendemos falsamente uma filosofia provida de um princípio limitado, diferente de outros princípios; pelo contrário, o princípio de uma filosofia verdadeira é o de conter em si todos os princípios particulares544.

As ciências positivas nunca são plenamente ciências: não porque sejam positivas – é a garantia da sua fecundidade –, mas porque são «sem sistema», ordenadas de um ponto de vista regional. Isso é ainda mais verdadeiro quanto às filosofias que correspondam a um «princípio limitado»; elas são visões sobre o absoluto, não o saber do absoluto. A filosofia não está ordenada a um princípio, ela é o sistema de todos os princípios. Não há portanto senão uma filosofia da qual os sistemas particulares são os momentos, no sentido simultaneamente lógico e cronológico do termo. Hegel identifica a sua filosofia com essa filosofia una de que as filosofias são apenas aspectos parciais? Por um lado, pela sua concepção do sistema, ele deve identificar o seu pensamento (que desde logo não é o pensamento do indivíduo Hegel) com a ciência do absoluto: pois é somente do ponto de vista da totalidade que se pode definir o verdadeiro significado da sistematicidade do saber. Mas uma tal visão de um acabamento hegeliano da filosofia interromperia o dinamismo processual de uma razão que se instaura na história. O sistema, para responder à definição dinâmica que dele oferece Hegel, não pode concluir-se sem deixar de ser: ele está sempre aberto ao evento de pensamento. É esse o dilema fecundo do hegelianismo: ele não pode, e no entanto não pode deixar de, colocar-se como última figura da filosofia. JEAN-FRANÇOIS KERVÉGAN 502 Primeiros Escritos. 503 Notas e Fragmentos. Iena, 1803-1806. 504 Princípios da Filosofia do Direito. 505 Comparar com Hegel, Princípios da Filosofia do Direito: «O que é racional é efectivo; e o que é

efectivo é racional.» 506 Enciclopédia das Ciências Filosóficas, 1, § 6, Rem. 507 Ciência da Lógica, 1. 508 Ibid., 2, 6. 509 Enciclopédia, 1, § 142. 510 Ibid., 1, § 6. 511 Fenomenologia do Espírito. 512 Lições sobre a História da Filosofia, t. 7. 513 Ciência da Lógica, 3. 514 Ibid. 515 Ibid. 516 História da Filosofia, t. 7. 517 Princípios da Filosofia do Direito, § 31. 518 Enciclopédia, 1, § 81-82. 519 Ibid., 3, § 433. 520 R. Haym, Hegel et son temps, trad. francesa do original alemão por P. Osmo, Paris, Gallimard, 2008, p. 421. 521 Cf. Correspondência. 522 Escritos Políticos. 523 Enciclopédia, 3, § 542. 524 Correspondência, 2. 525 A Filosofia do Espírito. 526 Ciência da Lógica, 3. 527 A Razão na História. 528 Ibid. 529 Ibid.

530 Ibid. 531 Ibid. 532 Enciclopédia, 3, § 549. 533 A Razão na História. 534 E. Kant, Crítica da Razão Pura. 535 Enciclopédia, 1, § 14. 536 A Diferença dos Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling. 537 Fenomenologia do Espírito. 538 Ibid. 539 Ibid. 540 Ibid. 541 Ibid. 542 Ciência da Lógica, 3. 543 Enciclopédia, 2, § 247. 544 Ibid., 1, § 14.

Arthur Schopenhauer

Arthur Schopenhauer nasceu em Danzig em 1788. Em 1813, defende a sua tese Da Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente, em Iena, após haver estudado em Gotinga e em Berlim. O primeiro tomo da sua obra maior, O Mundo como Vontade e como Representação, surge em 1818, mas passa desapercebido. Schopenhauer qualifica-se para o ensino superior na Universidade de Berlim em 1820, mas os seus cursos são tão pouco frequentados que não tarda a abandonar a actividade do ensino. Em 1831, troca Berlim por Frankfurt, onde passa a residir definitivamente a partir de 1833 para se dedicar à escrita. Os seus escritos seguintes, Da Vontade na Natureza (1836), Os Dois Problemas Fundamentais da Ética (1841), bem como o segundo tomo de O Mundo como Vontade e como Representação (1844) foram tão confidenciais como os primeiros. Foi somente com a publicação dos Parerga e Paralipómena (1851) que Schopenhauer começou a beneficiar de um reconhecimento há muito esperado e largamente merecido. Morre em 1860 em Frankfurt. Schopenhauer procura reabilitar a filosofia crítica de Kant contra o idealismo especulativo desenvolvido por Fichte, Schelling e Hegel. Embora partilhe com estes o projecto de edificar uma metafísica fundada num princípio primeiro, distingue-se por conservar o criticismo do pensador de Königsberg e por não atribuir à sua metafísica a ambição de ser absolutamente válida. Segundo ele, a metafísica é tributária de uma interpretação da realidade empírica que, não sendo infalível, pode ser revista e corrigida. A sua obra maior divide-se em quatro partes que correspondem a quatro disciplinas filosóficas: teoria do conhecimento, metafísica da natureza, metafísica do belo (estética) e metafísica dos costumes (ética). Estas disciplinas não formam a bem dizer um sistema no qual os elementos do fim dependam dos do início, mas antes um organismo onde todas as partes se explicam mutuamente. Enquanto a primeira e a segunda partes descrevem simplesmente o mundo como ele é, as duas últimas indicam a via a seguir para poder superar

o sofrimento que nele reina. O pensamento de Schopenhauer culmina assim numa doutrina da salvação que não assenta na existência de uma entidade divina. Um único e mesmo pensamento anima essas quatro partes: «Este mundo em que vivemos e existimos é ao mesmo tempo e em todo o seu ser, por toda a parte vontade, por toda a parte representação545.» Na sua teoria do conhecimento, Schopenhauer liga-se no essencial ao idealismo transcendental de Kant, ao afirmar que o espaço e o tempo são o que é próprio, não da coisa em si, mas dos fenómenos. Na medida em que o conhecimento da realidade empírica depende do sujeito, e mais especialmente das formas a priori do conhecimento que ele porta em si, a realidade é apreendida como fenómeno, ou antes, como representação: «O mundo é a minha representação. – Esta proposição é uma verdade para todo o ser vivo e pensante546.» O domínio da representação possui duas características: o sujeito e o objecto permanecem sempre um diante do outro numa correlação a priori; ele está sempre submetido ao princípio de razão suficiente. Segundo este princípio, a razão suficiente de cada objecto encontra-se num outro objecto. Schopenhauer distingue quatro classes de objectos, às quais correspondem quatro formas de razão suficiente: a do devir, a do conhecimento, a do ser e a da vontade. Schopenhauer retém do idealismo kantiano a concepção do espaço e do tempo, mas abandona a sua doutrina das categorias. Está convencido de que somente uma das doze categorias kantianas é necessária para constituir um objecto empírico, a da causalidade, na qual se funda igualmente o princípio de razão suficiente do devir. Schopenhauer mostra que essa categoria tem por função projectar no espaço as sensações do sujeito e transformá-las em intuição do objecto empírico. Parece assim que a intuição é qualquer coisa de intelectual. Além disso, a categoria da causalidade permite conhecer a ligação que existe entre os eventos. Estes últimos dependem do princípio de razão suficiente do devir: «Quando surge um novo estado de um ou vários objectos, este deve ser precedido por um outro ao qual ele sucede segundo uma regra, ou seja a de que todas as vezes que o primeiro exista, o segundo também547.» Uma vez que este princípio vale a priori – e portanto universalmente –, não é de espantar que Schopenhauer adopte uma posição determinista em relação à realidade empírica. De maneira efectivamente característica, Schopenhauer associa as suas reflexões transcendentais a observações empíricas saídas das ciências da

natureza. Chega mesmo a sublinhar que esses dois tipos de abordagem – «subjectiva» e «objectiva» – são ambos legítimos e se completam mutuamente. Daí decorrem naturalmente uma série de tensões que Schopenhauer procura superar acabando por atribuir a precedência ao método transcendental – que inclui o do seu próprio idealismo. Ao invés de Kant, Schopenhauer crê que, até um certo grau, a coisa em si pode ser conhecida. Sublinha contudo que o conhecimento da coisa em si não é directo: não sendo dada numa intuição, a coisa em si não pode ser deduzida senão no termo de uma interpretação da realidade empírica. Para aceder à coisa em si, Schopenhauer estabelece, no quadro da sua metafísica da natureza, uma correlação entre os movimentos singulares do corpo e as pulsões afectivas e desejantes que ele considera como actos da vontade. Uma vez que estes últimos se exprimem na atitude corporal do homem, Schopenhauer interpreta o corpo como fenómeno, ou antes como «objectividade» da vontade. Indo mais longe, identifica esta com a coisa em si. Finalmente, Schopenhauer aplica essa conclusão ao conjunto do domínio da realidade empírica – que se revela então não ser mais do que a manifestação fenomenal da coisa em si, interpretada como vontade. Não se deve tomar à letra o discurso relativo à identidade da coisa em si com a vontade. Schopenhauer não considera que haja no fundamento da realidade empírica actos conscientes da vontade, mas simplesmente que os fenómenos da natureza são determinados por uma força metafísica cega, que não conhece nada. Esta manifesta-se tanto no homem como nas plantas, nas bestas, ou na natureza inanimada. Uma vez que a coisa em si é fundamentalmente diferente da representação, ela não é nem espacial nem temporal, ela não está também submetida ao princípio de razão suficiente. Por outras palavras, ela é sem razão, ela é livre. Decerto que a vontade é efectivamente o que determina a finalidade, a teleologia que se manifesta na realidade empírica, mas Schopenhauer tem o cuidado de indicar que não há um fito último que fosse o cumprimento da realidade e ao qual a vontade estivesse submetida. Schopenhauer vê na vontade como coisa em si a «única realidade verdadeira, o único elemento original e metafísico548». É portanto partindo desse princípio que ele procura explicar o mundo como representação. A bem dizer, ele não se contenta em interpretar a realidade empírica como uma simples objectivação da vontade: ele insere, entre os fenómenos singulares e a vontade como coisa em si, as Ideias platónicas que representam actos intemporais nos quais a vontade se objectiva em diferentes níveis. Estes são as forças da natureza, o carácter

específico das plantas, o dos animais, ou o carácter individual do homem. Enquanto a teoria do conhecimento impede a metafísica da natureza de soçobrar no dogmatismo, esta completa, com o seu realismo ontológico, o idealismo transcendental presente na sua teoria do conhecimento. Não obstante, Schopenhauer não tem dúvida alguma de que o conhecimento, na perspectiva da metafísica da natureza, não representa senão um fenómeno derivado e submetido ao reino da vontade. À vista do sofrimento que prevalece na realidade empírica, Schopenhauer considera que o homem necessita de ser salvo. Uma das duas vias para superar o sofrimento reside na sua estética, e mais particularmente na sua metafísica do belo. Nesta perspectiva, as Ideias platónicas ocupam um lugar central. Segundo Schopenhauer, elas são representações intuitivas – ainda que universais – nas quais a vontade se objectiva e das quais participam os fenómenos singulares, ou seja os objectos empíricos. Ao invés destes, as Ideias não estão submetidas às formas da intuição do espaço e do tempo nem à categoria da causalidade. Schopenhauer defende uma concepção segundo a qual o sujeito – e mais especialmente o génio – é capaz de ultrapassar o conhecimento empírico e de apreender as ideias num modo contemplativo. Quando aí chega, o sujeito liberta-se do reino da vontade e experimenta-se como puro sujeito do conhecimento, desligado da realidade empírica. Schopenhauer vê na vontade o fundamento do sofrimento; em consequência, ele apresenta a contemplação estética como uma forma de salvação, embora limitada no tempo. A tarefa do artista consiste em contemplar as Ideias e em torná-las acessíveis àquele que esteja na presença da obra de arte. Nesta perspectiva, ele mostra que em cada uma das artes – elas organizam-se hierarquicamente desde a arquitectura e a arte dos jardins até à poesia, passando pela escultura e pela pintura – domina uma Ideia determinada. A música, segundo Schopenhauer, brota de um lugar privilegiado, porque ela não exprime uma Ideia, mas a própria vontade. O pensamento de Schopenhauer culmina na sua ética, e mais particularmente na sua metafísica dos costumes. Ele, que adopta em relação à realidade empírica uma posição determinista, desenvolve, ao contrário de Kant, uma ética descritiva e não prescritiva. Afirma assim que «o eticista […] deve contentar-se em explicar e em interpretar o que é dado, portanto aquilo que é ou acontece realmente, para chegar a concebê-lo549». Schopenhauer concede porém que a liberdade existe na medida em que o carácter do homem resulta de

uma escolha que se produz na realidade metafísica e não empírica. Ele explica dessa maneira o facto de o homem se tornar responsável pelos seus actos. Tal como Hume, Schopenhauer considera que as acções egoístas são más ao passo que as acções altruístas são boas. O fundamento das acções altruístas reside segundo ele na piedade, que é o sentimento pelo qual o sujeito reconhece intuitivamente que o outro, aquele que está diante de si, é seu semelhante, uma objectivação da vontade como coisa em si. Compreender que, metafisicamente, ele é apenas um com o outro, leva o sujeito a reinvestir a sua própria vontade e a dirigi-la em favor do outro. Isso produz-se por exemplo quando o sujeito deixa de ser nocivo ao outro, e com mais forte razão quando vai em seu auxílio. Essas duas acções correspondem, segundo Schopenhauer, às virtudes da justiça e do amor da humanidade. Schopenhauer está persuadido de que, na realidade empírica, os aspectos negativos levam a melhor sobre os aspectos positivos. Desenvolve uma visão pessimista do mundo, que resume numa fórmula antileibniziana: o homem vive no pior dos mundos possíveis. Segundo Schopenhauer, se a realidade empírica está fundamentalmente marcada pelo sofrimento, é porque assenta na vontade, pulsão irracional e sem fito, que jamais pode ser perduravelmente satisfeita. Enquanto a afirmação da vontade arrasta consigo a continuação do sofrimento, a negação da vontade põe-lhe fim. Com ela, o homem supera a realidade empírica e atinge a salvação. A par do agir virtuoso, Schopenhauer considera a ascese e a imersão mística como vias que conduzem à salvação. Fazendo isso, o homem deixa para trás de si o mundo como representação e penetra no nada: O que resta após a supressão total da vontade é efectivamente o nada. Mas pelo contrário, para aqueles que converteram e aboliram a vontade, é o nosso mundo actual, este mundo tão real com todos os seus sóis e todas as suas vias lácteas, que é o nada550.

Se é verdade que a filosofia de Schopenhauer foi objecto de um vivo interesse a partir de meados do século XIX, ela não fez escola. Outros pensadores adoptaram alguns dos temas de Schopenhauer, que seguidamente desenvolveram por sua conta. A este respeito, podem citar-se os nomes de Nietzsche e de Freud, mas não são os únicos: o neokantismo deve igualmente a Schopenhauer muitas das suas inspirações essenciais. Em compensação, o pensamento de Schopenhauer teve importantes repercussões fora da filosofia, nomeadamente entre os escritores (Wilhelm Busch, Thomas Mann) e os músicos (Richard Wagner).

PETER WELSEN 545 O Mundo como Vontade e como Representação, I. 546 Ibid. 547 Da Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente. 548 Da Vontade na Natureza. 549 Os Dois Problemas Fundamentais da Ética. 550 O Mundo como Vontade e como Representação, I.

John Stuart Mill

John Stuart Mill (1806-1873) é o filósofo inglês mais importante do século XIX. De um ponto de vista histórico, a sua interpretação das correntes empirista e liberal inglesas é tão importante quanto a de John Locke. No entanto, a abordagem de cada um difere sensivelmente no seio dessas correntes. Enquanto Locke é o promotor do liberalismo fundado nos direitos naturais, Mill apela ao princípio utilitarista da felicidade geral para defender o conceito de liberdade. É difícil hoje em dia aferir a autoridade intelectual e moral que Mill exerceu na sua época. Nesse ponto podemos compará-lo a Hegel. Ambos fruíram até ao fim da sua vida de uma grande notoriedade, que declinou subitamente após a morte sem que por isso se tenha efectivamente dissipado; e é apenas lentamente, mas seguramente, que se reabilita o pensamento dos dois hoje em dia, quando nos dignamos debruçar-nos sobre as doutrinas do século XIX. Lida segundo os nossos critérios, a obra de ambos abrange numerosos domínios, e a de Mill ultrapassa as fronteiras da filosofia: toca na economia política, na história e nos estudos culturais, na teoria política e na efectivação desta; contém além disso numerosos desenvolvimentos sobre a política, a moral e a estética do seu tempo. A obra de Mill instaura-se porém a partir de um nexo filosófico bem determinado. Mill foi atingido por dois eventos que dominaram a paisagem política e intelectual da sua juventude: a Revolução Francesa e o romantismo alemão. Essas duas alterações radicais assinalaram o advento de uma verdadeira tomada de consciência histórica no pensamento do século XIX, que se caracteriza pelo aprofundamento do conceito de consciência de si e por um renovado interesse acerca do carácter histórico e mutável da natureza humana. Tal como Hegel, Mill vê a história humana como um progresso em direcção à liberdade, processo que tanto opera na vida dos indivíduos como ao nível das normas sociais. No entanto, Mill não renuncia aos fundamentos teóricos dos seus predecessores das Luzes. Segundo ele, todo o conhecimento tem por base a experiência; os nossos desejos, as nossas aspirações e as nossas crenças são os produtos de leis psicológicas de associação. Enfim, de acordo com Jeremy

Bentham, o critério do bem é a maximização da soma de felicidade de todos os que a ela estão aptos. Mill procura pois conciliar as aquisições das Luzes e o romantismo. Como recorda na sua Autobiografia, não participou no movimento antiLuzes: «Mas eu segurava firmemente um lado da verdade enquanto apanhava o outro… A palavra mestra de Goethe, a “multiplicidade”, era a que eu de todo o coração teria feito minha nessa época551.» É um aspecto importante e digno de interesse da obra de Mill: reconciliar uma epistemologia e uma ética sobriamente fundadas num conhecimento preciso do homem com o idealismo romântico do século XIX e as suas ideias morais. Em epistemologia, Mill é um empirista radical. Expõe a sua teoria no seu Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva de 1843. Tal como Locke e Kant antes dele, reconhece a existência de uma classe de proposições que são a priori porque desprovidas de todo o conteúdo informativo. São aquelas a que Kant chama «analíticas». Mas Mill dá delas uma definição bem mais precisa ao fazer esta assentar numa semântica filosófica elaborada. A sua definição rigorosa das condições nas quais uma proposição é desprovida de conteúdo permite-lhe afirmar – contra Kant – que não é só a matemática que contém proposições sintéticas, mas também a própria lógica. E, ainda contrariamente a Kant, Mill sustenta que nenhuma proposição sintética é a priori. Segundo ele, a lógica e a matemática expõem as leis mais gerais da natureza; e, como toda a ciência, elas são fundadas na indução a partir da experiência. Considera-se que os princípios da lógica e da matemática são a priori porque a ideia de que eles possam ser falsos parece inconcebível. Mill reconhece que tal convicção se baseia na impossibilidade de os concebermos de outro modo na imaginação. Se devemos explicar tais factos com o auxílio de uma teoria associacionista, segundo Mill não é menos justificado fundar proposições lógicas e matemáticas nesses factos. Em compensação, toda a justificação desse procedimento é necessariamente indutiva. Que sucede à natureza e ao estatuto da indução? A forma fundamental da indução é a generalização a partir da experiência. Mill desinteressa-se das objecções cépticas que concernem essa forma de inferência; quando se produz uma inferência, procede-se comummente por generalização a partir da experiência, mesmo quando é à inferência que o exame se refere. Não podemos nem devemos dizer mais nada para legitimar tal procedimento. O objectivo é mostrar como essa forma elementar de indução se acha reforçada pela sua capacidade de estabelecer regularidades, e como ela funda outros métodos de

raciocínio indutivo capazes de desvendar uma regularidade onde a mera indução o não poderia fazer. O edifício da ciência, segundo Mill, assenta apenas em duas disposições elementares e fundamentais: a primeira consiste em fiarmo-nos na memória, e a segunda em generalizar a partir da experiência. Mais precisamente, Mill recusa a ideia de que tenhamos uma hipótese por verdadeira (e não simplesmente por «útil») devido ao seu poder explicativo. Com efeito é sempre possível encontrar uma explicação igualmente satisfatória de um conjunto de dados com outras tantas hipóteses. Esta posição tem uma consequência importante para a metafísica de Mill, que ele expõe na obra de título pouco sedutor A Filosofia de Hamilton (1865). Na medida em que o conhecimento dos objectos que supomos exteriores à consciência é o efeito desses objectos sobre a nossa consciência, Mill conclui que tais objectos não são mais do que «possibilidades permanentes de sensações». Trata-se de uma variante do idealismo, embora ela difira do idealismo kantiano e do dos seus sucessores. Este idealismo visa com efeito um objectivo mais neutro: Mill pretende demonstrar como o mundo pode ser construído fenomenalmente e no entanto ser estudado cientificamente como um mundo natural de que nós próprios fazemos parte. Ele é o primeiro pensador da linhagem empirista e pragmatista a adoptar o caminho fenomenalista que Rudolf Carnap e Bertrand Russell seguirão por seu turno. Durante muito tempo, o fenomenalismo de Mill foi mais bem recebido que o seu empirismo radical em lógica e em matemática. É contudo o seu empirismo que parece haver resistido melhor. Em ambos os casos, a ressurgência do método hipotético – e por conseguinte do realismo em ciência – constitui a causa. Quando se combina essa concepção do método científico com a concepção holista e falibilista da indução, que é já a de Mill, resulta essa forma de empirismo que se encontra desenvolvida por Quine em meados do século passado: uma teoria que ainda hoje permanece influente a despeito das controvérsias que suscita. É incontestavelmente a parte moral e política da filosofia de Mill que tem mais influência hoje em dia. Da Liberdade e O Utilitarismo, publicadas respectivamente em 1859 e em 1861, são as suas obras mais conhecidas. Mill ter-se-ia regozijado certamente com isso, uma vez que dedicou a maior parte da sua vida à ética, à teoria política e à aplicação destas. Mas antes de chegarmos a essas obras, convém inquirir como as liga Mill à epistemologia que acabámos de apresentar. O filósofo americano John Rawls diz muito justamente de Kant e de Mill que

eles são «liberais compreensivos». A teoria liberal que os caracteriza baseia-se na ideia do livre-pensamento. Ora é esse o centro da sua epistemologia e é também, para ambos, o cerne do ideal liberal. O livre-pensamento só obedece às suas próprias regras; ou seja, ele funciona em virtude de princípios que descobre ao reflectir sobre a sua própria actividade. Ele não se submete a nenhuma forma de constrangimento exterior, quer se trate da fé, da revelação ou de qualquer outra autoridade. Embora não se submeta a nenhuma dessas formas de constrangimento, o livre-pensamento não está despido de preconceitos. Mill rejeita o «preceito impraticável» de Descartes: «Deve partir-se da hipótese segundo a qual nada foi afirmado com certeza até aqui552.» Como se disse acima, Mill não se interessa pelo cepticismo. O que se deve reter a propósito do livre-pensamento é que ele não precisa de estar desprovido de preconceitos (o que é impossível), mas deve conservar uma atitude de abertura crítica sobre o que é tido por conhecido, incluindo os métodos de raciocínio. Tais métodos podem ser experimentados ao examinar minuciosamente a maneira pela qual se raciocina, e ao determinar quais são os princípios que, no raciocínio, resistem à reflexão. Esse tipo de prova sempre teve como ponto de partida o conjunto das crenças. Neste sentido, o livre-pensamento é sempre para si mesmo o seu próprio juiz. Como podemos a partir daí assegurar-nos de que ele atinja a verdade? Mill responderia que ele se justifica pelo seu próprio sucesso na prática, como mostra a história. Porque a história põe em evidência não uma degradação mas um crescimento dos conhecimentos, e uma visão do mundo humanista e liberal. Resta saber, e é um problema filosófico de monta, se Mill responde verdadeiramente à pergunta. Segundo Mill, há que representarmo-nos e compreendermos diferentes povos e épocas da história. É uma lição que ele tira da herança alemã. Para circunscrevermos as normas elementares do pensamento, devemos inquirir a maneira como as pessoas pensam, e como elas estimam dever fazê-lo, de um duplo ponto de vista psicológico e histórico. Devem procurar compreender-se as atitudes normativas que elas manifestam nos seus pensamentos e nas suas acções. É por isso que o livre-pensamento é essencialmente dialógico, e sempre aperfeiçoável. São esses os dois aspectos salientes da defesa da liberdade de pensar e de debater levada a cabo por Mill. Se aplicarmos tal concepção ao domínio da ética, devemos concluir que o critério supremo de toda a conduta é a felicidade de todos considerada de maneira imparcial. O ponto de partida de Mill nessa matéria é que nós temos a

consciência de desejar. Ora uma introspecção atenta mostra que, todas as vezes que desejamos uma coisa por ela mesma, desejamo-la com a ideia de que ela trará prazer. Os bens que procuramos por eles mesmos são «partes» da felicidade. A concepção milleana do desenvolvimento do homem é crucial nesse ponto: só ao desenvolver perfeitamente as suas capacidades é que o homem alcança a felicidade na sua forma mais acabada. O critério do que é o mais acabado segundo Mill assenta num acordo reflexivo: as formas mais acabadas da felicidade são aquelas para as quais tendam homens cujo desenvolvimento permita experimentá-las completamente. Tudo isso se sustenta, mas não conduz à conclusão a que Mill pretenderia chegar: o critério da moral e da política é a felicidade total de todos, considerada de um ponto de vista imparcial. Mill não dispõe verdadeiramente de argumentos a favor desta última etapa; ele considera apenas que deve existir um tal critério, que deve ser imparcial e visar a simples soma do bem dos indivíduos. Por contraste, Mill faz prova de uma grande prudência quanto à relação entre esse critério e a moral comum. A sua concepção da moral está atenta à história e à psicologia, à importância da continuidade e da solidariedade sociais, ao carácter vago e plural das reivindicações de felicidade. Mantém-se distante dos esquemas dogmáticos de progresso, incluindo os esquemas utilitaristas. Mill insiste, e isso é notável, no facto de cada um dever desenvolver os seus próprios interesses e talentos para a felicidade de todos, de cada um dever viver a sua própria vida e perseguir os seus próprios fins. Para que a maioria alcance a felicidade, é preciso que cada um persiga os fins particulares que a si mesmo se atribuiu e não uma ideia abstracta da felicidade. Querer fazer a felicidade de todos de uma maneira desinteressada é certamente digno de admiração porquanto essa tarefa seja correctamente cumprida, mas essa não poderia ser uma obrigação moral. Mill demarca-se assim nitidamente do seu amigo e mentor, Augusto Comte: «A regra de ouro da moralidade, na religião do Sr. Comte, é a de “viver para outrem”[…] O Sr. Comte está inebriado de moralidade. Para ele, tudo se refere à moral, e não deve existir outro móbil senão o da moral553.» Não é persistindo no altruísmo que se cria a felicidade geral, mas edificando regras de justiça que reforcem a segurança e a liberdade dos indivíduos. Mill coloca-se na linhagem de Bentham e de outros pensadores das Luzes ao insistir no conceito de segurança. Porém, demarca-se nitidamente deles ao atribuir à liberdade um novo sentido.

O princípio que Mill defende no seu ensaio Da Liberdade estipula que a liberdade de agir tal como a entendemos não deve em caso algum ser limitada, enquanto não ultrapassar os interesses legítimos de outrem. A maior parte do ensaio compõe-se de uma explicação detalhada e de uma ilustração desse princípio. Mill não reivindica a originalidade do próprio princípio (encontramse aliás várias versões dele, e nomeadamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789). Mas enraíza esse princípio na sua teoria do desenvolvimento individual, e atribui-lhe um sentido específico no contexto democrático. A liberdade oferece as condições sociais necessárias ao desenvolvimento moral da cultura e do carácter, deixando aos indivíduos o poder de realizarem o seu potencial à sua maneira. Mill concede aos liberais franceses como Tocqueville que é sobretudo nas democracias que o talento, a criatividade e a energia estão ameaçados por um conformismo medíocre; mas, segundo ele, é ao defender a liberdade individual que se poderá erradicar tal ameaça. O aspecto que caracteriza o liberalismo de Mill, considerado do ponto de vista das actuais filosofias liberais, é o seu enraizamento numa epistemologia do valor objectivo, e numa ética teleológica – o que hoje em dia parece estranho. Os liberais contemporâneos procuram antes defender direitos que são neutros entre concorrentes concepções morais do bem. Muitos deles pensam assim que é necessário não fundarem o seu próprio liberalismo em qualquer concepção do bem. É isso que Mill recusa energicamente: para ele, o princípio da liberdade está fundado na «utilidade em sentido lato, que assenta nos interesses permanentes do homem na medida em que ele é um ser de progresso554». Embora muitos aspectos da sua concepção da «utilidade em sentido lato» pareçam erróneos, o quadro teleológico do seu pensamento continua a ser essencial para quem pense que uma defesa dos direitos humanos não fundada numa concepção do bem está votada ao fracasso. JOHN SKORUPSKI 551 Collected Works of John Stuart Mill, J. M. Robson et al. (ed.), 33 vols. Londres, Routledge, 1963-1991, I, p. 171. 552 Ibid., VII, p. 318-319. 553 Ibid., X, p. 335-336. 554 Ibid., XVIII, p. 224.

Søren Kierkegaard

Kierkegaard é considerado o pai da «filosofia da existência», por ter posto em evidência o facto de não se poder reduzir o eu a um cogito, sendo pelo contrário preciso concebê-lo como um cumprimento e um processo no qual a reflexão, mas também a imaginação, a livre decisão, as disposições afectivas, a preocupação e o interesse são momentos de uma importância decisiva. O seu esforço próprio não se referia portanto à filosofia, mas antes ao cristianismo que ele via posto em perigo pelo espírito do seu tempo. Enquanto mostrava o carácter de exigência de que o cristianismo se reveste para cada indivíduo, Kierkegaard procurava ao mesmo tempo descobrir a estrutura e o sentido da mobilidade da existência humana. Queria ser percebido como um «autor religioso555» e um reformador. Ao estabelecer uma distinção entre cristandade e cristianismo, Kierkegaard insurgiu-se contra o cristianismo aburguesado e rotineiro. A cristandade, caída ao nível de «caricatura556» e de «lamentável edição da doutrina cristã557», teria perdido as suas categorias e as suas distinções fundamentais. Tal como Sócrates, que introduzira a noção de «indivíduo» para despertar no homem a consciência de uma responsabilidade moral e assim «dissolver o paganismo», Kierkegaard utiliza essa categoria para «introduzir o cristianismo no próprio seio da cristandade»558. Kierkegaard toma igualmente Sócrates como modelo na sua maneira de comunicar. Por não se dever somente conhecer o que é especificamente cristão, mas vivê-lo e fazê-lo seu, não se pode simplesmente ensiná-lo. Quando importa que o interlocutor desenvolva uma relação livre, fundada no interesse, relativamente a tudo o que lhe é comunicado, a comunicação é necessariamente indirecta, plena de artifícios e de maiêutica. Deve então parecer aceitar-se o erro do interlocutor, «enganá-lo para o conduzir à verdade559». Para fazer isso, a ironia – enquanto fingimento e jogo ao serviço do sério – é indispensável. É esse conceito que confere aos escritos de Kierkegaard o seu carácter particular. O leitor deve reconhecer-se numa das diferentes formas de vida que eles propõem e ser assim levado a confrontar tal forma com a sua própria existência. Os pseudónimos que Kierkegaard se atribui enquanto autor ou

editor fictício garantem-lhe a distância necessária a uma apresentação audaciosa e lúdica. Para além dessa particularidade, é também preciso conhecer a sua biografia para lhe compreender os escritos, pois Kierkegaard reflecte e retoma neles numerosos episódios da sua vida para deles tirar uma ilustração da condição existencial. Kierkegaard nasce em 1813 em Copenhaga. O seu pai era oriundo de um meio modesto, mas fez fortuna ao tornar-se comerciante. Na infância, enquanto sofria de frio e de fome, amaldiçoara Deus. Esse pecado, ao qual se acrescentaram mais tarde outras faltas, fê-lo duvidar da sua salvação e tombar na melancolia. Crê disso poder preservar Søren ao dar-lhe uma severa educação religiosa, que porém só consegue torná-lo melancólico, com a consciência carregada de escrúpulos. Durante os seus estudos de Teologia e de Filosofia (1830-1841), Kierkegaard sente-se atraído pelo estetismo romântico. Por fora, leva a vida brilhante de um dandy e de um belo espírito, mas por dentro luta contra a sua melancolia e contra o cristianismo que chega por vezes a considerar como hostil à vida. Daí resultam inevitáveis conflitos com o pai. Pouco antes da morte deste (em 1838), reconciliam-se, no momento em que Søren se volta de novo sem reservas para o cristianismo. Após haver terminado os seus estudos com sucesso, Kierkegaard fica noivo de Regina Olsen em 1840, mas rompe o noivado quando crê ganhar consciência de que a sua melancolia e as faltas cometidas durante os estudos podem constituir um obstáculo ao casamento. Após uma curta estadia em Berlim, onde frequenta os cursos de Schelling, regressa a Copenhaga e publica, em 1843, A Alternativa, A Repetição, Temor e Tremor, em 1844 O Conceito de Angústia e as Migalhas Filosóficas, em 1845 Estádios no Caminho da Vida, em 1846 Pós-Escrito Definitivo e não Científico às Migalhas Filosóficas e em 1849 A Doença até à Morte. Ao mesmo tempo que faz aparecer essas obras sob pseudónimos, publica em seu nome os Discursos Edificantes e os Discursos Cristãos. Em 1845, Kierkegaard é alvo de ataques e de zombarias do jornal satírico O Corsário. Está persuadido de viver o destino de um mártir, como defensor solitário da verdade. Durante os últimos anos de vida, despende toda a sua energia numa polémica contra a Igreja dinamarquesa, antes de morrer em Copenhaga em 1855. Kierkegaard funda o seu pensamento da existência numa análise do espírito

do seu tempo. Como Nietzsche, chega à seguinte conclusão: é na «época da reflexão560» que toda a paixão se extingue e que a indolência se difunde entre os homens. O «surdo trabalho de sapa da reflexão561» enfraquece todos os valores e as instituições em deliquescência. O presente será assim o tempo da «dissolução562», do aplanamento no finito. A razão reduz-se a uma «prudência do quotidiano no sentido finito563». O «último homem» de Nietzsche que já não «lança» para além de si mesmo a «flecha do seu desejo564» corresponde à descrição que Kierkegaard oferece do pequeno-burguês. Com o seu carácter limitado, ele representa o «desespero da insensibilidade espiritual565». Tolhido pelos seus preconceitos, é levado a querer submeter tudo ao seu controlo. Recua perante a ideia de ter de se familiarizar – por imaginação e experiência de pensamento – com possibilidades que caiam fora do vulgar. O seu horizonte limita-se ao que é previsível, quotidiano. «O pequeno-burguês perdeu-se a si mesmo e a Deus. Pois para ficar atento a si e a Deus, a imaginação tem de arrancar o homem à atmosfera do provável, elevá-lo acima disso566.» O fenómeno da «massa», o homem gregário, é igualmente típico desta época: O temor dos malfeitores e das bestas ferozes obriga a viajar no deserto com grandes caravanas. Os indivíduos também têm hoje um certo horror à existência por ela estar abandonada por Deus; não ousam viver senão em grandes sociedades e juntam-se en masse567 uns aos outros para ainda assim serem qualquer coisa568.

Há «massa» desde que o homem seja levado pelo «temor dos homens569» a não se fazer notado, ainda que em todas as situações da vida ele se oriente em função dos outros. Estes últimos, por seu turno, orientam-se segundo a média, e é o nivelamento que, por toda a parte, se apodera de todos570. Com a máxima «como os outros571», os indivíduos crêem poder desligar-se de toda a responsabilidade e do peso da existência, ao passo que, na verdade, já não são eles mesmos. É na ciência que os contemporâneos desorientados buscam ao mesmo tempo um ponto de vantagem e uma protecção. Isso é particularmente verdadeiro para o sistema hegeliano. Este coloca-se bem acima do indivíduo: existir implica um devir. Está além disso ligado à mobilidade da história. Segundo Kierkegaard, a pretensão de Hegel de haver submetido – no sentido da mediação dialéctica – o devir à lógica é infundada: «Não pode haver sistema da existência572.» Tentar apreendê-la pelo pensamento sobre o devir do indivíduo e da história da humanidade fracassa, segundo Kierkegaard, perante o «absurdo» e o

«paradoxo». Ser chamado a determinar o próprio eu pelos actos que se escolheu – ainda que esse eu se revele somente nas escolhas a que procede –, ser entregue à morte que escapa a toda a previsibilidade, dever realizar a liberdade na base do que está já decidido pela facticidade: tudo isso mostra a estrutura paradoxal da existência. O cumprimento da existência requer então que o indivíduo «suspenda» o pensamento (na sua pretensão ao universal) e efectue o «salto» na «fé» – no sentido da confiança numa liberdade obtida pela graça divina e pela transparência a si573. No que concerne a história cristã da salvação, o paradoxo – e antes de tudo, o «paradoxo absoluto574» pelo qual Deus deve aparecer no tempo e sofrer o martírio da Cruz – opõe-se, segundo Kierkegaard, à tentativa hegeliana de reinterpretar essa história como um processo lógico e racional. A religião não se deixa «abolir» na ciência, como Hegel tenta fazer. O paradoxo não permite ter uma relação intelectual e distanciada com os conteúdos da fé. Ele suscita seja o «escândalo575», seja a fé, isto é uma relação interessada que empenha a própria existência e a maneira como esta se cumpre. Entre os fenómenos típicos da época, conta-se também o romântico. Diferentemente do pequeno-burguês, que Kierkegaard despreza, o romântico reconhece de bom grado a esfera do possível, do fantástico, do abissal, do ideal. Ainda que o romântico se considere como um ser único e cheio de espírito, segundo Kierkegaard ele carece precisamente de espírito e não pode ser ele próprio, uma vez que se perde no infinito. Ele já não consegue reintegrar a possibilidade e o ideal no factual. O carácter romântico manifestase como uma fraqueza que não quer estabelecer-se na realidade. O que há de exemplar e de grandioso no passado, o «herói», não aguarda que o admiremos576, mas que o imitemos. A repetição – diferentemente da atitude romântica, voltada para o passado – é o movimento «para diante» que deve conduzir o homem à imortalidade que lhe está prometida e que se posta diante dele577. A repetição reclama o reconhecimento do factual; ela exige que «nos inclinemos diante do que há de necessário em si mesmo578» e que nos confrontemos com o passado no cumprimento do «arrependimento579». Enquanto os pseudónimos cada vez diferentes iluminam de maneira crítica estes fenómenos da época, o conceito kierkegaardiano de existência desenha-se como um «correctivo», embora a bem dizer ele não surja no seio de uma elaboração sistemática nem de uma terminologia unificada. À «massa» opõe-se o «indivíduo», ao pequeno-burguês opõem-se o facto de «ser si» e o «espírito»,

à exaltação do romântico, a «repetição». Ao invés do pensador sistemático, que é pintado como uma figura cómica por colocar um abismo entre a vida e o pensamento, o «pensador da existência» surge como aquele que tem um «interesse infinito pela existência»580. Revela-se assim que a existência é algo de irrepresentável e que a tarefa do pensador da existência não pode ser a de responder em lugar dos outros à pergunta «Que significa ser um homem581?». O peso dessa pergunta, que recai sobre cada indivíduo, não pode satisfazer-se com uma resposta teórica. Determinar com precisão o que tem importância ou permanece secundário na vida própria de cada um não é assunto da pura intelectualidade. É apenas na própria existência, numa luta apaixonada, motivada pelo «cuidado582» da transparência a si que lá se chega. Esta última empenha não só o pensamento e a reflexão, mas também a imaginação, a disposição afectiva, a intuição e, sobretudo, o cumprimento da liberdade. É unicamente na decisão que se pode fazer a experiência de si, embora Kierkegaard transforme o «conhece-te a ti mesmo» em «escolhe-te a ti mesmo583»! A existência é um poder ser, uma arte para a qual cada um está dotado, pois não são o talento nem o génio que são decisivos, mas a paixão, a sinceridade e a seriedade. Existir requer um duplo movimento: o movimento da infinidade, no qual, pela reflexão e pela imaginação, se desvela o campo infinito das possibilidades e se descobre o ideal que deve ser seguidamente referido ao factual no movimento inverso da «concreção» e transposto nele. Existir significa escolher no seio do possível e determinar-se através de um «ou isto ou aquilo» sempre renovado. Tal escolha faz-se acompanhar pelo risco de falhar o seu próprio eu, o que se manifesta na angústia que Kierkegaard define como a «vertigem da liberdade584». O que nos pode ajudar a que não nos percamos numa qualquer possibilidade é conservar no espírito a finitude do eu e, por isso mesmo, o carácter de instantaneidade da escolha. A morte – que se sabe existir, embora se ignore quando sobrevém – é aquele «mestre que instrui a seriedade» que faz do tempo de que dispomos uma «penúria de tempo» e ajuda a cumprir o «trabalho essencial»585. O mesmo sucede quando se define a existência como uma «síntese» dos opostos: a existência é a síntese da possibilidade e da necessidade, da infinidade e da finitude, da alma e da carne, da eternidade e do tempo586. «Síntese» não significa aqui o automatismo da mediação hegeliana da tese e da

antítese, mas a unificação, que se deve realizar progressivamente, dos opostos que constituem o existente. O eu é portanto «uma relação que se refere a si mesma587». Isso significa igualmente que o indivíduo é sempre tocado por aquilo a que se determina, nomeadamente na sua maneira de ser afectado. O estado do eu é sempre um reflexo do acto pelo qual o eu se escolhe a si mesmo – quer essa escolha seja feliz ou não, consciente ou não. N’A Doença até à Morte, as diferentes formas do desespero são determinadas e analisadas como um «desacordo588» nessa relação que é o próprio eu. Porque a relação com o eu é ao mesmo tempo uma «relação estabelecida» por Deus589, a relação feliz, liberta do desespero, não se cumpre numa autonomia absoluta, mas somente na fé590. A teoria dos três estádios apresenta a mesma orientação na direcção do religioso: Há três esferas da existência: as esferas estética, ética e religiosa […]. A esfera estética é a esfera da imediatez, a esfera ética é a da exigência […], a esfera religiosa, a do cumprimento591.

Não existe passagem contínua entre os estádios singulares. É somente pelo «salto», compreendido como um resoluto abandono de tudo o que precede, que se cumpre a elevação. O pensador da existência pode, ao indicar os limites dos estádios inferiores, despertar e promover as condições do salto. Viver de maneira estética é procurar cumprir-se na fruição. Pertence à esfera estética aquele que, como Don Juan, busca a fruição imediata, o epicurista refinado que frui de si mesmo na sua fruição, o cínico que frui da sua indigência, o romântico que procura tirar fruição do seu «mal do mundo», o pequeno-burguês que frui da suficiência que lhe é trazida pela sua insensibilidade espiritual, o pensador sistemático que frui da certeza que encontra no saber. Mas como a fruição tem sempre um objecto, o homem estético deve temer que as condições da sua fruição lhe sejam retiradas, quando sobrevêm por exemplo a velhice, a doença, ou acidentes exteriores. Além disso, a sua vida torna-se monótona. Os paroxismos sucedem-se sem poderem produzir nenhuma continuidade sensível. É na melancolia, no aborrecimento e no desespero que se reflecte o vazio de uma vida unicamente voltada para a busca da fruição. A esfera ética, pelo contrário, funda-se na escolha e na liberdade, no facto de ser resolutamente si mesmo, como foi o caso de Sócrates, o «mestre da

ética592». Os limites deste estádio são os seguintes: face à pretensão ética, a não-conduta é experimentada como uma falta que o ético não pode expiar com os seus meros recursos. Só o movimento da infinidade está ao seu alcance. Mas pode suceder que certas condições causem ainda obstáculo à realização do ideal escolhido. Tais limites remetem para a esfera do religioso, cujo «mestre» é o Cristo593. No religioso, a falta, através do momento do «perante Deus594», torna-se pecado, e este, conformemente à Revelação, torna-se estado a partir do qual o homem enquanto tal se deve compreender: pelo pecado original, ele caiu na «não-verdade595», e distanciou-se de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o religioso conhece as categorias do perdão (pelo sacrifício do filho de Deus) e da graça (pela crença de que junto de Deus nada é impossível). É assim que, para Kierkegaard, o homem não pode ser ele próprio senão na fé. RAINER THURNHER 555 Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor. 556 Ibid. 557 A Doença até à Morte. 558 Ponto de vista, op. cit. 559 Ibid.; cf. Sobre a Minha Obra de Escritor. 560 A descrição dessa época encontra-se em especial em Um Balanço Literário. 561 Um Balanço Literário; Ponto de Vista. 562 Ponto de Vista. 563 Pós-Escrito Definitivo e não Científico às Migalhas Filosóficas, II. 564 Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, I, Prólogo, § 5. 565 A Doença. 566 Ibid. 567 Em francês no texto original de Kierkegaard. 568 Pós-Escrito, II. 569 A Doença.

570 Um Balanço. 571 A Doença. 572 Pós-Escrito, I. 573 Pós-Escrito, I e II; A Doença. 574 Pós-Escrito, I. 575 A Doença. 576 Sobre a «admiração deslocada» que pensa poder dispensar-se do ético, cf. Pós-Escrito, II. 577 A Repetição; O Conceito de Angústia. 578 A Doença. 579 A Alternativa. 580 Pós-Escrito, II. 581 Ibid.; Pós-Escrito, I. 582 A Doença. 583 A Alternativa. 584 O Conceito de Angústia. 585 Sobre Um Túmulo, in Discursos Edificantes 1844-1845. 586 O Conceito de Angústia; A Doença. 587 A Doença. 588 Ibid. 589 Ibid. 590 A Doença. 591 Estádios no Caminho da Vida. 592 Migalhas Filosóficas. 593 Ibid. 594 A Doença. 595 Migalhas Filosóficas.

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche nasceu em Röcken, na Saxónia, a 15 de Outubro de 1844. Após a morte de seu pai, pastor protestante, a sua mãe, a sua irmã Elisabete e ele próprio vão morar para Naumburgo. Uma vez terminados os seus estudos secundários em Pforta, Nietzsche segue a partir de 1864 dois semestres de estudos na Universidade de Bona, antes de ir para Leipzig. Primeiramente inscrito em Teologia, escolhe seguidamente estudar a Filologia. Em 1869 obtém a cátedra de Filologia Clássica na Universidade de Basileia. Em 1876, o seu estado de saúde força-o a demitir-se da universidade. A sua demissão tornar-se-á efectiva em 1879; a partir dessa época, começa uma vida de fugitivus errans que o leva a estadias na Suíça, em Itália e em França, procurando em vão recobrar a saúde e subsistindo apenas graças a uma modesta pensão. No início de 1889, em Turim, Nietzsche cai na loucura. Após um internamento num asilo de Iena, é confiado à mãe, em Naumburgo. Aquando da morte desta, em 1897, a sua irmã Elisabete quer que ele vá para Weimar, quando Nietzsche já não passa de um corpo inerte e inconsciente. Foi com efeito para essa cidade que Elisabete fez transferir o fundo de arquivos criado para gerir a herança literária do irmão e para manter o culto e a reputação dele, que rapidamente conquistaram toda a Europa. Nietzsche morre a 25 de Agosto de 1900, no primeiro estádio desse Nietzsche Archiv que irá contribuir fortemente para a criação da sua lenda, mas também trazer-lhe prejuízos. Filologia e filosofia O período universitário de Nietzsche, em Bona, testemunha uma personalidade inquieta e insatisfeita: o jovem procura o seu caminho; os seus centros de interesse e as suas paixões, numerosas e díspares – com a música no primeiro plano –, acarretam uma grande dispersão, que ameaça conduzi-lo a um diletantismo estéril. Mas Nietzsche manifesta também a vontade de não sofrer as paixões violentas do seu temperamento; experimenta a necessidade de as dominar, transformando-as em consciência crítica, em experiências de

escrita e de estilo que integra deliberadamente na construção de si mesmo. É um Nietzsche «apaixonadamente severo» que aos perigos em que incorre opõe a probidade do estudo, o método da história crítica e as armas da filologia aprendidas na escola de Pforta. Nietzsche marca a história dos estudos clássicos com um contributo significativo, nomeadamente pelos seus trabalhos sobre Diógenes Laércio e Teógnis. A sua competência de filólogo junta-se ao seu profundo conhecimento da filosofia de Schopenhauer, mestre de sabedoria e de vida, que ele estuda a partir do Outono de 1865. Mas, muito rapidamente, Nietzsche critica os fundamentos metafísicos da doutrina de Schopenhauer, referindo-se a um fenomenismo radical e neokantiano – a leitura da História do Materialismo de Lange teve nele uma influência decisiva. No entanto, Schopenhauer é designado como o filósofo mais verdadeiro, aquele que exprime uma Alemanha regenerada, por se opor à filosofia ensinada na universidade e a uma abordagem puramente histórica da Antiguidade, cujo espírito os estudos filológicos da época, por estreiteza de vistas, são incapazes de apreender. A relação entre o espírito filosófico («dador de ordem») e o espírito filológico («operário de oficina») regressa por diversas vezes às reflexões do jovem Nietzsche, que conclui a sua lição inaugural de Basileia596 com a profissão de fé «o que foi filologia tornou-se doravante filosofia». A metafísica da arte Com A Origem da Tragédia (1872), Nietzsche aborda o mundo grego renovando a sua prática filológica, embora mantendo-se do lado de Wagner para defender o renascimento da cultura alemã. O tema filológico da tragédia grega (das suas origens e, sobretudo, do seu fim) quase desaparece, arrastado por uma visão metafísica de conjunto e pela urgência do projecto cultural. O inimigo principal do trágico é o optimismo socrático que afirmou o valor da ilusão dos fenómenos e levou à destruição do indivíduo, quando ele se reflecte naquela bela comunidade grega, levada pelos seus instintos vitais e pelos seus fundamentos míticos. Tudo isso se inscreve na perspectiva schopenhaueriana da contradição entre a unidade metafísica original e a individualização fenomenal (a aparência) faltosa. Essa falta, que implica a própria existência, apela a uma redenção estética. A contradição original reflecte-se na oposição entre Dionísio e Apolo no próprio seio da natureza. Apolo diviniza o princípio da individualização (como forma, beleza da aparência, sonho) que liberta do sofrimento. Dionísio, pelo contrário, é a expressão imediata da força primitiva que destrói o indivíduo, reabsorvendo-o

na unidade original. O sofrimento da individualização transforma-se finalmente – com uma «consolação metafísica» – num prazer superior, uma vez que o próprio indivíduo participa da sobreabundância do Ur-Ein. O esquema que Nietzsche segue para apresentar os princípios apolíneo e dionisíaco só à primeira vista é linear. Os termos que definem esses princípios são antitéticos e produzem oposições sobre as quais estão articulados os fenómenos estéticos: escultura e música, poesia lírica e poesia épica. Na realidade, Dionísio e Apolo não são os termos extremos de uma contradição: toda a cultura apolínea se apresenta como uma máscara que permite suportar o carácter trágico da existência, como que um esforço intenso para tentar ocultar o fundo dionisíaco por detrás da construção de formas estáveis e tranquilizantes. Em A Origem da Tragédia, está presente uma espécie de filosofia da história que se joga nos dois princípios em busca da sua unidade. O eterno sujeito criador encontra na arte a sua consolação e a sua razão de ser. O artista (o génio) é por seu turno, para a natureza, obra de arte, suprema realização – e sua justificação. A criação artística encontra a sua origem na sua identidade inconsciente com o Uno original, único autor e espectador da comédia, que tira dela e para si mesmo uma fruição sem fim. A civilização grega é uma construção piramidal que culmina com a afirmação do génio e está estreitamente e solidamente ligada à vitalidade do instinto. Por isso ela mantém uma relação não destrutiva com o fundo trágico, que encontra no génio uma maneira satisfatória de exprimir as suas capacidades expressivas e artísticas. Para o mundo germânico, o génio é Wagner; Nietzsche havia estabelecido com ele relações de amizade e o trabalho teórico que o músico elaborara acerca do drama musical (Beethoven, 1870) parecia-lhe mesmo «a filosofia da música». No prefácio à edição de 1886 de A Origem da Tragédia, Nietzsche explicará que uma das razões para o apagamento da descoberta do elemento dionisíaco no mundo grego se prende com a adopção «romântica» das referências estéticas ligadas a Wagner e a Schopenhauer. No entanto, mesmo quando se mostrou severamente autocrítico, Nietzsche sempre considerou que esta obra reunia a maior parte dos problemas que iria estudar ao longo de toda a sua vida, trazendo-lhes diferentes respostas (a relação entre a arte e a ciência, entre a arte e a vida, o pessimismo da força e da decadência, etc.). O combate «inactual» e a crítica de Wagner

Após a experiência traumatizante da guerra franco-prussiana e a viva emoção suscitada pela Comuna de Paris, que estão na origem do sentimento de que a civilização entrou no seu «Outono», Nietzsche empenha-se numa crítica da modernidade, referindo-se aos projectos culturais que Wagner imaginara e que estavam ligados à esperança de um renascimento do espírito trágico na Alemanha. Com A Origem da Tragédia, o filósofo propõe a Wagner uma maneira de aplicar o modelo grego à afirmação do trágico, mas a sua desconfiança em relação ao cristianismo (mito «fenecido» e hostil à arte) testemunha uma oposição subterrânea e irredutível às ideias do músico, pois, para este último, o renascimento mantém sempre como eixo de referência o mito de um cristianismo purificado. Os elementos – conhecidos após a morte do filósofo – de um projecto intitulado Philosophenbuch mostram que Nietzsche não estava encerrado no círculo mágico do mundo wagneriano: uma reflexão filosófica audaciosa está na origem de textos, não publicados, de uma importância decisiva para a evolução do seu pensamento597. O artista cede o lugar ao filósofo como «médico da cultura», capaz de superar a antítese mortal entre cultura e conhecimento. É então que se assiste ao nascimento da prática de desmistificação que irá doravante caracterizar a sua filosofia: Nietzsche quer iluminar os pressupostos ocultos, pragmáticos e morais do desejo de conhecimento e de verdade. Essa iniciativa segue a par de uma análise da natureza intrínseca ao processo cognitivo, participando de uma reflexão que alarga o campo das suas investigações e cria as condições de uma revolução teorética maior. Entre 1873 e 1874, Nietzsche renuncia ao projecto do Philosophenbuch, estimando que ele é irrealizável, e começa a trabalhar na primeira Consideração Intempestiva (redigirá quatro das treze previstas) contra David Strauss, cuja obra A Antiga e a Nova Fé fazia a apologia de um progresso reaccionário sob a égide do exército prussiano: «Parece que o Reich tenha suplantado o reino de Deus.» A segunda Consideração, dedicada a Schopenhauer, privilegia o heroísmo do filósofo e o seu «pathos da verdade» em relação às ilusões voluntariamente mantidas. A Consideração intitulada Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida é a obra mais complexa, por se apresentar como um entrelaçamento de temáticas e de análises por detrás do qual despontam as contradições de Nietzsche. Por um lado, o filósofo invoca um poder terapêutico da vida que se opõe à força transbordante da mudança, susceptível de desintegrar o indivíduo; por outro

lado, os remédios propostos contra a doença histórica são eles próprios designados mais adiante como sintomas da fraqueza contemporânea. Importa igualmente relevar a influência determinante de Burckhardt, que age sobre Nietzsche como um contrapeso crítico relativamente à ideologia germânica de Wagner: é ao apoiar-se nas teses do historiador de Basileia que Nietzsche desenha os traços característicos de uma individualidade livre, que se afirma principalmente por oposição ao nacionalismo germânico. Esse modelo identifica-se progressivamente ao «homem do Renascimento», capaz de assimilar o passado e de o transformar em nova forma de vida. Richard Wagner em Bayreuth foi publicado no Verão de 1876. Os primeiros elementos da obra, redigidos a partir dos primeiros meses de 1874, contêm uma crítica de Wagner que está em contradição com a posição oficial de Nietzsche. O filósofo não hesita em assemelhar o músico ao «tirano» descrito em A Civilização do Renascimento em Itália, que «não permite a afirmação de outras individualidades senão a sua ou a dos seus próximos598». A crítica de Nietzsche visa o cerne da teoria do drama musical e o filósofo estima a partir dessa época que Wagner é mais o actor Cagliostro – tema que será o assunto central do escrito tardio O Caso Wagner – do que músico. Mais do que fazer a apologia do músico, esta Consideração Intempestiva constitui uma ruptura definitiva com o mito do «génio» ao colocar profundamente em crise a metafísica da arte. A filosofia do espírito livre Humano, demasiado Humano (1878) exprime a grande ruptura com tudo o que o filósofo havia venerado e o início da experimentação de novas formas de vida. Na primeira edição, à guisa de prefácio, Nietzsche cita uma passagem de Descartes que exprime claramente a sua posição: não se pode caminhar para o conhecimento senão ao preço de uma terapia anti-romântica marcada pelo desencanto e em oposição às pretensas intuições espontâneas do génio metafísico. Doravante, Nietzsche considera como necessárias a «filosofia histórica» (inseparável das ciências naturais) e, com ela, a «virtude da modéstia»: não existem nem realidades eternas, nem verdades absolutas; tudo está em devir. Por outro lado, o conhecimento da história é necessário para reconstituir a complexidade do eu contra a espontaneidade enganadora da introspecção, «uma vez que as inumeráveis vagas do passado se prolongam em nós»599. A história, se nos referirmos à sua génese e ao seu curso, esclarece a

complexidade oculta por detrás da mensagem da metafísica e opõe-se à ideia de uma «origem milagrosa» daquilo que se qualifica como superior e que «teria saído directamente do cerne e da própria essência da “coisa em si”». É por isso que «uma química das ideias e dos sentimentos morais, religiosos, estéticos» se revela necessária, uma vez que é susceptível de mostrar como «as cores mais esplêndidas são obtidas graças a materiais ordinários e até desconsiderados»600. Em Humano, demasiado Humano, o «progresso intelectual» de uma comunidade já não está ligado à força de um «herói» que reforçasse e enriquecesse os valores desta, mas «aos indivíduos mais livres, bem mais hesitantes e moralmente mais fracos», os doentes, «com os temperamentos ameaçados por alterações graves» que «emudecem os fundamentos fixos de uma comunidade» e cujas feridas podem ser portadoras de inovações601. O doente constitui, para uma sociedade sã – ou seja, segura de si e dos seus valores –, uma possibilidade de mudança. Uma comunidade forte é uma comunidade tolerante, que não exclui e consegue suportar tais contributos sem se desagregar. O Estado visa perpetuar-se, mas o reforço dos hábitos de vida, a imobilidade cega às novidades seguem a par do embrutecimento. O mito constituía uma garantia de solidez para a tradição e os usos e costumes, mas opunha-se a todo o progresso. Doravante, Nietzsche põe em primeiro plano o carácter desmistificante da ciência e da história: trata-se agora de deslocar para baixo o que fora indevidamente posto numa posição elevada, de estar «em boa vizinhança das coisas próximas», de dispensar os dogmas ideais, as religiões que bloquearam e impediram o desenvolvimento das pessoas e das sociedades, por meio de mentiras destruidoras da vida. Também a arte está implicada; ela parece ser herdeira das religiões tradicionais e volta os homens para o passado de que se faz eco: os artistas são pessoas que «exaltam os erros religiosos e filosóficos da humanidade»602. A crítica da moral e da religião é sobretudo desenvolvida em Aurora (1881): a investigação psicológica e a nova interpretação do sentido da história levam a refutar definitivamente os valores morais e religiosos, mostrando que as carências e os instintos estão na sua origem. A reabilitação do «corpo» e a fidelidade à terra opõem-se ao ideal ascético que leva necessariamente a obrar a «vontade do nada» e que, em segredo, domina numerosos aspectos da vida. Na Genealogia da Moral (1887), Nietzsche conduz a sua cruzada contra esse ideal; o niilismo é aí despistado sob todas as máscaras modernas de que se reveste e a importância preponderante que assumiu ao longo da história é posta em evidência. Nietzsche formula uma crítica radical das «hipóteses

genealógicas» erróneas do positivismo, o qual admite de facto uma «fundação» da moral submetida aos valores herdados. Pelo contrário, o filósofo deve centrar a sua investigação naquilo que é habitualmente usado como factor explicativo, como dado original e «natural». Na Genealogia da Moral, é em nome da importância fundamental da história que Nietzsche critica toda a tendência para reduzir a pluralidade a um só factor. A busca das origens não se reduz à análise dos dois tipos morais opostos: a moral dos amos, criada pela afirmação de si, e a dos servidores, que resulta pelo contrário do ressentimento e da negação do outro e dos seus valores. A obra leva em consideração a importância determinante da doença, a interiorização dos instintos agressivos que já não encontram escapatória e que, através da dor, abrem perspectivas insuspeitas e criam no fim de contas a consciência no homem. Nietzsche procurou penetrar os mecanismos ocultos que conduzem o homem à civilização afastando-o do seu passado animal; percebeu bem, no sofrimento, a perda de inocência dessas «semibestas, harmoniosamente adaptadas ao estado selvagem, à guerra, à errância, à aventura». Nenhuma nostalgia por essa longínqua felicidade animal, por esse nomadismo primitivo: o filósofo está plenamente consciente da maleita da civilização actual mas também das possibilidades extraordinárias de desenvolvimento do indivíduo que ela comporta. Zaratustra, mestre do eterno retorno Durante o Verão de 1881, Nietzsche apresenta a sua ideia do eterno retorno como fruto de uma revelação súbita. Na realidade, como mostram as suas notas de leitura, essa ideia resulta de uma abordagem à questão então em debate da morte térmica do universo e da dissipação da energia. Segundo Nietzsche, se o mundo é constituído por elementos ou centros de energia em número finito, ele deve repetir as mesmas combinações um número infinito de vezes e indefinidamente. «Homem! Como uma clepsidra, a tua vida inteira pode ser revirada uma vez mais, e ela tornará a esvaziar-se, se recomeçarmos, e assim até ao infinito603.» Esta concepção consagra a finalização do niilismo, tornando inútil toda a proposição teológica ou teleológica: «A existência, tal como ela é, não tendo nem sentido nem fito, mas recomeçando inevitavelmente, sem um termo onde se encontre com o nada: “o eterno retorno”604.» Não é assim possível atribuir um sentido ético, uma teleologia, à história e à aventura humana sobre esta terra. Mas o eterno retorno permite também nesse instante

reencontrar a eternidade e a plenitude e, por conseguinte, dá à vida a possibilidade de se afirmar. Para Nietzsche, o eterno retorno é a mais científica das hipóteses. Para transformar a vida dos homens, é preciso que a teoria seja lentamente incorporada «até se tornar uma grande árvore que projecte a sua sombra sobre toda a humanidade futura605». É por isso que Nietzsche experimenta uma nova forma de comunicação: Assim Falava Zaratustra quer atingir novos interlocutores libertando-se da linguagem técnica da filosofia e levando a linguagem simbólica e a força do «gesto» até às suas últimas consequências. Zaratustra regressa ao seio dos homens para libertar a vida e lhe permitir atingir a inocência, através da ideia do eterno retorno. A paródia grotesca dos valores cristãos segue a par da proposta de um novo ascetismo, considerado não como um valor em si mas como um meio necessário para reforçar as capacidades de atingir a inocência da criança que se diverte: a verdadeira liberdade só é possível para aquele que disciplinou os seus instintos. Mas se «Deus morreu» (a famosa declaração do «homem louco» d’A Gaia Ciência), a sua sombra continua presente e constitui o perigo mais insidioso para o «homem superior» que sofre da perda do sentido: novas religiões sem Deus substituem as antigas, estabelecidos que estão os valores na sua posição central. Nietzsche analisa e combate as expressões multiformes de uma decadência historicamente definida – exotismo, cosmopolitismo, culto do homem primitivo e do inocente, religião do sofrimento, etc. – o que exprime a recusa do homem «médio» e do seu progressivo «encolhimento». Numerosos traços da decadência são representados sob a máscara das figuras simbólicas e alegóricas do «homem superior» na quarta parte do Zaratustra: é aos «homens superiores», a esses indivíduos que sofrem – pois eles não têm ainda resposta adequada à morte de Deus – que Zaratustra dirige a sua mensagem. Ser sincero a respeito de si mesmo e do seu próprio sofrimento deve levar a experimentar o sofrimento do homem e da sua situação actual, até lhe desejar o fim. Os «homens superiores» devem afrontar a «ideia mais grave»: a capacidade de a assimilar sem desfalecer implica uma transformação radical do «homem superior», que o faz tornar-se um «super-homem». «Vontade de poder»: a filosofia do discípulo de Dionísio Na década de 1880, Nietzsche chega a uma reflexão relacionada com a energia, que tem a sua origem na participação assídua do filósofo nos debates

da época sobre o materialismo e na crítica do mecanicismo. As origens de forças em movimento permanente destroem tudo o que pudesse subsistir da ordem dogmática e metafísica e tornam a pôr em causa a dualização da realidade da qual resultara a condenação do mundo dos sentidos, do aquém. A essência de toda a força é manifestar-se; para além da força, não existe substância que seja a sede dessa força e que tenha tanto a capacidade de a exprimir como de não o fazer: «Tudo é força.» Desde o nível bruto, é possível encontrar no conhecimento a origem do perspectivismo: «Toda a fonte de força – e não somente o homem – constrói a partir de si todo o resto do mundo, por outras palavras, toma-lhe a medida, tacteia-o, modela-o segundo a força que é a sua606.» A relação de conhecimento é uma expressão particular dessa acção-reacção da força. Partindo do modelo do corpo, Nietzsche tende a dar mais valor a todo um vasto sistema vital do que a uma fonte de força isolada: o corpo revela-se sempre mais como uma pluralidade, um conjunto de centros de vida em luta entre si. O momento primeiro da potência consiste em exercer o seu poder sobre um caos que se trata de modelar, de pôr em forma operando classificações hierárquicas e operatórias. A «vontade de poder» é a expressão que Nietzsche utiliza para designar uma outra interpretação da realidade, apta a suscitar novos valores, que segue a par da afirmação do super-homem e da ideia de eterno retorno. Tal interpretação esclarece o carácter perspectivo de toda a realidade; ao nível gnoseológico, ela apresenta-se como a obrigação de uma perspectiva. Essa amplitude da perspectiva, essa capacidade para superar os estreitos limites do ego caracterizarão os níveis mais elevados da vontade de poder. Na Genealogia da Moral, o homem do conhecimento é aquele que «sabe utilizar […] a diversidade das perspectivas e das interpretações afectivas», não um único olhar, mas uma pluralidade de olhares. Entre os modelos que Nietzsche propõe, há o da natureza «dionisíaca» de Goethe, «o homem mais desenvolvido possível, mas nem por isso caótico». O super-homem é aquele que supera o carácter parcial de toda a perspectiva vital, não a negando mas integrando-a num conjunto completo; é ainda aquele que tem a força de se assemelhar à realidade inteira, tal como de assemelhar a ele toda a realidade, através da afirmação do ciclo do eterno retorno. O amor fati é a expressão mais elevada e a mais completa da vontade de poder: é identificar-se de maneira dinâmica com a totalidade do próprio devir. Nietzsche opõe essa nova liberdade ao heroísmo da luta e do fim que caracteriza ainda o homem superior:

Esse espírito tornado livre posta-se no centro de tudo o que existe, com um fatalismo jubiloso e confiante; a sua fé fá-lo estimar que só é lastimável o que fica isolado do resto do mundo e que toda a coisa se afirma e acha a sua redenção no todo – ele não recusa mais. Mas uma tal fé é a maior de todas as fés possíveis: baptizei-a com o nome de Dionísio607. GIULIANO CAMPIONI 596 Homero e a Filologia Clássica, a 28 de Maio de 1869. 597 A Filosofia na Época da Tragédia Grega, e Acerca da Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. 598 Fragmentos Póstumos (1872-1874), (32[32], 1874), in G. Colli e M. Montinari (ed.), Werke. Kritische Gesamtausgabe (doravante KGW), Berlim, de Gruyter, 1967-, III, 4, p. 379. 599 Opiniões e Sentenças Mistas (223), KGW, IV, 3, p. 113. 600 Humano, demasiado Humano (I), KGW, IV, 2, p. 19-20. 601 Ibid., p. 191-193. 602 Ibid., p. 182. 603 Fragmentos Póstumos (1881-1882), KGW, V, 2, p. 396. 604 Fragmentos Póstumos (1885-1887), KGW, VIII, 1, p. 217. 605 Fragmentos Póstumos (1881-1882), KGW, V, 2, p. 401. 606 Fragmentos Póstumos (1888-1889), KGW, VIII, 3, p. 165. 607 Crepúsculo dos Ídolos, KGW, VI, 3, p. 146.

A ciência da sociedade

A «ciência da sociedade» é sob muitos aspectos uma disciplina indefinível e parece irrazoável pretender traçar-se a história do seu nascimento. O próprio título de «ciência da sociedade» é problemático na medida em que, entre as «ciências humanas» ou «ciências do homem608», tanto encontramos a expressão «ciência social» no singular ou no plural como o vocábulo mais recente «sociologia». As fronteiras desta disciplina difícil de «nomear» são também elas bastante fluidas, uma vez que a ciência da sociedade aparece – segundo os casos – seja como uma disciplina a parte inteira, autónoma, seja como uma província da antropologia, ou mesmo da ciência política. A contrario, alguns concedem à antropologia ou à ciência política o estatuto de subcategorias da sociologia. Que objecto? O quadro é ainda mais complexo quando nos interessamos pelo objecto dessa ciência: a sociedade. Observar-se-á que, tanto para essa ciência como para todas as outras, o objecto pré-existe ao seu estudo, ainda que tal evidência seja mais voluntariamente contestada e contestável a propósito da sociologia do que a propósito da física ou da biologia: o «facto social» e a sociedade não são provavelmente realidades tão antigas quanto o mundo material ou a vida. Hannah Arendt defendeu a ideia de que a sociedade, agregação de vidas privadas singulares, se substituiu, ao passar do mundo antigo para o mundo moderno, à cidade e à comunidade política609. O termo «sociedade» não tem com efeito um equivalente satisfatório na língua grega e o latim societas designa primitivamente um agrupamento de homens particulares, ligados por um interesse comum (affectio societatis610), sem que isso possa englobar a totalidade da população: as sociedades (civis ou comerciais) não devem ser confundidas com a sociedade. O nascimento da ciência da sociedade está portanto historicamente determinado pelo nascimento da sociedade – pôde assim falar-se da «invenção da sociedade611» ou da «invenção da sociedade

civil612». Infelizmente, o objecto «sociedade» não coloca simplesmente um problema vertical (quando aparece ele?); coloca igualmente um problema horizontal (em que se distingue a «sociedade» das outras realidades colectivas?): com efeito o termo sociedade coabita precocemente com toda uma série de expressões que constituem outros tantos «falsos sinónimos» problemáticos: «sociedade civil», «comunidade», «contrato social», «sociabilidade», «povo», «população», «grupo», «cidade», «associação», etc. Estes «falsos sinónimos», se favorecem o trabalho filosófico de distinção613, complicam a tarefa do historiador que não só deve evitar confundir os nascimentos da sociologia e da ciência social – a expressão «ciência da sociedade», aqui preferida, favorece uma abordagem global e «neutra» – mas também, por exemplo, os nascimentos da ciência da «sociedade civil», da enumeração da «população» e das teorias do «contrato social». Questões de método Para tentarmos situar-nos nesta nebulosa de noções e de etiquetas, convém que nos limitemos a um inquérito elementar: procurar-se-á aqui descrever o nascimento da ciência da sociedade através da questão da cientificidade do método e da especificação do objecto. Por outras palavras, será ligado à história da ciência da sociedade todo o discurso que se apreenda reflexivamente, por um lado, como discurso «científico» (o que não significa que ele seja necessariamente redutível ou assimilável à cientificidade das ciências da natureza ou da matemática) e, por outro lado, que vise determinar explicitamente como «social» o objecto de que trata. Em suma, um duplo critério, epistemológico e ontológico. Esta problemática pode parecer irrazoavelmente restritiva, na medida em que acaba por desprezar os textos que possuam um valor sociológico sem serem construídos para tal fim. Afastam-se assim as fontes anteriores à emergência da noção de sociedade, como as fontes antigas, que permitem no entanto elaborar uma «sociologia da Antiguidade» (genitivo objectivo – mas carece-se do genitivo subjectivo). Não se consideram também as obras literárias, de bom grado portadoras de um «conhecimento», por vezes muito fino, da sociedade e da psicologia social. Tal restrição tem porém como virtude saber do que se fala e evitar um «sociologismo» de mau agouro: «tudo é sociológico» tal como «tudo é político» – dizer isso é nada dizer. Ela leva-nos a restringir cronologicamente a exposição do nascimento da ciência da sociedade nos séculos XVIII e XIX – de 1748 a 1895, mais

precisamente, ou seja, da publicação de O Espírito das Leis de Montesquieu à publicação de As Regras do Método Sociológico de Durkheim. Sociólogos e precursores Numa obra614 que continua a ser um dos grandes clássicos da história da sociologia, Raymond Aron distingue os «fundadores» da sociologia (Montesquieu, Tocqueville, Comte, Marx) dos sociólogos da «viragem do século» (Weber, Pareto, Durkheim). Mais recentemente, Bruno Karsenti615 procurou reafirmar que a verdadeira «ciência social» nascera com Augusto Comte, que se considerava a si mesmo o inventor da «sociologia», correspondendo as anteriores teorizações da sociedade a intuições fragmentárias, por vezes engenhosas, mas desprovidas de sistematicidade. Porém, Émile Durkheim considerava tanto Montesquieu como Comte «antepassados» da ciência social científica e não verdadeiros «sociólogos». Como se vê, de uma leitura a outra, a origem da sociologia (ou da «iniciativa sociológica») pode ser situada com uma diferença de quase dois séculos, segundo se retenha Montesquieu, Comte ou Durkheim como ponto de partida – o precursor, o pioneiro, ou o universitário. A categorização mais persuasiva é provavelmente aquela que distingue uma era disciplinar e uma era prédisciplinar da sociologia616: antes de Comte, existem «teorias sociais», concebidas de maneira científica e que identificam distintamente o objecto a descrever, mas elas não se organizam no seio de uma disciplina que tenha por vocação ser estudada e ensinada. De jure, essa disciplinarização é um feito de Comte, mas ela é cumprida, de facto, por Durkheim. Política, população, sociedade Na época das «teorias sociais», o nascimento de uma ciência específica da sociedade é marcado pela emergência de um discurso que se dissocia da filosofia política e da economia política. Surge um novo objecto de reflexão que nem a análise política617 (Estado, governo, instituições) nem a análise económica618 conseguem circunscrever: a irrupção do termo «social» na reflexão filosófica é o signo da necessidade de construir esse novo saber, ou essa nova abordagem. A ciência da sociedade é um discurso do intermédio, e corresponde à tomada de consciência da densidade problemática e conceptualmente rica que separa o plano do político-jurídico (o aquém da nação) e o plano da quantificação (o além da população) – correspondendo este

último à dimensão «gestionária» da ciência da sociedade e inscrevendo-se na arte de governar: antes de ser um fito teórico, é um fito prático. O aumento de importância dos termos «sociedade» e «social» nos textos filosóficos a partir de 1750 ilustra uma configuração histórica singular, incarnada também por novos usos do termo «povo619» na língua política ou na literatura. Montesquieu e Rousseau Se há uma «pré-história» da ciência da sociedade incarnada tanto pelas tentativas – muito antigas – de recenseamento da população como pelos moralistas do século XVII, antropólogos à sua maneira, a história da ciência da sociedade é verdadeiramente inaugurada pelos «filósofos» do século das Luzes, nomeadamente Montesquieu e Rousseau. A maior parte dos historiadores das ciências sociais concorda que o nome de Montesquieu (1689-1755) incarna a primeira grande figura das suas ciências, pois encontram nele a tomada de consciência da incapacidade dos discursos político e jurídico para razoarem a realidade social na sua globalidade. É a altura de vistas de Montesquieu que lhe permite descrever a partir do interior aquilo que escapa ao olho do politizador e do jurista. O Espírito das Leis vai dar uma «densidade» positiva à matéria política e jurídica ao fundar-se em dados históricos, geográficos, climáticos, financeiros: ao procurar identificar a relatividade dos princípios políticojurídicos e as razões que presidem a essa relatividade (as leis da variação da lei), Montesquieu apoia-se nas intuições antropológicas de Montaigne mas inverte integralmente o cepticismo deste. Montesquieu inaugura a ciência social por compreender que não há invariante por detrás do termo «sociedade», mas regras que determinam as variações internas desses conjuntos, o que, ao mesmo tempo, instala a «cientificidade» do discurso «social», ou seja, a sua racionalidade, a sua regularidade, a sua generalidade. A acção de Rousseau (1712-1778) ilustra menos directamente este projecto de uma ciência da sociedade, provavelmente porque Rousseau é muito mais antropólogo do que sociólogo: o facto social não lhe interessa senão na medida em que permita esclarecer a ciência do homem, ao passo que a invenção da sociologia, em Montesquieu, o leva antes a apoiar-se no conhecimento da humanidade para pensar os factos sociais. Nem por isso deixa de ser verdade que o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens ou o Ensaio sobre a Origem das Línguas, tal como, em certa medida, a Carta a d’Alembert sobre os Espectáculos constituam etapas importantes da

história da ciência social620. No entanto, a reflexão rousseauniana está largamente ancorada no horizonte político-jurídico e «pré-sociológico», como prova O Contrato Social, que reafirma, tal como o jusnaturalismo moderno, a necessidade da passagem pela ligação jurídica para realizar a verdadeira ligação social. Ao opor ontologicamente uma simples agregação de indivíduos justapostos, incapaz de vontade geral, e a associação institucionalmente instituída pela lei, só ela susceptível de manifestar a soberania do povo, Rousseau mantém-se epistemologicamente distante do projecto sociológico. Os anglo-escoceses A contrario, David Hume (1711-1776) reconhece a consistência da ligação pré-política621 e instaura assim os fundamentos antropológicos de uma ciência da sociedade que, precisamente, não se resuma a uma antropologia. Hume é também aquele que inventa uma nova maneira de ler a história622, enquanto terreno de uma ciência empírica, para além da edificação política e da erudição comparatista. Abre assim caminho a autores como Adam Ferguson (17231816) e Adam Smith (1723-1790), cuja extraordinária importância na génese da sociologia foi mostrada por Claude Gautier. Ferguson e Smith prolongam as intuições humeanas, articulando-as com as teses de Mandeville (1670-1733), a fim de mostrar que pela conjunção de uma «sociabilidade» – sob a forma da simpathy, da capacidade para partilhar o afecto de outrem – e de um interesse individual bem compreendido, pode explicar-se o desenvolvimento da «sociedade civil» sem necessitar da hipótese da ligação jurídica livremente consentida. A sociedade não necessita do Estado para existir623 e, como tal, os recursos da filosofia jurídica e política são insuficientes para explicar o facto social. De Mandeville a Ferguson, passando por Hume e Smith, surge uma outra ideia forte, que terá uma bela posteridade: a racionalidade individual não basta para justificar a racionalidade colectiva, ou, mais exactamente, o que é visado pelo indivíduo distingue-se fortemente daquilo que a sua acção produz quando ela encontra as outras acções individuais. O todo é mais do que a soma das partes. A lição da Fábula das Abelhas de Mandeville é a seguinte: a soma de comportamentos puramente egoístas produz um bem colectivo impossível de compreender à escala do indivíduo: é inútil trabalhar individualmente para o bem da sociedade; basta trabalhar para o seu próprio bem, e a sociedade beneficiará disso. Smith formula a ideia falando de «mão invisível», ao insistir na virtude inerente ao processo de socialização. Adam Ferguson sublinha por

seu turno os elementos mais deletérios saídos dessas somas de vontades individuais por vezes animadas de más paixões: ele prefigura assim a teoria contemporânea dos «efeitos perversos» da ordem social. Condorcet e Sieyès Essas duas grandes teses, a da autonomia da esfera social em relação à esfera político-jurídica, e aquela que enuncia a diferença de natureza entre o todo e a soma das partes, percorrem historicamente a preocupação política da enumeração da população, constituindo a primeira base «positiva» da ciência da sociedade e abrindo caminho à ciência demográfica, cuja primeira grande figura será Adolphe Quételet (1796-1874). O século XVIII é com efeito o da emergência da «aritmética política624», das estatísticas que permitem qualificar e quantificar a população presente num território. Metodologicamente, essa nova ciência apoia-se nos avanços do instrumento probabilista na matemática desde o século XVII. Robustecida com essa metodologia e com os dois princípios fundamentais herdados das filosofias anglo-escocesas, a ciência da sociedade pode prolongar as intuições de Montesquieu atribuindo-lhes um conteúdo rigoroso, indo além da compilação de dados e de saberes por vezes incertos. É então o tempo da «arte social», fórmula partilhada por Condorcet e Sieyès. Como mostrou Jean-Louis Morgenthaler625, a história da sociologia não apreendeu ainda toda a dimensão do contributo desses dois autores para a ciência da sociedade: Condorcet (1743-1794) foi abusivamente «historicizado» (por Comte em primeiro lugar) e Sieyès abusivamente «politizado», o que levou a que se desprezasse a importância histórica de ambos. Deve-se porém a Condorcet626 uma tentativa sem precedente – e infelizmente sem grande posteridade – de juntar a teoria da decisão, a estatística, a ciência política, os direitos fundamentais e a pedagogia. E deve-se a Sieyès627 (1748-1836) a forja termo de «sociologia» e a definição muito exacta dos respectivos lugares das ciências jurídicas e sociais. Como escreve Jean-Louis Morgenthaler: «A sociedade, para Sieyès, é uma combinação permanente entre uma construção de que o direito é o utensílio conceptual, e um dado, o organismo social, do qual a sociologia é a ciência.» Deve notar-se um uso significativo dessa fórmula, «arte social», na Opinião do 2 Thermidor ano III628, quando Sieyès procura demarcar-se de Montesquieu: para ele é a ocasião de lhe mostrar que a ciência da sociedade não deve ser confundida nem com o conhecimento da história, nem com a arte das montagens constitucionais. A acção política, por

intermédio da legislação, é sempre a posteriori, quando a arte social permitiu isolar os princípios de organização da população que se trata de governar. A arte social é assim uma ciência crítica: a das condições de possibilidade a priori da acção político-jurídica. É essa mesma arte social que opera para Sieyès, quando, nas Opiniões sobre os Meios de Execução…, ele descreve a organização jurídica do Antigo Regime como uma «desordem inveterada». Enquanto não houver apreensão possível pela razão de uma totalidade organizada, os indivíduos que povoam a nação estão simplesmente justapostos, aglomerados. A nação exige ser «reconhecida», mais do que «constituída», rompendo com as falsas «classificações» e as más «ordens» (privilegiadas). Em O Que é o Terceiro Estado?, Sieyès descreve a nação como «entravada», «limitada» pela política de distinção das ordens. Para Sieyès, a arte social deve permitir identificar com precisão as necessidades de uma população, bem como os modos de optimização da sua riqueza total – e para atingir isso, é preciso reconhecer e proclamar os direitos fundamentais dos indivíduos, a fim de erguer uma verdadeira «comunidade» nacional unificada. O termo «comum» está de resto no centro da reflexão sociológica de Sieyès, que lhe atribui o sentido de um «como um», ou seja de uma totalidade em movimento em direcção à unidade. Fala assim de «adunação», de encaminhamento para o Uno: Sinto desde há muito a necessidade de submeter a superfície da França a uma nova divisão. Caso deixemos passar esta ocasião, ela não voltará mais, e as províncias guardarão eternamente o seu espírito de corpo, os seus privilégios, as suas pretensões, os seus ciúmes. A França jamais chegará a essa «adunação» política que tão necessária é para não fazer mais do que um povo regido pelas mesmas leis e nas mesmas formas de administração629.

A arte social é assim compreensão da inteligibilidade do todo que é a sociedade. Bonald e Hegel Nem a abordagem estatística de Condorcet nem a «sociologia» de Sieyès tiveram posteridade imediata. Augusto Comte rejeitou muito amplamente o instrumento probabilista, vendo na abordagem de Condorcet um «preconceito metafísico» a favor da matemática630, e Sieyès – tal como Condorcet – pagou visivelmente pela sua ligação «metafísica» aos direitos do homem. É preciso esperar por Durkheim para que a estatística e Condorcet sejam reabilitados no pensamento sociológico; não tendo pelo seu lado Sieyès sido seriamente

estudado pelos historiadores da sociologia antes destes últimos anos (nem Raymond Aron, nem Robert Nisbet631, nem Friedrich Jonas632, nem ainda Johan Heilbron o evocam, senão para fazer referência ao seu papel político). Em compensação, a história da sociologia concedeu um lugar importante à obra dos contra-revolucionários, que alimentou largamente a ciência social dos séculos XIX e XX. Bonald (1754-1840), autor em 1796 de uma Teoria do Poder Político e Religioso, apela à fundação de uma «ciência da sociedade» na direcção oposta da arte social de Condorcet e de Sieyès, na medida em que essa ciência deve permitir demonstrar a absurdidade da Revolução Francesa e dos princípios que a sustêm633. Bonald considera que longe de legitimar a ordem política e jurídica pós-revolucionária, como pensava Sieyès, a compreensão da sociedade lhe mostra a inanidade, a inutilidade e a perigosidade: segundo ele, a ciência da sociedade deve substituir-se à ciência política, constituindo o ponto de chegada e não o ponto de partida da inteligência social. Compreender a sociedade é compreender que se deve validar aquilo que o facto social segrega naturalmente – família, desigualdade, nobreza, tradição – e aperceber assim a absurdidade e a desmesura do artificialismo jurídico que produz igualdade, indistinção, liberdades subjectivas. Separada do seu sentido político reaccionário, uma tal teorização é sedutora para o pensamento sociológico, porque ela esclarece a consistência da ligação, da relação social, da totalidade, e retira as ilusões do «sujeito» individualista. De resto, no século XX, só depois de integrados na ciência social os contributos da sociologia compreensiva de Max Weber, tanto no individualismo metodológico de Raymond Boudon como na teoria do habitus de Pierre Bourdieu, é que se puderam superar as precauções em relação ao subjectivismo e à sua suposta ingenuidade. A crítica de uma subjectividade ingénua como fundamento de uma ciência da sociedade não se encontra aliás somente no pensamento contra-revolucionário, uma vez que Hegel634 (1770-1831) se apoia numa análise da «sociedade civil» ou «sociedade burguesa» (bürgerliche Gesellschaft) para esclarecer a passagem da moralidade individual (Moralität) à ética pública (Sittlichkeit). Na segunda secção da terceira parte dos Princípios da Filosofia do Direito, Hegel dedica-se assim a descrever o que, na vida comum, escapa ao político e ao jurídico, ao mesmo tempo que o Estado político e jurídico é a esfera de plenitude dessa «socialidade». A «sociedade civil» hegeliana não é puramente «social» no sentido em que integre as questões económicas e uma parte dos objectivos jurídicos; mas, no sentido em

que constitui, tal como a família e o Estado, uma «etapa» entre a esfera individual e a esfera política, ela permite a elaboração de uma filosofia social específica, distinta da filosofia moral e da filosofia política. Essa análise hegeliana da sociedade civil desempenhou um papel essencial na história da sociologia e do direito alemães dos séculos XIX e XX635. Comte Pode considerar-se Augusto Comte (1798-1857) como herdeiro de Bonald e de Hegel na medida em que também ele entende superar a analítica do indivíduo para chegar a uma plena inteligência do facto social, que para ele é a verdadeira realidade humana. Mas contrariamente a Bonald, que procurava fazer com que a filosofia política sofresse uma espécie de reductio ad societatem, e contrariamente a Hegel, que fazia com que a ciência social sofresse uma forma de reductio ad jus no quadro de uma filosofia do direito concreto englobante, Comte pretende elevar a sociologia à mais alta das políticas, concedendo ainda à ciência da sociedade o estatuto de uma ciência que coroa e determina a totalidade dos saberes, à maneira de um saber constituinte que se distinguisse dos saberes constituídos. Saber que, desde logo, se tornaria a chave de toda a filosofia política ao ser a chave da compreensão do espírito humano tal como este se manifesta – sempre socialmente. Bruno Karsenti636 mostrou bem que havia, em Comte, uma «nuvem» que pairava entre filosofia política e filosofia do espírito: a acção política supõe a ciência social, no sentido em que esta permite à sociedade pensar-se como sociedade, reconhecer-se reflexivamente e, a partir daí, deduzir desse conhecimento as ideias adequadas para governar essa totalidade. Por outras palavras, e é uma lição que Comte retém de Bonald, não poderia haver aí transcendência do político em relação ao social: «O governo regular não pode ser senão uma expansão da preponderância civil637.» A organização imanente à ordem social das coisas tem vocação para primar sobre a esfera da pura vontade política: a ciência torna-se então política na medida em que o conhecimento das coisas sociais permite determinar as necessidades do corpo social e o sentido (a direcção) do seu desenvolvimento. Da mesma maneira que a «liberdade» em Espinosa se traduz pela capacidade de obedecer às suas próprias determinações, a ciência social comtiana ilustra a necessidade para a sociedade de cumprir o seu próprio destino, e assim ela se liberta, não escapando às suas determinações, mas fazendo a triagem delas, aceitando e valorizando as suas

determinações internas – que são outros tantos sinais da sua «razão de ser» – na abordagem assimptótica do poder e do saber. Marx A verdade do político está assim no social, e a filosofia política não poderia fazer a economia de uma ciência da sociedade, fosse como prólogo (em Condorcet ou Sieyès), fosse como cumprimento (em Bonald ou Comte). Tal tese é também ilustrada pela obra de Marx (1818-1883), que nega à superestrutura política e jurídica toda a realidade autónoma. Ontologicamente, epistemologicamente e historicamente, convém a Marx relacionar essa superestrutura com a infra-estrutura social e económica, indo para além das ilusões ideológicas. A luta das classes sociais é o verdadeiro princípio explicativo dos fenómenos histórico-políticos – é no socioeconómico que se encontra o sentido último das montagens jurídicas e dos eventos políticos. A sociologia de Marx638 dá provas de uma grande fineza na tipologia das classes e na descrição das relações que elas mantêm. Mas essa sociologia tem dois pontos fracos: o seu voluntarismo político e o seu economicismo. Marx não dá à sociedade a sua oportunidade, no sentido em que, contrariamente a Comte, ele considera que esta necessita de ser «orientada» pelo discurso político revolucionário639. Por outras palavras, o «socialismo» não pode ser um sociologismo integral, porque é um economismo. Marx também não reconhece suficientemente a singularidade própria do social, atribuindo um lugar preponderante aos objectivos económicos: a reductio ad œconomicam é posta em jogo com frequência, com a luta de classes a assumir de bom grado a forma de uma expressão «epidérmica» dos objectivos mais profundos (e só esses reais) que respeitam à produção, ao domínio dos instrumentos de produção, ao valor640. Fourier, Le Play, Tarde O economicismo de Marx participa, a seu ver, da cientificidade da sua iniciativa, e vale também para a política – um célebre texto de Engels intitulase aliás Socialismo Utópico e Socialismo Científico. A exigência de cientificidade constitui em finais do século XIX um requisito explícito da ciência da sociedade, que a partir daí irá adoptar definitivamente o termo comtiano (e seyesiano) de «sociologia». É a Émile Durkheim que cabe cumprir essa última etapa. Mas antes disso, impõe-se um desvio na direcção das

«ocasiões falhadas» da história da ciência da sociedade, ou seja daqueles autores que não se inscrevem na árvore genealógica tradicional da sociologia, ou que desempenham nela um papel marginal. Três nomes podem reter a atenção: Charles Fourier, Frédéric Le Play e Gabriel Tarde. O lugar de Charles Fourier (1772-1837) na história da ciência social, tal como o do mestre de Comte, Saint-Simon (1760-1825), é de bom grado descrito como negligenciável, e as obras dos «utopistas» colocadas ao nível das curiosidades. É certo que o delírio taxinómico e tipológico, os falanstérios, a fantasia das correspondências e das analogias641, o cómico regulamento das relações humanas, os neologismos por vezes ridículos tornam Fourier quase impossível de ler com seriedade hoje em dia. Isso é esquecer que, por outro lado, Fourier adopta a expressão «ciência social» para descrever o conjunto do seu projecto, onde procura por exemplo descrever a «atracção social», à imagem da atracção terrestre newtoniana. Essa «ciência social» é ao mesmo tempo um projecto científico e político: a compreensão das leis sociais deve conduzir a uma reforma da sociedade. Como escreve Pierre Merklé: Se nos textos reconhecidos como fundadores em sociologia […] a ambição metodológica directora consegue disfarçar outras construções, de ordem metafísica ou analógica, no texto de Fourier é o inverso que parece produzir-se […]: a fantasmagoria, a metafísica, a metáfora e a analogia contribuíram (ou serviram de pretexto) para disfarçar as pretensões epistemológicas do texto642.

Pode esperar-se de futuro, na história da sociologia, uma leitura mais caridosa acerca de Fourier. Igualmente subestimado, mas por outros motivos, Frédéric Le Play (1806-1882) é autor, em 1855, de um estudo sobre os Operários Europeus que se demarca da ciência social do seu tempo: apegado à descrição minuciosa da existência concreta, elaborando uma reflexão crítica sobre o lugar do observador, ele adopta uma metodologia original centrada nas questões orçamentais, sem no entanto fazer sua a análise puramente estatística de Quételet. Como escreve Durkheim, Le Play […] não se opõe a uma ou outra concepção sociológica; ele está efectivamente fora do movimento de ideias que deu origem a esta ciência. As suas preocupações nem sequer são exclusivamente científicas, mas, em grande parte, apologéticas643.

Le Play, como Bonald, foi essencialmente vítima da sua utilização pelos conservadores contemporâneos de Durkheim (Maurras, Barrès) e a sua singularidade na paisagem sociológica da segunda metade do século XIX foi

durante muito tempo ocultada. Menos desprezado, Gabriel Tarde (1843-1904) conheceu no entanto um longo purgatório que contrasta com o número dos trabalhos de inspiração durkheimiana ao longo do século XX: é certo que esta obra é difícil, pois ela não se deixa encerrar nem no individualismo nem na abordagem holista. Para Tarde, deve apreender-se o fenómeno colectivo como um órgão que vive a sua própria vida, mas as leis que presidem ao desenvolvimento desse organismo tiram-se de leis que sejam válidas à escala do indivíduo. Essas leis «individuais» não relevam porém em nada da psicologia ou da vontade; elas correspondem às respostas mecânicas de todo o indivíduo mergulhado na sociedade. Três parâmetros, e as suas combinações, permitem assim a Tarde descrever a sociedade e a sua história: a imitação, a oposição e a adaptação. Durkheim Mas deixemos as margens e regressemos, para terminar, à corrente principal da história da sociologia, com Émile Durkheim (1858-1917). A ciência da sociedade conclui a sua mudança com este autor que, sob muitos aspectos, opera uma síntese entre os elementos mais sólidos das filosofias anteriores ao fixar, por um lado, uma definição rigorosa de «facto social» (ontologia) e, por outro lado, um método para apreender cientificamente esse objecto (epistemologia). Esse duplo projecto está exposto em detalhe n’As Regras do Método Sociológico e é ilustrado na célebre obra O Suicídio. Durkheim determina três características do «facto social»: ele é exterior, constrangedor e colectivo. Exterior porque não depende da tomada de consciência individual. Durkheim dá o exemplo do dinheiro, da linguagem: a sua existência não depende do uso singular que eu faça deles. Mas o facto social não é apenas independente de mim, ele é também constrangedor no sentido em que não posso escapar a ele, mesmo se tal facto não é em nada um «dever moral»: Não sou obrigado a falar francês com os meus compatriotas, nem a usar as moedas legais; mas éme impossível proceder de outro modo. Se eu tentasse escapar a esta necessidade, a minha tentativa fracassaria miseravelmente. Se eu for um industrial, nada me proíbe de trabalhar com os procedimentos e métodos do século passado; mas, se o fizer, arruinar-me-ei seguramente644.

Enfim, esse facto social é colectivo, o que equivale a dizer que o sociólogo adopta uma certa leitura do real: assim, o casamento ou o suicídio são eventos individuais, susceptíveis de uma descrição psicológica (fulano desposa sicrano

por tal ou tal motivo – atracção, amor, interesse; beltrano suicida-se por haver tido tal ou tal experiência dolorosa), mas o olhar do sociólogo vai ter de apreender essas realidades à escala colectiva graças a um instrumento estatístico (a taxa de suicídio, que será seguidamente examinada fazendo variar os parâmetros sociológicos: credo religioso, dia da semana, idade, etc.). O objecto da sociologia é o «facto social» assim caracterizado. Esse objecto será apreendido segundo uma metodologia particular que marca o carácter científico do discurso sociológico e o faz escapar assim ao discurso filosófico. Essa metodologia é objectivista: ela considera «os factos sociais como coisas», o que implica romper com todo o finalismo, com toda a pré-noção, com toda a psicologia. Em suma: é preciso «sociologizar» a sociologia – ela deve ser uma «ciência autónoma». O século XX respondeu às esperanças de Durkheim e a ruptura entre filosofia e sociologia está agora consumada. Isso não impede certos filósofos de se aventurarem no terreno da ontologia dos factos sociais (John Searle, por exemplo645) nem certos sociólogos de se encostarem à filosofia crítica (como Pierre Bourdieu646), mas as disciplinas evoluem doravante em esferas largamente separadas. PIERRE-YVES QUIVIGER 608 A arqueologia das ciências do homem foi estudada por M. Foucault (As Palavras e as Coisas) e, mais recentemente, por F. Brahami (Le Travail du scepticisme; Paris, PUF, «Pratiques théoriques», 2001) e T. Gontier (De l’homme à l’animal. Montaigne et Descartes ou les paradoxes de la philosophie moderne sur la nature des animaux, Paris, Vrin, «Philosophie et mercure», 2000; Descartes et la causa sui, Paris, Vrin, «Philosopie et mercure», 2005). 609 H. Arendt, A Condição Humana. 610 A expressão é ainda de uso corrente na língua jurídica contemporânea, particularmente no direito comercial. 611 L. Kaufmann e J. Guilhaumou (dir.), L’Invention de la société. Nominalisme politique et science sociale au XVIIIe siècle, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales, «Raisons pratiques», 2003. 612 C. Gautier, L’Invention de la société civile, Paris, PUF, «Recherches politiques», 1993. 613 F. Tönnies, Comunidade e Sociedade. Categorias Fundamentais da Sociologia Pura. 614 R. Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico. 615 B. Karsenti, Politique de l’esprit. Auguste Comte et la naissance de la science sociale, Paris, Hermann, 2006.

616 J. Heilbron, Naissance de la sociologie, trad. francesa do original neerlandês por P. Dirkx, Marselha, Agone, 2006. 617 Para a génese do longo curso dessa ciência do jurídico-político, ver os trabalhos de Q. Skinner, Os Fundamentos do Pensamento Político Moderno. 618 C. Larrère, L’Invention de l’économie au XVIIIe siècle, Paris, PUF, «Léviathan», 1992. 619 D. Cohen, Le Peuple. De l’autre au différent. La contruction des identités individuelles et collectives des classes populaires au XVIIIe siècle, tese de história, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2004. 620 Pode assim pensar-se, no segundo Discurso, nos desenvolvimentos consagrados à «festa» ou a distinção entre amor-próprio e amor de si, que analisam a passagem do indivíduo ao grupo, e o efeito do grupo sobre o indivíduo, por meio de uma atenção dirigida ao olhar, à disposição dos corpos e às relações. 621 F. Brahami, Le Travail du scepticisme, op. cit.; id., Introduction au Traité de la nature humaine de David Hume, Paris, PUF, «Quadrige», 2003. 622 C. Gautier, Hume et les savoirs de l’histoire, Paris, Vrin/École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2005. 623 P. Clastres, La Société contre l’État. Recherches d’antropologia politique, Paris, Minuit, 1974. 624 T. Martin (dir.), Arithmétique politique dans la France du XVIIIe siècle, Paris, INED, 2000; E. Brian, La Mesure de l’État. Administrateurs et géomètres au XVIIIe siècle, Paris, Albin Michel, «L’évolution de l’humanité», 1994. 625 J.-L. Morgenthaler, «Condorcet, Sieyès, Saint-Simon e Comte. Retour sur une anamorphose», Sociologos, revista publicada pela Associação Francesa de Sociologia, n.o 2, 1997. 626 K. M. Baker, Condorcet: From Natural Philosophy to Social Mathematics, Chicago, University of Chicago Press, 1975. 627 J. Guilhaumou, Sieyès et l’ordre de la langue, Paris, Kimé, 2002. 628 E. J. Sieyès, Essai sur les privilèges et autres textes, Paris, Dalloz, 2007, p. 116. 629 Id., «Observations concernant la nouvelle organisation de la France», in Écrits politiques, Paris, Montreux, Éditions des Archives Contemporaines, 1985, p. 247. 630 Terceira parte do plano de 1822, primeira série de trabalhos. 631 R. Nisbet, The Sociologial Tradition, Londres, Heinemann, 1967. 632 F. Jonas, História da Sociologia das Luzes à Teoria do Social [1968]. 633 B. Karsenti, «Autorité, société, pouvoir», in L. Kaufmann e J. Guilhaumou (dir.), L’Invention de la société. Nominalisme politique et science sociale au XVIIIe siécle, op. cit., p. 265. 634 F. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito.

635 C. Colliot-Thélène e Jean-François Kervégan (dir.), De la société à la sociologie, Lyon, Éditions ENSLSH, «Theoria», 2002; J.-F. Kervégan e G. Marmasse (dir.), Hegel penseur du droit, Paris, CNRS-Éditions, 2003. 636 B. Karsenti, Politique de l’esprit. Auguste Comte et la naissance de la science sociale, op. cit. 637 A. Comte, Discours sur l’ensemble du positivisme, Paris, Flammarion, «GF», 1998, p. 229. 638 O 18 do Brumário de Luís Bonaparte; As Lutas de Classes em França. 639 Sartre tentará superar estas dificuldades, nos dois tomos da Crítica da Razão Dialéctica, ao pensar a imanência política própria do grupo, da multidão, do povo, do movimento histórico. 640 As leis «fundamentais» da filosofia social de Marx são económicas e de modo algum sociológicas: valor-trabalho, teoria da mais-valia, reprodução alargada do capital, baixa tendencial da taxa de lucro. 641 R. Barthes, Sade, Fourier, Loyola. 642 P. Merklé, «La “science sociale” de Charles Fourier», Revue d’histoire des sciences humaines, n.º 15, Éditions Sciences Humaines, 2006. 643 É. Durkheim, «La sociologie», Textes, I, Minuit, 1975, p. 116. 644 Id., As Regras do Método Sociológico. 645 J. R. Searle, A Construção da Realidade Social; ver também J. Benoist e B. Karsenti (dir.), Phénoménologie et sociologie, Paris, PUF, «Fondements de la politique», 2001. 646 P. Bourdieu, Le Sens pratique, Paris, Minuit, 1980; Raisons pratiques, Paris, Seuil, «Points Essais», 1996; Méditations pascaliennes, Paris, Seuil, «Points Essais», 2003.

Edmund Husserl

Edmund Husserl nasceu a 8 de Abril de 1859 em Prossnitz, na Morávia. Após estudos secundários nos liceus de Viena e de Olmütz, frequenta as Universidades de Leipzig, Berlim e Viena para estudar Astronomia, Matemática e Física. Após a defesa da sua dissertação doutoral sobre a teoria do cálculo das variações, volta-se para a filosofia e torna-se aluno de Franz Brentano e de Carl Stumpf. É sob a direcção deste último que conclui em Halle a sua tese de habilitação Sobre o Conceito de Número (1887). Após quinze anos de uma vida materialmente difícil passados em Halle na qualidade de privat-docent, prossegue a sua carreira de professor de Filosofia primeiro em Gotinga, de 1901 a 1916, e depois em Friburgo até à sua jubilação em 1928. Entre os seus jovens colegas e alunos em Gotinga, notam-se mais particularmente Adolf Reinach, Alexandre Koyré e Edith Stein. Alguns deles seguem o mestre até Friburgo, onde depressa se lhes juntarão novos alunos, como Martin Heidegger, Eugen Fink, Rudolf Carnap, Jan Patocˇka, Emmanuel Levinas e muitos outros jovens fenomenólogos prometedores. Husserl não cessa de escrever e de publicar até à sua morte, a 27 de Abril de 1938. Deixa aos seus herdeiros cerca de 40 000 páginas de manuscritos inéditos em estenografia, cuja publicação é garantida desde 1950 pelos Arquivos Husserl de Lovaina, pouco depois secundados pelos Arquivos de Colónia e de Friburgo. Esse grande empreendimento de edição crítica das obras na colecção Husserliana não contará menos de 70 volumes. O contexto histórico no qual o pensamento husserliano se formou foi marcado pelo progresso de uma nova psicologia (Hermann Helmholtz, William James, Franz Brentano, Carl Stumpf), pelas investigações sobre o fundamento da matemática (Carl Friedrich Gauss, Bernhard Riemann, Georg Cantor, Leopold Kronecker, Carl Weierstrass), pela renovação da lógica e da teoria do conhecimento (Bernhard Bolzano, John Stuart Mill, Gottlob Frege, Alexius Meinong), e pelo nascimento de uma teoria da linguagem (Charles Sanders Peirce, Anton Marty). Entre os autores clássicos, Husserl interessou-se primeiramente pelos empiristas ingleses (Locke, Berkeley e sobretudo Hume)

para seguidamente se debruçar sobre as obras de Kant, Fichte, Descartes e Leibniz. Os contemporâneos que mais contaram para Husserl foram Franz Brentano e a sua escola, os neokantianos Paul Natorp e Heinrich Rickert, Wilhelm Dilthey e Gottlob Frege. Neste contexto, e tendo em conta o facto de que a formação intelectual de Husserl foi matemática (Weierstrass) antes de ser filosófica (Brentano), não é de espantar que os seus primeiros trabalhos sejam sobre a aritmética e a lógica numa perspectiva que foi psicológica (ou mesmo psicologista) antes de ser fenomenológica. Os «fenómenos» analisados pela sua «fenomenologia» serão sempre dados vividos pela consciência, mesmo se esta mudar de estatuto mais do que uma vez. Do mesmo modo, o que se manifesta nesses fenómenos da consciência intencional continuará a ser uma «objectidade», quer se trate de um objecto lógico ou de um objecto da percepção sensível, de um objecto temporal ou de um objecto ideal. De todos esses objectos, o fenomenólogo não reterá senão aquilo que aparece quando eles são «visados» intencionalmente pela consciência. Sucintamente definida, a fenomenologia de Husserl apresenta-se assim como uma ciência da correlação intencional entre diversos tipos de actos da consciência e diferentes espécies de objectos intencionais. Objecto e método da fenomenologia. O desenvolvimento do pensamento husserliano Mas para que serve o estudo fenomenológico dessa correlação intencional, que fim persegue a fenomenologia de Husserl? Embora Husserl consagre longas e minuciosas análises aos actos «axiológicos» que se referem ao «valor» (ético, estético, etc.) de certos objectos, e embora se encontre nele uma verdadeira fenomenologia da vontade e da acção, pode dizer-se que o seu primeiro objectivo é justificar a «validade» de uma afirmação ou de uma «posição» relativa à existência dos objectos intencionais. Para uma tal teoria fenomenológica do conhecimento, toda a pretensão à existência ou ao «ser verdadeiro» dos objectos não se pode justificar senão pela maneira como estes «se dão» ou «se constituem» nas vivências da consciência intencional. Algumas dessas vivências são mais aptas do que outras para garantir a existência dos seus objectos intencionais: são os actos que não só visam os seus objectos mas os apreendem intuitivamente. A ciência fenomenológica de Husserl dedicar-se-á portanto mais particularmente ao estudo dos actos intuitivos (quer eles sejam sensíveis ou intelectuais) e da maneira como actos privados de intuição acedem a um dado intuitivo dos seus objectos por uma

«síntese de preenchimento intuitivo». É óbvio que se trata muito frequentemente de um processo que comporta diversas etapas e pode portanto falar-se de «graus» de verdade segundo a intenção do objecto seja mais ou menos intencionalmente «preenchida». O caso de um preenchimento «adequado», ou seja o caso em que o objecto visado seria dado intuitivamente e exactamente tal como fora visado, é a excepção e não a regra. Sendo o objecto da fenomenologia assim definido como a correlação intencional entre actos de consciência e os seus objectos, e sendo o fito da fenomenologia assim definido como a justificação da nossa crença na existência dos objectos e do mundo, resta mostrar como a fenomenologia se torna a ciência desse conhecimento verdadeiro. O primeiro obstáculo a ultrapassar é compreender como pode haver ciência da consciência, se essa consciência é um conjunto de vivências psíquicas multiformes que aparecem e desaparecem sem descanso. Para Husserl, isso não é possível a menos que tais actos sejam descritos do ponto de vista da sua estrutura invariante ou «essencial». A fenomenologia distinguir-se-á pois doravante da psicologia empírica como uma ciência «eidética» (ou seja, que trata da essência) dos actos da consciência; ela será uma «psicologia pura». Essa primeira ruptura com o empirismo «psicologista» do seu tempo constituiu, aos olhos de Husserl, uma verdadeira «estocada». Uma segunda «estocada» decisiva no desenvolvimento da ciência fenomenológica foi a introdução da «redução fenomenológica». Tal como sucedera com a redução «eidética» das vivências da consciência, esta nova redução foi antes de mais inspirada por considerações metodológicas. Com efeito, se esta ciência quer justificar a possibilidade de um conhecimento verdadeiro da realidade e se, para fazer isso, ela se atém ao estudo da maneira como a consciência se refere intuitivamente aos objectos reais, então a sua análise da consciência deve livrar-se de todo o preconceito relativo à realidade empírica. Por outras palavras, se quisermos mostrar como a pretensão à existência dessa realidade só pode ser justificada pela consciência intencional intuitiva (ou «evidência»), então esta não pode ser tomada por uma realidade empírica, a menos que caiamos num círculo vicioso. É preciso pois que a consciência intencional seja «purificada» de toda a percepção empírica, que ela não seja mais entendida como pertencente a uma pessoa empírica ou como fazendo parte do mundo real. É por isso que Husserl apresenta muitas vezes a redução fenomenológica como uma acção que conduz a uma exclusão, um «pôr entre parêntesis» da nossa crença na existência do mundo. Mas há que ser

mais preciso: se essa crença está «suspensa» e se a consciência está purificada de toda a percepção mundana, é precisamente para justificar a realidade e o conhecimento verdadeiro do mundo de uma maneira crítica, ou seja sem o préconceber de maneira dogmática. Essa «justificação» do conhecimento verdadeiro dos objectos realmente existentes (ou somente possíveis) por uma consciência intuitiva purificada forma o objecto da fenomenologia «transcendental». Esta toma por tarefa descrever «a correlação» entre a consciência pura e os seus objectos intencionais. Mais precisamente, ela mostra como um conjunto unificado e coerente de actos intencionais «constitui» ou constrói progressivamente o sentido de «ser efectivamente real» dos objectos do mundo. As diferentes etapas do desenvolvimento do pensamento husserliano são outras tantas maneiras de repensar a questão da origem subjectiva dos objectos, e muito particularmente dos objectos ideais. O sentido da noção de «origem» modificar-se-á progressivamente segundo a origem dos objectos ideais seja tratada no quadro de uma fenomenologia ainda manchada de psicologismo, de uma fenomenologia estática ou de uma fenomenologia genérica que conduzirá a uma filosofia da história. Do mesmo modo, o estatuto do «objecto ideal» evoluirá de um desconhecimento inicial (a sua redução a uma consciência empírica) para uma concepção logicista ou platónica (afirmação da sua independência em relação a toda a vivência da consciência), até desembocar finalmente numa análise transcendental-constitutiva que considerará todos os objectos constituídos (os da lógica, mas também os objectos culturais ou os da percepção sensível) como diferentes variedades de objectos ideais. O «espectro» do psicologismo Retomando com maior pormenor esse desenvolvimento histórico do pensamento de Husserl, podemos dizer que a sua primeira etapa foi caracterizada por uma grande hesitação entre o psicologismo e o logicismo na análise fenomenológica dos objectos ideais da aritmética e da lógica. O psicologismo dos primeiros escritos de Husserl, tão criticado por Frege, consistia em justificar o conceito de número a partir da sua génese psicológica em actos de percepção selectiva e de colecção unificante. Essa posição defendida na Filosofia da Aritmética (1891) foi muito depressa abandonada por Husserl e substituída no primeiro volume das Investigações Lógicas (Prolegómenos a Uma Lógica Pura, 1900) pela posição diametralmente oposta de um logicismo de tipo platónico segundo o qual os objectos lógicos existem

independentemente de todo o pensamento humano. A oposição entre estas duas concepções ilustra bem a dificuldade de Husserl em conciliar o seu programa de análise da origem subjectiva dos objectos da aritmética e da lógica com o reconhecimento do seu carácter objectivo e ideal. Só no segundo volume das Investigações Lógicas (1901) é que Husserl conseguirá superar essa dificuldade. Fenomenologia transcendental estática A segunda etapa no desenvolvimento do pensamento de Husserl foi essencialmente marcada pela introdução da redução fenomenológica transcendental e pela análise fenomenológica estática da percepção sensível. Essa nova concepção da fenomenologia encontra o seu auge nas Ideias Directrizes para Uma Fenomenologia (1913). Do ponto de vista metodológico, esta obra distingue-se pela introdução de um idealismo transcendental que faz depender a existência de todo o objecto da existência de uma consciência constituinte. Mas o seu avanço mais significativo consiste no alargamento do campo da fenomenologia aos objectos tal como eles são visados por e dados à consciência constituinte. É apenas graças a essa consideração dos objectos enquanto fenómenos puros (ou «noemas») que a fenomenologia pode descrever a correlação entre as vivências intencionais (ou «noeses») e os seus objectos noemáticos sem ultrapassar os limites traçados pela redução fenomenológica. Os «fenómenos puros» da fenomenologia compreenderão portanto doravante, além dos actos da consciência, os seus objectos intencionais. O próprio mundo real se torna assim um fenómeno, ou seja qualquer coisa que se dá e se constitui progressivamente no decurso da experiência. Como é sobretudo da possibilidade de um conhecimento verdadeiro do mundo que se ocupa a fenomenologia transcendental, compreende-se melhor porque atribui ela tanta importância à análise da percepção sensível. Tomada no seu significado transcendental, ou seja constituinte, essa percepção não é apenas a descoberta de uma coisa do mundo, mas a justificação do seu sentido e da sua realidade na base da sua doação intuitiva. Para além do seu contributo decisivo para um esclarecimento fenomenológico do velho «enigma» da existência do mundo e de um conhecimento verdadeiro que se refira a ele, a análise transcendental da percepção conduz igualmente em Husserl a uma concepção original da finitude do sujeito transcendental, bem como a uma análise fenomenológica de novas formas de vivências intencionais (a imaginação, a lembrança, a empatia) e da

sua estrutura temporal. São sem dúvida estas análises minuciosas das diferentes formas da consciência intencional, da sua estrutura temporal e dos diferentes modos de ser do sujeito transcendental (ego, mónada, pessoa, comunidade intersubjectiva e generativa) que elas implicam que constituem o contributo mais fecundo e mais duradouro da fenomenologia husserliana para a filosofia contemporânea. Contrariamente à percepção «interna» de uma vivência da consciência, a percepção «externa» de uma coisa espacial caracteriza-se por um alcance intuitivo que permanece necessariamente «inadequado». Embora visando a coisa inteira, cada percepção deve com efeito contentar-se com uma doação somente parcial ou, para falar como Husserl, com simples «esquissos» (Abschattungen) da coisa. É certo que no decurso do processo perceptivo novos esquissos se oferecem, um após outro, ao sujeito, mas não é menos certo que nenhum deles (nem a sua soma) alguma vez realiza uma doação total e definitiva de todos os aspectos da coisa. O processo de percepção de uma coisa espacial está portanto marcado por uma insuperável finitude, e essa finitude manifesta-se sob a forma de um progresso indefinido, ou seja ilimitado, do processo perceptivo. Se a intuição no duplo sentido da percepção sensível e da «intuição das essências» é efectivamente o modo fundamental do conhecimento transcendental, Husserl atribui porém o maior cuidado à análise das formas derivadas da consciência intuitiva, como os actos de «lembrança» (Wiedererinnerung), «de imaginação» (Phantasie) e «de empatia» (Einfühlung). Esses são os que Husserl chama actos de «presentificação» (Vergegenwärtigung), ou seja actos intencionais cujo objecto, embora intuitivamente dado, não está imediatamente presente. O exemplo simultaneamente mais simples e mais esclarecedor de um tal acto de presentificação é a lembrança. O objecto intencional da lembrança é um objecto passado ou, mais precisamente, o objecto de uma experiência passada. Esse objecto é-me dado intuitivamente no presente acto da lembrança, não como presente, mas como pertencente ao passado. Na lembrança, a consciência intencional consegue pois o feito de tornar presente o passado sem por isso o confundir com um objecto presente, ou seja conservando-lhe o seu carácter passado. Segundo Husserl essa lembrança distingue-se essencialmente de uma percepção pelo facto de ser a vivência da «reprodução» de uma percepção anterior. É nisso que a lembrança se aparenta ao acto de uma imaginação intuitiva. Esta é uma «quase-percepção», ou seja a percepção de uma cena

ausente «como se» ela estivesse efectivamente presente. Em lugar de ser, como a lembrança, a reprodução de uma percepção anterior, a imaginação seria pois a reprodução produtiva de uma percepção fictícia. Com a empatia, a consciência presente cumpre um passo suplementar na conquista fenomenológica da ausência. Enquanto o objecto intencional da lembrança e da imaginação, embora estando ausente, permanece essencialmente ligado à minha consciência, já não é esse o caso da consciência de outrem tal como eu a «apresento» no meu acto de empatia. A consciência de outrem nem por isso me é inacessível, uma vez que ela se dá a mim através da camada «expressiva» do corpo do outro. O corpo expressivo de outrem dá-me portanto acesso à sua vivência ao mesmo tempo que me faz compreender, como Husserl se apressa a acrescentar, que tal vivência permanece para mim (mas não para o outro) inacessível. Sem entrar no detalhe destas análises prodigiosamente inovadoras de uma consciência presente que visa algo que escapa à presença, devem reter-se pelo menos duas coisas: primeiramente, que não se pode, a bem dizer, qualificar a fenomenologia husserliana da consciência transcendental como «metafísica da presença» (como o fez Derrida no seguimento de Heidegger); e em segundo lugar, que a fenomenologia de Husserl é, na sua expressão mais radical, uma fenomenologia da temporalidade da consciência. É, com efeito, da sua essência temporal que a consciência intencional tira o seu poder de se dirigir ao encontro do ausente (quer se trate do passado e do futuro, de um mundo imaginário ou da vivência inacessível a um outro sujeito). Longe de coincidir com ela mesma, a consciência está já sempre afastada do seu ponto de emergência num agora. Embora não fazendo mais do que passar, a consciência tem o poder de «reter» o seu passado e de regressar ulteriormente a ele num acto de lembrança. Retendo com uma mão as suas experiências passadas e estendendo («protensão») a outra mão para experiências futuras ainda por vir, a consciência, na sua presença passageira, é sempre a herdeira de uma consciência passada que ela não cessa de ultrapassar abrindo-se a novas experiências. Compreende-se melhor, a partir daí, como esta meditação sobre a essência temporal da consciência está na origem de uma refundação da fenomenologia que leva ao abandono da análise estática de uma correlação intemporal entre noese e noema em favor de uma nova fenomenologia genética. Fenomenologia transcendental genética

Com a fenomenologia transcendental genética, chegamos à terceira etapa do desenvolvimento do pensamento de Husserl. Entre as obras publicadas durante a sua vida, referir-nos-emos de preferência às Meditações Cartesianas (1931, § 37-39). Pode dizer-se que a fenomenologia genética se ocupa da «génese» dos actos da consciência transcendental e dos seus objectos intencionais e que ela se debruça assim sobre as formas de experiência que precedem e tornam possíveis as correlações intencionais estudadas pela fenomenologia estática. Ao dizer-se que todo o acto intencional tem uma génese quer dizer-se que ele porta em si a herança de outros actos que o precederam e que influenciam a sua maneira de apreender as coisas e o mundo. Do mesmo modo, a maneira de aparecer das coisas e do mundo testemunha um trabalho anterior de constituição do seu sentido. Por conseguinte, a fenomenologia inquire doravante não só os fenómenos dados mas também o que é «pré-dado» à consciência. Husserl insiste muito particularmente no facto de a génese dos actos ser matéria de passividade ou de «síntese passiva». Essa síntese passiva, que estabelece já ligações entre diversas vivências da consciência antes de toda a actividade e antes de toda a «tomada de posição» por parte do sujeito, cumpre-se sobretudo sob a forma de «associações»: uma vivência associa-se por si mesma (por semelhança ou contiguidade) a uma outra e «desperta» ou convida assim o sujeito a voltar-se para essa unidade passivamente assumida. Com a investigação das sínteses passivas, a fenomenologia genética abre-se a toda uma série de fenómenos novos. São antes de mais fenómenos do despertar da actividade subjectiva (sono e vigília, nascimento, tomada de interesse, conversão conduzindo a um estilo de vida novo, etc.). São seguidamente fenómenos da preservação das aquisições da actividade subjectiva (formação de hábitos da vida transcendental, de competências subjectivas, de estilos de vida individual, etc.). A consideração das sínteses passivas conduz assim a uma remodelação do conceito da subjectividade (e da intersubjectividade) transcendental: sendo cada acto tomado numa cadeia associativa com outros actos (passados, futuros, efectivos e possíveis), e estando o sujeito indissociavelmente implicado num conjunto ilimitado de actos, a subjectividade transcendental, longe de ser um simples pólo de identidade (como em Kant e no primeiro Husserl), ocupa-se de conteúdos de experiência e concretiza-se ao individualizar-se. Para falar como Husserl, o sujeito transcendental faz-se «mónada» ou «pessoa». Como uma tal mónada transcendental já está sempre associada, no curso da sua experiência subjectiva, com a vida de outras mónadas, a subjectividade no sentido da fenomenologia

genética já é sempre «intersubjectividade», ou seja comunidade de vida transcendental. Essa comunidade transcendental vem seguidamente objectivarse no mundo através de diversas formas de instituições ético-sociopolíticas, cuidadosamente inventariadas pela filosofia social de Husserl. Mas a fenomenologia genética não se interessa somente pela génese das actividades subjectivas, pelo nascimento e desenvolvimento de uma vida transcendental pessoal, pela formação de comunidades transcendentais cada vez mais vastas; ela preocupa-se também com a génese dos objectos da consciência intencional. Tal como as vivências subjectivas, os objectos intencionais jamais aparecem isolados, mas, pelo contrário, como que ligados entre si, remetendo uns para os outros no seio de um mesmo mundo. Isso fora estabelecido desde a fenomenologia estática, que já havia mostrado como cada objecto intencional fazia parte de um «horizonte intencional» que implicava outros objectos. O que é novo na fenomenologia genética é que essa doação horizontal do mundo (como aliás de todos os objectos desse mundo) é examinada quanto à sua génese. Revela-se assim que a doação de um objecto não remete apenas para a de outros objectos (passados, futuros, implicitamente «covisados», aparentes e invisíveis ou ocultos), mas que ela pressupõe sempre já a «pré-doação» (Vorgegebenheit) de um mundo. Esse mundo aparece-nos com um sentido que tanto foi constituído por nós mesmos, como foi herdado da actividade constitutiva das gerações precedentes. Desde logo podemos compreender melhor como a fenomenologia genética, após haver posto em evidência diversas formas de comunidade transcendental que implicam várias gerações e diferentes «mundos familiares» (Heimwelten), se transformou numa fenomenologia da história que se preocupa com o devir racional de toda a humanidade. Resta ainda mencionar pelo menos esse outro vasto campo de investigação da fenomenologia genética que concerne a génese dos juízos e das categorias lógicas a partir de experiências «antepredicativas», por exemplo da percepção de «tipos» de objectos sensíveis. Essa «genealogia da lógica», valorizando a dívida do pensamento formal para com a experiência sensível e o «mundo da vida» (Lebenswelt), foi exemplarmente conduzida nessa obra essencial de Husserl que é a Lógica Formal e Transcendental (1929) bem como em Experiência e Juízo (1939), obra póstuma editada graças aos cuidados de Ludwig Landgrebe. Fenomenologia transcendental da história

A obra mestra do último período do seu pensamento, no qual Husserl se interessa cada vez mais pela fenomenologia da história, é a Crise das Ciências Europeias (1936-1937). Num contexto de crise que afectava simultaneamente a fundação interna das ciências objectivas e o contributo destas para as «necessidades da vida», Husserl conclui pela necessidade de um exame fenomenológico da história do pensamento científico e das suas derivas. Esse «questionamento às arrecuas» (Rückfrage) da história deve levar-nos a uma «reactivação» da «evidência original» a partir da qual o pensamento científico ganhou asas. Continua portanto a tratar-se de uma fundamentação fenomenológica da validade dos objectos ideais da ciência a partir de uma intuição transcendental originária, mas essa origem transcendental é agora compreendida como um facto histórico e, mais precisamente, como um «facto histórico transcendental». Isso quer dizer pelo menos três coisas: 1) que essa origem intuitiva transcendental só é acessível através de um questionamento de uma intencionalidade que é de natureza histórica; 2) que essa origem intuitiva é solidária com o contexto histórico de um «mundo da vida» particular; 3) que a fenomenologia é levada a interrogar-se sobre o sentido e a possibilidade de uma «transmissão» histórica de uma evidência original e do seu significado universal para toda a humanidade. Todas essas novas tarefas da fenomenologia transcendental têm em comum torná-la particularmente atenta a diversas formas de uma intricação originária entre uma origem histórica e o seu destino (telos) racional, entre o sentido ideal de uma evidência científica de âmbito universal e a sua inscrição numa linguagem particular, entre necessidades transcendentais e a facticidade de eventos empíricos. Isso é dizer que esta nova fenomenologia da história, ao valorizar uma «facticidade transcendental», é levada a repensar de alto a baixo o seu próprio carácter eidético. Nunca estando a transmissão histórica do sentido ao abrigo de uma perda de sentido, é incontestavelmente a mediação sobre os fenómenos de «crises» de sentido que constitui o contributo mais original da fenomenologia husserliana para a filosofia da história. Esta nova concepção de uma historicidade transcendental põe bem em evidência a tensão entre o empirismo e o idealismo transcendental que percorre toda a obra de Husserl. Por um lado, ele debruçar-se-á, com a sua minúcia habitual, sobre a «sedimentação» e a «incarnação» das intuições transcendentais na linguagem escrita e prestará a maior atenção às formas da «auto-objectivação« (Selbstobjektivation) ou da «mundaneização» (Verweltlichung) do sujeito transcendental. Por outro lado, jamais renunciará à

ideia de que a história dos factos pressupõe o a priori de uma «teleologia universal da razão» da qual a fenomenologia transcendental se deve tornar guardiã. RUDOLF BERNET

O empirismo filosófico francês Pierre Maine de Biran, Henri Bergson, Gilles Deleuze

Maine de Biran (1766-1824), Bergson (1859-1941) e Deleuze (1925-1995) são três figuras maiores que balizam, ao longo de dois séculos, uma corrente de pensamento original da filosofia francesa, ligando entre si obras singulares cuja filiação se prende, não com o alinhamento explícito numa doutrina constituída, mas com a convergência de uma inspiração a que se poderá chamar «empirista», num sentido porém distinto daquele que classicamente se atribui a tal termo quando ele é referido à tradição anglo-saxónica. Para este empirismo, com efeito, a experiência não funciona no quadro limitado de uma teoria crítica do conhecimento que exiba a origem sensível das nossas ideias. Quer se trate do sentimento do esforço em Biran, da intuição da duração em Bergson, ou do choque produzido pelo objecto transcendente sobre as nossas faculdades em Deleuze, de cada vez a experiência impõe algo de «novo», que não pode ser nem deduzido, nem construído, mas somente encontrado ou achado em favor de um contacto imediato que convida à renovação do que significa «pensar». Decerto que, de Biran a Deleuze, este empirismo não cessa de se transformar, e perde assim, na sua versão deleuziana, ao mesmo tempo a sua dimensão reflexiva – em virtude da qual a experiência envolve um acto de percepção de si – e o seu carácter metafísico, se entendermos por isso a sua abertura a um conhecimento do real, bem como a sua base psicológica, separando-se a experiência em Deleuze de toda a referência a uma interioridade subjectiva. Além disso, o empirismo deleuziano permanece completamente alheio às considerações religiosas, pelo contrário decisivas nas últimas filosofias de Bergson e de Biran, ainda que a experiência da comunhão com Deus se faça, neste último sobre o fundo de uma experiência anónima e impessoal conquistada à custa de um processo de dissolução do eu que não deixa de ter afinidade com uma das opções principais da filosofia deleuziana647. Mas para além destas diferenças reais, a unidade profunda deste empirismo assenta numa recusa de toda a filosofia, racionalista ou sistemática, que

pretenda engendrar por si mesma o seu próprio movimento, isolar de maneira dedutiva o seu princípio, reflectir um objecto dado de avanço. Há nesta iniciativa um a priori, que se prende com um uso lógico do pensamento, tendência da qual Biran, Bergson e Deleuze entendem denunciar o carácter vago, arbitrário e geral e, nos termos de Deleuze (que valeriam igualmente para os seus predecessores), o «truque dialéctico em que não se faz mais do que reencontrar aquilo que já se havia dado de avanço e de onde não se tiram outras coisas senão aquelas que lá se puseram648». Os três pensadores apelam pelo contrário ao movimento da experiência real, apoiando-se a cada passo na «vida» como tema ofensivo da sua filosofia. Essa referência à vida adquire decerto um sentido diferente para cada um: como «vida interior» em Biran, «biológica» em Bergson, «produção imanente do real» em Deleuze. Resta que ela está no cerne de uma perspectiva comum onde não é objecto nem de uma intuição intelectual que a visasse como uma essência, nem de uma fenomenologia que se esforçasse por a descrever sob a forma de vivências da consciência. Ela inspira antes um «empirismo genético» que exprime a recusa em se remeter aos cortes admitidos pela filosofia: à decomposição espontânea das faculdades em Biran, ao «todo feito» e ao «já dado» em Bergson, aos universais e às condições abstractas em Deleuze. Todos exigem em vez disso uma explicação das coisas que se possa dizer «real», na medida em que invoque, não princípios primeiros, mas uma experiência singular (do esforço, da duração e do pensamento), que é sempre origem de uma diferença que muda tudo, uma vez que, a partir dela, a necessidade parece, para o pensamento, romper com os seus quadros pré-existentes (o sensualismo dos seus contemporâneos em Biran, o espaço em Bergson, a representação em Deleuze), para se compreender de um outro modo. Biran e a fundação de um «empirismo novo» No seu Quadro da Filosofia Francesa (1962), Jean Wahl atribui a Maine de Biran o crédito de haver inventado um «empirismo novo649». O projecto biraniano parece contudo inscrever-se antes de mais na continuidade racionalista de um Descartes, uma vez que, no seguimento deste último, ele se baseia inteiramente na apreensão de uma verdade primeira absolutamente evidente conquistada pelo sujeito. Mas, contrariamente ao que se passa em Descartes, essa verdade não releva para Biran de uma evidência de entendimento obtida pelos meros recursos do pensamento uma vez afastada a

experiência sensível. Ela surge antes apesar dessa experiência: quando se esforça, o eu experimenta, segundo Biran, uma resistência que lhe permite, por diferença com o termo resistente, tomar consciência de si mesmo como causa. A força que se revela por ocasião dessa experiência é chamada por Biran «hiperorgânica», pois ela não resulta nem de uma combinação dos órgãos entre si, nem de uma causalidade exterior, mas de uma origem que se faz reconhecer como independente: a vontade. A polarização da percepção imediata interna sobre a actividade do eu abre caminho a um empirismo singular. Tal empirismo distingue-se a um tempo do de um Condillac (1715-1780), do qual está aliás muito próximo no seu início, e do de um Hume (1711-1776). Ao empirismo sensualista do primeiro, igualmente partilhado por aquilo a que no início do século XIX se chama «a ideologia», essa ciência das ideias e da origem dos nossos conhecimentos destinada a ocupar o lugar da metafísica, Biran opõe, com o esforço voluntário, uma experiência interior, irredutível à experiência exterior das sensações. O que Biran reprovará portanto aos seus antecessores é também, uma vez reconhecidas com eles a insuficiência de toda a acção a priori e a abstracção dos sistemas, um defeito do empirismo, ou seja da atenção dirigida à estrutura da nossa experiência, carecendo eles de uma dimensão essencial desta. Com o esforço, Maine de Biran supera o ponto de vista estático e descritivo dos ideólogos, que se atêm aos fenómenos físicopsicológicos dados, sem serem capazes, por não se aperceberem da natureza real do eu, de decompor o pensamento nos seus elementos últimos. Por outro lado, ao contrário de Hume, para quem o sujeito se resolve numa multiplicidade de impressões sem ligação, o eu, segundo Biran, está presente a si mesmo numa unidade indivisível. Sobretudo, o eu percebe-se a si mesmo como uma potência causal, que Biran mostra – contrariamente a Hume, que a concebe como um efeito da imaginação – ser realmente dada. Enfim, contra o princípio humeano segundo o qual as relações são exteriores aos seus termos, a experiência biraniana do esforço impõe a inseparabilidade dos termos da relação primitiva considerada como «unidade dual», na qual os termos não são factos em si mesmos, mas elementos revelados pela instauração da relação entre eles. Mas para além desse primeiro aspecto do seu pensamento, que poderia surgir como uma sofisticação da ideologia consistindo em desdobrar a experiência unitária dos ideólogos, Biran irá dar a partir de 1816 um alcance metafísico ao seu empirismo, radicalizando assim a ruptura com os seus antecessores. Biran vai apoiar-se na psicologia enquanto domínio onde o eu não está simplesmente

presente a si mesmo, mas dado como uma realidade. Tomando a existência por objecto, a psicologia com efeito apresenta-se como sendo por excelência a ciência que está em contacto com o real. Contra Kant, que a destitui de toda a pretensão ao conhecimento650, e contra aquilo a que ele chama a «metafísica pura», à qual reprova ater-se a princípios a priori e a uma certeza puramente lógica, Biran esforça-se por tornar a dar à psicologia um conteúdo real fundado na experiência, assegurando com efeito a percepção do facto primitivo uma via de acesso directo à existência real, algo que a filosofia de Kant interditava ao nosso entendimento finito. A via assim aberta por Biran é efectivamente a de um empirismo de novo género que, diferentemente daquele que se baseia nas impressões e nas sensações, estabelece que a experiência não resulta de uma síntese ou de uma construção, mas é antes a fonte de uma unidade real que revela um acto ou um ser. Para este empirismo, a causa, a substância ou a identidade não são nem noções abstractas nem ideias da razão, mas factos cujo tipo é a vontade; inversamente, a experiência constitui uma fonte de verdade metafísica, servindo a impressão original do esforço como modelo e fundamento aos nossos princípios (causalidade, unidade, sujeito, etc.). É nos aspectos desse empirismo, ainda que de uma maneira sempre diferente, que se empenharão Ravaisson (1813-1900) e, depois dele, Bergson, o primeiro através da experiência do hábito, o segundo com a do tempo. No seguimento de Biran, é com efeito da experiência subjectiva que Ravaisson e Bergson tornarão a partir, e o filósofo, segundo eles, deverá fazer-se primeiramente psicólogo. Tal como é sem abandonar a experiência subjectiva que Biran alarga nos seus últimos escritos o âmbito das suas investigações na direcção de Deus, abrindo-se ao sentimento de uma passividade superior que exceda a actividade e a individualidade do eu, é afundando-se em si mesma que a consciência acederá, tanto em Ravaisson como em Bergson, ao princípio metafísico do real. Bergson e o «empirismo verdadeiro» Na «Introdução à Metafísica651», o seu esplêndido artigo-manifesto, publicado pela primeira vez em 1903 na Revista de Metafísica e de Moral, Bergson entende ripostar ao «eclipse parcial da metafísica» que segundo ele atinge a filosofia desde há cinquenta anos. Contra o pensamento sistemático alemão, principalmente o de Kant que então domina a cena filosófica, Bergson esforça-se por restabelecer a possibilidade e os direitos de um conhecimento do

real, arruinados pelo pensamento crítico kantiano que estabelece um afastamento irredutível, consequência da nossa finitude, entre o ser e o pensamento. Ora, segundo Bergson esse conhecimento só é possível na condição de a metafísica se tornar um «empirismo verdadeiro652». A expressão indica claramente a direcção que a filosofia deve seguir segundo ele: superar Kant sem abandonar a experiência. Porém, falar de um empirismo «verdadeiro» sugere que esse empirismo singular se demarca de um outro, aquele que se refere a Hume e, mais próximo de Bergson, ao associacionismo de Mill (1806-1873), Taine (1828-1893) e Spencer (1820-1903). A originalidade desse empirismo não pode porém aparecer senão em favor de um regresso ao ponto de partida da filosofia de Bergson. Esse ponto de partida, Bergson não cessa de recordá-lo, reside na crítica de uma confusão do espaço e do tempo que nos força a conceber este último como uma «linha», e a distinguir nele «instantes» ou «momentos» que seriam como que suas «partes», segundo determinações que não são portanto temporais mas que pertencem efectivamente ao espaço: homogeneidade, descontinuidade, divisibilidade. Para pelo contrário atingir o tempo enquanto tal, aquilo a que Bergson chama a «duração», ter-se-ia precisamente de suspender esse acto de concepção espacial que vulgarmente lhe aplicamos. O tempo apareceria então na sua realidade imediata sob a forma de uma pura continuidade, segundo um acto de síntese primitivo da nossa consciência, e não como uma sequência de instantes, segundo o acto de representação espacial da nossa inteligência. A esse conhecimento imediato da duração, fundamento do seu empirismo, Bergson chama «intuição». Ela constitui o modelo de um conhecimento perfeito, e designa o contacto directo com uma realidade singular dada de maneira análoga àquela pela qual nos relacionamos com o tempo quando o vivemos e o sentimos, em lugar de o visar ou de o descrever. O erro do empirismo clássico, e da psicologia associacionista que ele inspira, é justamente o de que ele se prende não com a experiência imediata, real, e com a sua estrutura própria, mas com a sua reconstrução no espaço. Ele não tem assim a ver com uma representação simbólica dos estados de consciência, onde a intuição reencontraria a unidade real, ou seja temporal, do eu. O sentido que Bergson dá à intuição não é porém apenas crítico. Ela ensina-nos sobretudo que não estamos definitivamente arredados do ser, segundo o diagnóstico kantiano, trata-se de uma situação provisória e contingente, porquanto não consigamos libertar-nos do ponto de vista espacial da nossa consciência reflectida, que decerto facilita a nossa acção sobre o real, mas nos isola das

coisas e de nós mesmos. A tarefa que Bergson atribui à intuição consiste então, nos seus próprios termos, em «ir procurar a experiência na sua origem, ou antes acima daquela viragem decisiva em que, inflectindo-se no sentido da nossa utilidade, ela se torna propriamente experiência humana653». Bergson substitui a distinção kantiana entre «fenómeno» e «coisa em si» pela de dois sentidos da experiência: um, pragmático, relativo às nossas necessidades, o outro metafísico e directo, decalcado das próprias coisas. O que sugere a imagem da «viragem» é que não há ruptura entre os dois pontos de vista, e que não se trata portanto de romper com a experiência, mas antes de a acometer para alcançar, aquém das divisões artificiais da nossa acção e da nossa inteligência, as articulações do real. É por isso que Bergson define a metafísica como a «experiência integral654». Com esse termo, ele entende sustentar que a realidade é integralmente acessível à experiência, e que não há nada que esteja fora do seu alcance, incluindo o eu, o mundo e Deus, que Kant tornava inacessíveis ao nosso conhecimento pelas ideias da razão. A metafísica apresenta-se então como um processo de conhecimento aberto que efectua, segundo o modelo matemático da integral, a integração de experiências múltiplas praticadas em diversos domínios. Daí decorrem três consequências maiores para a filosofia. A filosofia deve antes de mais transferir os seus grandes problemas para o terreno dos «factos», segundo uma modulação contínua do pensamento com o real. O empirismo bergsoniano exprime também a recusa de uma fusão com o ser em geral: o contacto com o absoluto é sempre parcial, ligado a uma experiência singular e a um conteúdo empírico limitado. O empirismo implica enfim uma crítica e um abandono da exigência sistemática em filosofia: cada uma delas deve renunciar à ambição de ser toda a filosofia. Não há portanto verdade global e definitiva, mas uma acumulação de resultados que alimentam uma probabilidade crescente em múltiplas «linhas de factos». O empirismo, ao mesmo tempo que a reconduz à modéstia, preserva assim a filosofia da abstracção e das soluções verbais, abordando-a numa perspectiva em que, ao mesmo tempo que ela entra numa relação de colaboração essencial com as ciências, se torna verificável. A influência do empirismo bergsoniano na filosofia francesa do século XX não é facilmente identificável sob as feições de uma «corrente» ou de uma «escola». Ele inspira antes obras singulares onde se acha mobilizado em múltiplos pontos de vista. Encontramo-lo assim em Wahl (1888-1974), que

reivindica uma ligação ao empirismo metafísico de Bergson, embora cruzandoo e fazendo-o dialogar com o empirismo anglo-saxão, em particular com James (1842-1910) e Whitehead (1861-1947); ou ainda num Simondon (1924-1989), cuja teoria da individuação exige – a partir do caso da operação técnica da moldagem, e para lhe captar o processo real – que se abandone o esquema hilemórfico herdado de Aristóteles, a fim de «penetrar no próprio molde para seguir o processo da tomada de forma655», segundo uma atitude de pensamento estranhamente próxima da intuição bergsoniana. Resta dizer que a obra que manifesta a influência e a retoma mais profundas do empirismo bergsoniano é seguramente a de Deleuze, que tira dele uma inspiração decisiva. Deleuze e «o empirismo transcendental» Até ao seu último texto, publicado em 1995, ano da sua morte, «A imanência: uma vida656», Deleuze não cessou de reivindicar a sua profunda ligação ao empirismo. Não é porém logo à primeira para Bergson – ao qual dedica aliás uma obra essencial em 1969657 – que Deleuze se volta, mas para Hume, desde o seu primeiro livro, Empirismo e Subjectividade (1953). Segundo Deleuze, o contributo decisivo do empirismo humeano reside na crítica do sujeito substancial que faz surgir o carácter derivado e construído deste. Longe de ter um estatuto primitivo ou originário, o sujeito é o efeito de uma reunião de impressões contingentes que se efectua em virtude de princípios de associação. Deleuze retoma essa génese empirista por sua conta para a opor a todas as filosofias que se referem à unidade de um sujeito estabelecida como função constitutiva: cogito de Descartes, «eu penso» de Kant, «ego transcendental» de Husserl. Contra essa tradição que o liga a um acto (de juízo, de síntese ou de percepção), Deleuze pensa o sujeito como o resultado de uma síntese temporal passiva, a do hábito, que opera ao nível de uma sensibilidade vital primária, sob as sínteses activas do entendimento e da memória. O sujeito não é assim o que funda ou o que explica, mas o que deve ele mesmo ser explicado. Ora tal explicação supõe que se adopte uma perspectiva em que o sujeito não está ainda constituído, precisamente aquela cuja invenção cabe ao empirismo, segundo Deleuze, que lhe dá o nome de «experiência pura» ou de «campo transcendental». Estas expressões designam um plano de experiência neutro, impessoal, a-subjectivo, anterior a toda a dualidade entre o sujeito e o objecto, a matéria e a forma, o físico e o mental, etc. A experiência aqui invocada não é

portanto em caso algum a dos sentidos, lugar da percepção sensível estruturada pela memória, o entendimento e a razão, mas a experiência como fluxo aleatório de dados contingentes. Mais perto de si, e seguindo esta mesma inspiração, Deleuze reencontra o «empirismo radical» de um William James, que ele descobre através dos dois grandes livros de Wahl, As Filosofias Pluralistas da Inglaterra e da América (1920) e Rumo ao Concreto (1932). A conquista e a exploração dessa experiência pura são o objecto daquilo a que Deleuze chama um «empirismo transcendental». O termo «empirismo» pretende indicar que o pensamento não se exerce realmente a menos que se abra a um dado encontrado no instante de uma violência constitutiva. O empirismo opõe-se por isso ao racionalismo enquanto tipo de um pensamento que pretende deter em si mesmo as condições do seu exercício. Mas este empirismo é ao mesmo tempo «transcendental», porque se esforça por determinar as condições do pensamento. Simplesmente, essas condições concernem a experiência real e não a experiência possível, segundo uma acção que não opõe o facto ao direito, mas propõe uma nova repartição entre ambos os domínios, na qual o direito já não remeta, como em Kant, para uma condição de possibilidade, mas para um processo real de efectuação. Ora o exercício real do pensamento começa com um «choque» que violenta as faculdades levando-as ao seu limite. Tal limite constitui para cada faculdade o seu objecto «puro» ou «transcendente», aquele que a eleva a uma potência superior. O insensível para a sensibilidade, o imemorial para a memória, o impensável para o pensamento. O limite não define aqui as condições de uso de uma faculdade para um domínio de objecto prefigurado em vista desse uso (círculo vicioso, segundo Deleuze, do transcendental kantiano «decalcado» do uso empírico); ele torna-se antes uma espécie de «fissura» constituinte, que põe cada faculdade num estado de impotência criadora visto ela ser constrangida a modificar-se para acolher o seu objecto. Mas se o pensamento é passivo na sua génese, em compensação ele é activo no seu processo. No empirismo deleuziano, a experiência comporta com efeito dois aspectos que remetem para dois momentos: 1) um momento patológico, em que o pensamento é afectado por qualquer coisa que o força a exercer-se; 2) uma fase activa, propriamente criativa, que funda a definição deleuziana do pensamento como «experimentação». «Experimentar» deve então ser entendido em pelo menos três sentidos: o pensamento tenta direcções novas, inéditas, em ruptura com o seu uso espontâneo e empírico; ele participa de maneira activa naquilo que tenta, e acha-se profundamente afectado,

modificado, por isso; ele empenha-se num processo do qual ignora a saída ou o resultado. Para definir as condições deste processo, Deleuze apoia-se no modelo da «aprendizagem», que opõe ao esquema idealista do «saber». Enquanto o «saber» remete para um movimento puramento lógico do pensamento, onde tudo está já dado, jogado antecipadamente, e onde não se trata afinal senão de aplicar regras, de executar um método, de subsumir dados sob um conceito, etc., «aprender» consiste, no modelo das relações do vivente com o seu meio, em empenhar-se na construção de respostas a dados imprevisíveis, a circunstâncias novas, abrindo-se a relações singulares, cuja descoberta só se faz segundo encontros contingentes e arriscados. Na sua efectuação, o empirismo deleuziano é inseparável de um «pluralismo». Em Nietzsche e a Filosofia (1962), Deleuze apresenta o «pluralismo» como uma reabilitação anti-idealista do múltiplo. Contra Platão, que não cessa de opor à multiplicidade empírica a unidade da ideia, e contra Hegel que, no início da Fenomenologia do Espírito, faz do múltiplo (este, isto, aqui, agora, etc.) o elemento de uma consciência balbuciante e incapaz de se elevar ao conceito, Deleuze reivindica o pluralismo como arte filosófica cuja actividade consiste em inventários, tipologias e combinações encarregadas de percorrerem os casos singulares da experiência. O pluralismo não pergunta «O que é?», questão da essência, mas «Quem?», «Quando?», «Como?», «Onde?», etc., perguntas que definem a atitude empirista por excelência. Daí resulta uma importância decisiva das conexões – aquilo a que Deleuze chama «agenciamentos» – do pensamento com casos singulares que o constranjam nos seus movimentos e nos seus conceitos. Simplesmente, tais casos nunca são dados brutos da sensação, nem vivências da consciência. Eles remetem sempre para um material elaborado no seio de práticas diversas (filosóficas, científicas, técnicas, artísticas, etc.). É que o imediato, para Deleuze, não é dado a uma consciência ou a um sujeito, mas sempre capturado em dispositivos sofisticados (obras de arte, conceitos, teorias científicas), ao ponto de o empirismo deleuziano ser inseparável de uma filosofia da cultura. Decerto que, de Biran a Deleuze, as características e os considerandos do empirismo filosófico francês não cessam de variar. Mas, para além de uma mesma oposição a Kant que definiria negativamente essa filiação, há um motivo comum que reúne estas obras e remete para a sua inspiração profunda. Esse motivo é o da «novidade» que afecta sempre o pensamento ao transtornálo: «espanto» de existir em Biran, «surpresa» perante a duração em Bergson,

«choque» do encontro em Deleuze. Essa novidade é como que a assinatura deste empirismo, a marca de um pensamento que não se funda em si mesmo, que não possui a priori as condições do seu exercício, mas que descobre, na singularidade de uma experiência, a necessidade de pensar de outro modo. ARNAUD BOUANICHE 647 Ver G. Deleuze, «L’immanence: une vie», in Deux régimes de fous, Paris, Minuit, 2004, p. 361. 648 G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, «Quadrige», 2003, p. 128. 649 J. Wahl, Tableau de la philosophie française, Paris, Gallimard, 1962, p. 72. Encontra-se essa mesma expressão, a respeito de Biran, sob a pena de D. Janicaud, em Ravaisson et la métaphysique, 1997, p. 142. 650 E. Kant, Crítica da Razão Pura. 651 H. Bergson, La Pensée et le Mouvant, Paris, PUF, «Quadrige», 1998, p. 177 e segs. 652 Ibid. 653 Matiére et Mémoire, Paris, PUF, «Quadrige», p. 205 (sublinhados de Bergson). 654 «Introduction à la métaphysique», in La Pensée et le Mouvant, op. cit., p. 227. 655 G. Simondon, L’Individu et sa genèse physico-biologique, Grenoble, Jérôme Millon, 1995, p. 44. 656 G. Deleuze, Deux régimes de fous, op. cit., p. 359 e segs. 657 Ver G. Deleuze, Le Bergsonisme, Paris, PUF, 2004.

A alma posta a nu Da psicologia à psicanálise

A alma é antes de tudo um conceito da filosofia natural; princípio de vida e de animação, ela não é em nada própria ao homem. Para os primeiros filósofos gregos, a alma (psychê) caracteriza-se pela motricidade e possui uma natureza corpórea, consistindo numa matéria subtil (água, ar, fogo). Platão não diz que a alma é incorpórea, mas que ela é imortal e é somente com o neoplatonismo que a natureza incorpórea da alma se tornará o princípio da sua imortalidade. Alma e imortalidade O Fédon articula a questão da alma e a da imortalidade por meio da morte de Sócrates. Pensar a morte é pensar a imortalidade como libertação da alma e seu distanciamento do corpo. Tal é o objectivo da filosofia: ao elevar-se à essência das coisas, o pensamento livra-se do corpo e da mortalidade, desvelando o parentesco da alma e da ideia, e a dimensão ética de tal filiação. Conceber e abstrair-se do sensível é também uma maneira autêntica de existir ao emancipar-se dos prazeres, das riquezas e das honrarias para encontrar um bem verdadeiro. Ora, Sócrates admite que a existência de uma alma separada do corpo não é evidente. Por isso recorre a dois mitos. O primeiro é a antiga lenda que relata o regresso das almas apresentadas no Hades, porque, como toda a vida engendra a morte, os vivos nascem dos mortos. Este argumento dos contrários no eterno movimento da vida e da morte prova que, para pensar um termo, se tem de apreender o seu oposto e que, renascendo o pensamento da negação, a morte só o é para a vida que se esgota com o corpo. O mito da reminiscência vem dar apoio a esta lenda: se o nosso saber é uma recordação daquilo que aprendemos numa vida anterior, a alma deve preceder-se a si mesma. O argumento dos contrários permitia opor o pensamento e o seu nada, o inconsciente; a reminiscência, por seu turno, funda a possibilidade de uma razão em potência, devido à insuficiência do pensamento consciente em relação à nossa exigência de saber e a um inferno que não é somente o Hades, mas o

nosso inferno pessoal, o dos nossos apetites mais obscuros. Mais do que de provas da imortalidade da alma, trata-se aí de hipóteses: parente da ideia, a alma não é porém uma essência e a sua imortalidade tem de conquistar-se. O homem ganha a imortalidade pela sua praxis: segundo a sua conduta, ele morrerá ou imortalizar-se-á e tornar-se-á divino. Kant dirá o mesmo à sua maneira: a imortalidade da alma releva de uma fé racional que depende da nossa acção moral. Sendo a função da alma a de ver as ideias, ela não pode formar uma ideia da mortalidade que não é uma essência e não concerne senão a existência que releva do devir e da física. Realidade intermédia entre o sensível e o inteligível, a alma deve purificar-se enquanto aguarda uma libertação da morte. Ora, enquanto individual e unida a um corpo, ela é composta; a distinção entre uma função racional e uma função desejante permite explicar a participação do inteligível e do sensível. O mito da parelha alada do Fedro, onde cada um dos cavalos puxa a alma para o seu lado e onde o auriga desempenha o papel da instância racional, mostra que o homem é um ser cindido, disputado entre duas instâncias. Se o intelecto é, dirá Aristóteles, a melhor parte de nós mesmos, resta que a alma é a enteléquia, a plena actualização do corpo. Antes de ser intelectiva, a alma é pois vegetativa e sensitiva, no princípio das funções vitais elementares e da percepção. O problema aristotélico é o dos graus do vivente, desde as formas mais elementares da vida até às mais elevadas da existência humana, culminando na vida política e na sageza. A dimensão escatológica que se encontrava em Platão apaga-se então em proveito da questão ético-política relativa às disposições humanas e aos seus diversos tipos de excelência. Com o pensamento cristão, a escatologia reencontra os seus direitos: Santo Agostinho retoma a ideia de uma alma separada do corpo na tradição neoplatónica, embora acentuando a dimensão de interioridade em que a consciência de si é também a via de acesso a Deus. Ao integrar e ao transformar a conceptualidade aristotélica, o pensamento medieval estabelece a superioridade da alma racional para afirmar a sua transcendência em relação ao corpo corruptível. São Tomás demonstra assim a imortalidade da alma baseando-se na imaterialidade do intelecto. O espírito e o corpo Essa tradição será integrada na psicologia racional da metafísica escolar até Wolff, e será Kant que a liquidará ao afirmar que o «Eu penso é o texto único da psicologia racional». No entanto, o gesto kantiano pressupõe a revolução

cartesiana que estabelece a distinção real da alma e do corpo ao referir a pluralidade das almas aristotélicas à unidade da mens, do espírito compreendido como substância pensante. É a partir desse dualismo que opõe o pensamento e o corpo que o inconsciente se vai tornar problematizável. Com efeito, à unidade do espírito acessível ao intelecto opõe-se a complexidade de um corpo acessível ao sentimento, na medida em que o meu corpo não sou eu, embora ele afecte todo o meu ser: há em mim paixões da alma que provêm do corpo, ou seja representações cuja origem não sou eu. É por isso que as nossas primeiras ideias são obscuras e confusas e nos remetem para o corpo e para a exterioridade em geral. Algo inconsciente do pensamento relaciona-se portanto com algo desconhecido do corpo. Ao referir a multiplicidade das almas aristotélicas à unidade do espírito que, como presença própria do pensamento, é a primeira verdade a fazer cessar a dúvida, Descartes define a essência do homem como substância pensante. A dificuldade é então conceber a união dessa coisa pensante com essa coisa extensa que é o corpo, matéria redutível à extensão e inteligível pelas suas meras determinações geométricas. Daí resulta um dualismo que opõe uma metafísica do espírito e uma física materialista. Ora, as dificuldades levantadas pelo mecanismo cartesiano e pelo problema da união da alma e do corpo vão levar a substituir o dualismo por um pan-psiquismo. Espinosa define o espírito como a ideia do corpo existindo em acto, somente se podendo compreender a sua união à alma pelo conhecimento dos mecanismos do corpo. A doutrina do «paralelismo» substitui o dualismo por uma teoria da complexidade: quanto mais um corpo pode ser afectado por uma multiplicidade de coisas, mais o espírito que lhe corresponde pode percebê-las distintamente. Isso não significa que as ideias que formamos sejam necessariamente verdadeiras. Na medida em que percebemos antes de mais efeitos dos quais ignoramos as causas, tendemos a considerar que desejamos livremente as coisas, ao passo que ignoramos os mecanismos cegos que regem os nossos desejos. Se Espinosa define o desejo como apetite inconsciente de si, essa reflexividade do desejo não constitui a essência deste, que reside no conatus enquanto esforço de todo o indivíduo para perseverar no seu ser. Mesmo sendo uma filosofia do sujeito, o pensamento da idade clássica não deixa de especular sobre essa subjectividade. Para os gregos, o exame da essência da alma exigia que se determinasse o lugar dos desejos irracionais numa topologia da alma. Para os clássicos, a redução da alma à unidade do espírito coloca o problema das ideias obscuras e confusas, que constituem a

maior parte das nossas representações: a aposta é a de um domínio psíquico que inclua tanto ideias falsas como afectos e paixões. Se esse domínio escapa de facto ao empreendimento da razão, ele pode não obstante tornar-se objecto de um conhecimento verdadeiro, sendo o modelo de inteligibilidade da afectividade o das ciências da natureza. A psicologia constituir-se-á então na base do modelo destas, a partir de uma psicologização do ego cartesiano. G. Canguilhem nota que a história da psicologia como ciência do sentido interno pode «ser escrita como história dos contra-sensos a que as Meditações de Descartes deram ocasião, sem disso terem responsabilidade658». É no entanto por um mesmo gesto que a constituição da psicologia passa pela crítica do cartesianismo e da ideia de que a alma é «mais apta a conhecer que o corpo». Malebranche afirma que a essência do corpo é mais bem conhecida porque, se temos uma ideia clara da extensão, não temos ideia alguma da alma. A única psicologia possível é portanto empírica, e é em última instância para a fisiologia que nos devemos virar. A consciência A noção de inconsciente não existe ainda e, por outro lado, a consciência não desempenha o papel que se lhe poderia atribuir com demasiada rapidez. O termo «consciência» é pouco usado por Descartes. Utilizado por Coste na sua tradução de Locke para traduzir o inglês consciousness, ele é adoptado pelos cartesianos franceses para designar a interioridade do pensamento e permitir estabelecer a imortalidade da alma. Ora, a noção continua a ser sobremaneira equívoca, designando tanto a presença a si do espírito, ou mesmo a sua imortalidade, como uma reflexividade mais ou menos clara das afecções do corpo. A consciência é em todos os casos uma forma de identidade da pessoa psicológica e moral e, desde que se rejeitem as ideias inatas como faz Locke, ela torna-se o «sentido interno», poder de reflexão do espírito sobre as suas operações. Para Locke, ela é um princípio de continuidade temporal da individualidade independente da substancialidade metafísica de uma alma. É com o idealismo alemão que a consciência se torna um filosofema maior. A distinção kantiana entre consciência empírica e consciência pura significa que, se todas as nossas intuições e representações não são nada «a menos que possam ser recebidas na consciência», então toda a consciência na sua diversidade empírica deve estar ligada num princípio sintético que é uma consciência de si transcendental. Esta é a condição de possibilidade de todo o pensamento: ela precede toda a experiência e torna-a possível. Ela é assim a

condição da consciência empírica que se produz em diferentes graus até à inconsciência659. Kant retoma o problema leibniziano das pequenas percepções inconscientes: quando eu ouço o ruído do mar, ouço confusamente o ruído de cada vaga e de cada gota de água que são diferenciais inconscientes cuja percepção clara do ruído do mar seria a integral. O inconsciente esboça-se em Leibniz como o elemento genético da consciência, tornado inteligível pelo cálculo infinitesimal: a percepção consciente integra as pequenas percepções inconscientes, tornando-se assim objecto de uma análise infinita. Kant reinterpreta o inconsciente diferencial de Leibniz como distanciamento entre o sujeito empírico e o sujeito transcendental. Tendo toda a sensação um grau de intensidade, os diversos graus de intensidade da consciência, indo de 0 a X, são um jogo de variações contínuas, onde o sujeito transcendental é o grau 0, e a consciência empírica de um objecto determinado o grau X. Kant chama «antecipações da percepção» à operação que permita a uma sensação unir-se a um conceito como acto do sujeito transcendental, o qual se torna fenómeno no sujeito empírico segundo um grau de sensação antecipada pelo trabalho inconsciente da imaginação, que é «uma arte escondida nas profundezas da alma humana». O trabalho da imaginação que assegura a síntese da forma temporal do fenómeno e dota o conceito de uma determinação de tempo, de um esquema, para o tornar aplicável aos objectos, pode ser dito inconsciente. A consciência transcendental kantiana é o acto de conceber, de apreender o objecto na sua objectividade, e a revolução coperniciana mostra que a objectividade do objecto é imanente a essa consciência transcendental que pressupõe a consciência comum. O problema não é portanto o da relação da consciência e do seu objecto, mas da consciência empírica e da consciência transcendental que a funda ao superá-la. Sendo um acto e não uma coisa, a consciência transcende-se sem cessar, vai além dela segundo o seu movimento de negatividade. A consciência empírica supera-se pois para se tornar consciência transcendental, e é assim que toda a consciência é sempre mais do que aquilo que crê ser, que o saber é inquieto e deve avançar sem parar. O fenómeno da consciência vai revestir-se de uma importância muito particular com Fichte e Hegel, ao articular-se em torno das noções de desejo e de pulsão. Na esteira do conatus espinosista e da dinâmica leibniziana, Fichte elabora a noção de pulsão como raiz do sujeito actuante. Ao afirmar o primado do agir, ele coloca o Eu na sua oposição ao Não-Eu como pulsão originária susceptível de se reflectir: a consciência resulta de um choque do Não-Eu experimentado pelo Eu como uma inibição que se torna um sentimento

enquanto unidade da passividade produzida pelo choque e da actividade própria à reflexão do Eu. Com estas noções de pulsão e de inibição instala-se uma conceptualidade que se irá reencontrar em Freud. A consciência descobre então uma sua história, compreendendo-se como a aventura de um espírito que se eleva acima da natureza, a qual, segundo Schelling, é o seu passado transcendental. A Fenomenologia do Espírito de Hegel apresenta-se assim como a «ciência da experiência da consciência». A fenomenologia é o romance da consciência, a exemplo do romance de formação, como Wilhelm Meister de Goethe, ele próprio inspirado pelo Émile de Rousseau. Ora, esse romance é uma obra científica, pois o desenvolvimento da consciência procede de uma necessidade imanente. Revelando-se ilusório o que a consciência toma por verdade, o caminho dela é o da dúvida e do desespero. Não se trata mais de uma dúvida metódica prévia como a de Descartes, mas de uma progressão em que a consciência aprende pouco a pouco a duvidar do que anteriormente estimou verdadeiro. Se tal caminho é trágico, é porque a consciência perde nele não só o que tomava por seu conhecimento verdadeiro, mas também a sua vida e a sua visão do mundo. Todavia, se o resultado de uma experiência de consciência é negativo para ela, essa negação é sempre determinada, referindo-se a um conteúdo sempre particular. Essa negação é portanto ao mesmo tempo sempre posição pois, ao descobrir a falsidade do que tomava por verdadeiro, a consciência descobre um novo saber. Conhecer o seu erro é portanto conhecer uma outra verdade: há sempre na negação de um erro a génese de uma verdade. A negatividade é assim imanente ao conteúdo e explica o seu desenvolvimento necessário. Se a consciência ingénua visa desde o início o conteúdo integral do saber sem poder atingi-lo, é preciso que ela faça prova da sua negatividade, permitindo ao conteúdo desenvolver-se em posições particulares que se articulem segundo o movimento da negação. A consciência é portanto primeiramente tomada tal como ela se dá enquanto relação ao Outro, ao objecto. Ora, se esse saber do Outro é também um saber de si, este é igualmente um saber do Outro. O mundo não é assim senão o espelho no qual nos reencontramos, revelando-se a consciência na história dos seus objectos, ao descobrir que essa história é a sua e que, ao conceber o seu objecto, ela se concebe a si mesma. Hegel compreende a consciência de si como um movimento dialéctico, cujo nervo é o desejo de reconhecimento. A consciência de si é a verdade da consciência tal como ela se cumpre no entendimento, que por seu turno descobre não conhecer nada além de si

mesmo. Verdade da vida natural e abertura da vida espiritual, a consciência de si é desejo de si mesma. Percorrendo o caminho do desespero, a consciência é a cada passo despossuída daquilo que ela acreditava possuir. Tanto para Hegel como para Freud, a verdade recalcada dá lugar a uma doença, pois a consciência é sempre um distanciamento entre o sujeito e o objecto e nunca é a verdade, indo a sua experiência de certezas ilusórias a verdades duvidosas. Se cada etapa é uma ilusão, a verdade é a narrativa dessas ilusões perdidas e da sua autodestruição permanente. A história da consciência é portanto a odisseia da verdade que, da certeza sensível ao saber absoluto, percorre um caminho que tanto é o calvário da história quanto a assunção da identidade do pensamento e do ser, da substância e do sujeito. Quando Hegel retoma a teoria aristotélica das três almas na Filosofia do Espírito da Enciclopédia, ela é mediatizada pela filosofia moderna do sujeito. Verdade da natureza como primeiro momento do espírito subjectivo, a alma releva da antropologia, que estuda o homem como pertencente à natureza: ela é antes de mais alma natural, sono do espírito próprio da alma nutritiva, que se individualiza como alma sentinte e se cumpre como alma efectiva e pensante. Permanecendo a alma assim dependente da natureza, a antropologia deve superar-se numa fenomenologia do espírito, mostrando como este aparece a si como consciência, objectivando-se na consciência de si e numa luta pelo reconhecimento onde ele se manifesta como razão universal. Unidade da alma e da consciência, o espírito como espírito livre e activo é então objecto da psicologia. Se ao nível da alma não há mais do que uma inconsciência animal e se ao nível da consciência há o desejo, é somente no plano do espírito livre, enquanto representação que produz imagens e lembranças, que se pode colocar o problema do inconsciente. Enquanto para o pensamento clássico o problema do inconsciente era considerável a partir da afectividade e do desejo, presentemente ele é considerado ao nível da psicologia, pois não é nem natureza nem mero desejo. A existência de um inconsciente irredutível à simples inconsciência supõe a representação como interiorização da intuição. Ora, se, para se conservar, uma intuição necessariamente singular requer uma alusão a si numa imagem, são essas imagens múltiplas do passado, adormecidas no espírito, que estão na origem do inconsciente, verdadeira imagem imersa «no poço da inteligência». O espírito é uma actividade que tem por base o trabalho inconsciente do imaginário que culmina na linguagem e no pensamento. Herdeiro das teorias da pulsão e da interpretação do psiquismo como força, que se encontram em Espinosa, Leibniz e Fichte, Hegel não

oferece porém uma teoria específica do inconsciente. O inconsciente Se portanto a filosofia dá a pensar o inconsciente, ela jamais o explicita como instância psíquica específica. O próprio termo não satisfaz Freud, que lhe vai dar o nome de «id», para o demarcar da sua conotação negativa ou privativa. Para a psicanálise, o inconsciente designa antes de mais um outro lugar que não a consciência, a que Freud chama «o outro palco». A sua existência é dedutível da teoria do recalcamento: existem representações psíquicas subtraídas ao campo da consciência, mas que nem por isso desaparecem e que, embora permanecendo inacessíveis, produzem efeitos que se traduzem em sintomas. O traço essencial é então a concepção dinâmica do psiquismo: os sintomas histéricos resultam da dinâmica de conflitos, e, por extensão, toda a formação psíquica assenta numa dinâmica. Freud chama «libido» ao elemento energético geral de todos os processos psíquicos oposto à energia das pulsões do eu, que são pulsões de autoconservação. A noção de pulsão é decisiva como conceitolimite entre o psíquico e o somático: permite superar a dualidade tradicional da alma e do corpo ao justificar a conservação dos processos somáticos em energia psíquica. A teoria das pulsões leva Freud a introduzir a noção de id, compreendida como reservatório de energia pulsional da qual o ego e o superego são modificações. Embora não seja redutível à consciência, o ego constitui o pólo da personalidade e o princípio de realidade, embora estando investido pela libido devido ao narcisismo. Do mesmo modo, o superego está no princípio da consciência moral, embora remetendo para os processos inconscientes porquanto resulta da agressividade edipiana. Kant deslocou o problema do ego considerado até então simultaneamente como unidade empírica das determinações da subjectividade e como essência do pensamento ou alma, ao mostrar que o nosso mero conhecimento empírico do eu supõe como sua condição a unidade formal do sujeito transcendental. Se pudermos dizer que para Kant, antes de Rimbaud, «Eu é um outro», com Freud é o próprio estatuto do sujeito que é modificado: o ego está tolhido entre o id e o superego. Com a teoria das pulsões, ele reencontra o que os gregos haviam pensado como physys e psyché. Por um lado, a pulsão, ao articular o somático e o psíquico, não deixa de se assemelhar à physis como processo e princípio do movimento e do repouso. Por outro lado, a psyché como «enteléquia» do corpo nada tem a ver com o sujeito moderno. Freud utiliza assim a noção de psiquismo para recusar o estatuto constituinte do sujeito moderno. Se há

portanto um contributo da psicanálise para a filosofia, não é nem a ideia de um determinismo psíquico, nem mesmo a distinção entre consciente e inconsciente, já conhecida pela filosofia, nem a clivagem do sujeito bem vista por Kant, que importam aqui. C. Castoriadis sublinha assim, ao referir-se ao mito platónico da parelha alada, que o que mostra a psicanálise «é antes a pluralidade dos sujeitos contidos no mesmo invólucro – e o facto de, em cada caso, se tratar com efeito de uma instância que possui os atributos essenciais do sujeito660». Longe de ser uma destituição do sujeito, a psicanálise elucida-lhe a estrutura: ela é uma teoria da psyché que nos ensina que a essência do homem não é ser um animal racional, mas um ser imaginante. Se portanto o psíquico é estranho à racionalidade, daí resulta a impossibilidade de articular representações, afectos e desejos, que permanecem inextrincavelmente misturados numa espécie de magma que explica a ambivalência dos afectos inconscientes. Castoriadis afirma assim que a psicanálise demole o determinismo na vida psíquica pensando o homem como imaginação radical a partir dessa indeterminação. Ora, Freud distingue entre princípio de prazer e princípio de realidade, processo primário e processo secundário. Definindo o sistema inconsciente onde circula a energia psíquica, o processo primário tem por origem o princípio de prazer segundo o qual as pulsões buscam a satisfação pelo caminho mais curto. Em compensação, o processo secundário, que define o sistema consciente, é regido pelo princípio de realidade, exigindo que a busca da satisfação use desvios de acordo com as condições do mundo exterior. Essa distinção não é uma retoma do dualismo tradicional, pois o processo secundário é uma modificação do processo primário e o princípio de realidade um modificação do princípio de prazer. A questão é portanto bem mais a da diferença entre energia livre e energia ligada. A psicanálise cumpre-se então numa metapsicologia que é ao mesmo tempo uma tópica como teoria dos lugares psíquicos, uma economia das pulsões relativa à sua génese, à sua circulação e à sua regulação segundo um princípio, e finalmente uma dinâmica como determinação dos conflitos. Ora, se a economia justifica o trabalho do psiquismo consecutivo à ligação deste ao somático, a dinâmica supõe um dualismo pulsional a exigir a ruptura com o monismo libidinal e a elaboração da oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte. Com a pulsão de morte, a psicanálise é confrontada com um problema «transcendental», pois a questão é a de um «além do princípio do prazer», embora admitindo que não há excepção a tal princípio. A questão é pois a de

saber o que funda a submissão da vida psíquica a esse princípio. Dado ser uma ligação de energia que converte esta num prazer susceptível de descarregar energia, Freud chama Eros ao princípio da síntese que é condição de possibilidade do prazer e concebe essa actividade transcendental como repetição. Ora, para além da repetição sintetizante, há uma repetição que destrói: a repetição é portanto simultaneamente vida enquanto funda uma ligação e uma consistência, e morte enquanto torna possível um desligamento que se perde num para além do princípio de prazer. É esse o sentido da diferença entre Eros e Tanatos, entre as pulsões da vida que produzem formas dotadas de um alto nível de tensão e pulsões de morte que tendem a reduzir as tensões. A compulsão de repetição é portanto mais originária do que o princípio de prazer: ela exprime uma tendência própria do vivente e impele-o a reproduzir um estado anterior ao qual ele teve de renunciar sob a influência de forças exteriores. A elaboração da noção de um masoquismo primário, que não é um simples regresso do sadismo e de uma agressividade antes de mais virada para o exterior, mas um processo em que a pulsão de morte se dirige para o sujeito, desempenha um papel essencial na constituição desta problemática. Face a esse masoquismo primordial da pulsão de morte, a libido aplica-se a desviar essa pulsão para o exterior como agressividade, dando assim origem ao sadismo e a um masoquismo secundário, que têm um papel essencial na formação do superego e na sublimação – esta tem então uma formação criativa nas formações culturais. Freud considera a pulsão de morte um elemento fundamental da sua doutrina. O psíquico e o social Se a doutrina freudiana do psiquismo liberta instâncias, ela não abandona a doutrina do sujeito. Sendo a função do eu a de elaborar um compromisso com instâncias inconscientes, Freud concebe a pulsão como o princípio da génese da representação e esclarece a importância do fantasma na vida psíquica. Na medida em que não existe no inconsciente regido pelo princípio de prazer nenhum indício de realidade, o substrato psíquico não pode antes de mais referir-se senão a si. Há portanto à partida aquilo a que Castoriadis chama uma «mónada psíquica» autista submetida somente ao princípio de prazer. O sujeito é uma identidade imediata da qual a diferença não surgiu, e o fantasma é precisamente esse estádio em que o sujeito é tudo e em que ele está em toda a parte, numa identidade do objecto de desejo e da realização do desejo. A

historicidade da mónada psíquica é então a irrupção da alteridade e da diferença aferente ao princípio de realidade, ou seja a criação do indivíduo social. O nó monádico da psyché é tornado impossível pela abertura de um mundo que está sempre lá, impondo uma transformação do princípio de prazer e fundando assim a possibilidade do recalcamento. Ora, o inconsciente permanece dominado pelo nó monádico que, como tal, não pode deixar de estar ausente do inconsciente, e se manifesta como desejo de unificação total, de abolição de toda a diferença. É assim que «se o inconsciente ignora o tempo e a contradição, é também porque, agachado no mais escuro dessa caverna, o monstro da loucura unificante nele reina como senhor661». A passagem da loucura à razão faz-se não só pela instituição social, mas também pela renúncia à satisfação imediata, que permite a instauração de uma relação com a alteridade. A razão continua assim a ser «um avatar da loucura unificadora662», pois trata-se de reencontrar, através da diferença e da alteridade, as manifestações do mesmo. O uso racional da identidade tende pois a transformar-se em identificação imaginária, hipostasiando a identidade racional. É por isso que o eu é, no fundo, da ordem do imaginário. É porém dessa hipóstase de uma identidade racional que procedem tanto o esquecimento do social-histórico como a negação da alteridade e da temporalidade. Essa crítica da razão identificante leva Castoriadis a pensar o indivíduo segundo um duplo processo de constituição, o da idiogénese – ou psicogénese – e o da koinogénese – ou sociogénese. O indivíduo social é assim coexistência de um mundo privado e de um mundo comum. Ao impor-lhe uma relação com a alteridade, a socialização inflige à mónada psíquica uma ruptura à qual ela deve sobreviver para se individuar. Com efeito, a imposição da relação com a alteridade é uma sequência de rupturas infligidas à mónada psíquica pela qual se constrói o indivíduo social. Este está dividido entre o pólo monádico, que tende a tudo encerrar para o conduzir ao estado monádico impossível ou aos seus substitutos – satisfações alucinatórias e fantasmatização – e as construções sucessivas pelas quais a psyché chega a integrar o que lhe foi imposto. Essa cisão é constitutiva do sujeito e a sublimação não é mais do que a forma idiogenética da socialização, permitindo à psyché substituir os seus objectos próprios por objectos comuns que se tornem suportes de prazer. Ora, o ponto de vista idiogenético não basta para justificar a socialização da psyché, pois o seu modo de ser e o do social são totalmente diversos embora sendo indissociáveis. Compreendida como imaginação radical, a psyché é uma condição da sociedade que esta não pode eliminar. Castoriadis forja assim um

conceito específico da representação, mostrando em que permite ela repor em causa a ontologia da substância e a lógica identitária – ou seja uma compreensão do ser como subsistência – e uma lógica formal ordenada pelo princípio de identidade, pressupondo ambas formas estáveis e pré-estabelecidas e uma subordinação do devir ao permanente. Se com efeito elevarmos até ao fim as exigências desta lógica, ela autodestrói-se, ao exigir que tudo seja definido e determinado, ao passo que o termo primeiro releva não do logos mas da intuição, do nous, como mostra Aristóteles. O fundamento da lógica não é nada de lógico e a lógica tradicional baseia-se na ontologia da substância, não podendo as significações prestar-se senão a uma elaboração interminável. A representação designa então o carácter radical da imaginação, cujo fluxo representativo consista na alteração incessante de figuras transitórias; ela não é portanto senão a mobilidade do pensamento. Castoriadis concebe assim a psicanálise como uma teoria da representação, compreendida como imaginação, repondo em causa a ordem ontológica substancial e a lógica da identidade. A psicanálise mostra que a representação, longe de ser um decalque do mundo, é aquilo em que e pelo qual se abre um mundo, ao passo que a percepção, como fetichismo da realidade, não é mais do que a ocultação da representação compreendida como imaginação. A percepção e a constituição do real que se seguem não podem com efeito conceber-se senão do ponto de vista koinogenético, pois não há abertura do mundo a não ser para um indivíduo inserido no social-histórico. Não há portanto consistência das coisas senão sobre o fundo de mobilidade da representação que faz com que o imaginário seja condição lógica e ontológica do real e de toda a forma de pensamento. A imaginação não é simples potência de aniquilação do real, mas potência da sua configuração. Kant descobriu assim, na sua doutrina da imaginação transcendental como faculdade de ligação da forma temporal dos fenómenos e de esquematização ou temporalização dos conceitos, a própria raiz de toda a logicidade e a conexão do ser e do tempo. O interesse da tese de Castoriadis está em tratar do inconsciente a partir de uma teoria da alma que justifica a articulação do psíquico e do sócio-histórico. O próprio do psiquismo humano é estabelecer uma ruptura na ordem de autoconstituição do vivente: ao contrário do vivente que organiza o seu mundo próprio em relação com a sua constituição neurofisiológica, o psiquismo humano não depende de uma finalidade determinada, sendo dominado por um prazer representativo ilimitado e criador de imagens. É assim que se pode

distinguir o instinto da pulsão e da sexualidade animal da sexualidade humana, distinta da finalidade da reprodução. Ora, se Freud distinguiu a criatividade de uma imaginação irredutível à mera racionalidade, discernindo o imaginário como matriz de fantasmas que constituem o homem como ser de desejo, não foi até ao fim. Tal como, segundo Heidegger, Kant não prolongou a perspectiva fazendo da imaginação e do tempo a raiz da razão, Freud acabou por retomar a concepção tradicional da imaginação reprodutora. Com efeito ele concebe o fantasma como reprodução de uma percepção anterior, compreendendo os fenómenos de cultura como resultados de desejos e de angústias infantis. O sujeito da psicanálise A noção de psiquismo permite assim problematizar a questão do sujeito, desde a noção de substrato ou subjectum até à subjectividade, passando pela alma. A psyché designa antes de mais o sopro ou a respiração, pneuma. A sistematização operada pela filosofia permitiu concebê-la como um termo genérico, cujas espécies hierárquicas são, em Platão, o intelecto, o coração e o desejo. Concebendo a alma como enteléquia do corpo e mobilidade da vida, Aristóteles retrabalhou a tripartição platónica distinguindo três almas correspondentes a faculdades: nutrição, desejo, pensamento. Por outro lado, o sujeito designa antes de mais o substrato do enunciado ao qual se atribuem predicados, e depois, por extensão dessa acepção lógica, a substância distinta dos acidentes, o que permanece para além das suas modificações e constitui a essência de uma coisa. Essa noção entra no domínio da psicologia na Idade Média por meio do comentário aristotélico, sendo a questão saber qual é o sujeito do pensamento. Paralelamente, o pensamento medieval desenvolve, na esteira de Agostinho, a ideia de uma auto-apreensão do eu que desembocará na subjectividade moderna pensada como intuição que o sujeito tem de ser o autor dos seus actos. No cruzamento da tradição conservada na escolástica tardia e da filosofia moderna da subjectividade, a filosofia escolar dos séculos XVII e XVIII constitui a psicologia racional como ciência a priori da alma, na qual Kant verá uma ilusão, mostrando que não posso atribuir-me a categoria de substância sem fazer um uso ilegítimo deste conceito e cair nos paralogismos. A única psicologia legítima é então a psicologia empírica que se constitui a partir do modelo das ciências experimentais. Sob muitos aspectos, a psicanálise aparece como o cumprimento desta longa história, e Lacan sublinha em que é que o sujeito da psicanálise é o sujeito cartesiano da ciência moderna. Se, portanto, a descoberta freudiana parece

inaugurar uma era nova ao destituir o eu do seu privilégio fundador, como Copérnico transtornando a hierarquia do mundo e Darwin a ascendência do homem, ela pressupõe porém a filosofia moderna do sujeito663. Esta fez emergir a subjectividade das teorias da alma e do sujeito, não cessando porém de tornar problemáticas as noções de sujeito e de consciência, ao libertar a possibilidade do campo do inconsciente explorado por Freud. A despeito dos seus progressos essenciais, este ateve-se a uma concepção positivista, ou seja também metafísica do psiquismo. A desconstrução da subjectividade e, com ela, a de um pensamento metafísico ordenado para a substância e a lógica identitária apelam a uma desconstrução do inconsciente porquanto ele não pode ser senão um outro nome do desconhecido do sujeito moderno. JEAN-MARIE VAYSSE 658 G. Canguilhem, «Qu’est-ce que la psychologie?», Études d’histoire et de philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1970. 659 E. Kant, Crítica da Razão Pura, Dialéctica transcendental, II, 1; Prolegómenos, § 24. 660 C. Castoriadis, «Psychanalise et philosophie», Fait e à faire, Paris, Seuil, 1997, p. 143. 661 Id., L’Institution imaginaire de la société, Paris, Seuil, 1975, p. 403. 662 Ibid., p. 404. 663 Ver o nosso livro L’Inconscient des Modernes, Paris, Gallimard, 1999.

Martin Heidegger e os seus herdeiros

Seminarista católico, Martin Heidegger (1889-1976) descobriu a escolástica aristotélica que lhe inspirou durante toda a vida uma verdadeira paixão pela questão do ser; formado além disso pelo círculo dos neokantianos, Heidegger abraçou desde muito cedo a fenomenologia de Husserl e a hermenêutica da experiência vivida de Wilhelm Dilthey, a partir das quais compôs uma fenomenologia hermenêutica da qual fez um método adequado para elaborar uma ontologia fundamental da situação singular do homem, o seu ser-aí, Dasein, a sua existência. Diz-se muitas vezes que Heidegger é o pensador de uma única questão, a do ser. Esse «ser» acabou, no decurso dos séculos, por se tornar logicamente indefinível e evidente. Segundo Heidegger, este conceito, que é o mais geral e por conseguinte o mais vazio, está carregado com uma história pesada de consequências para o Ocidente, onde a questão do ser eclodiu primeiramente ao captar a atenção dos gregos. Mais exactamente, porque tem constantemente no espírito o carácter radicalmente finito da condição humana, Heidegger insiste continuamente na questão do ser, define-lhe o campo e constitui-lhe os limites. Tenta assim reanimar a antiga questão do ser, agora moribunda, fazendo-a brotar das profundezas de uma humanidade concreta, para que esse conceito banal renasça em todo o seu vigor de questionamento, e para que o seu alcance seja imediato não apenas na vida dos indivíduos mas também no destino histórico das nações e dos continentes. Tal renascimento deve operar-se graças à actualização fenomenológica do lugar mais propício ao questionamento acerca do ser, por aqueles que se questionam a si próprios, tomados por uma incessante busca, a partir da sua situação concreta, o seu seraí, Da-sein. As repercussões profundas dessa ontologia fundamental do Dasein visam estabelecer as tendências que fazem nascer e que suprimem a questão do sentido do ser para o homem. Certas disposições como a angústia ou o terror trazem em si essa interrogação, e permitem abalar o Dasein. Colocar e situar a questão do ser nos contextos em que o Dasein está em situação de urgência, acedendo assim ao Sein através do Dasein, eis o que Heidegger pretende

inovar: ele coloca a questão do ser sob uma forma (Gestalt) radical e nova. A intimidade interrogativa entre o Sein e o Dasein constitui o cerne do pensamento de Heidegger, uma «boa estrela» que ele se afadiga a perseguir durante toda a vida até ao abismo que ela abre. Essa demanda infinita basta para caracterizar o «caminho» do pensamento de Heidegger: nunca se fixando numa doutrina estabelecida, sempre à cata de novas pistas e de novas maneiras de colocar esse problema ao mesmo tempo singular e múltiplo, a questão do sentido do ser. Duas obras se distinguem no caminho tomado por Heidegger para explicar a relação íntima entre o Sein (o ser) e o Dasein: Ser e Tempo (1927) faz do Dasein o ponto de partida para estabelecer a questão do ser, ao passo que as Contribuições para a Filosofia. Do Evento (1936-1938) confiam ao Sein arcaico a preocupação de interrogar o Dasein, embora inscrevendo este último no curso histórico dos seus desvelamentos e dos seus eclipses. Heidegger reconhece que a sua conferência «Sobre a Natureza da Verdade» (retomada por diversas vezes em 1930-1932) constitui um primeiro eixo: é nessa conferência que se opera uma viragem definitiva em direcção ao próprio ser. Ele orienta a essência da verdade como desvelamento para um velamento originário, no cerne do problema do ser, explicando assim a persistente inquirição a seu respeito e o seu mistério. Entre as conferências e os ensaios publicados durante a sua vida, devem citar-se «A Origem da Obra de Arte» (1936), a «Carta sobre o Humanismo» (dirigida ao sábio francês Jean Beaufret, em 1946), «A Questão da Técnica» (1949-1955), «Construir Habitar Pensar» (1951) e «A Que Chamamos Pensar?» (1951-1952). Esses ensaios centrais, bem como as duas obras maiores já citadas, marcam a cronologia da obra heideggeriana; deve acrescentar-se a publicação póstuma da Gesamtausgabe (1975-) que reúne cerca de cem volumes de estudos, de conferências, de ensaios, de cursos, de seminários, de correspondência filosófica e de diários. Os primeiros nomes do Dasein nos cursos de 1919-1923 – o eu histórico, o eu situado, a vida facticial, a experiência vivida facticial – provêm todos da filosofia da vida histórica de Dilthey. Dilthey queria retirar as «categorias» ou as estruturas fundamentais da vida histórica da facticidade da própria vida que, antes de toda a conceptualização, se articula e tece espontaneamente a sua estrutura ao criar uma multiplicidade de relações elementares, vitais, concretas e significantes («eu próprio que estou incarnado neste mundo com outrem no meio das coisas»), em suma um mundo vital imediato. Das Leben legt sich aus: «A vida explica-se a si mesma, interpreta-se a si mesma.» A fenomenologia

compreendida como protociência pré-teórica da experiência originária é seguramente uma hermenêutica da facticidade (no duplo sentido do genitivo, subjectivo e objectivo); ela não faz mais do que explicitar as estruturas implícitas nas quais a vida histórica se inscreve espontaneamente, «se concebeu a si mesma», antes de todo o pensamento exterior ou de toda a intrusão teórica. O primeiro Heidegger faz confrontarem-se o eu situado na história e toda a outra forma de eu teórico, como o ego abstraído do seu ambiente vital em Descartes, despojado do seu mundo, deshistoricizado, desvitalizado. O contraste é nítido e permite confrontar duas fenomenologias: a fenomenologia transcendental de Husserl e a fenomenologia existencial-hermenêutica de Heidegger. Jean Beaufret qualifica a transição do cogito de Husserl para o Dasein de Heidegger – ou seja a passagem de uma consciência intencional para uma ex-sistência situada – como «ruptura inaugural»; é um salto irrevogável, um verdadeiro «revirar de forma» ou uma mudança de paradigma que, recorda T. S. Kuhn, testemunha uma revolução científica de primeira importância664. A tarefa principal de Ser e Tempo, a obra principal de Heidegger, consiste em analisar minuciosamente a relação de questionamento que liga o homem ao seu ser, e por conseguinte ao próprio ser, a relação Sein-Dasein. As primeiras páginas esclarecem dois eixos da relação totalizante que é o Dasein. Se o homem interroga o que significa ser, então 1) ele deve necessariamente possuir uma pré-compreensão do que significa ser, e 2) existe uma tendência ou uma capacidade no homem que o leva a interrogar-se sobre o que significa ser665. Estas duas dimensões da relação de questionamento do ser são chamadas «compreensão» e «existência». Compreende-se já a ascendência de uma certa interpretação do que significa ser, e, por isso, avança-se na existência com uma verdadeira preocupação pelo ser. A compreensão e a existência constituem assim os pontos de onde parte e para onde se orienta o questionamento, a sua stasis e a sua dunamis. A unidade da tensão entre as duas relações acha-se no próprio termo Dasein, em que o «da» alemão significa ao mesmo tempo «aqui» e «lá», o que sugere bem que um sentido do ser é ao mesmo tempo o fundamento da questão e o que lhe atribui uma direcção. Além disso, o contexto e a direcção são duas dimensões temporais do significado e do sentido, ambas primordiais: constituem o próprio sentido do sentido666. O movimento do questionamento funde-se então com o movimento do tempo, no cerne da existência humana. Sempre já lá, a própria temporalidade surge claramente como o sentido originário do ser do Dasein667.

A relação de compreensão O homem compreende o ser. Mas essa «compreensão do ser» não é conceptual por natureza, pelo menos à partida; trata-se antes de um conhecimento facticial que deriva simplesmente do facto de viver: estamos familiarizados com o sentido conceptual do ser porque participamos em múltiplas actividades da vida. Se o termo «conhecimento» pode aplicar-se a essa compreensão da vida, é no sentido de um «saber-fazer» imediato da existência, de um ápice, de uma intuição sobre o que significa ser que nos vem da experiência da vida quotidiana. Por estarmos familiarizados com os usos e costumes do mundo, sabemos como circular nele (umgehen), como entendernos com (umgehen) os outros, como lidarmos com (umgehen) os objectos desse mundo, e como nos arranjarmos connosco (umgehen) mesmos, com o nosso ser-no-mundo. Sabemos já como viver, e reinvestimos e aperfeiçoamos constantemente essa pré-compreensão aquando das nossas incursões no mundo dos objectos e no mundo comum do ser-conjuntamente, esses dois mundos que se entremeiam para dar lugar a esta mundaneidade própria que é o meu ser-nomundo, o mundo de si. O exercício e a explicação constantes da nossa précompreensão do ser, nas situações sempre renovadas em que se joga uma relação de sentido, é aquilo a que Heidegger chama uma «hermenêutica da facticidade». Quase se poderia dizer que, a partir de uma compreensão já dada, a facticidade da experiência da vida se explica e se interpreta espontaneamente a si mesma, desenvolvendo-se constantemente naquilo a que chamamos o mundo histórico, uma rede de relações de sentido que constitui a estrutura dos assuntos humanos. A existência situada na história é, na sua facticidade, hermenêutica de parte a parte. Esse processo hermenêutico tem lugar «automaticamente» nos bastidores, sem que precisemos de reflectir no que é viver e ser, absorvidos como estamos pelos detalhes da vida quotidiana, alimentando assim o paradoxo fundamental do carácter inapreensível das nossas experiências mais familiares e da incapacidade em que nos achamos para exprimir as coisas mais simples da existência. Estas breves e bem conhecidas linhas de Agostinho sobre o tempo prestam testemunho disso: «O que é o tempo? Se ninguém mo perguntar, sei-o. Se quiser explicá-lo a quem mo pergunta, não o sei.» Mas se aquilo que é familiar encerra os mistérios do mundo, do eu, do tempo, da verdade e do ser, a sua familiaridade é também aquilo que impede de aceder a isso. Porque, primeiramente, o que nos é mais familiar é também o que é mais susceptível de nos escapar. Em segundo lugar, a vida é tão variada que não pode ser simples.

Preocupamo-nos a tal ponto com as coisas da vida quotidiana que, dia após dia, temos tendência a esquecer o sentido mais compreensivo do que significa «ser». Poderia mesmo dizer-se que há uma tendência natural para obliterar a diferença entre os «entes» particulares e o seu ser, chegando mesmo a ocultar a própria questão do ser. Contra essa tendência, dispersos como estamos na multiplicidade das nossas relações com os entes, Heidegger remete-nos muito simplesmente para o cerne da compreensão da relação que une o Dasein ao Sein, com esta fórmula muitas vezes repetida: «O Dasein é o ente que joga (geht um) este ser no seu ser668.» Esse movimento auto-referencial e «circular», que parte do ser para chegar ao ser, deve sempre ser referido à sua primeira preocupação: o seu próprio ser. É somente na pura confrontação existencial que a compreensão-do-ser autoreferencial pode percorrer todo o círculo do tempo, voltar à «sua própria matéria», e assim se tornar completamente ela mesma. Num contexto mais temporal, Heidegger caracteriza o movimento da compreensão-do-ser como um projecto pró-jectado. Esse carácter projectivo da compreensão remete precisamente para a sua projecção ex-sistencial669. A relação existencial O homem «ex-siste» o seu ser, ou seja «é destinado» pelo ser. O homem não se contenta em compreender o ser; pode também fazer dele um problema e preocupar-se com ele como se fosse o assunto mais importante. A dimensão da ex-sistência constitui um eixo mais tenso da experiência: ela intensifica e torna a preocupação mais aguda. O estado de quase sonolência que consiste em situar-se numa rede familiar de relações estruturadas pelo hábito é percorrido por essa tendência para se destinar a qualquer coisa, para se «pro-pôr», para se extirpar do seu estado inicial em direcção a um futuro aberto. Enquanto a compreensão sugeria aparentemente que haveria uma certa proximidade do homem com o ser, a existência cava um abismo entre eles, desde o seu ambiente até às franjas mais longínquas do ser. Como a compreensão, a existência constitui o próprio ser do homem como ser-aí. Enquanto a primeira testemunha o contexto estrutural em que os homens se acham estar inicialmente, ou seja o seu mundo, a segunda acentua a actividade temporal do ser-aqui projectado como ser-aí. Tal como a compreensão se aplica mais ao facto de que o homem é do que ao facto de ele possuir o ser, também, na ex-sistência, o homem é a própria possibilidade do

seu ser, o seu único poder-ser. Assim, mais como modo de existência do que como modo de conhecimento, a nossa compreensão do que significa «ser» consiste menos em se fixar num sentido do ser do que em viver distanciado da sua significação temporal plena e inteira. Resumindo, o aparecimento do sentido é anterior à sua conceptualização. À semelhança de outras técnicas, o «saber-como-fazer» que se aprende da vida é um saber-fazer, um «poder fazer» ou um «poder ser» em nome do qual o homem existe. Lançado no que não é mas no que pode ser, o homem é desafiado pelas consequências da sua existência: deve descobrir-lhe o sentido profundo e reconciliar-se inteiramente com ela. Explicar este sentido é então, para o questionamento, passar do que é implicitamente conhecido a um conhecimento explícito. A situação do homem estrutura-se através da sucessão de revelações que começam por considerações prosaicas mas que podem culminar num choque extraordinário e inabitual: o reconhecimento de si, através do qual o homem se espanta com tudo o que significa «ser aí». Na realidade, os segredos do prosaico afloram nas formas «exclamativas» da experiência do ser-aqui, que põem em causa esse prosaico. A expressão «eis-me aqui» não é somente uma revelação das mais banais e das mais anódinas; ela pode igualmente constituir uma epifania da qual não se podem medir as consequências senão após se haver dedicado a vida ao questionamento no mundo histórico em que sucedeu ter-se sido lançado. Entre as «situações-limite» que nos precipitam para o extremo da condição humana, como o sofrimento, o conflito ou o acaso, situações que Karl Jaspers pensa estarem na origem da arte, da religião e da filosofia670, Heidegger retém particularmente duas, a fim de sublinhar a extensão real da experiência limitada do ser-aí: a morte e a experiência comum que consiste em se achar situado na existência, de bom ou mau grado. Acho-me lançado num mundo que não concebi, numa vida que não pedi. Deixar que essa revelação de «ser-lançado» me espante leva-me muito naturalmente a colocar as perguntas mais fundamentais sobre o ser: porque estou eu aqui? Que significa tudo isso? Que sentido tem para mim ser aqui? Face a essas duas situações extremas, o ser-lançado da minha própria situação e a minha morte concebida como minha última possibilidade dão-me ocasião de reconquistar esse eu finito na sua totalidade, esse eu que me é próprio, na sua individualidade radical671. Essa ex-posição ex-trema da ex-sistência lança-nos numa demanda infinita de respostas às perguntas inesgotáveis do nosso ser-aí. Ela só se explica numa temporalidade não estática ou «ex-stática» – que nunca termina embora se

oriente para um fim – que se inscreve numa transcendência sempre diferida no futuro e portanto finita. A temporalidade ex-stática, que é a temporalidade originária do Dasein, distingue-se muito nitidamente daquela outra, estática, da presença constante e oportuna dos objectos. A compreensão assim existencializada traça a totalidade do trajecto temporal do Dasein como projecção lançada na temporalidade originária de uma vida humana finita. Várias outras dimensões do Dasein nos surgiram na explicação da interacção entre a compreensão e a existência. Mencionamos aqui as mais importantes. O Dasein é um ser-descobridor Ele é o lugar da verdade como desvelamento do ser672. Este modo originário da verdade manifesta-se já no carácter tácito da compreensão pré-predicativa. A situação hermenêutica da vida facticial, desdobrando-se ela própria no contexto do mundo circundante feito de objectos, e do seu mundo de si em que nos esforçamos por ser e onde tomamos consciência de sermos um ser único, constitui a arena da descoberta da verdade como desvelamento. A verdade é assim deslocada do seu lugar tradicional, a saber o juízo e a asserção, incluindo asserções aparentemente totalizantes como o cogito ergo sum, e torna-se uma questão existencial. A capacidade de desvelamento do homem foi contudo reconhecida desde muito cedo na tradição filosófica. Aristóteles escreve por exemplo que «a alma humana é, num sentido, o ente»: ela é capaz de «se juntar com» todos os entes pela sua intelecção673. Mas essa tradição, que vai de Parménides a Husserl, identifica esse modo elementar de conhecimento com uma visão esclarecedora e transparente, com a intuição, ou seja, em termos temporais, com uma «presentificação». No quadro de uma hermenêutica da facticidade, por contraste, o modo elementar de conhecimento é a ex-posição de uma interpretação a partir de um contexto de compreensão que permanece tácito, latente, retirado. Em termos temporais, esse contexto é quando muito uma presença tangencial que se retira para a sombra do velamento do ser. A explicitação dos entes e o desvelamento do ser e do seu mundo têm lugar aquando de uma «abertura» temporal, onde o ser se desvela, exibindo uma tendência irresistível para se retirar, para se velar. Mas essa retirada é precisamente o que leva o homem a buscar o ser, o que o força a questionar incessantemente o sentido e o mistério do ser.

O Dasein é sempre meu, teu, nosso Para retomar os próprios termos de Heidegger, «O ser que se joga no ser desse ente é sempre meu [teu, nosso]674». Noutras situações, os deícticos ontológicos que são os pronomes pessoais «Eu sou, tu és, nós somos» exprimem a unicidade concreta do tempo da vida que se vence, em cada um de nós. Um tempo que não se reproduzirá. Vir ao meu/nosso ser supõe que se admita a finitude temporal desse ente «situado» que é propriamente meu/nosso, e que se seja sensível às directivas e às tarefas evocadas pela situação temporal particular na qual eu/nós me/nos achamos «lançados». Essa sensibilidade mostra que a nossa relação com o ser consiste num deixar-ser, e que a nossa posição relativamente à situação que se abre para nós é uma abertura recíproca. É a própria situação que o exige de mim, e que me interroga no meu próprio ser, e a resposta autêntica e fundamental consiste em me tornar sensível ao que me é pedido, em responder ao «apelo da preocupação675», a estar em situação de «escuta». Devo reconhecer a carência inerente à minha finitude, aceitar defrontar a angústia de uma interrogação tão fundamental, e tolerar que tal interrogação me leve onde quiser. Esse caminho conduz ao verdadeiro si, a esse ser situado no seu tempo próprio. Tomar posse do si (eigenes), acolher o que é mais de si (eigenstes), orientarse para o si mais verdadeiro, autentificar-se a si mesmo no seu ser próprio: todas estas expressões denotam esse único desejo-de-ser que se encontra no pensamento mais tardio de Heidegger para significar a relação entre o Sein e o Dasein, o Er-eignis, o evento da apropriação. O Dasein é histórico de parte a parte A concreção última da relação Sein-Dasein, implícita no processo de apropriação do ser, consiste no facto de que o Dasein é histórico de parte a parte. Um dos primeiros nomes que prefiguravam o Dasein era o eu historicamente situado. É um eu ou um nós que recebe a sua identidade da singularidade da sua situação histórica. «Eu sou o meu tempo, nós somos o nosso tempo.» Este aspecto concreto atenua o carácter abstracto do discurso sobre o ser, e do movimento circular auto-referencial que vai do ser ao ser na compreensão do ser. Temos predecessores e fomos precedidos; e devido a isso fomos já «interpretados»; e esse mundo histórico do precedente e da tradição constitui inelutavelmente o ponto de partida da nossa existência histórica. Incumbe então a cada geração tomar o estandarte da tradição que a comunidade

linguística veicula, e referi-la ao seu tempo por um acto de repetição, de recapitulação, que requer um re-exame e uma re-visão a fim de o adaptar ao seu tempo676. Mas se o Dasein é histórico de parte a parte, o mesmo sucede com o ser. A primeira versão da história do ser descrita por Heidegger é a história da ontologia ocidental, que ele acusa de haver negligenciado a questão exsistencial do ser e a relação íntima e profunda de tal interrogação com o tempo. A desconstrução fenomenológica da ontologia antiga mostra que o sentido originário do ser para um grego é um ser cuja presença é permanente, sendo tal sentido reforçado pela crença na existência de um mundo eterno. O paradigma escolhido por Aristóteles para designar o ser é o das coisas produzidas, dos produtos acabados, sempre «ao alcance da mão», como os bens patrimoniais e imobiliários transmitidos de uma geração a outra: eles são sempre o que já eram, sempre presentes, acabados, inteiros, portanto «perfeitos». A maneira como Heidegger coloca a questão do ser, no contexto do Dasein finito e sempre em busca, inaugura seguramente um novo começo na história do pensamento do ser. Pensar a totalidade da história do ser, desde o seu primeiro começo grego até ao seu «outro começo», eis a tarefa da segunda obra principal de Heidegger: Contributo para a Filosofia. Do Evento. Heidegger considera que a longa tradição do pensamento ocidental perpetuou uma metafísica da presença permanente. O declínio começa seriamente com Platão, que coloca a verdade do ser sob o jugo da Ideia: isso constitui a primeira etapa para o esquecimento da diferença entre o ser e o ente. Esse esquecimento acelera-se no período moderno, que começa com o cogito, afirmando-se a si mesmo e procurando dominar os objectos ao representar a objectividade destes sob um «modo geométrico». A ciência moderna faz então uso dos princípios matemáticos para conceber experiências que lhe permitem colocar à natureza as perguntas que ela própria concebeu. Doravante a razão já não aborda a natureza como um aluno dócil, mas «como um juiz no exercício das suas funções, que força as testemunhas a responder às perguntas que lhes apresenta677». Tomada na engrenagem tecnológica da experiência, a ciência moderna leva essencialmente à tecnologia moderna. Ela move-se numa vontade de domínio, de controlo das forças da natureza; ela transforma esta última numa reserva de recursos facilmente disponíveis. Heidegger considera a vontade de poder nietzscheana como o produto final do desenvolvimento da modernidade, que começa com a auto-afirmação de um sujeito voluntário: ele coloca-se na existência, coloca seguidamente o mundo objectivo em acordo

com as suas próprias representações, e procura nele a certeza. A modernidade culmina então na organização de uma maquinação de grande envergadura: a tecnologia moderna, cuja essência Heidegger caracteriza com uma só palavra, Ge-Stell678, sistema de artefacto que conecta a totalidade da esfera terrestre pelo estabelecimento de uma quadrícula do tráfego aéreo, de um mapeamento meteorológico global, do sistema de geolocalização, da rede CNN, e da Internet e da sua World Wide Web, composta por conjuntos de pacotes de posições e de não-posições, seguindo nisso uma lógica numérica que Leibniz havia inventado no seu tempo. O esquecimento do ser dos entes, doravante conectados pela tecnologia das redes, é total. O abandono do ser pelo ente deve ser revertido estabelecendo a verdade do ser de entes singulares como as obras de arte, a fim de abrir caminho ao florescimento de uma outra origem do pensamento na história do ser. A obra de arte, a interrogação do pensador ou o acto fundador de estabelecimento do Estado são adventos históricos da verdade, abrigando a verdade do ser no ente, através da poesia, do pensamento e da legislação. Deve atribuir-se a esses entes situados num tempo e num espaço históricos determinados outra forma e outro significado, pois eles abrigam a verdade do acto de apropriação, Er-eignis. Nessas obras históricas, o ser e o ente já não estão disjuntos: eles são experimentados e pensados ao mesmo tempo. A obra de arte revela um mundo histórico e enraíza esse mundo numa terra que abriga um povo e a sua história. A própria história se desdobra precisamente no ponto crítico de um mundo que se descobre e de uma terra que torna a fechar-se. As obras de arte autênticas permitem descobrir a situação radical em que o Dasein se acha lançado. As raras pessoas que se aventuram bem para além da ordem familiar e defrontam um caos implacável para defender uma posição criadora na abertura do ser, figuras eminentes da história erigidas em criadores do facto da sua viagem no seio do mistério do ser, correm também o risco de uma destruição prematura. Foi esse o destino de duas figuras das quais Heidegger faz heróis: Hölderlin e Nietzsche. Heidegger não retém de início mais do que três forças criadoras do Dasein histórico: a poesia, o pensamento e a criação do Estado679, e institui entre esses criadores solitários um diálogo profundo mas conflitual, no cerne da própria história. Heidegger espera doravante o advento desses poucos criadores preciosos que poderão falar com as palavras justas da poesia e do pensamento, abrindo caminho a uma última travessia, a uma nova partida, a da apropriação do ser arcaico, evento claro-obscuro, radicalmente finito,

perpetuando-se na história. Os herdeiros A força da «hermenêutica filosófica» de Hans Georg Gadamer (1900-2002), menos radical sem dúvida, consiste em reinvestir as dinâmicas situacionais da hermenêutica da facticidade heideggeriana nos lugares mais comuns das humanidades. A obra maior de Gadamer, Verdade e Método, assenta no conhecimento da situação hermenêutica do nosso «ser-lançado» inscrevendo-se num projecto que é o da tradição. Esta obra não procura impor um «método» mas simplesmente descrever fenomenologicamente como a compreensão (a «verdade» no seu contexto histórico), selada pela tradição, «advém» naturalmente por via dessa mesma tradição nas nossas experiências humanistas da arte, da história e da linguagem. Gadamer oferece desse círculo da «experiência hermenêutica» (que parte da tradição para chegar à tradição) as funções seguintes: ele é um encontro entre o intérprete e a transmissão do texto, ele próprio concebido como um interlocutor que faz perguntas; consegue mostrar, na distância temporal que instaura entre eles, as possibilidades inéditas de mediações entre o presente e o passado em vista de uma fusão salvadora dos horizontes; tem por resultado a transformação dessa tradição num conjunto novo e inédito; mostra como a própria história opera o restauro da nossa compreensão de um passado que à partida nos é estranho e remoto, e como o jogo «especulativo» da linguagem constitui a fonte última dessa produção salvadora («o intermediário mediatiza»); sublinha por fim o acabamento do processo de compreensão da interpretação no próprio momento da sua aplicação. É o seu projecto de desconstrução da história da ontologia ocidental que conduz Jacques Derrida (1930-2004) a Heidegger. Ao qualificar essa tradição de «logocentrista» – onde logos significa «razão» e «fundamento» –, Derrida crê aperceber vestígios dela na obsessão heideggeriana pelo ser. Pode observarse igualmente que o limiar entre ser e ente abrange a distinção filosófica entre transcendental e empírico, entre a priori e a posteriori, que percorre a tradição idealista de Platão a Kant. A desconstrução dessa distinção vincada, bem como de uma multidão de oposições binárias na tradição metafísica, atinge a inversão e a combinação destas, produzindo uma proliferação de diferenças verbais pelas quais Derrida é bem conhecido. Derrida teria sem dúvida admitido que a linguagem desempenha um «papel quase transcendental680» enquanto campo

diferenciado e diferenciante nas margens da filosofia. O próprio Heidegger, na desconstrução que opera aos nomes do ser no pensamento grego arcaico, observa que logos (a primeira linguagem) deveria entender-se como o acto de «reunir criando diferenças» e manteria sem dúvida uma relação de primazia equivalente com a alêtheia (a verdade) enquanto velamento-desvelamento, e com a phusis (a natureza) enquanto permanente emergência. A diferença entre ser e ente abre-se para um abismo, o do velamento, a partir do qual afloram as diferenças; elas agregam-se livremente durante um momento, e tornam a esse abismo. THEODORE KISIEL 664 J. Beaufret, Dialogue avec Heidegger, t. 3, Approche de Heidegger, Paris, Minuit, 1974, p. 116 e segs. 665 M. Heidegger, Sein und Zeit, Tubinga, Niemeyer, 1927, p. 12. 666 Sein und Zeit, op. cit., p. 151. 667 Ibid., p. 323-325. A secção intitula-se: «A temporalidade como sentido ontológico da preocupação.» 668 «Das Dasein ist ein Seiendes, dem es in seinem Sein um dieses Sein selbst geht». Cf. Sein und Zeit, p. 12, 42, 52-53, 84, 104, 123, 133-135, 153, 179, 191-193 et passim. 669 Sein und Zeit, p. 144 e segs. 670 Jaspers começou por desenvolver a noção de «situação-limite» na sua obra Psychologie der Weltanschauungen, de 1919, sobre a qual Heidegger se apressou a escrever uma recensão crítica. Ver «Anmerkungen zu Karl Jaspers “Psychologie der Weltanschauungen”», Gesamtausgabe, t. 9, p. 1-44. 671 Cf. Sein und Zeit, II, cap. 1 e 2, que tratam respectivamente do «ser-para-a-morte como ser-tudo possível» e da «abertura determinada para a minha situação única e própria». 672 Sein und Zeit, § 44. 673 Aristóteles, Da Alma, III, 5, 430a14 e segs. Citado em Sein und Zeit, p. 14. 674 Sein und Zeit, p. 42. 675 Ibid., § 57, «A consciência como apelo da preocupação». 676 Ibid., p. 384-386. 677 E. Kant, Crítica da Razão Pura, prefácio da segunda edição. 678 A melhor tradução deste termo segue a etimologia: com-posição sin-tética. «Ge-Stell» é o título original da conferência de 1949; o título é modificado em 1954 e torna-se «A questão da técnica».

679 No final dos anos 1930, somente os poetas e os pensadores figuram entre os combatentes na guerra a que Nietzsche chama a «grande política»: por seu turno, o homem de Estado deixa de ser mencionado. Essa estridente omissão marca o descomprometimento de Heidegger em relação ao movimento nacionalsocialista, ao qual havia anteriormente aderido; o seu empenhamento foi tornado público uma primeira vez quando aceitou ser reitor da Universidade de Friburgo em Abril de 1933, cargo que abandonou dez meses mais tarde. Em 1935, reafirmou publicamente a «verdade e a grandeza» do «movimento» que, caso tivesse sido bem dirigido, teria sido capaz de elaborar uma identidade nacional em acordo com as tradições alemãs conservadoras. Mas, ao longo dos anos seguintes, Heidegger perdeu toda a esperança de ver as decisões do Führer demarcarem-se das dos limitados funcionários do partido; descreveu-o então como o técnico supremo de um grande sistema, levado por um pensamento calculador caturrento, completamente desprovido da natureza meditativa do pensamento requerida para um homem de Estado. Noutros escritos deste período de «emigração interior», recentemente redescobertos, Hitler figura explicitamente na curta lista dos «principais criminosos do mundo e do século». Cf. M. Heidegger, Die Geschichte des Seyns, Gesamtausgabe, t. 69, Frankfurt, Klostermann, 1998, p. 78. 680 J. Derrida, Glas, Paris, Galilée, 1974, p. 183.

Ludwig Wittgenstein

Ludwig Wittgenstein é o filósofo analítico mais importante do século XX. As suas duas obras principais, o Tractatus Logico-Philosophicus e as Investigações Filosóficas681, tiveram influência considerável na corrente analítica. Fizeram-na aliás seguir por diversos caminhos, dando origem a movimentos filosóficos fundamentalmente opostos no seio dessa vasta corrente: o positivismo lógico de entre as duas guerras por um lado, e a escola analítica de Oxford após a Segunda Guerra Mundial por outro. Quer se esteja de acordo com Wittgenstein ou contra ele, por uma justa leitura das suas obras ou na sequência de interpretações faltosas, a sua influência domina a evolução da filosofia, na década de 1920 à de 1970. Nascido em Viena em 1889, estuda primeiramente para engenheiro, em Berlim e depois em Manchester. Atraído pela filosofia, apresenta-se em Cambridge em 1911 para trabalhar ao lado de Russell. Serve no exército austríaco durante a Primeira Guerra, e é durante o serviço militar que termina a sua primeira obra-prima (o único livro que publicou em vida), o Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Entre 1920 e 1926 torna-se professor primário. Pouco depois trava conhecimento com o Círculo de Viena, um grupo de filósofos que será profundamente influenciado pelas suas primeiras ideias: elas serão a origem do positivismo lógico, por vezes à custa de uma má interpretação. Em 1929 regressa a Cambridge, onde passa o resto da vida como professor. Entre 1929 e 1932, o seu pensamento sofre uma verdadeira transformação que ele tenta sistematizar durante os quinze anos seguintes. Ao invés da sua primeira filosofia, adopta uma perspectiva completamente diversa que revoluciona a filosofia da segunda metade do século XX. Essas ideias são primeiramente difundidas por intermédio dos seus alunos, e depois registadas na sua segunda obra, as Investigações Filosóficas (1953), publicada dois anos após a sua morte. Mais de uma dúzia de escritos inacabados e quatro volumes de conferências foram publicados desde então a partir dos apontamentos dos seus estudantes. Podem classificar-se os principais contributos da filosofia de Wittgenstein

em cinco rubricas: a filosofia da linguagem, a filosofia da lógica, a psicologia filosófica, a filosofia da matemática, e por fim a clarificação da natureza e dos limites da própria filosofia. As suas teses revolucionam cada um destes domínios e quase não têm precedente. Qualquer que seja o problema considerado, as suas posições saem dos caminhos já batidos e rejeitam as alternativas tradicionais; quando a filosofia está aparentemente entalada entre o realismo e o idealismo, entre o dualismo e o behaviorismo, ou ainda entre o platonismo e o formalismo, é necessário, segundo Wittgenstein, pôr à prova os pressupostos comuns aos termos da alternativa. O Tractatus, onde se sucedem máximas sibilinas, refere-se à metafísica, à lógica e à verdade lógica, à natureza da representação em geral e à da representação proposicional em particular, ao problema da intencionalidade, ao estatuto da matemática e da teoria científica, ao solipsismo e à ideia de eu, à ética e à mística. Segundo o Tractatus, o mundo é uma totalidade de factos, e não de objectos. A substância de todos os mundos possíveis consiste numa totalidade de objectos simples e eternos (os pontos no tempo e no espaço, as propriedades inanalisáveis, as relações, etc.). A forma de um objecto simples reside nas suas combinações possíveis com outros objectos. Uma ligação possível dos objectos entre si constitui um estado de coisas. A ocorrência de um estado de coisas é um facto. A representação de um estado de coisas é um modelo ou uma imagem que deve conter a mesma multiplicidade lógica que aquilo que ela representa e ter com este uma relação de isomorfismo. As proposições são imagens lógicas. Elas são essencialmente bipolares, ou seja susceptíveis de serem verdadeiras ou falsas. A sua natureza reflecte nisso a natureza do que representam, na medida em que é a essência de um estado de coisas que tem lugar ou não tem lugar. Uma proposição elementar é uma descrição de um estado de coisas (atómico). Os termos que compõem essa proposição (que não se podem analisar, pois são simples nomes lógicos) substituem-se aos objectos simples e eternos da realidade, e significam-nos – o acto de nomear faz assim parte da essência da linguagem, e está na essência das palavras tomarem o lugar das coisas. A forma lógico-sintáctica de um nome simples deve reflectir a forma metafísica do objecto simples, que é o seu significado. Assim, as combinações possíveis entre os nomes reflectem as combinações possíveis entre os objectos. Segundo a maneira como os nomes estiverem dispostos na proposição, seguindo as regras da sintaxe lógica, dir-se-á que as coisas são

realmente tais ou tais. O sentido de uma proposição é função dos significados dos nomes que a compõem. É uma possibilidade de ocorrência ou de nãoocorrência de um estado de coisas. Portanto, uma proposição que tem um sentido é uma proposição que representa ou descreve uma possibilidade, ou seja qualquer coisa que pode ocorrer. O sentido deve ser definido de maneira absoluta, sem o que as leis da lógica (em particular a lei do terceiro excluído) poderiam não se aplicar. Assim, tudo o que é aparentemente vago deve ser analisado, e deve dissipar-se graças à análise. Pode mostrar-se pela análise que uma proposição cuja superfície gramatical pareça vaga (ou indefinida) é indefinida de maneira definida: ela consiste numa disjunção entre diversas possibilidades bem definidas. A essência de uma proposição é dada pela sua forma proposicional global, «eis como as coisas são», ou seja pela forma global de uma descrição da maneira como as coisas são na realidade (o acto de descrever faz assim parte da essência das frases que têm um sentido). Uma proposição é verdadeira se as coisas são na realidade tais como ela as descreve; ela é falsa se as coisas não são tais como ela as descreve. Wittgenstein adopta portanto uma posição deflacionista a respeito da verdade, e não uma teoria da verdade-correspondência. A ontologia atomista do Tractatus (ou seja que o mundo consiste em factos, que esses factos são ligações entre os objectos, e que esses factos são as ocorrências ou não-ocorrências de estados de coisas), a metafísica simbólica que ele promove (o facto de apenas os nomes simples representarem objectos simples, de apenas relações poderem representar relações, e de apenas factos poderem representar factos), bem como o realismo modal que daí decorre (o facto de as possibilidades lógicas fazerem parte de uma linguagem objectiva e autónoma que compõe o tecido do mundo), resolveriam presumivelmente o problema do carácter intencional da proposição. Frege havia sustentado que crer que p, é ter uma relação de crença para com uma proposição (Gedanke). Essa teoria apresenta uma vantagem: se acreditarmos numa coisa falsa, ou seja que p não tem lugar, a coisa em que se crê nem por isso deixa de existir: é a proposição (falsa) que p. Mas o inconveniente é o seguinte: se acreditarmos que p, e que p tem lugar, aquilo em que acreditamos não é o que tem lugar, mas uma outra coisa (uma proposição ou Gedanke) que tem uma relação obscura com o que tem lugar. Para justificar o fenómeno das falsas crenças, Russell tinha avançado a sua teoria da «relação múltipla» das crenças. Crer que aRb, segundo ele, é estar em relação não com um facto ou com uma proposição, mas com a e b e R – o que não implica que a esteja efectivamente em relação R com

b –, sendo assim que se explicam as crenças falsas. Mas Wittgenstein observa que essa teoria infelizmente admite que se possa crer numa proposição que não tenha sentido, por exemplo crer que abR ou que RRa. No quadro da metafísica realista modal de Wittgenstein, quando se crê que p, aquilo em que se crê é um estado de coisas descrito por «p», e cremos no que tem lugar. Se isso tem lugar, aquilo em que cremos é o que tem lugar na realidade. Se isso não tem lugar, o objecto da crença é esse mesmo estado de coisas, essa mesma possibilidade, mas que não é actualizada. Existe assim uma solução lógico-metafísica clara para o problema de saber como podem as proposições ter um sentido mas serem falsas, e como podem existir falsas crenças. A análise lógica das proposições deve acabar por isolar proposições que são logicamente independentes umas das outras, ou seja proposições elementares cuja verdade só depende da existência ou não-existência de estados de coisas (atómicos). As proposições elementares podem combinar-se para formar proposições moleculares, com o auxílio de operadores que são as funções de verdade – os conectores lógicos «não», «e», «ou», e «se… então». Estes últimos, contrariamente ao que pensam Frege e Russell, não são nomes de coisas (nem de funções, como supunha Frege, nem de objectos lógicos, como sugeria Russell). São meros instrumentos de combinação verifuncional, que esclarecem as condições de verdade entre as proposições. Obtêm-se todas as formas possíveis de combinação verifuncional pela operação de negação simultânea num conjunto de proposições elementares. Os conectores lógicos são assim redutíveis a essa única operação. Efectivamente, com a notação adequada (a notação VF que Wittgenstein inventa), e ao representar as proposições numa tabela de verdade, todos os conectores lógicos são eliminados. Isso basta para mostrar que eles têm um significado inteiramente diverso do que supunham Frege ou Russell. Todas as relações lógicas entre as proposições esclarecem a complexidade própria das proposições moleculares (a combinação verifuncional das proposições elementares que a compõem). A única forma de necessidade (exprimível) é a necessidade lógica. Dois casos-limite de combinação são desprovidos de significação (e não desprovidos de sentido): as tautologias, que são incondicionalmente verdadeiras, e as contradições, que são incondicionalmente falsas. Notadas idealmente (na notação wittgensteiniana VF), basta um olhar aos símbolos obtidos para aferir o seu valor de verdade. Contrariamente ao que Russell poderia pensar, as verdades necessárias da lógica não são descrições das propriedades muito gerais; também não são

descrições de relações entre objectos lógicos, como pensava Frege. São tautologias, ou seja proposições moleculares combinadas de tal maneira que a sua bipolaridade é neutralizada, e com ela todo o seu conteúdo proposicional; todas elas dizem a mesma coisa, ou sejam não dizem rigorosamente nada. São proposições «degeneradas», no sentido em que um ponto é uma degeneração (ou um caso-limite) de secção cónica. Assim, as verdades da lógica não são o domínio reservado da razão para chegar ao conhecimento da realidade, pois saber que uma tautologia é verdadeira é não saber nada de todo. As expressões metafísicas, como «As proposições descrevem os estados de coisas», «Os factos consistem em objectos», «O mundo consiste numa totalidade de factos», «O vermelho é uma cor», por contraste com as proposições lógicas, são desprovidas de sentido: elas transpõem os limites do sentido. Com efeito, os pretensos conceitos categoriais utilizados nestas expressões, por exemplo «proposição», «facto», «objecto», «cor», não são autênticos conceitos, mas assemelham-se a variáveis não ligadas que não poderiam ser usadas numa proposição elementar correctamente formada. Mas o que se tenta dizer com essas falsas proposições da metafísica (por exemplo que o vermelho é uma cor) é mostrado pelas propriedades (as formas) das proposições autênticas, contendo estas últimas instâncias de substituição desses conceitos formais (por exemplo «A é vermelho»). E o que é mostrado por uma simples notação não pode ser formulado. As verdades da metafísica são indizíveis; tal como as verdades da ética, da estética e da religião. Não existem portanto proposições filosóficas, ou seja proposições que descrevessem a natureza essencial das coisas ou a estrutura metafísica do mundo. Mesmo as proposições do Tractatus, onde Wittgenstein usa constantemente conceitos formais como se se tratasse de conceitos materiais a fim de descrever a essência das coisas, estão em definitivo condenadas a serem desprovidas de sentido – elas são outras tantas tentativas de formular o que apenas se pode mostrar. A tarefa do Tractatus é fornecer ao leitor um ponto de vista lógico correcto sobre o mundo. Uma vez atingido esse ponto de vista, pode então abandonar-se a escada por onde se subiu até lá. A filosofia não é uma ciência; ela também não está em concorrência com as ciências. Ela não consiste numa acumulação de conhecimentos sobre um ou outro assunto. A sua mera e única função doravante é a de clarificar certas afirmações problemáticas de um ponto de vista filosófico, em particular todas as tentativas de dizer a essência das coisas de um ponto de vista metafísico, e de mostrar que essas tentativas de ultrapassar os limites do sentido são vãs. Pois a essência do

mundo e a natureza de todo o objecto pretensamente «superior» podem ser mostradas por proposições correctamente formadas, mas a linguagem não poderia descrevê-las. O interesse do Tractatus é múltiplo. 1) A obra é um auge para as tradições atomista e fundacionalista, para a concepção da filosofia como análise de estruturas lógicas subjacentes, para a louvável busca de uma linguagem e de uma notação formal ideal, para a ideia de que a imagem lógico-metafísica da linguagem e a forma lógica espelham a estrutura lógica do mundo. Desde logo, todas essas ideias se prestavam a ser destruídas, e é uma tarefa a que se dedicam as Investigações. 2) As numerosas críticas da maneira como Frege e Russell haviam elaborado a sua nova lógica e estabelecido as suas implicações filosóficas devem ser consideradas como definitivas. 3) A explicação da intencionalidade oferecida pelo Tractatus evita o escolho das explicações incoerentes da possibilidade das proposições falsas e das crenças falsas, e abre com a razão a via para a tese segundo a qual a relação de uma proposição com o que a torna verdadeira e com o que a torna falsa é interna; levando essa etapa à segunda, que é porém uma solução inteiramente diferente para o problema. 4) A concepção radical da filosofia que o Tractatus veicula marca o início de uma «viragem linguística» que caracteriza a filosofia analítica moderna, e que na realidade será cumprida pelo Círculo de Viena. O Tractatus prepara assim o caminho para a concepção muito diversa e infinitamente mais rica da filosofia tal como ela é desenhada pelas Investigações, uma concepção que evita empregar as noções de análise e de revelação de uma forma lógica oculta. 5) O maior sucesso do Tractatus prende-se sem dúvida com a elucidação da natureza da necessidade e da verdade lógicas, embora elas sejam modificadas e aprofundadas numa obra mais tardia, as Observações sobre os Fundamentos da Matemática. O Tractatus estabelece, de uma vez por todas e para todos, a tese segundo a qual a lógica é a ciência do geral, que tem por objecto os factos mais gerais no mundo (como para Russell), ou as relações mais gerais entre os conteúdos do pensamento (segundo Frege). Ainda que a leitura das Investigações Filosóficas suponha a do Tractatus, na medida em que este constitui o seu pano de fundo, as Investigações são uma crítica da herança que o primeiro tratado aperfeiçoara. As objecções são frequentemente apresentadas de maneira indirecta, uma vez que não se referem a doutrinas ou a teses, mas aos pressupostos que as suportam. Em filosofia da linguagem, Wittgenstein rejeita nas Investigações a hipótese

segundo a qual o significado de uma palavra é a coisa que ela representa. Fazse um mau uso do termo «significado», pois ainda que se possa dizer de uma palavra que ela representa algo (e nem todas as palavras o fazem), a destruição do que é representado não priva a palavra do seu significado. Não há uma só relação de denominação, embora existam vários tipos de relações que unem um nome ao nominatum. É um erro crer-se que a essência das palavras consiste em nomear as coisas; as palavras têm uma multidão de funções: «nomear» não remete para um único acto. Considerar que as palavras estão ligadas à realidade por laços semânticos é um erro. Tal crença assenta num contra-senso relativo à função da definição ostensiva que produziria um laço entre a linguagem e a realidade, e que dotaria as palavras dos seus significados em virtude de tais laços. Porque uma definição ostensiva, por exemplo o nome de uma cor, contenta-se em ligar uma palavra a uma amostra, e uma amostra colhida nos meios de representação, e não no que é representado. Nem todas as palavras são definidas com precisão, ou seja analisáveis especificando as condições necessárias e suficientes da sua aplicação; talvez não precisem de sê-lo. Exigir uma determinação do sentido é um projecto incoerente, pois tentar-se-ia dissipar não só o vago (coisa que seguramente se poderá fazer caso a caso, ainda que isso nem sempre seja desejável), mas também a sua possibilidade, o que é absurdo. O vago nem sempre é um defeito, e não pode existir critério absoluto para aferir a exactidão de um termo. O próprio ideal analítico, herança cartesiana e empirista seguidamente renovada por Moore e Russell, é um contra-senso. Os termos «simples» e «complexo», que são qualificações atributivas e não predicativas, são mal empregues. Pois nada é absolutamente simples ou complexo; é sempre relativamente a um critério prescrito por um ou outro género de objectos que se empregam esses termos. Numerosos conceitos, e em particular conceitos filosóficos-chave como os de «proposição», «linguagem», «número», estão mais ligados por familiaridades do que por características comuns. A ideia segundo a qual todas as proposições têm a mesma essência, a forma proposicional em geral, é uma falsa pista. Nem todas as proposições são descrições, e mesmo entre aquelas que o são devem distinguir-se numerosas formas lógicas de descrição. É portanto um erro suporse que a função fundamental da proposição é a de descrever um estado de coisas. Não se pode explicar a instituição da linguagem a menos que se esteja atento ao uso vulgar das palavras e das frases. Opondo-se à concepção que faz da verdade o eixo da descoberta do significado e abandonando por assim dizer o conhecimento a si mesmo,

Wittgenstein defende que o significado consiste na explicação do significado, ou seja na exposição das regras de uso das palavras. O significado de um enunciado é com efeito aquilo que se compreende de um enunciado. A compreensão é uma faculdade, um domínio da técnica de emprego de uma expressão. Ela manifesta-se no bom uso de uma expressão, na explicação que se dá desta, e no facto de lhe responder adequadamente quando ela é empregue; são esses os critérios da compreensão. Há várias formas de explicação, sendo a definição formal uma forma entre outras, como a ostensão, a paráfrase, a paráfrase contrastante, a exemplificação, a explicação por exemplos, etc. Assim, é a ideia central do Tractatus, segundo a qual toda a forma de representação deve, na sua estrutura formal, reflectir a forma metafísica do mundo, que é errónea. Os conceitos não são nem exactos nem inexactos; eles são simplesmente mais ou menos úteis. As regras do uso das palavras não são nem verdadeiras nem falsas. Elas não são responsáveis pela realidade, nem pelos significados previamente dados; elas definem os significados das palavras, ou seja são constitutivas dos seus significados. A gramática é autónoma. De modo que o que surgia como verdades metafísicas necessárias (vermelho é uma cor), verdade que toda a forma de simbolismo podia mostrar de maneira indizível segundo o Tractatus (toda a linguagem pode ser utilizada para descrever objectos coloridos), na realidade, não passa das regras de uso das palavras, sob a aparência de descrições (por exemplo o facto de ao poder dizer-se de uma coisa que ela é vermelha poder também dizer-se que ela tem uma cor). O que surgia como uma coordenação metafísica entre a linguagem e a realidade, por exemplo entre a proposição que p e o facto de que p tenha lugar que torna a primeira verdadeira, é uma simples articulação no interior da gramática, a saber que «a proposição que p» = «a proposição que é verdadeira se o facto que p tem lugar». A aparente harmonia entre a linguagem e a realidade, que necessitava de uma metafísica modal realista elaborada, não passa da sombra que a gramática projecta sobre o mundo. É por isso que não se poderiam resolver os problemas aferentes à intencionalidade do pensamento e da linguagem recorrendo a relações entre as palavras e o mundo, ou entre o pensamento e o real. A única questão é esclarecer os laços intragramaticais, no próprio interior da linguagem. Toda a tradição que domina a filosofia europeia está marcada pela ideia de que o que é dado é-o através de uma experiência subjectiva; um indivíduo conhece o que lhe toca (por exemplo o facto de sentir dor), e o problema é saber como estão as coisas «fora» dele. O privado é assim sempre mais bem

conhecido do que o público, o pensamento mais bem delimitado do que a matéria. Considera-se a experiência subjectiva como o fundamento não só do conhecimento empírico, mas também da linguagem; o sentido das palavras é fixado pelo acto de nomear impressões subjectivas (por exemplo «mal» significa isso mesmo que eu sinto neste momento). Os argumentos que Wittgenstein lança contra a «linguagem privada» atacam de maneira global os pressupostos em que se baseia tal crença. É enganador pensar-se que a experiência individual possa constituir um objecto de conhecimento subjectivo: a capacidade de um indivíduo para dizer que sente dor não se apoia em prova alguma. Não se saber que dói ou duvidar disso é absurdo, tal como sabê-lo ou ter-se disso a certeza. O facto de se dizer «sei que me dói» ou é uma maneira de insistir no facto de ter dores recorrendo a um fraseado que dissimula uma proposição puramente gramatical (a saber, que é absurdo duvidar-se do facto de que temos dor), ou então é uma proposição absurda de um filósofo. A ideia de que mais ninguém pode sentir o que eu sinto quando me dói, e de que por esse motivo eu gozo de uma posição epistémica privilegiada, é um pouco suspeita. Ela pressupõe com efeito que a dor sentida por outros indivíduos é quando muito qualitativamente idêntica à minha, mas jamais idêntica em número. Porém, a distinção entre identidade numérica e identidade qualitativa só pode referir-se a substâncias, e não a impressões ou a sensações. Duas pessoas sentem a mesma dor se essas dores tiverem a mesma intensidade, apresentarem as mesmas propriedades fenomenológicas e estiverem localizadas em sítios equivalentes dos seus corpos. Toda a tradição tem uma imagem deformada da noção de «interior», sob a influência de representações enganadoras inscritas na nossa linguagem e de más interpretações das construções gramaticais assimétricas entre a primeira e a terceira pessoas nos enunciados psicológicos. Daí decorre que formamos para nós uma imagem igualmente falsa do «exterior». Reconhece-se frequentemente que um indivíduo tem dores pelo comportamento dele, mas não se trata aqui de uma prova indutiva ou analógica, trata-se de um critério lógico do facto de ter dores. Ainda que tais critérios possam ser infirmados, não teria sentido, na ausência de condições que os infirmassem, duvidar de que quem sofre tem dores. O critério do comportamento para o uso de um predicado psicológico é em parte constitutivo do seu significado. Pois o significado dos enunciados que significam o «interior» não é dado por uma definição ostensiva, a que uma impressão subjectiva sirva de amostra. Não pode existir amostra lógica privada e não pode ter lugar nela uma sensação. O argumento

pormenorizado que chega a esta conclusão negativa parte da confusão que atinge a noção de «interior» fazendo deste um domínio privado, para o qual o sujeito desfrutaria de um acesso reservado por introspecção, faculdade que é, ela própria, elaborada a partir do modelo da percepção. Contrariamente à tradição dominante, Wittgenstein defende que a ideia da linguagem como meio de comunicar os próprios pensamentos independentes da linguagem é um contra-senso. Falar não é traduzir pensamentos não verbais na linguagem, e compreender não é interpretar ou transformar signos inertes em pensamentos vivos. Os limites do pensamento são definidos pelos da sua expressão. O domínio de uma linguagem não permite apenas estender a inteligência; ele estende igualmente o poder da vontade. Decerto que um cão pode querer um osso, mas só aquele que usa uma linguagem pode querer no presente qualquer coisa na semana seguinte. Não é o pensamento que insufla a vida nos signos de uma linguagem, mas o uso desses signos no curso ordinário da vida humana. Wittgenstein efectuou igualmente um trabalho considerável em filosofia da matemática. As suas Observações sobre os Fundamentos da Matemática são tão originais e revolucionárias quanto as suas outras obras. É aí que ele aprofunda a sua primeira análise da verdade lógica, libertando-a do jugo metafísico do Tractatus. É aí que ele rejeita o logicismo, o formalismo e o intuicionismo em conjunto, e os substitui por uma concepção normativa da matemática. A aritmética é um sistema de regras (que tomam a forma de descrições) que permitem transformar as proposições empíricas sobre os números, as grandezas ou as quantidades dos objectos. As proposições da geometria não são descrições das propriedades do espaço, mas antes regras constitutivas para descrever relações espaciais. Considera-se erroneamente que uma prova matemática é uma demonstração que estabelece verdades sobre a natureza dos números ou das formas geométricas. Ela determina conceitos e também, por conseguinte, formas de inferência. A matemática é mais matéria de invenção (ou de formação de conceitos) do que de descobertas. À verdade na matemática corresponde a coerência (ou a validade) nas inferências operadas no seio das proposições empíricas sobre os números e as grandezas dos objectos. As posições de Wittgenstein revelaram-se porém demasiado radicais e demasiado difíceis para a época, e em geral permaneceram incompreendidas ou foram mal interpretadas.

A concepção revolucionária da filosofia proposta pelo Tractatus é contrabalançada por uma concepção ainda mais radical dos trabalhos ulteriores de Wittgenstein. A filosofia, sustenta ele, não é uma disciplina cognitiva. As proposições filosóficas e o conhecimento filosófico, quer sejam dizíveis ou indizíveis, não existem. Se elas estivessem verdadeiramente contidas na filosofia, seriam então objecto de um acordo unânime, uma vez que são meros truísmos gramaticais (por exemplo o facto de sabermos que alguém tem dores devido ao seu comportamento). A tarefa da filosofia é a de levantar as obscuridades conceptuais que nos impedem de reconhecer essas articulações definidas pelas regras da nossa linguagem. Não há lugar para teorias hipotético-dedutivas a partir do modelo da ciência; em filosofia, movemo-nos na nossa própria gramática, e resolvemos questões filosóficas examinando as regras de uso das palavras que nos são familiares. Não existem regras ocultas às quais nos submetamos, nem significados reais para enunciados comummente empregues que ninguém conhecerá antes que os descobramos. Os problemas filosóficos nascem quando se misturam diferentes regras linguísticas, por exemplo quando projectamos a gramática que rege uma dada expressão numa outra expressão (por exemplo a gramática do espinho sobre a da dor), ou quando projectamos as normas da representação sobre a realidade pensando estar assim a confrontar dois tipos de necessidade no mundo (por exemplo «Nada pode ser inteiramente vermelho e inteiramente verde»), ou ainda quando exigimos demasiado a certos conceitos, por exemplo que eles se prestem a um tipo de explicação que convém a outra categoria de conceitos. Os métodos em filosofia são puramente descritivos. O que a filosofia deve descrever para resolver os problemas filosóficos é o uso das palavras. Ela deve recordar-nos como nós as usamos a fim de nos mostrar onde vacilamos na obscuridade, seduzidos pelas semelhanças gramaticais superficiais entre enunciados fundamentalmente diferentes (por exemplo a frase «Quando eu digo…, quero dizer…» parece distinguir duas acções: dizer e significar. Mas significar qualquer coisa ao dizê-la não é seguramente cumprir uma acção). A tarefa da filosofia é esclarecer os conceitos e resolver problemas filosóficos. Ela deve apresentar uma descrição de um domínio do pensamento, de uma secção da gramática, em suma expor quais são as relações lógico-gramaticais entre os conceitos que estão na origem de confusões e de obscuridades em filosofia. O seu fito é o de dissipar as confusões e afastar a obscuridade. O objectivo da filosofia não consiste em acrescentar-se à soma dos conhecimentos que o homem tem do mundo. Não existe o manual de um saber

filosófico estabelecido, como em física, em química ou em biologia; mas isso não é porque a filosofia não tenha produzido conhecimento, apesar de dois mil e quinhentos anos de esforços. A filosofia procura compreender num sentido particular: ela procura compreender a maneira como estão ordenadas as diferentes propriedades do nosso sistema conceptual que fazem nascer a dúvida e a obscuridade, tanto na filosofia como na ciência. PETER HACKER 681 Cf. Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico/Investigações Filosóficas, trad. e prefácio de M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. (N. do T.)

Jean-Paul Sartre

Sartre quis ser ao mesmo tempo Stendhal e Espinosa. É forçoso reconhecerse que o conseguiu à sua maneira. Mesmo que privilegiemos aqui a sua obra filosófica, não esqueçamos que Sartre foi igualmente o autor de A Náusea (1938), dos três tomos de Os Caminhos da Liberdade (1945-1949), bem como de uma dezena de peças de teatro, entre as quais Sem Saída (1944), O Diabo e o Bom Deus (1951) e Os Sequestrados de Altona (1959). E que na sequência da sua autobiografia, As Palavras (1963), recebeu e recusou o Prémio Nobel de Literatura. Escritor empenhado, próximo do Partido Comunista, nomeadamente de 1952 a 1956, Sartre não parou de denunciar a exploração do homem pelo homem. Até ao fim da sua vida, continuou a ser um militante político cujos múltiplos empenhamentos, ao lado dos maoístas nos anos 1970, por exemplo, ainda suscitam bastantes controvérsias. Estas, porém, não devem fazer esquecer que Sartre foi, com Bergson e Merleau-Ponty, um dos grandes filósofos franceses do século XX. Contingência e liberdade Habitualmente apresenta-se o pensamento de Sartre começando por evocar a esplanada de um café parisiense onde Raymond Aron lhe terá revelado a própria essência da fenomenologia. Existe contudo um Sartre que, anteriormente, entre 1924 e 1933, já desenvolve «um pensamento profundamente original […] do qual se encontram vestígios profundos mesmo em O Idiota da Família682». Esse pensamento é dominado nomeadamente por uma ideia que Sartre conservará durante toda a vida e à qual consagra o seu primeiro romance: a absoluta contingência do ser, ou seja o carácter supérfluo e como que «em excesso» de tudo o que é ou existe. Assim, Roquentin, sentado num jardim público, contempla desencorajado as raízes de um castanheiro, «massas monstruosas e moles, em desordem – nuas, de uma aterradora e obscena nudez683». O próprio Deus, caso exista, não escapa à contingência, e a sua própria existência é desprovida de necessidade.

A descoberta da obra de Husserl (1859-1938), fundador da fenomenologia, nem por isso deixa de ser um evento decisivo para Sartre que, bolseiro no Instituto Francês de Berlim (1933-1934), mergulha nas leituras das Investigações Lógicas (1900) e das Ideias Directrizes para Uma Fenomenologia (1913). Sartre redige então dois textos: por um lado um artigo de título significativo, «Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade», que lhe permite expor a concepção da consciência intencional – «a consciência nada é fora de si mesma e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser substância que a constitui como consciência684». Por outro lado, um breve ensaio, A Transcendência do Ego, que, em nome de um cogito pré-reflexivo, impessoal, se opõe à concepção simultaneamente cartesiana e husserliana de um ego que habite na consciência. Porque o eu, para Sartre, é um objecto transcendente, constituído pelo retorno da consciência a si mesma ou reflexão. Impessoal, não substancial, a consciência sartreana é além disso uma pura espontaneidade. Por outras palavras, «cada instante da nossa vida consciente revela-nos uma criação ex nihilo685». Daí se segue que a consciência, para Sartre, é estranha a toda a forma de passividade, ao ponto de nada poder agir sobre a consciência. Deste ponto de vista, como mostra o Esboço de Uma Teoria das Emoções (1939), deve renunciar-se à própria ideia de paixões da alma, e compreender então essas emoções que são a alegria, a tristeza ou a cólera como outras tantas condutas mágicas em relação ao mundo, espontaneamente adoptadas pela consciência. Do mesmo modo, o ódio ou o amor são para Sartre condutas adoptadas pelo sujeito. Por isso, como ele recordará nas suas Reflexões sobre a Questão Judaica (1946), o anti-semitismo não é uma paixão de que seria vítima o anti-semita mas antes de tudo uma atitude escolhida: o anti-semita escolheu «viver no modo apaixonado», escolheu «raciocinar falsamente», «ser impermeável», «ser terrível686», etc. Se O Imaginário (1940) é ainda escrito numa perspectiva nitidamente husserliana, em compensação a redacção de O Ser e o Nada (1943) – que pode ser considerada a primeira grande obra de Sartre – está estreitamente ligada à leitura de Heidegger (1889-1976), nomeadamente de Ser e Tempo (1927). Sartre propõe-se aí expor as estruturas da consciência na sua relação com o ser: a consciência resulta daquilo a que ele então chama uma descompressão do ser ou «nadificação», isto é a produção de um nada no seio do ser. Assim, diferentemente de um calhau ou de uma couve-flor, ou seja de um ser em si que é e que é o que ele é, a consciência ou para-si não poderia coincidir consigo

mesma. Sempre à distância de si mesma, nem que fosse pela simples presença a si, a consciência existe, ou seja ela possui esse modo de ser específico segundo o qual a consciência não é o que ela é e é o que ela não é. É o que poderemos igualmente compreender ao considerar a maneira como a consciência se temporaliza no sentido em que ela escapa ao que ela é e se projecta no futuro: ela não é portanto (mais) o que ela é, e não é (ainda) o que ela já é. Daí resulta que a consciência é livre. E essa liberdade, como revela a angústia, não é uma propriedade da consciência entre outras. Ela está inscrita no seu próprio ser, que é radicalmente estranho ao princípio de identidade bem como a toda a forma de determinismo. Sem dúvida que a consciência não está no fundamento do seu ser e, por conseguinte, não escolhe nem o lugar nem o momento do seu nascimento. Mas o «facto» contingente da sua existência conjuga-se com a sua absoluta liberdade, a sua facticidade com a sua livre transcendência, ou seja com esse movimento de nadificação que lhe permite ser sempre outra coisa do que aquilo que é. No entanto, o homem está de má-fé. Tal como o empregado de café que finge ser empregado de café, o homem não pára de fugir, e de dissimular a contingência do seu ser. Ele persegue então aquilo a que Sartre chama a impossível síntese do em-si-para-si, ou seja de uma livre subjectividade (parasi) que seria igualmente coisa ou substância (em-si), e que, no fundamento do seu ser enquanto realidade substancial, escaparia à contingência. Compreendemos já a frase com que termina O Ser e o Nada: «O homem é uma paixão inútil687.» É essa mesma paixão que reencontramos operando nas nossas relações com outrem em que, umas vezes como olhar que olha e outras como olhar que é olhado, umas vezes como sujeito e outras vezes como objecto, cada um persegue incansavelmente via outrem essa síntese do em-sipara-si. A inteligibilidade da história Na conclusão de O Ser e o Nada, Sartre anuncia uma obra seguinte consagrada aos prolongamentos éticos da sua reflexão. Os Cadernos para Uma Moral, publicados três anos após a sua morte, reúnem um conjunto de notas redigidas entre 1947-1948 e que ficou por concluir. Simultaneamente, Sartre expõe com O Que é a Literatura? (1947) a sua concepção do empenhamento literário. Aí apela aos escritores para abandonarem a estética da arte pela arte e para considerarem a escrita como uma arma da luta que os homens conduzem contra o mal. Enfim, Sartre empreende um vasto debate com o marxismo que

leva à publicação, em 1957, de Questões de Método e, em 1960, da Crítica da Razão Dialéctica. Esse «tijolo» – cerca de 900 páginas – pode ser considerado a sua segunda grande obra. Sartre esforça-se aí por tornar a história inteligível a partir de uma interpretação ao mesmo tempo materialista e dialéctica da acção humana no meio da «escassez». Uma interpretação materialista antes de mais. Em 1946, num longo artigo intitulado «Materialismo e revolução», Sartre critica aquilo a que chama o «neomarxismo estalinista» que se inspira muito particularmente no pensamento de Engels, e denuncia a absurdidade de uma dialéctica materialista da natureza: «A natureza, como diz Hegel tão profundamente, é exterioridade. Como achar lugar nessa exterioridade para esse movimento de interiorização absoluta que é a dialéctica?» Ao «mito materialista», Sartre opõe portanto a sua filosofia da transcendência, ou seja da liberdade, que é a única verdadeira filosofia revolucionária688. O mesmo já não sucede dez anos mais tarde. Em Questões de Método, embora mantenha a sua crítica de uma dialéctica da natureza, Sartre declara-se materialista no sentido em que reconhece, como Marx n’O Capital, que «o modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual689». O marxismo é doravante, para Sartre, a inultrapassável – inultrapassável porque as circunstâncias que a engendraram não foram ainda ultrapassadas – filosofia do nosso tempo690. Uma interpretação dialéctica, seguidamente. Sartre descobre no seio do marxismo «uma falha» que convém remediar elaborando uma «antropologia histórica e estrutural» que tomaria por ponto de partida o que o marxismo, senão Marx, ignora totalmente: a existência. Sob este aspecto, a Crítica da Razão Dialéctica situa-se efectivamente no prolongamento de O Ser e o Nada, cuja descrição da existência é, de certa maneira, retomada em 1960 sob o nome de praxis. Com esse termo, Sartre designa a acção de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos que modificam o seu ambiente material em vista de um dado fim. A forma elementar dela é a carência enquanto multiplicidade de comportamentos animada pelo projecto de se conservar vivo. Ora, para Sartre, a praxis individual já é dialéctica «na medida em que a acção é em si mesma superação negadora de uma contradição, determinação de uma totalização presente em nome de uma totalidade futura691». Assim, a racionalidade da acção é dialéctica. E, como a história resulta da praxis, a sua inteligibilidade releva de uma razão dialéctica da qual Sartre, à maneira de Kant na Crítica da Razão Pura, projecta estabelecer a extensão e o limite. A história começa portanto com a carência enquanto praxis. Mais

exactamente, ela começa com o facto rigorosamente contingente da «escassez»: como na jangada da Méduse «não há que chegue para todos692». Assim, a escassez faz pesar sobre cada organismo a ameaça do seu aniquilamento, de modo que a praxis é antes de tudo luta contra a morte. Além disso, a escassez está no princípio seja da inumana humanidade dos homens, seja da nossa história enquanto luta encarniçada contra a «escassez». Pois a escassez une os homens, que devem associar-se para lutarem contra ela; e ela divide-os, uma vez que nem todos podem ser satisfeitos e que cada um é uma ameaça para a vida do outro. Enfim, não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que a escassez seja o efeito de um modo de produção determinado, por exemplo do modo de produção capitalista. Ela está pelo contrário no princípio tanto do modo de produção como da luta de classes: qualquer que seja o modo de produção, a diferenciação das funções no meio da escassez implica necessariamente a constituição de um grupo de produtores subalimentados. O primeiro tomo da Crítica da Razão Dialéctica permite a Sartre colocar o problema da história de um ponto de vista dialéctico, enquanto totalização de todas as multiplicidades práticas. No entanto, não é possível conceber a história segundo o modelo da praxis individual, totalizadora de um conjunto de condutas. Pois, no caso da história, haveria antes totalização de uma infinidade de condutas sem totalizador. Como é possível uma tal totalização? Por outras palavras, a história terá efectivamente um sentido? Renunciando a publicar o segundo volume da Crítica, Sartre deixa a sua empresa inacabada693.

A psicanálise existencial De uma certa maneira, as diferentes investigações filosóficas de Sartre conjugam-se para responder à pergunta com que se inicia O Idiota da Família (cujos dois primeiros tomos são publicados por Sartre em 1971 e o terceiro em 1972): «O que se pode saber de um homem hoje em dia694?» Monumental estudo dedicado a Gustave Flaubert, O Idiota da Família representa a terceira grande obra de Sartre. É porém antecedida por dois ensaios: Baudelaire (1947), São Genet, comediante e mártir (1952), ao qual se poderá acrescentar Mallarmé. A lucidez e a sua face de sombra, publicado a título póstumo em 1986, que se prendem com esse mesmo projecto de hermenêutica existencial.

A bem dizer, Sartre define-lhe já o alcance e as regras durante a quarta e última parte de O Ser e o Nada, nomeadamente ao opor-se à psicanálise freudiana, na qual rejeita o conceito de inconsciente psíquico, embora reconheça em Freud um precursor. Sartre escreve aí: O princípio dessa psicanálise é que o homem é uma totalidade e não uma colecção; que em consequência ele se exprime inteiramente na mais insignificante e na mais superficial das suas condutas – por outras palavras, que não há um gosto, um tique, um acto humano que não seja revelador695.

Uma tal hermenêutica propõe-se então descobrir a escolha fundamental que cada uma das condutas de um homem simboliza à sua maneira. Uma tal escolha é absolutamente livre. Ela é escolha de uma certa relação com o ser que o para-si opera a partir do seu desejo de ser (em-si-para-si). No seguimento, Sartre altera em parte essa concepção, nomeadamente em função da sua interpretação materialista e dialéctica da praxis, que se esforça por justificar aquilo a que chama o prático-inerte enquanto origem de toda a alienação. Sartre desenvolve então uma teoria dialéctica da compreensão, exposta na terceira parte de Questões de Método, segundo a qual o acto se explica pela sua significação terminal a partir das suas condições de partida. Assim, a actividade da psicanálise existencial deve ser progressiva-regressiva: «O movimento da compreensão é simultaneamente progressivo (rumo ao resultado objectivo) e regressivo (eu remonto à condição original)696.» Correlativamente, a ideia de uma liberdade incondicionada cede progressivamente lugar à de uma praxis alienada. Não deveremos por isso concluir que Sartre renuncie finalmente à sua concepção primeira da liberdade e assimile o homem alienado a uma coisa: Sempre me senti livre desde a infância. A ideia de liberdade desenvolveu-se em mim, perdeu os aspectos vagos e contraditórios que tem em qualquer um quando a tomamos assim à partida, e complicou-se. Tornou-se precisa; mas morrerei como vivi, com um sentimento de profunda liberdade697. PHILIPPE CABESTAN 682 V. de Coorebyter, Sartre avant la phénoménologie, Bruxelas, Ousia, 2005, p. 11. 683 La Nausée (1938), Paris, Gallimard, «Folio», 1989, p. 182. 684 Situations I (1947), Paris, Gallimard, 1975, p. 40.

685 La Transcendance de l’ego (1937), Paris, Vrin, 1988, p. 79. 686 Reflections sur la question juive (1946), Paris, Gallimard, 1954, p. 19-23. 687 L’Être et le Néant (1943), Paris, Gallimard, 1976, p. 678. 688 «Matérialisme et révolution», in Situations III, Paris, Gallimard, 1949, p. 196. 689 Critique de la raison dialectique, Paris, Gallimard, 1960, p. 38. 690 Ibid., p. 14. 691 Ibid., p. 194. 692 Ibid., p. 239-240. [O autor refere-se aqui ao naufrágio do navio francês La Méduse, a 2 de Julho de 1816, ao largo do Senegal, evento que inspirou um igualmente célebre quadro de Théodore Gericault três anos mais tarde. (N. do T.)] 693 O manuscrito inacabado desse segundo volume foi publicado em 1985 na Gallimard por A. ElkaïmSartre. 694 L’Idiot de la famille, Paris, Gallimard, 1971, p. 7. 695 L’Être et le Néant, op. cit., p. 628. 696 Critique de la raison dialectique, op. cit., p. 115. 697 «Entretiens avec Jean-Paul Sartre, août-septembre 1974», in S. de Beauvoir, La Cérémonie des adieux, Paris, Gallimard, 1981, p. 492.

Maurice Merleau-Ponty

Numa conferência pronunciada aquando dos Encontros Internacionais de Genebra, em 1951, Merleau-Ponty declarava: «O próprio do nosso tempo é […] não somente conciliar, mas ter por inseparáveis a consciência dos valores humanos e a das infra-estruturas que os trazem à existência698.» Ele traçava então o retrato de um século que descera ao subsolo da nossa humanidade para nele descobrir, à luz inquietante da psicanálise, do surrealismo e de duas guerras mundiais, a nossa condição de seres incarnados e contingentes. Ora, é difícil não perceber, por detrás desta apresentação filosófica da época, uma confissão por meias-palavras de um filósofo ele próprio «arqueólogo» que andara a exumar, de obra em obra, os alicerces corporais, linguísticos e históricos da consciência. Nascido em 1908, Merleau-Ponty fizera brilhantes estudos clássicos; mas, tal como Sartre, Lévi-Strauss ou Lacan, ele pertencia a uma geração que nos anos 1930 descobrira Hegel, Marx, Nietzsche, Freud e a fenomenologia. É portanto ambivalente, mesmo na sua formação: crente nos poderes do espírito, como os seus mestres cartesianos ou kantianos; mas consciente de que as perturbações intelectuais e históricas do momento apelariam mais cedo ou mais tarde a uma crítica radical, e radicalmente «desintelectualizante», da filosofia. Uma razão inquietada pela sua incarnação; uma razão que já não queria desconhecer o «negativo» (o corpo e a sua passividade, a linguagem e a sua obscuridade, a história e a sua violência); uma razão concreta, enfim, eis o que Merleau-Ponty nos daria a pensar. Mas como cumprir essa aposta, por mais magnífica que ela fosse, de «formar uma nova ideia da razão699»? Para muitos outros depois dele, como Lévi-Strauss ou Foucault, a psicanálise, a psicopatologia, a etnologia ou a linguística estrutural anunciavam antes uma destituição da razão, a que dentro em pouco se chamaria a «morte do homem700»; para Merleau-Ponty, essa foi a oportunidade de uma nova filosofia. A inflação freudiana do sexual, por exemplo, ou a descoberta saussuriana do sistema da língua não infligiria nenhuma ferida narcísica, servindo antes para compor aquilo a que Merleau-Ponty chama um humanismo «sério701»: como é isso possível? Que estranha construção filosófica poderia

sustentar conjuntamente, sem contradição, uma teleologia racional e uma arqueologia verdadeira? A união da alma e do corpo O projecto filosófico de Merleau-Ponty é ao mesmo tempo simples (facilmente situável, constantemente repetido) e complexo (de difícil aplicação, constantemente reprogramado). Reconhecer como um dado fundamental a incarnação do espírito, que é testemunhada, em toda a experiência, por um certo primado da percepção – eis o programa. Contudo, esse dado, que é evidente na ordem da vida, nada tem de evidente para o pensamento: ele exige ser conquistado, tanto contra uma filosofia idealista segura da autonomia do espírito como contra um conjunto de ciências – psicologia, sociologia, história – que conhecem pelo contrário a dependência empírica desse mesmo espírito. A união da alma e do corpo vive-se assim como um facto primitivo e incontestável, mas cuja legitimidade filosófica está por conquistar, arbitrando o conflito do «ponto de vista interior» da reflexão e do «ponto de vista exterior» da ciência. Há uma verdade definitiva do cogito, como diz Merleau-Ponty; mas, inversamente, a ciência tem por ela a autoridade indiscutível do realismo e dos condicionamentos orgânico, psíquico, social e histórico dos quais soube convencer-nos; neste sentido, cada um dos pontos de vista é total e impartilhável, portanto inconciliável com o seu contrário. Vivemos a união, mas não sabemos pensá-la, eis o problema. Nada há portanto de fácil nesse projecto de uma filosofia concreta, lançada concorrentemente contra o idealismo dos «mestres» – bem representado nos anos 1930 pelo magistério universitário de Léon Brunschvicg – e contra o realismo naturalista de ciências humanas em pleno desenvolvimento desde o fim do século XIX. Merleau-Ponty projecta essa terceira via nas suas duas primeiras obras. A Estrutura do Comportamento (1942) parte do ponto de vista exterior da ciência e opera nele uma crítica minuciosa. Dando-se um corpo inteiro plenamente submetido ao olhar objectivante da psicologia experimental, a obra supera progressivamente a sua representação realista em proveito da noção ambígua de «comportamento». Um comportamento vivo não pode ser composto mecanicamente, como uma soma de reflexos elementares; ele é antes de mais uma resposta ao sentido global de uma situação. Contudo, ele não envolve uma pura consciência, a «visão» que o anima permanece cúmplice de um corpo, simples afinidade de uma conduta total a uma situação total, e não conhecimento distinto. A obra mestra de Merleau-Ponty, a Fenomenologia da

Percepção (1945), executa um percurso exactamente simétrico e inverso: partindo não «de baixo» (do ponto de vista exterior da ciência, para a idealizar) mas «de cima» (do ponto de vista interior da consciência, para a materializar). É então a experiência na primeira pessoa do sujeito percebente que guia a reflexão, e que vai progressivamente opacificar-se até se perceber solidária de uma corporeidade anónima e passiva. O «eu penso» da filosofia transfigura-se inelutavelmente, ao longo de descrições largamente alimentadas pela Gestaltpsychologie, a neurofisiologia ou ainda a psicopatologia, até se aperceber sob a exterioridade de um «eu posso702» corporal, ou ainda de um «eu natural703» mais antigo que todo o conhecimento. A fenomenologia husserliana representa o verdadeiro organon dessa ambiciosa reforma do nosso entendimento filosófico. Merleau-Ponty, como Sartre, descobriu a obra de Husserl na década de 1930; um e outro compreenderam, cada um à sua maneira, que toda uma antropologia filosófica estava envolvida na simples exigência de voltar à experiência directa que nós fazemos do mundo e dos outros. A «fenomenologia» é o direito dado ao fenómeno – à experiência vivida ou irreflectida – de se dizer num logos, e de assim o renovar em profundidade. No termo da Segunda Guerra Mundial, a Fenomenologia da Percepção e O Ser e o Nada testemunham assim a imensa fecundidade de um método que, na sua neutralidade descritiva, pode frustrar o duplo prestígio do idealismo filosófico e do naturalismo científico. Antes de ser um movimento ou uma moda, o existencialismo, tal como Merleau-Ponty o compreende, prolonga directamente esse imperativo fenomenológico de permanecer até ao fim fiel ao viver e às suas obscuridades. A metafísica no homem Estimulada pelo problema cartesiano da união da alma e do corpo, a filosofia não fica porém acantonada a esse tema antropológico. Merleau-Ponty fala pouco do homem, ou muito sobriamente; de tanto se pronunciar essa palavra, esquece-se com efeito que o essencial deve ser procurado longe do homem: «A sua existência estende-se a demasiadas coisas – exactamente: a tudo – para se fazer ela mesma objecto de deleitação ou para autorizar aquilo a que se chamou um “chauvinismo humano”704.» É por isso que não é uma antropologia da união o que constrói Merleau-Ponty: é antes, após a Fenomenologia da Percepção, uma interrogação sobre o ser. É menos o homem do que «o metafísico no homem705» que doravante prevalece, por outras palavras o

mistério ontológico de que o homem, como espírito incarnado, não é mais do que testemunha. Essa ambição ontológica nova motiva a abertura de um vasto trabalho que culminará, no final da década de 1950, com a redacção da grande obra inacabada, O Visível e o Invisível. Chamado em 1949 à Sorbonne para aí ensinar a Psicologia da Criança, nomeado em final de 1952 professor no Collège de France, Merleau-Ponty alimenta com numerosas leituras um trabalho filosófico prolífico; um após outro, todos os aspectos do viver humano se vêem questionados no sentido das suas derradeiras implicações ontológicas. O próprio corpo, em primeiro lugar, é interrogado em novos moldes, através de uma reflexão sobre a psicanálise freudiana e pós-freudiana (M. Klein, P. Schilder, J. Lacan). Uma representação dinamizada do esquema corporal, uma nova consideração dos investimentos carnais e afectivos, instruem uma representação inédita do corpo humano, corpo definitivamente impróprio, radicalmente descentrado na direcção de outrem. Os «pensamentos bárbaros da primeira idade706», sonhando a passagem mimética de outrem em mim e de mim em outrem, são a primeira comunicação, a desrazão no princípio de toda a razão. Para além do corpo, a linguagem vê-se também ela reexaminada, e isso após a linguística de Saussure. Redefinida como o lugar do advento do sentido, ou do sentido enquanto se faz, a linguagem deixa-se facilmente promover ao nível de modelo universal, acreditando de cada vez, desde a ordem humana da cultura até às profundezas da natureza, a ideia de uma historicidade fundamental. Os textos redigidos a partir do fim dos anos 1940 para A Prosa do Mundo deslocam assim o centro da reflexão, da simples incarnação – anteriormente definida como confusão ou mistura dos contrários – para a expressão, definida como poder universal de fazer sentido. Só a análise política, nacional e internacional não se deixa apreender como um dos lugares dessa intensa experimentação filosófica. Ao sair da Segunda Guerra Mundial, em plena Guerra Fria, e nomeadamente através da criação com Sartre da revista Os Tempos Modernos, Merleau-Ponty exorta a uma conversão do olhar: não é para um céu de princípios jurídicos que nos devemos voltar para sondar o sentido da história. A ideia de uma direcção superior – mesmo simplesmente reguladora – e o cepticismo histórico são duas posições que se encontram, postulando uma e outra um olhar dominante. Só capta o sentido histórico enquanto este se faz aquele que faz o sentido, ou que pelo menos se sabe empenhado numa situação histórica produtora do seu próprio sentido. Foi assim que Merleau-Ponty sempre quis compreender o marxismo: como o

instrumento de uma nova inteligência dos factos, avessa a todo o pensamento separado. Um instrumento que de resto seria errado julgar demasiado parcial ou partidário, se é certo que ele conseguiu motivar, em relação à experiência estalinista, tanto uma adesão atenciosa e prudente em 1947 (Humanismo e Terror) como um verdadeiro distanciamento alguns anos mais tarde (oficializado em 1955 com As Aventuras da Dialéctica). Nessas diferentes explorações encontra-se sempre a mesma cifra ontológica. Seria preciso conceber a ontologia terminal de Merleau-Ponty como o resultado de investigações muito díspares, mas deixando porém transparecer um ar de família – o de um ser «primordial», precedendo todo o pensamento objectivo, e tão velho quanto os nossos primeiros desejos; um ser para sempre «expressivo» ou «inacabado», à imagem das palavras criadoras do verdadeiro escritor ou das vozes silenciosas do pintor; um ser enfim «bruto» ou «selvagem», ressoando violências matriciais da relação inter-humana. A união da alma e do corpo é doravante, no termo de uma série de alargamentos espectaculares, ao mesmo tempo o originário, o incoativo e o bárbaro em nós. É ainda a «carne do mundo», segundo uma fórmula que dá toda a medida (ou desmesura) desse trabalho de elaboração ontológica. Filosofia e não-filosofia Em cada uma dessas investigações, é sempre o «uso da vida», como dizia Descartes, o viver na sua radical precessão sobre o pensamento, que instrui a filosofia e a faz aceder ao nível de filosofia concreta. Merleau-Ponty foi muito longe nesse sentido, como testemunha o tema, omnipresente nos seus últimos cursos no Collège de France707, da «não-filosofia». A não-filosofia é, em conformidade com o alargamento do tema da incarnação operado após a Fenomenologia da Percepção, o conjunto do mundo vivido anteriormente à filosofia, esse mundo agido antes de ser sabido, verdadeiro laboratório da filosofia que vem. É ainda a confusão generalizada do tempo presente, a «crise708» que, através da ciência, da pintura, da literatura, da religião, da política, denuncia a esterilidade manifesta do pensamento objectivo, esse pensamento «de sobrevoo709»: para uma certa filosofia, tal como para uma certa ciência, o ser não nos toca, conhecemo-lo sem o sermos, puros sujeitos contemplando puros objectos. Mas tal como a percepção não é um saber desligado mas uma presença experimentada, uma adesão sem distância, também a filosofia deve reaprender a ser, na promiscuidade e na usurpação,

aquilo que quer levar ao conhecer. Daí o apelo a uma «filosofia militante710», capaz de renovar as suas categorias no plano da experiência, quando a «filosofia triunfante711» pelo contrário não se sabe pensar senão pensante e separada. Foi assim à psicologia em plena pesquisa de si, na transformação activa dos seus próprios métodos e na superação operante dos seus dualismos, em suma àquilo a que ele chamou um dia a «autocrítica do psicólogo712», que Merleau-Ponty quis pedir uma filosofia da percepção e do desejo. Foi à arte, ao gesto silencioso do pintor, bem como às suas perplexidades, que ele quis regressar para penetrar o segredo do nosso poder de expressão. Foi enfim à análise política factual, bem como à experiência comunista, que ele pediu um veredicto acerca das possibilidades a vir para a coexistência humana. Essa falsa humildade do filósofo, que finge abandonar a filosofia para melhor voltar a ela, essa suspensão do saber em proveito da vida, que acaba por reabastecer o saber com uma abundante matéria alheia, é sem dúvida o que nos falta reconhecer de mais original em Merleau-Ponty. Há um paradoxo a reter nesta vontade de fazer servir para a renovação da filosofia tudo o que a ameaçava de impotência: «A filosofia […] começa com a consciência do que corrói e faz ruir, mas também renova e sublima os nossos significados adquiridos713.» ÉTIENNE BIMBENET 698 Signes, Paris, Gallimard, «NRF», 1961, p. 287. 699 Cf. Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1948, p. 8: «Seria preciso que a experiência da desrazão não fosse simplesmente esquecida. Seria preciso formar uma nova ideia da razão.» 700 Cf. M. Foucault, Les Mots et les Choses. Une archéologie des sciences humaines, Paris, Gallimard, «NRF», 1966, cap. 10. 701 Signes, op. cit., p. 283. 702 Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, «NRF», 1945, p. 160. 703 Ibid., p. 239. 704 Éloge de la philosophie, Paris, Gallimard, «Folio», 1989, p. 47. 705 Sens et non-sens, op. cit., p. 145-172. 706 Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 408. 707 Cf. Notes de cours 1959-1961, Paris, Gallimard, 1996.

708 Cf. «La philosophie aujourd’hui» (cours de 1958-1959), Notes de cours 1959-1961, op. cit., p. 40. 709 Signes, op. cit., p. 20. 710 Ibid., p. 199. 711 Ibid. 712 Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 77. 713 La Prose du monde, Paris, Gallimard, 1969, p. 25-26.

Investigações epistemológicas

Como prática discursiva e racional, a filosofia ocidental desde sempre desenvolveu uma reflexão sobre as modalidades e os limites do conhecimento humano. Do mesmo modo, à medida que se foram constituindo as ciências, desde a geometria antiga até à física contemporânea, ela procedeu a uma análise propriamente epistemológica dos objectos, métodos e limites das ciências, tanto formais como experimentais. Tais investigações epistemológicas ganharam novo fôlego no início do século XX. Produzem-se então no cerne da história das ciências rupturas e inovações significativas. É a época do aparecimento das geometrias não euclidianas, da física não newtoniana, da biologia e da emancipação de domínios, que, saídos da filosofia, se constituíam em ciências do homem e da sociedade: psicologia, psicanálise, linguística, sociologia, etnologia e antropologia. Essas inovações têm a sua importância, que foi muitas vezes comentada714. Mas a alteração mais fundamental, porquanto transformou ao mesmo tempo as condições da análise filosófica e da conceptualização científica, reside na constituição da lógica simbólica como ciência dos sistemas formais. A novidade, com efeito, já não se refere aos desenvolvimentos teóricos que operam por ruptura, e depois integração, como a pan-geometria ou a pan-física, com a teoria da relatividade a englobar como caso particular a física clássica, ou mediante a invenção de uma teoria nova cujo modelo nas ciências do homem é a linguística saussuriana, mas à própria linguagem e às regras do seu uso puramente racional e dedutivo. Nos alvores do século passado, a lógica constitui-se como linguagem formal e como cálculo racional de aplicação universal. Desde logo, os seus métodos e conceitos irradiam todo o campo do saber, da filosofia às ciências experimentais, passando pela matemática. Após haver recordado sucintamente as principais etapas da constituição da lógica contemporânea, procuraremos avaliar o impacto desta na prática da filosofia, nos desenvolvimentos das ciências formais e experimentais, na reflexão epistemológica contemporânea, e finalmente na emergência das

«ciências cognitivas». A lógica como ciência dos sistemas formais O nascimento da lógica contemporânea data da publicação da Begriffsschrift de Gottlob Frege em 1897. Nesta obra, o matemático de Iena apresenta o cálculo lógico sob a sua forma quase acabada, procedendo depois à redução da aritmética, nomeadamente por meio de uma definição lógica do conceito de número. Trata-se de construir uma linguagem artificial ideal que permita a escrita unívoca dos conceitos num simbolismo bidimensional rigoroso (mas pesado) e que, a partir de axiomas, desenvolva dedutivamente os seus teoremas de maneira puramente automática sem recurso a uma qualquer intuição. A partir de uma extensão do operador matemático de «função», Frege constrói o termo lógico de «conceito» (Begriff) que caracteriza uma função propriamente lógica, admitindo por argumento um objecto e tomando como valor um «valor de verdade»: o Verdadeiro ou o Falso. Assim, a proposição «Sócrates é mortal» é doravante analisada como argumento «Sócrates» e como conceito «é mortal». Apresentando esta análise funcional o insigne mérito de valer também para as proposições do género «Platão é o discípulo de Sócrates», o novo cálculo aplicava-se também às relações que, como sabemos, não obstante certas tentativas de Leibniz, escapavam à lógica tradicional. Como muitas vezes sucede na ciência, a descoberta fregeana foi reiterada cerca de três anos mais tarde por Bertrand Russell715. Adoptando o maleável simbolismo linear de Peano, Russell procede por génese gramatical: «Sócrates é mortal» escreve-se M(s) e «Platão é o discípulo de Sócrates: D(p,s). Ao substituir os indivíduos por variáveis, obtêm-se as funções proposicionais F(x) e F(x,y) que se podem quantificar universalmente (x)F(x) ou existencialmente 716. Russell e Frege partilharam inicialmente a mesma concepção absolutista, universalista e realista da lógica. Na época, a nova lógica, que era a única possível, parecia fornecer os fundamentos definitivos da matemática. Essa língua formal tinha jurisdição sobre todo o discurso racional e os seus axiomas exprimiam as «leis de ser verdadeiro» (Frege) e asseguravam a «convivência717» de uma verdade concebida como dado último (Russell). Os rápidos desenvolvimentos das investigações lógicas desmentiram essa concepção inicial. No início dos anos 1920, Jan Łukasiewicz, ao utilizar o novo

instrumento lógico para reinterpretar rigorosamente a lógica de Aristóteles, teve a ideia de introduzir um terceiro valor de verdade (o possível) para justificar o estatuto particular dos futuros contingentes718. Ao fazer isso, lançou as bases simultaneamente das lógicas plurivalentes e das lógicas modais. Desde que se pudessem conceber lógicas com três, quatro, ou mesmo n valores, o princípio de bivalência que governava a lógica fregeo-russelliana já não passava de uma convenção particular. Do mesmo modo, podia estender-se esta lógica para construir um cálculo que integrasse as modalidades do necessário, do impossível, do possível e do contingente. Daí resultou uma relativização das lógicas que, segundo a expressão de Carnap, já só relevavam do «princípio de tolerância»: Em lógica, não há moral. Cada um tem a liberdade de construir a sua própria lógica, i.e. a sua própria forma de linguagem, tal como desejar. Tudo o que lhe é pedido […] é que estabeleça os seus métodos claramente e que forneça regras sintácticas em lugar de argumentos filosóficos719.

Cada lógica se reduzia a um sistema formal submetido às meras regras metalógicas de consistência, de completude e de decidibilidade. Na sequência, uma notável florescência de sistemas lógicos visou tanto estender os poderes da lógica-padrão – lógicas aléticas, doxásticas, epistémicas, deônticas, interpretáveis por semânticas dos mundos possíveis – como reformar-lhe um dos aspectos, como é o caso das lógicas plurivalentes, intuicionistas, dialógicas, livres, etc. A análise lógica em filosofia O impacto da lógica nova foi determinante em filosofia. Ao fornecer um método de análise das noções, de definição formal dos conceitos e de resolução (ou dissolução) dos problemas, a lógica formal deu origem àquilo a que se chamou a «filosofia analítica», que Russell preferiu qualificar como «método científico em filosofia720». Recordemos apenas um exemplo significativo desse contributo crucial da lógica: o método de definição contextual que resultava da teoria das descrições definidas, exposta em 1905 no célebre artigo «Da denotação». Aparentemente, a aposta é puramente técnica: trata-se de recorrer à nova lógica (e em particular à quantificação) para justificar formalmente o uso das expressões denotativas da língua natural, como «o actual rei de França», «o círculo quadrado», etc. No juízo «o actual rei de França é calvo», a expressão

«o actual rei de França» funciona como uma descrição definida que apresenta conceptualmente um indivíduo supostamente único e existente. O juízo em questão analisa-se do seguinte modo: «Existe um e um só indivíduo que é actualmente rei de França e calvo.» Desde logo, a descrição «o actual rei de França» não faz mais do que «contribuir para o significado» do juízo completo ao fornecer duas condições de unicidade e de existência e uma qualificação contextual721. Tecnicamente, esta análise revelar-se-á determinante na medida em que ela introduzia um novo operador de singularidade (lx) que permitia designar conceptualmente um indivíduo determinado. Mas as suas consequências filosóficas foram igualmente importantes. Semanticamente, ela instaurava uma distinção marcada entre os nomes próprios lógicos que funcionam como autênticos símbolos significando directamente (meaning) indivíduos efectivamente dados e as descrições definidas, doravante concebidas como símbolos incompletos, não fazendo mais do que descrever conceptualmente (denoting) indivíduos cuja existência ou unicidade não está garantida. No que concerne a teoria do conhecimento, a anterior distinção simbólica é reforçada por um dicotomia radical entre a «convivência» como modo de apreensão directa dos objectos dos sentidos (como os universais) e o «conhecimento por descrição» que releva do uso discursivo das descrições definidas722. A partir daí, a compreensão de uma proposição assenta na redução dos elementos descritivos àqueles, irredutíveis, a que só se pode aceder por convivência. Do mesmo modo, tanto o conhecimento do mundo – quer ele seja empírico ou científico – como o conhecimento dos outros espíritos releva de um conhecimento descritivo que deve, in fine, enraizar-se numa convivência de natureza solipsista. Enfim, as consequências ontológicas revelam-se também elas consideráveis na medida em que a definição contextual das descrições definidas opera uma redução não só simbólica mas também ontológica, que permite resolver o antigo problema do estatuto dos ficta, impossibilia e abstracta. Por exemplo, para justificar o significado da expressão «o círculo quadrado», já não é necessário admitir (como ainda fazia Russell em 1903) a subsistência de um objecto contraditório, mas simplesmente constatar que não existe no mundo objecto único que seja ao mesmo tempo circular e quadrado. A descrição definida «o círculo quadrado» já não tem valor de autêntico nome próprio que designe um objecto cuja subsistência fosse preciso garantir. Do mesmo modo, o

argumento ontológico torna-se caduco: a existência não é a propriedade de um objecto, mas o facto de uma função proposicional ser satisfeita por pelo menos um indivíduo. A questão da existência (ou da «realidade») não se coloca portanto para os nomes próprios que signifiquem directamente indivíduos dados, mas para as descrições definidas que denotem eventuais objectos. Se, para Russell, o método filosófico recorre à análise lógica, para Wittgenstein o exercício filosófico consiste, não numa construção de doutrinas complicadas, mas numa actividade terapêutica que visa detectar as proposições desprovidas de sentido e resolver – ou dissolver – as falsas questões que resultam do uso abusivo da linguagem: «O fito da filosofia é a clarificação lógica do pensamento. A filosofia não é uma doutrina, mas uma actividade, uma obra filosófica consiste essencialmente na elucidação723.» Se, para Russell a atitude em relação à vida releva de uma inspiração «mística», e se, para Wittgenstein, ética e estética relevam do que se não pode dizer, Carnap, preconizando um positivismo lógico, recusa toda a possibilidade de discurso que não seja regido pela sintaxe lógica: «Os metafísicos são músicos sem dom musical724.» A logicização da matemática Em Russell, a definição contextual, nova forma da navalha de Ockham, permite reduzir toda a ontologia dos objectos lógi-co-matemáticos. A teoria «nada de classes» dos Principia Mathematica definia contextualmente toda a classe a partir de uma função proposicional cuja extensionalidade estivesse garantida725. Assim, o número 2 revela ser não um objecto inteligível, mas uma simples construção simbólica, uma «ficção lógica»: a classe de todas as classes semelhantes a um dado par. Enquanto classe de classes, todo o número se resolve desde logo numa ficção de ficção. A partir destas bases, os Principia Mathematica de Russell e Whitehead propõem uma redução lógica de toda a matemática, incluindo a geometria. Esse grandioso projecto logicista fracassa por pouco na medida em que teve de aceitar irredutíveis axiomas matemáticos (axiomas de escolha e do infinito). Mas constituiu um progresso significativo, fundado na inegável potência analítica do cálculo das relações. Notar-se-á aliás que a posição formalista que lhe opôs David Hilbert resultava também de uma exploração da meta-matemática concebida como ciência dos sistemas formais. A metodologia das ciências

Segundo Carnap, o discurso da ciência depende de uma sintaxe lógica que lhe determina precisamente as condições de sentido (regras de formação) e de engendramento (regras de transformação: modus ponens). Recusando a distinção neokantiana entre ciências da matéria e do espírito, a nova sintaxe lógica fornecia assim a metodologia de todas as ciências. Daí o projecto de uma Enciclopédia da Ciência Unificada desenvolvido pelo Círculo de Viena, que apresentava uma concepção resolutamente empirista onde já não se admitiam, para além dos enunciados analíticos e a priori da lógica e da matemática, senão enunciados sintéticos a posteriori fundados nos enunciados protocolares cuja verificação assegure o significado e garanta a verdade. Rapidamente este empirismo lógico se confrontou com numerosas críticas. No interior do movimento, Moritz Schlick rejeitou o princípio de verificação e Otto Neurath propôs uma concepção coerente da verdade. No exterior, Karl Popper, em 1946 titular em Londres da cátedra de «lógica e metodologia científica», recusando a verificação como critério de cientificidade, propôs a «falsificabilidade» como critério de demarcação entre ciência e pseudociência. Com efeito, se, logicamente, uma proposição universal não pode ser validada por um número indeterminado de constatações, uma única proposição singular basta para invalidá-la. A constatação de que «existe um melro branco» basta para tornar falsa a proposição «todos os melros são pretos». A partir daí, toda a ciência empírica se desenvolve por «refutações» sucessivas de hipóteses teóricas conjecturais726. Em 1950, nos Estados Unidos, Quine denunciou num famoso artigo «dois dogmas do empirismo»: a dicotomia entre analítico e sintético e o reducionismo fisicalista de Carnap. Entendendo «naturalizar a epistemologia», ele nem por isso deixa de manter a lógica (na sua forma mais padronizada) como nó da construção científica727. Lógica e inteligência artificial Em meados do século XX a influência da lógica ganhou uma forma inédita com a invenção do computador como calculador lógico universal por John von Neumann e Alan Turing. Esta invenção técnica produziu uma ciência nova, a informática fundamental, e sobretudo um novo campo de pesquisa, a inteligência artificial, que abolia de facto a oposição cartesiana entre o homem e a máquina. A partir daí, os processos cognitivos do homem e do animal foram objecto de uma modelização e de uma simulação informáticas. Num primeiro

tempo, as investigações, que federaram lógica, informática, filosofia, psicologia cognitiva e neurobiologia, desenvolveram-se ao abrigo da hipótese cognitivista de um tratamento simbólico e calculatório do pensamento. Depois, nomeadamente sob a influência dos modelos conexionistas, a análise alargouse por meio da consideração de processos sub-simbólicos, dando origem a uma concepção mais ampla do pensamento em termos de procedimentos accionais. Assim, o aparecimento no início do século XX de uma ciência dos sistemas formais forneceu instrumentos rigorosos de análise e de dedução que deram origem à lógica simbólica, permitiram a formalização da matemática, e abriram caminho à invenção da informática. Tanto a filosofia como a epistemologia daí tiraram métodos de definição, de conceptualização e de raciocínio que autorizaram uma nova abordagem à racionalidade discursiva e aos métodos de conhecimento. Mais ainda, a implementação em máquina dos algoritmos do cálculo lógico tornou possível uma modelização das capacidades cognitivas, tanto do homem como do animal. As consequências desta revolução, única na medida em que se refere especificamente à invenção de uma linguagem e de um cálculo utilizável como instrumento universal de simbolização e de dedução, continuarão a fazer-se sentir. Mas ninguém duvida de que as revoluções que actualmente se produzem no campo científico consistirão de novo – à semelhança da revolução do átomo – em elaborar novas teorias e em dotar-se de novos objectos. A possibilidade recente de uma intervenção ao nível nanométrico revela objectos de estudo inexplorados que impõem a cooperação das ciências e das técnicas, bem como a convergência das teorias físicas, biológicas e informáticas. DENIS VERNANT 714 Cf. G. Bachelard, Le Nouvel esprit scientifique, Paris, PUF, 1934; La Philosophie du non, Paris, PUF, 1940; M. Foucault, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1968 715 B. Russell e A. N. Whitehead, Principia Mathematica, Cambridge, Cambridge University Press, 19101913. 716 Cf. a nossa La Philosophie mathématique de Bertrand Russell, Paris, Vrin, 1993. 717 A «convivência» designa em Russell a relação autêntica entre o sujeito e os objectos com os quais ele está em contacto directo. 718 J. Łukasiewicz, La Syllogistique d’Aristote, trad. do polaco para francês por F. Caujolle-Zaslawsky,

Paris, Collin, 1972. 719 R. Carnap, The Logical Syntax of Language, Londres, Routledge & Kegan, 1937, § 17, p. 52. 720 Cf. Misticismo e Lógica, cap. 6. 721 Cf. a nossa Philosophie mathématique de Russell, § 44-46, p. 306-318. 722 B. Russell, Misticismo e Lógica, cap. 10: «Conhecimento por convivência/conhecimento por descrição». 723 Tractatus Logico-Philosophicus, 4.112. 724 Cf. «Le dépassement de la métaphysique par l’analyse logique du language», Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, Paris, PUF, 1985. 725 A extensionalidade de uma função proposicional reside na sua verificação por um ou mais indivíduos. Cf. o nosso Bertrand Russell, Paris, Flammarion, «GF», 2003, § 3-4, p. 130-137. 726 K. Popper, Conjecturas e Refutações. O crescimento do saber científico. 727 J.-M. Monnoyer (dir.), Lire Quine. Logique et ontologie, Paris, Éd. de l’Éclat, 2006.

Michel Foucault

O pensamento de Michel Foucault (1926-1984) não se apresenta como um sistema filosófico completo, que proponha, sobre os grandes problemas clássicos, uma concepção articulada e específica. O próprio Foucault durante muito tempo se definiu mais como historiador do que como filósofo. Mas a própria maneira como Foucault escreve essa história e os objectos a que se dedica produzem efeitos filosóficos incontestáveis. Os críticos têm o hábito de distinguir três grandes momentos na sua obra: uma arqueologia das ciências humanas; uma genealogia dos poderes; uma problematização do sujeito. A arqueologia do homem moderno A primeira parte da obra abrange o período que vai de História da Loucura (1961) a Arqueologia do Saber (1969). Trata-se então sobretudo de analisar a emergência das ciências humanas na cultura ocidental e de se interrogar sobre essa viragem que fez do homem um objecto de saber. Foucault dedica-se, como primeiro grande projecto, a escrever a narrativa do nascimento da psicologia e da psiquiatria, recusando utilizar a definição médica da loucura como conceito inicial a partir do qual descrever a lenta ascensão para a verdade, através dos obscurantismos e dos preconceitos. É que a «loucura», num sentido radical e absolutamente primeiro, filosófico e já não científico, designa um puro absurdo, o ponto de colapso de toda a verdade, o limite absoluto. Dessa loucura, que constitui para a história dos homens uma espécie de ruído de fundo indefinido, não poderia haver história. Não há, em sentido pleno, história dessa loucura em si mesma, pois ela é sem idade. Não existe, portanto, história a não ser a da nossa relação com a loucura, das suas construções de sentido, constituindo a doença mental uma interpretação cultural entre outras, mais do que um momento definitivo de verdade. Foucault descreve três grandes experiências da loucura, que para as culturas são outras tantas maneiras de instituírem a sua identidade própria. Antes de mais, o Renascimento: a loucura é então sentida numa dimensão simultaneamente mística e cósmica. Quando o insensato delira, ele desperta no homem do

Renascimento angústias sobre a realidade do mundo sensível (serão as aparências estáveis?), sobre a iminência do apocalipse (irá o mundo cair dentro em pouco num furor universal?). A loucura é recebida como uma mensagem inquietante e o louco percebido como dotado de uma aura sagrada. É por isso que os tratamentos que lhe são impostos relevam antes de mais do ritual simbólico, à semelhança dos famosos «embarques» que constituíam grandes temas picturais e literários (A Nave dos Loucos). A idade clássica constitui uma ruptura de percepção, primeiramente no sentido em que estabelece a loucura como um problema político e social. No século XVII, os loucos acham-se encerrados em fortalezas construídas no coração das cidades (o Hospital Geral em França), na companhia dos mendigos, das prostitutas, dos libertinos, dos dissipadores de fortunas. Essas prisões da ordem moral são constituídas a partir de uma norma do «razoável» que defende os valores do trabalho, da família e dos bons costumes. O louco já não inquieta como no Renascimento: ele perturba. Dessacralizado, ele é percebido antes de mais como um perturbador da ordem pública. Paralelamente a essa percepção policiária que sustenta as práticas, algumas análises racionais da loucura, desta vez enquanto essência nosológica, ao longo dos tratados médico-filosóficos, colocam-na sob a dependência última de um delírio constitutivo. A raiz da loucura seria uma espécie de discurso vazio, articulando quimeras e sombras. É uma derrota do verbo (e não um disfuncionamento do cérebro) que se acha na origem das paixões desordenadas, dos comportamentos excêntricos e das errâncias do juízo. A segunda grande ruptura, fundadora da era moderna, é antropológica: é o momento em que a loucura é compreendida como disfuncionamento das faculdades humanas, desarranjo cerebral, perturbação psicológica. A loucura depende doravante de determinismos psico-orgânicos, de necessidades positivas e mudas, enraizadas no psiquismo humano. Ela torna-se para nós, modernos, uma doença mental. O louco continua a ser encerrado (embora Pinel o livre das suas grilhetas), mas tal encerramento é reputado fiel à sua verdade médica. Ele tornou-se um objecto de ciência, a um tempo dominado pelo saber e investido em troca por um poder inquietante, uma vez que é nele que se irão ler as verdades inversas às do homem normal. Esses grandes escansões do Símbolo (Renascimento), do Discurso (era clássica) e do Homem (época moderna) encontrar-se-ão ainda em As Palavras e as Coisas (1966), mas desta vez mais para caracterizar dispositivos discursivos (epistêmê) do que experiências culturais maciças, erguidas sobre o

abismo sem fundo da loucura. Trata-se então de mostrar como todo o pensamento se distribui em cada época segundo regras constrangedoras de organização, qualquer que seja o seu objecto de estudo (a troca de riquezas, o mundo natural ou as línguas). Foucault pode por exemplo mostrar como os saberes, no Renascimento, se organizam segundo a lógica das semelhanças: conhecer é estabelecer entre as coisas relações de analogia ou de similitude. A era clássica, pelo contrário, não quererá conhecer senão segundo a ordem das identidades e das diferenças. Para instaurar cada coisa segundo a sua natureza própria, convém articular-lhe a representação por meio de um discurso metódico. A época moderna constitui ainda a mesma ruptura, que é testemunhada pela revolução kantiana. O regime de verdade torna-se antropológico: todo o saber é referido à finitude humana como sua condição essencial. O homem deve tornar-se objecto privilegiado dos saberes porque ao mesmo tempo constitui a origem destes: é ao conhecer o homem que se podem conhecer melhor ainda todos os objectos que se oferecem ao seu conhecimento. É assim numa certa «natureza humana» que se encontra a chave do saber. A tese famosa da «morte do homem» não significa então mais do que um movimento de desvalorização do pensamento fora desse primado da antropologia. A literatura contemporânea e a empresa estruturalista fariam com efeito surgir a ideia de que tudo é comunicação de signos e transmissão de mensagens, desde o intercâmbio económico à transmissão genética. A partir daí, a estrutura da linguagem, mais do que um funcionamento mudo do sujeito, constitui o regime de verdade próprio à natureza de todas as coisas. A arqueologia apresenta-se portanto em suma como uma iniciativa histórica absolutamente original. Foucault escreve efectivamente uma história dos saberes, mas sem jamais supor nem progresso dos conhecimentos, nem esforço contínuo de uma razão a caminho da verdade, nem sujeito humano que fosse origem universal. Os saberes também não se compreendem pelo mero movimento de descoberta, de revelação progressiva do seu objecto. Aquém da lógica, transcendental ou objectiva, própria dos discursos de verdade, as formas deles são determinadas por experiências culturais anónimas ou por ordens simbólicas constrangedoras. As ciências humanas já não aparecem portanto como o grande momento de conquista de uma racionalidade triunfante, mas são simplesmente levadas por uma certa época de verdade, cujo fim Foucault prevê, aliás, anunciado pela experiência literária da qual se sente contemporâneo. Blanchot, Bataille, Beckett ou Raymond Roussell fazem, pela escrita, a experiência de uma linguagem inumana, onde os significados, as

representações, as identidades encontram mais o elemento da sua derrota do que o da sua confirmação. A genealogia dos poderes A década de 1970 constitui a primeira grande viragem no pensamento foucaultiano. O choque cultural da revolução de 1968 leva, com efeito, Foucault a virar-se para o estudo das técnicas de poder. A arqueologia atinha-se largamente a um nível de descrição dos discursos, e as ciências humanas eram pensadas como relevando de um estilo antropológico dos saberes cujo termo próximo era preciso denunciar, a fim de poder relançar o pensamento para outras invenções. A «genealogia» vai desta vez tentar estabelecer a correlação entre a emergência das ciências humanas e o aparecimento de novas tecnologias de poder. Tal como não colocara a questão dos critérios de verdade no quadro de uma epistemologia, Foucault não se dedica a fundar a legitimidade do poder público no quadro de uma filosofia política clássica. Não se trata de estabelecer filosoficamente as razões para obedecer ao Estado ou as origens racionais do direito, mas de estudar os estilos de governamentalidades pelas quais nos fazem obedecer. A forma mais antiga é constituída por aquilo a que Foucault chama o «poder de soberania». Trata-se de um poder que procede por retenções e requisições descontínuas: exigem-se jornadas de trabalho, retém-se uma parte das colheitas, expõe-se a vida dos súbditos na guerra, etc. A principal modalidade de exercício deste poder é constituída pela lei. Por «lei», deve entender-se um decreto autoritário que ordena e proíbe, estabelece limites, traça rigorosas linhas de partilha, exige a submissão. Esse poder soberano torna-se sensível por espectáculos: festas e cerimónias destinadas a atingir a imaginação dos súbditos. Esta forma, que o Estado continua a manter, achou-se pouco a pouco transbordada, a partir dos séculos XVI e XVIII, por aquilo a que Foucault chama um «bio-poder». Já não se trata então de acometer sectores de actividade dos sujeitos, aos quais se imponham constrangimentos descontínuos, mas a própria vida dos corpos, sobre os quais se exerce um controlo contínuo. Duas grandes modalidades desse bio-poder são estudadas por Foucault. Primeiro, a «disciplina», que se atribui por objecto o corpo dos indivíduos (Vigiar e Punir, 1975). A disciplina remete para uma série de técnicas pelas quais se investe a existência dos indivíduos a fim de extrair deles o máximo de forças úteis e de os fazer adoptar comportamentos previsíveis. Por meio de exercícios repetidos, do uso da sanção, de repartições espaciais adaptadas, trata-se de obter um

corpo dócil, eficaz, gestos regulados. Estas técnicas são postas em uso nas grandes instituições de enquadramento: fábrica, exército, escola. É por elas que a prisão como modalidade penal se nos tornou evidente. Elas fazem-se acompanhar pela produção de todo um saber de exame das capacidades individuais e de identificação dos tipos, matriz das ciências humanas. A bio-política, pelo seu lado (A Vontade de Saber, 1976), distingue-se das disciplinas pelo seu objecto: a população, e já não o corpo dos indivíduos. A «população» designa o conjunto de súbditos do príncipe, mas considerados na sua existência biológica. Trata-se então de regular a vida (crescimento demográfico, nível de saúde geral, controlo do meio) a fim de reforçar a potência global do Estado728. A sexualidade torna-se, nesse dispositivo de biopoder, um elemento-chave: objecto privilegiado de vigilância disciplinar dos corpos e instrumento de regulação das populações. O quadro teórico geral destes estudos genealógicos é uma concepção original do poder, tão distante tanto do contratualismo liberal ou republicano como das grandes críticas marxistas. O poder não é referido nem a um conjunto de direitos transferíveis nem a um processo de alienação (dominação repressiva e mentira ideológica). Mais do que a esfera de acção estatal, o poder designa para Foucault técnicas concebidas para governar a conduta dos homens, supondo a produção de discursos de verdade e a invenção de máquinas (panóptico de Bentham). O poder produz: produz saberes, identidades e comportamentos, corpos e prazeres novos, realidades novas (o Estado, o mercado, a sexualidade, etc.). A análise histórica das formas modernas de poder confunde-se em Foucault com um estudo da norma. A norma opõe-se à lei na medida em que ela não fixa autoritariamente para o indivíduo identidades estatutárias ou interditos intransponíveis, mas propõe esquemas de comportamento e médias estatísticas às quais cada um deve constantemente referir-se para se achar «normal». É pela medicina e, mais em geral, pelas ciências humanas, que se cumpre essa normalização das existências. Todos esses anos de reflexão sobre o poder são também para Foucault um período de participação em lutas concretas: contra o racismo, a pena de morte, as operações furtivas da polícia, a situação nas prisões (participa activamente na criação do Grupo Informação Prisão); para além da situação nacional, combate o franquismo, apoia o sindicato Solidarnosc na Polónia e acaba por ser uma testemunha privilegiada da revolução iraniana, que, como depressa compreende, escapa às grelhas de leitura da Guerra Fria.

A problematização do sujeito O último pensamento de Foucault, de 1980 a 1984, é dedicado ao problema da relação entre subjectividade e verdade: segundo que formas históricas é o sujeito levado a construir uma relação consigo mesmo? O alcance inicial de uma história da sexualidade, de uma genealogia do desejo a partir das suas origens cristãs, depressa se acha superado, por um lado pela problematização do prazer antigo, irredutível a uma lógica da introspecção e do desejo, por outro lado pelo projecto mais vasto de uma história da subjectividade. É neste último projecto que nos centraremos. O enquadramento histórico destes últimos estudos é consideravelmente transformado, uma vez que Foucault se concentra quase exclusivamente na antiguidade grega e romana. A ligação entre sujeito e verdade problematiza-se classicamente a partir de dois grandes sistemas de referências. Por um lado encontra-se uma filosofia do sujeito, de Descartes a Husserl passando por Kant, que se presta a reflectir sobre a essência e a natureza de um sujeito porquanto ele constituiria para a verdade um possível fundamento (cogito, subjectividade transcendental, consciência doadora de sentido, etc.). Para além desse quadro filosófico, a ligação entre sujeito e verdade prende-se com as práticas de si, tal como a confissão e o reconhecimento – dispositivo essencial de subjectivação que vai dos primeiros mosteiros cristãos ao divã do analista (de Cassiano729 a Freud), passando pela instituição judiciária. Trata-se então de exigir do sujeito, prometendo-lhe a sua salvação, que ele ponha em forma a sua própria identidade a partir de um discurso dirigido ao outro (em espécie, o director de consciência). Pelo seu estudo das práticas de si na antiguidade greco-latina, Foucault entende superar simultaneamente essas duas grandes tradições. A superação da concepção filosófica tradicional da relação entre sujeito e verdade efectua-se pela análise das práticas de espiritualidade, largamente ignoradas pela filosofia clássica. Com efeito, para a sabedoria antiga não se trata de reflectir sobre as condições transcendentais da verdade, mas de estabelecer as suas «condições ascéticas», ou seja de descrever as transformações que um sujeito deve operar em si mesmo, segundo um programa de provas, a fim de poder aceder à verdade (purificação, trabalho sobre si, etc.). A abordagem das técnicas de reconhecimento cumpre-se, pelo seu lado, pelo estudo de duas noções fundamentais para a filosofia antiga: o cuidado de si e a afirmação arrojada (parrésia). Por cuidado de si, não se deve entender, à

maneira moderna, uma inflexão egoísta na vida dos indivíduos ou um pendor narcisista da existência. Trata-se antes de uma escolha radical de existência, de uma conversão a si que implica uma vida social nova, uma relação constitutiva com um amo. O cuidado de si inscreve-se naquele conjunto de técnicas pelas quais cada um tenta dar uma forma ordenada à sua vida. O «si» constrói-se, na sua consistência ética, através de uma série de exercícios e de estudos (o exame das representações, as provas físicas de resistência, a meditação da morte, a premeditação dos males, o estudo da natureza). Tais exercícios não participam em nada na elaboração de uma interioridade psicológica e não relevam de modo algum da introspecção. Não se trata de, através deles, construir um sujeito que seja mais lúcido acerca de si mesmo e capaz de reconhecer o seu desejo, mas de um sujeito actuante, apto a dominar-se e a responder correctamente ao que lhe sucede, dando uso a esquemas de acção pacientemente assimilados. A ideia de Foucault é que a grande pergunta «quem sou eu?», pela qual damos forma à nossa relação com nós mesmos, não é uma pergunta grega. O problema antigo seria antes: «Que devo eu fazer da minha vida?» A afirmação arrojada constitui o último grande conceito estudado por Foucault. Essa noção, que designa uma palavra franca e arriscada, conhece na Grécia antiga duas importantes sedes de elaboração. A primeira é política. A parrésia é com efeito necessária à ideia de democracia grega. Num primeiro tempo (idade de ouro da democracia), ela designa a tomada da palavra por aquele que, sobre o fundo da igualdade entre pares, ganha ascendente sobre os outros e faz valer as suas convicções quanto ao bem público, correndo o risco de ver os seus concidadãos voltarem-se contra si. Trata-se, pela parrésia, de pensar o funcionamento concreto da democracia, qualificando de maneira ética o discurso dos pretendentes à leadership democrática. Mas, pouco depois, em Platão (época de decadência), a parrésia, na sua forma degradada, vai significar uma licença desordenada (dizer tudo e o seu contrário sob o mero título da liberdade de falar) do homem democrático que estabeleceu uma igualdade perfeita entre os seus prazeres. O segundo domínio é ético. Trata-se então, com a parrésia, de pensar o regime de palavra próprio à maiêutica socrática, ao palavrório cínico ou à direcção de existência do mestre estóico. Em Sócrates, trata-se de um falarverdade que deve transformar aquele a quem se dirige, convidando-o a desconfiar da sua alma. No mestre de existência estóico, a parrésia designa uma franqueza de tom pela qual se corrigem os vícios do seu discípulo e que

supõe que aquele que detém o discurso faça concordar as suas palavras com os seus actos. No caso do cínico, enfim, ela designa antes um falar-verdade que provoca e desestabiliza o seu auditor, e se autentifica por um modo de vida imediatamente identificável. O cínico reconhece-se na sua aparência exterior e no grão dos seus discursos: afirmação arrojada e pobreza errante. Ele expõe a sua vida nas ruas e não esconde nada. Nada possui, e é partir dessa austeridade que ele denuncia com brutalidade a hipocrisia das convenções sociais. Essa parrésia filosófica opõe-se à confissão cristã. Enquanto o sujeito cristão é chamado a formular perante o seu director o que sucede na sua verdade mais íntima, e entra desse modo num processo de obediência indefinida para com o outro (põe-te à escuta da tua própria verdade a fim de melhor obedeceres), o sujeito antigo é remetido pela parrésia do mestre às duras exigências da sua própria liberdade (aprende de mim estas verdades que não queres ouvir a fim de te tornares livre). Foucault, nos seus últimos cursos no Collège de France, dedicados à «coragem da verdade», chega à caracterização de uma postura filosófica geral. Por «filosofia», já não se trata evidentemente de entender um sistema completo de conhecimento ou grandes teses metafísicas, mas uma certa atitude crítica, cujos dois representantes maiores seriam o Sócrates da Apologia e o Kant de «O Que São as Luzes?». A filosofia como atitude é uma actividade de dizer verdadeiro: ela supõe coragem por parte daquele que a enuncia; consiste numa interpelação perpétua com o poder político para inquietar a sua legitimidade; não pode enfim ser compreendida por um sujeito senão ao preço da sua transformação ética. É assim que Foucault pode afirmar que se inscreve na herança da razão crítica e das Luzes, não no sentido de ter tentado uma análise das condições transcendentais da verdade ou dos discursos, mas no sentido de ter instaurado um falar-verdade corajoso, próprio à produção de efeitos políticos e éticos. FRÉDÉRIC GROS 728 Em 1979, porém, as suas lições no Collège de France sobre o liberalismo levá-lo-ão a mostrar que, a partir do século XIX, se instaura uma governamentabilidade liberal que exigirá que o Estado pelo contrário intervenha o menos possível. 729 Trata-se de uma referência a João Cassiano (370-435), fundador do monasticismo ocidental. (N. do T.)

Filosofia política: poder e democracia

É muito certamente um desafio impossível pretender apresentar um panorama completo da filosofia política contemporânea. Lendo as revistas, frequentando os colóquios ou seguindo as publicações de obras dedicadas ao género, não se pode duvidar por um instante de que a filosofia política esteja bem viva. Esta abundância faz-se porém acompanhar de uma extrema heterogeneidade das abordagens, que torna difícil a identificação das clivagens ao redor das quais se deixariam organizar as posições respectivas de uns e de outros, e que justifica o uso de um plural (as filosofias políticas) em vez de um singular. Dois fenómenos principais, que no decurso das últimas três décadas transformaram profundamente o quadro geral da política, explicam essa indeterminação dos pontos de referência. O primeiro é o colapso do sistema soviético, e com ele da bipartição do mundo para a qual remetiam as oposições conceptuais clássicas, em parte constituídas desde o século XIX, mas que haviam sido investidas e reinterpretadas em referência a dois modelos de sociedades que as democracias ocidentais, por um lado, e as sociedades socialistas, por outro, presumivelmente representavam: a oposição entre liberalismo e colectivismo, entre democracia formal e democracia real, entre liberdade e igualdade. O segundo é o desenvolvimento daquele conjunto complexo de fenómenos que se designa sob o nome de mundialização (ou, por adaptação do inglês, de globalização), cujo núcleo reside nas lógicas económicas que minam a soberania dos Estados e induzem um progressivo desmantelamento do Estado social, e que, por esse motivo, também tem aspectos políticos e jurídicos. Apesar do discurso forçado dos dirigentes, o domínio das políticas nacionais sobre os factores que afectam as condições de vida dos indivíduos parece cada vez mais limitado, e os poderes que verdadeiramente determinam tais condições, cujas decisões se manifestam sob a forma de constrangimentos objectivos, estão na sua maior parte subtraídos a qualquer possibilidade de controlo democrático.

A elisão da questão do poder Esta nova configuração dos poderes está na origem de uma característica raramente notada das filosofias políticas contemporâneas: o poder propriamente dito, as condições da sua legitimidade – e com elas, eventualmente, da sua conquista, do seu derrube, ou pelo menos da sua transformação – já não estão no cerne das interrogações acerca da relação do indivíduo com o colectivo. A elisão da questão do poder assume diferentes formas que se distribuem entre dois extremos: por um lado, a admissão tácita da sua evidência, ou seja da inevitável autonomia do político, confundido com o poder burocrático e, correlativamente, o acantonamento da filosofia política na determinação dos princípios que devem regular o poder para que ele seja considerado justo ou democrático (John Rawls, Jürgen Habermas); por outro, a localização da política, no sentido próprio ou nobre do termo, em todas as formas de contestação dos poderes estabelecidos, sem que esta vise porém um objectivo institucional definido (com os devidos matizes, incluir-se-ão nesta segunda orientação os trabalhos de Claude Lefort, Jacques Rancière, bem como todos os autores que se inspiram na temática da resistência em Michel Foucault). A premissa comum destas formas aparentemente opostas de elisão da questão do poder é a de que as instituições políticas dos Estados ocidentais contemporâneos constituem o quadro estabilizado de toda a política possível, autorizando quando muito a jogar com as suas variantes, favorecendo segundo os casos mais liberalismo ou mais social, atribuindo maior crédito à suposta sabedoria dos «peritos», ou pelo contrário ao questionamento de tal sabedoria nos movimentos de contestação. Os representantes da primeira opção partilham em geral uma referência kantiana, reconhecida ou não: o poder de Estado – e por conseguinte a distinção entre dirigentes e dirigidos – é a condição de uma sociedade regulada. A política não pode consistir senão num ajustamento do seu exercício, que passa pela pressão que a sociedade civil pode e deve exercer sobre os detentores do poder. Esta atitude supõe uma confiança fundamental na boa vontade dos dirigentes730, que exige simplesmente ser esclarecida por uma boa compreensão dos «bens» que o indivíduo das sociedades democráticas tem o direito de ver garantidos pelas instituições políticas (Rawls) ou por procedimentos aos quais tais instituições se devem conformar para poderem justificar a adesão que requerem por parte dos cidadãos (Habermas). A suspeita da tentação tirânica ou ditatorial, o espectro do governo totalitário parecem definitivamente afastados. Os autores da segunda categoria, pelo contrário,

recusam essa confiança aos dirigentes, teorizando ao invés uma desconfiança de princípio, que não inspira porém qualquer alternativa institucional, mas somente a preocupação de uma distância que pode ir da vigilância (Lefort) à denúncia contínua, mas também desesperada, de uma autonomia do poder tida por inevitável (Rancière). A questão da legitimidade do poder, do poder em geral (ou seja, da distinção entre dirigentes e dirigidos) e da forma particular de poder que incarnam as democracias liberais, é hoje em dia, no essencial, uma investigação abandonada731. A evolução de Habermas é, desse ponto de vista, característica: o tema da legitimidade figura nas suas publicações mais antigas, concebidas durante os anos de consolidação de uma República de Bona ainda assombrada pela lembrança do fracasso e do resultado funesto da de Weimar, mas desaparece a partir da década de 1980. Mas é-o também a tese desenvolvida em França por Claude Lefort, no termo de uma reflexão de várias décadas sobre as relações entre democracia e totalitarismo, segundo a qual o que é propriamente legítimo, na democracia, é o debate acerca da distinção entre o legítimo e o ilegítimo732. Na medida em que as democracias liberais dão uma existência institucional a esse debate (através do parlamentarismo e dos partidos políticos), a sua legitimidade é implicitamente reconhecida na proposição que apresenta a distinção entre legítimo e ilegítimo como jamais resolvida. A identificação da política e da democracia: duas versões antagónicas Pode considerar-se como um corolário dessa questão ausente o acordo unânime que reina sobre a identificação da política e da democracia. Para a maior parte dos autores contemporâneos, definir a política equivale a definir a democracia. Todo o problema está porém em saber o que se entende por isso, e deste ponto de vista as diferenças são consideráveis. A oposição que acabámos de indicar entre as duas maneiras de iludir a questão da legitimidade do poder encontra-se aqui entre filosofias para as quais o termo democracia designa uma forma de organização institucional da vida colectiva, submetida a certos constrangimentos normativos733, e filosofias que pelo contrário procuram a realidade da democracia nas diversas formas de contestação dos poderes instituídos734. A obra de Habermas, que exerceu uma influência considerável nas décadas de 1980 e 1990, ilustra de maneira exemplar o primeiro caso figurado. Herdeiro da tradição crítica da Escola de Frankfurt, Habermas evita

pensar as instituições em termos de poder e prefere falar da «formação da vontade política». A expressão, corrente na terminologia dos autores de língua alemã, remete para processos que se situam na articulação entre sociedade e Estado. Ela implica ao mesmo tempo que a política se cumpre em última instância em decisões, as dos corpos legislativos e dos governos, e que essas decisões devem resultar de um procedimento susceptível de ser aceite por todos aqueles a quem digam respeito. Uma das razões pelas quais o fantasma de Carl Schmitt735 não deixou de assombrar a reflexão de Habermas é que, apesar de toda a importância que ele próprio atribui à deliberação na política democrática, Habermas não pode exorcizar o elemento irredutível de decisionismo ligado à noção de vontade política. O paradigma contratualista, na sua versão rousseauniana ou kantiana, permite-lhe preservar – sem que o nomeie – esse momento decisionista da política, pensando o poder como autolegislação, e por conseguinte eliminar dele a dimensão da dominação, ou, o que acaba por ser o mesmo, pensar uma dominação sem violência736. Embora a componente decisionista seja pouco visível em Rawls (não se encontra nele o tema da formação da vontade política, o que é provavelmente a razão da diferença residual entre as suas posições e as de Habermas), Rawls considera como evidente o facto de o poder político ser coercivo737. Nele também, é a ficção contratualista [a Teoria da Justiça (1971) é explicitamente apresentada como uma reformulação da doutrina do contrato social], interpretada nos termos da autolegislação, que permite conciliar coerção e liberdade. Nos regimes constitucionais democráticos, que são o único horizonte da sua conceptualização da política, admite-se que «o poder político é, em definitivo, o poder do público, ou seja o poder dos cidadãos livres e iguais constituídos em corpo colectivo738». No outro extremo, encontram-se os autores que recusam identificar a democracia como regime político e consideram que a realidade da democracia não reside nos procedimentos que permitem a elaboração de uma vontade política, mas na contestação sempre possível e sempre renovada de um poder cuja inevitável autonomia proíbe que ele possa ser apropriado pelos cidadãos. Esta concepção da democracia, onde se reconhece a desconfiança em relação aos poderes constituídos já anteriormente assinalada, foi preparada pelas críticas dos regimes totalitários, nomeadamente pelo argumento, defendido por Claude Lefort, segundo o qual a democracia na sua compreensão moderna implica a desincorporação do poder, ou seja requer que o lugar do poder permaneça vazio para impedir que a vida social fique tolhida739. Os trabalhos

de Jacques Rancière desenvolvem uma concepção semelhante da democracia, conferindo-lhe porém uma inflexão polémica. A democracia, afirma ele, «é o que confunde a ideia de comunidade. Ela é o seu impensável740». Por outras palavras: a democracia, porquanto implica a ideia de uma «comunidade dos iguais741», é definitivamente refractária à institucionalização; ela não pode ser um conceito organizador da experiência social, mas deve pelo contrário continuar a ser o que vem regularmente perturbar toda a forma social estruturada. Uma organização social, aquilo a que Jacques Rancière chama «sociedade», é o produto de processos nos quais a acção dos homens está certamente empenhada, mas de uma maneira demasiado complexa para que a ordem que ela constitui possa ser atribuída à vontade destes. A ordem social é «desprovida de razão imanente, […] ela é porque é, sem razão que a disponha742». A ideia de uma sociedade igualitária é um absurdo, e a «comunidade dos iguais» é e não pode ser senão uma comunidade «inconsistente», não porque seja desprovida de efeito, mas porque ela jamais se pode incarnar nas estruturas de uma sociedade. Ela não tem portanto outro sentido senão o de uma ideia reguladora que inspira e anima os movimentos de contestação da ordem institucionalizada. Longe de ser o sujeito putativo do poder, ou seja o fundamento último de toda a vontade política, o demos manifesta-se exclusivamente nas erupções esporádicas do ideal igualitário, na rua, na fábrica ou na universidade. Não há realidade senão no arrombamento, geralmente ilegal ou nas fronteiras da legalidade, pela qual os seres excluídos de facto da esfera política institucionalizada se introduzem num lugar que tira a sua existência da exclusão deles. A identificação da política com a democracia implica aqui que a política é uma actividade «sempre pontual e provisória», a actividade descontínua da «excepção igualitária» que abala a espaços a ordem sempre desigualitária da sociedade. Consenso e dissenso Estas concepções antagónicas da essência da democracia deixam-se resumir na oposição entre «consenso» e «dissenso». Esta formulação poderá parecer esquemática, na medida em que autores que pertencem incontestavelmente à corrente institucionalista, como Habermas ou Rawls, reconhecem que os conflitos, de interesses ou de valores, não podem ser eliminados numa sociedade democrática. Um e outro foram aliás levados a modificar as suas primeiras interpretações da base normativa das sociedades democráticas e a

constatar essa impossibilidade. A crítica dos comunitarianos desempenhou aqui um papel motor743. Estes fizeram valer, contra o que estimavam ser o universalismo abstracto dos teóricos que se inscreviam na posteridade kantiana, os direitos da diferença e da particularidade: diferença dos sexos e das preferências sexuais, particularidades das religiões e das culturas em geral. Quando, na Teoria da Acção Comunicativa (1981), propunha procurar nos pressupostos de toda a discussão (aquilo a que chamava a racionalidade comunicacional) os fundamentos racionais da política, Habermas prolongava antes de mais uma reflexão sobre o papel da esfera pública no funcionamento das instituições democráticas modernas encetada desde o seu primeiro grande livro, O Espaço Público (1962), mas ao mesmo tempo submetia essa esfera pública a um forte constrangimento, que era a busca do entendimento. Qualquer que fosse o lugar que atribuía ao «mundo vivido», Habermas mantinha uma exigência de universalidade, que, para ser interpretada em termos de procedimento, exclui tacitamente as posições políticas que resistam a essa exigência. Da história alemã do século XX, Habermas guardou uma profunda desconfiança em relação a toda a interpretação identitária da comunidade política. É por isso que, confrontado com as objecções dos comunitarianos, que insistem nas condições não políticas das identidades colectivas – comunidade de língua, de religião e de cultura, ou ainda de uma história partilhada –, Habermas foi levado a precisar as implicações daquilo a que chamara em tempos a «ética da comunicação», distinguindo entre as questões de ética, que se prendem com a identidade das comunidades, e as de justiça, que só concernem as condições razoáveis da coexistência no quadro de uma colectividade democrática744. A discussão, que segundo ele está no cerne do funcionamento dos regimes democráticos, respeita unicamente à justiça, e não à ética, compreendida nesse sentido novo e restrito. Visto a partir de França, onde o debate anglo-saxão entre liberais e comunitarianos foi transcrito para uma oposição entre o universalismo republicano e o particularismo comunitarista, poderá parecer curioso que Habermas impute aos republicanos a confusão entre ética e justiça. A razão para tal é que o que ele retém como característica do republicanismo não é a afirmação de um universal que relegaria os particularismos de todos os tipos para a esfera pré-política, mas pelo contrário a tentação de pensar a própria comunidade democrática em termos identitários. Quando Habermas estiliza o diferendo que a crítica dos comunitarianos revelou acerca da natureza da democracia ao construir de maneira antitética um modelo liberal e um modelo

republicano da democracia745, pode crer-se antes de mais que a sua preferência vá desde logo para o segundo, e que a contrastada simetria da sua apresentação dos dois modelos não passe de um artifício de apresentação destinado a introduzir um terceiro modelo, o da democracia «deliberativa», que supostamente conjuga as vantagens dos dois primeiros evitando os seus respectivos defeitos. «Segundo a concepção republicana», escreve ele, «a formação da opinião e da vontade política no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas do mercado, mas às estruturas autónomas de uma comunicação pública orientada para o entendimento. Para a política no sentido de uma prática de autodeterminação dos cidadãos, não é o mercado mas a conversação que tem valor de paradigma746.» Este segundo paradigma parece confundir-se com o de uma política fundada na ética da comunicação. Habermas difere porém dos republicanos quanto ao objecto da «conversação»: nas sociedades complexas modernas, caracterizadas pelo pluralismo cultural e social, tal objecto, sustenta ele, não pode ser a natureza da identidade colectiva. Para exorcizar o espectro de uma referência fundadora da democracia na homogeneidade do povo, que, embora não seja pensada como homogeneidade étnica, é sempre geradora de exclusão, ele julga necessário despojar o demos de todos os atributos do sujeito: da identidade, compreendida como relação reflexiva consigo, mas ao mesmo tempo também da capacidade de agir. Só o sistema político, ou seja aquilo a que Habermas também chama o poder administrativo, tem a «competência específica de tomar as decisões que empenham a colectividade747». O espaço público é sem dúvida estruturado por uma vontade de entendimento, mas cabe ao poder, cuja autonomia não é de modo algum posta em causa por esta interpretação fraca da autolegislação, pôr fim aos desacordos que a discussão não possa resolver numa sociedade irredutivelmente heterogénea, ou seja impor os inevitáveis compromissos. É significativo que Habermas reprove a Hannah Arendt, uma das grandes referências do pensamento republicano contemporâneo, que esta defenda uma concepção da política «que mantém uma relação polémica com o aparelho de Estado748». A inconsistência do demos, privado da capacidade de agir, não pode ser compensada senão pela confiança num aparelho de Estado, do qual se admite por hipótese que se submete às normas universais do direito. Com a inflexão trazida aos princípios da ética comunicacional em Direito e Democracia (Faktizität und Geltung, 1992), Habermas acaba por esvaziar a noção de «soberania popular» de toda a dinâmica de contestação, e a concepção que forma do funcionamento institucional de uma democracia

liberal revela-se em definitivo mais próxima da dos liberais do que daqueles a que ele chama os republicanos. Foi também a crítica dos comunitarianos que levou Rawls, em textos publicados após a Teoria da Justiça749, a reconhecer a inevitável incompatibilidade das «doutrinas compreensivas750», morais, filosóficas e religiosas, das quais se possam reclamar os membros de uma sociedade de homens livres e iguais. Para ele, porém, tal como para Habermas, divergências e incompatibilidades de interesses e de doutrinas não são um argumento suficiente para fazer da dissensão a essência da política. Rawls remete-se a um fundo comum de ideias implicitamente aceites por todos os membros das sociedades democráticas, a que chama a «razão pública», ou a «cultura política» comum, para garantir a possibilidade de um acordo mínimo sobre os termos fundamentais da cooperação política e social. Esse «consenso por verificação» está certamente muito distante de um universal racional de tipo hegeliano, mas permite assegurar no quadro de um «pluralismo razoável» a unidade política de um corpo social ideologicamente dividido, devido aos próprios princípios que são o da sua base normativa. Encontra-se a mesma ideia em Habermas quando ele observa, não obstante a separação que estabelece entre cultura política e formas de vida culturais, que para a viabilidade de um Estado de direito democrático é necessário que as diferentes formas de vida coexistentes no seu seio «se verifiquem numa cultura política comum751». A única diferença em relação a Rawls prende-se com o facto de Habermas defender uma concepção dinâmica dessa cultura política comum, que ele espera que permaneça aberta ao eventual contributo de «formas de vida novas» que os particularismos de origem estrangeira ou autóctone introduzam nas democracias constituídas. É porém evidente que tais inovações não devem afectar a base universalista do Estado de direito, que segundo Habermas mantém uma «ligação interna» com a democracia752. A própria possibilidade de uma cultura política comum que não resulte de uma história política partilhada permanece pois assaz fluida, tanto num como noutro. Não nos podendo demorar nisso, apenas reteremos aqui a sua recusa conjunta em tirar do reconhecimento da heterogeneidade das sociedades contemporâneas conclusões que comprometessem a indexação da democracia ao consenso. Habermas teve ocasião de exprimir essa resistência a uma interpretação dissensual da democracia na sua reacção a um colóquio que foi organizado em meados da década de 1990 sobre a sua obra Direito e Democracia. O filósofo americano T. McCarthy, que muito contribuiu para dar

a conhecer a obra de Habermas nos Estados Unidos e não pode passar por um adversário, fazia valer no entanto o carácter irredutível dos conflitos sobre os valores. Ao que Habermas respondia que, se os antagonismos sobre os valores, ou seja antagonismos dotados de um alcance existencial, devessem tocar todas as questões políticas, chegar-se-ia a uma concepção schmittiana da política753. Não se pode significar mais claramente que a tese segundo a qual a política é uma esfera de acção essencialmente dissensual é incompatível com a noção de democracia. Não é contudo uma concepção schmittiana da política, dificilmente adaptável à democracia, que representa a verdadeira alternativa à norma do consenso, mas ainda aqui a posição desenvolvida no seu rigor mais extremo por Rancière. Quando este afirma que «a essência da política é o dissenso754», não faz referência ao conflito dos interesses ou à incompatibilidade dos valores, mas ao encerramento da comunidade de discurso, compreendida como espaço público, e à necessidade para aqueles que dela estão excluídos (os «sem parte») de nela se introduzirem sub-repticiamente. Se Jacques Rancière concede efectivamente a Habermas que o diálogo supõe uma relação igualitária, a do locutor para com os seus auditores, a de um querer dizer para com um querer ouvir, ele observa que tal relação supõe que estejam já constituídos e identificados o palco, o objecto e os parceiros da discussão, o que não é o caso nessa esfera de acção a que chamamos a política. «A igualdade das inteligências» é efectivamente o pressuposto da democracia, compreendida como uma prática, mas ela não pode ser o fundamento de um «poder democrático». Um «poder democrático» é de resto, na perspectiva de Jacques Rancière, uma expressão intrinsecamente contraditória, salvo para significar o poder de «não importa quem», ou seja o exercício do direito de cada um em se ocupar dos assuntos públicos. Se existe efectivamente um espaço comum da política, este não é estruturado pela busca do consenso, mas apresenta-se como um «lugar polémico»: não um lugar de conflito entre pontos de vista definitivamente inconciliáveis, que só uma decisão sem razão poderia resolver (uma consequência que motiva a evocação por Habermas do fantasma de Carl Schmitt), mas o lugar onde se põe à prova um pressuposto igualitário cujas implicações nenhuma configuração institucional pode esgotar. Algumas lacunas: liberalismo, filosofia social As posições que evocámos são suficientemente antitéticas para abarcarem

toda uma gama das filosofias políticas, ao preço, bem entendido, de simplificações. Algumas das divisões que o campo assim delimitado mantém na sombra podem no entanto parecer aos olhos de alguns tão importantes quanto a oposição entre os dois conceitos da democracia cuja oposição esboçámos. Dessas mencionaremos aqui duas, a primeira das quais é interior à corrente institucionalista, ao passo que a segunda decorre da filosofia política strictu sensu, mas a concerne indirectamente na medida em que implica uma significativa deslocação do fito central da filosofia prática. A distinção entre institucionalistas e anti-institucionalistas755 parece antes de mais desconhecer a divisão, interior à primeira corrente, entre liberais de factura clássica, que se acomodam à autonomização do poder somente sob a reserva do respeito de algumas liberdades fundamentais e de uma participação dos cidadãos na selecção do pessoal político, e autores que, em nome de um liberalismo revisitado (Rawls756) ou de uma valorização do papel do espaço público na formação da vontade política (Habermas), querem pelo contrário apresentar uma alternativa a essa interpretação estrita da democracia liberal. Tal omissão tem porém as suas razões. O liberalismo puro, que a obra de um Hayek poderia ilustrar há poucas décadas757, corresponde sem dúvida à ideologia de certos círculos dirigentes, mas, em matéria de filosofia política, mais parece uma construção dos seus adversários do que uma realidade à qual se pudessem referir nomes e obras. Esse adversário largamente imaginário, pelo menos no plano téorico, é necessário para qualificar como «radicais» as interpretações republicana e procedimental da democracia, como faz por exemplo Axel Honneth num artigo consagrado aos diferentes modelos normativos da democracia758. Do ponto de vista dos anti-institucionalistas, tal pretensão de radicalidade só pode parecer abusiva. Ela assinala porém que o pensamento filosófico da política se constitui geralmente, ou mesmo sempre, numa relação crítica com a realidade do poder e do funcionamento factual das sociedades. Nesse sentido ele é sempre «radical». Isso é verdade para a própria filosofia liberal, que só pôde existir, ou seja ter uma autêntica consistência, enquanto tinha de lutar contra os conservadorismos sociais e políticos oriundos de épocas anteriores, ou mais tarde contra um «totalitarismo» que ela podia identificar como real, quer fosse em sociedades estrangeiras (o mundo soviético) ou nos programas de certos partidos políticos autóctones. Nas sociedades em que o conjunto dos dirigentes e das forças políticas aceitem os princípios fundamentais do liberalismo, tanto na sua dimensão política como na económica, já não há terreno para uma filosofia política liberal.

A segunda divisão é a que opõe filosofia social e filosofia política. Nada dizer da filosofia social poderia justificar-se pela escolha económica de limitar os nossos propósitos àquelas expressões da filosofia prática que tratem do poder, ainda que, como se observou anteriormente, a questão da sua legitimidade, que foi o centro de gravidade da filosofia política moderna, de Bodin a Hegel, tenha sido de facto abandonada pelos nossos contemporâneos. Uma tal opção impedir-nos-ia porém de perceber o que a constituição de uma filosofia social que reivindica a sua diferença em relação à filosofia política revela acerca das metamorfoses da própria filosofia política. Certas tradições nacionais, é certo, nunca fizeram essa distinção (é o caso da tradição anglosaxónica), e a filosofia social foi muitas vezes considerada alhures como um apêndice da filosofia política. O pleito formulado por Axel Honneth em favor da independência da filosofia social merece contudo alguma atenção759. O seu objectivo declarado é o de reactualizar uma interrogação que pode reclamar-se da ascendência de Rousseau ou de Nietzsche, mas também do Lukács de História e Consciência de Classe, ou ainda das grandes obras sociológicas do início do século XX (Durkheim, Weber, Simmel). Encontra-se nestes autores, declinada de diversas maneiras, uma reflexão crítica sobre as disfunções da socialidade moderna. Mais do que prolongar essa reflexão nos termos de uma filosofia da cultura, Honneth convida a elucidar os seus pressupostos explicitando a antropologia filosófica latente no diagnóstico das «patologias» do social, ou seja a concepção da vida boa, ou da vida bem sucedida, subjacente a tal diagnóstico. Honneth não se interroga sobre as razões pelas quais essa questão, que estava no cerne da filosofia prática da Antiguidade, foi afastada pela filosofia política moderna. Poderá pensar-se que se conjugaram aqui os efeitos do utilitarismo e de um juridismo de inspiração kantiana que, por mais afastados que estivessem um do outro, tinham porém em comum restringirem o campo da normatividade política às condições da coexistência: coexistência dos interesses para uns, coexistência das liberdades para os outros. Tudo o que relevava do concreto da vida dos indivíduos era reputado pertencer ao privado, que deveria ficar fora do alcance da intervenção pública em nome do individualismo ou da crítica do eudemonismo. Essa reserva perante a fronteira do privado tinha por consequência que a filosofia política se acantonava na determinação dos critérios da justiça, compreendida numa acepção moderna que pressupõe um tratamento igual dos indivíduos considerados exclusivamente na sua qualidade jurídica de pessoas. É por isso que a noção de vida boa, ou, noutros autores, de

uma vida que esteja à altura daquilo que exige a dignidade humana, é hoje em dia apresentada, segundo os casos, como uma alternativa à de justiça, como seu complemento necessário, ou ainda como um alargamento da sua definição que permita estender a lista dos «bens» ou dos direitos que os governos deveriam garantir760. Um dos grandes méritos dessa nova orientação da filosofia prática (que cobre a temática do care, Fürsorge em alemão, «atenção» ou «cuidado» em português) é o de fazer valer a necessária consideração da diferença, ou do heterogéneo, na reflexão sobre as condições normativas da socialidade. Ela vai aqui, ainda que com outras premissas e outras intenções, ao encontro das preocupações dos comunitarianos. Mas uma das consequências – provavelmente involuntária – desse alargamento do campo de interesse da filosofia prática é a de confortar o desinvestimento da questão do poder, que como vimos tendia a perder-se nas diferentes variantes da filosofia política contemporânea. Se a noção de um poder do povo está já fortemente adocicada nas temáticas que ratificam a autonomia do poder de decisão e se remetem à esfera pública para conservar uma aparência de sentido na noção de autolegislação, se ela perde todos os laços com a decisão nos autores que situam a realidade da democracia do lado de uma contestação sem perspectiva institucional, ela desaparece a fortiori numa filosofia social cujo próprio conceito implica que o fundamento do poder não seja interrogado. Para uma época que identificou o político e a democracia, a ideia segundo a qual «a ideia normativa da democracia deve ser considerada não só como um ideal político, mas primeiramente e antes de tudo como um ideal social761» equivale a despedir em definitivo aquele que havia sido o problema central das filosofias políticas modernas. A filosofia social não vem portanto somente colmatar as lacunas da filosofia política; ela tende antes a substituir-se a esta ao levar a um ponto extremo a elisão da questão do poder. O poder está lá, necessário porque inevitável, benevolente; pelo menos é o que é preciso supor para que faça sentido pedir-lhe que se conforme a um certo número de exigências implicadas pelo respeito da pessoa humana. Indeterminação do demos e novos poderes É relativamente fácil detectar, por detrás destas diversas concepções da democracia, as diferentes experiências políticas nacionais e geracionais que as inspiraram. Em grandes traços: para Rawls, a miséria de uma filosofia política dominada pelo utilitarismo na década de 1960 (uma situação que ele procurou

remediar dando novo conteúdo à noção de justiça); para Habermas, o peso de um passado nazi e o recalcamento de um nacionalismo que, na Alemanha, não podia deixar de ser vergonhoso, e depois, no final da década de 1980, a unificação alemã, a abertura das fronteiras a Leste, bem como, durante todo esse tempo, a esperança europeia; para Claude Lefort, como se recordou mais acima, a meditação sobre as ligações entre democracia e totalitarismo; para Jacques Rancière, os movimentos sociais que, em França, se exprimem muitas vezes fora dos quadros definidos pelas instituições, provavelmente porque essas instituições deixam pouco lugar à concertação e à discussão. Os pensadores comunitarianos, por seu turno, fazem eco das reivindicações de diversas «minorias» constituídas em grupos de pressão, bem como dos problemas colocados por populações imigradas suficientemente fortes para poderem exigir o reconhecimento das suas particularidades culturais. Estas experiências específicas foram porém a ocasião de trabalhar uma herança conceptual comum, que é a da filosofia política ocidental, e esse trabalho, devido precisamente ao cruzamento de perspectivas, revela a profunda incerteza em que hoje em dia estamos quanto à identidade do demos de que se reclamam as democracias liberais. A ideia de um «poder do povo» sempre foi sem dúvida fictícia, e só pôde ter sentido em contextos polémicos onde se opunha, por exemplo, ao poder dos aristocratas ou ao poder do príncipe. Dir-se-á que ela ainda hoje conserva esse significado polémico ao servir de ponto de apoio à denúncia do poder das burocracias políticas ou dos peritos? Apesar de todas as diferenças que os separam, os autores que evocámos partilham a convicção de que só há filosofia política possível na condição de a política não se reduzir a uma prática gestionária, eventualmente apoiada em saberes de peritos (aquilo a que hoje em dia se chama a «governança»). Mas esta redução, que corresponde incontestavelmente à ideologia corrente dos dirigentes e dos administradores da coisa pública, provavelmente não é imputável apenas à pouca consideração que os detentores do poder em geral têm pelas capacidades políticas do povo. Ela exprime, hoje em dia, a realidade do poder político na figura em que continuamos geralmente a representá-lo (a do Estado), ou antes a sua ausência de realidade. A crescente pluralização e heterogeneidade dos poderes, que se entrelaçam e se não deixam já distinguir claramente em económicos, jurídicos e políticos, rebaixam o Estado ao estatuto de poder entre outros, obrigado a compor-se incessantemente com os outros. Que a acção dos dirigentes políticos seja percebida como uma gestão significa que ela já não tem muito a ver com

uma direcção. O Estado já nem sequer tem o monopólio da lei, que desde Bodin era considerado o atributo da potência soberana, o que acaba por esvaziar de sentido a interpretação da democracia em termos de autolegislação. Se a identidade do demos é hoje em dia profundamente incerta, é talvez porque o kratos já não é localizável, algo de que tardam a tomar consciência as filosofias políticas que continuam prisioneiras daquilo que o sociólogo Ulrich Beck qualifica como «nacionalismo metodológico762». Não se deverá concluir daí que a filosofia política seja um género definitivamente caduco, mas que o maior desafio com que ela é hoje em dia confrontada é o de repensar a democracia, na dupla dimensão da instituição e da contestação da instituição, ao articulá-la com a ideia de uma cidadania (ou, se preferirmos, de uma «civilidade763») mundial que não pode ser a mera reprodução em larga escala da cidadania nacional. CATHERINE COLLIOT-THÉLÈNE 730 Encontra-se uma teorização explícita da confiança como categoria central do liberalismo em L. Jaume, La Liberté et la Loi, Paris, Fayard, 2000. 731 As interrogações sobre a noção de representação (B. Manin, Principes du gouvernement représentatif, Paris, Flammarion, 1996) e os desenvolvimentos que inspiram nos partidários de uma democracia participativa (Y. Sintomer, Le Pouvoir au peuple, Paris, La Découverte, 2007) podem ser consideradas como tentativas de reabertura dessa investigação. 732 C. Lefort, Le Temps présent, Paris, Belin, 2007, p. 563. 733 Esses constrangimentos normativos (os procedimentos que o poder deve respeitar, os bens que ele deve garantir aos membros da sociedade) podem, bem entendido, funcionar como critérios de distinção entre poderes justos e poderes injustos, mas não justificam o poder enquanto tal, ou seja a obrigação de o indivíduo se submeter à autoridade de uma instância pública que para ele conserva sempre o carácter de uma autoridade exterior. É por isso que parece necessário distinguir a questão da justiça do poder e a da sua legitimidade. 734 Não evocamos aqui senão as posições extremas de um escaparate, no interior do qual, bem entendido, se encontram híbridos, que combinam a aceitação sem estado de alma da autonomia do poder sob a forma do governo eleitoral-representativo e a consideração das manifestações da sociedade civil nas quais se exprime a suspeita em relação a tal poder. Assim, P. Rosanvallon (La Contre-démocratie, Paris, Seuil, 2006), para o qual as diversas formas de contestação dos poderes institucionalizados são pensadas ao abrigo das categorias da «contra-democracia» ou da «impolítica». Rosanvallon propõe repolitizar essas práticas impolíticas da política atribuindo-lhes um quadro institucional. Aos olhos dos téoricos radicais da contestação, essa institucionalização, quaisquer que sejam as suas formas, surgirá necessariamente como uma tentativa de refreamento, ou mesmo de domesticação. 735 C. Schmitt (1888-1985). A obra deste jurista alemão – A Noção de Política (1932), Teologia Política (1922, 1970), Teoria da Constituição (1938) – exerceu uma influência considerável no pensamento político

contemporâneo, nomeadamente no campo alemão. As suas proposições provocadoras (em particular a referência constitutiva do político na distinção amigo/inimigo), o seu antiliberalismo, e mais ainda o seu empenhamento no regime nacional- socialista causam, porém, aversão a muitos: as suas posições só são evocadas para se distanciarem delas. 736 Na continuidade da separação estabelecida por H. Arendt (Du mensonge à la violence, Paris, CalmannLévy, 1972, p. 144-157) entre poder e violência, J. Habermas convida a compreender o pacto social como um «modelo abstracto do modo de constituição de uma dominação que já não se legitime senão pela instauração da autolegislação democrática. Ao mesmo tempo, a dominação política perde o seu carácter de força natural: trata-se com efeito de extirpar da potência do Estado todo o resíduo de violentia» (L’Intégration republicaine, Paris, Fayard, 1998, p. 72). 737 J. Rawls, Political liberalism, Nova Iorque, Columbia University Press, 1993. 738 Ibid. 739 Cf. por exemplo C. Lefort, Le Temps présent, op. cit., p. 561. Este vazio do lugar do poder não significa a sua abolição, como precisa Lefort no mesmo texto (p. 560). Ainda que a democracia suscite naturalmente «o fantasma de uma sociedade sem poder, este não é abolido nela. Ele continua a assegurar as condições da coesão social». 740 J. Rancière, Aux bords de la politique, Paris, Gallimard, 1998, p. 136. 741 Remeto aqui para o belíssimo texto intitulado «La communauté des égaux» (Ibid., p. 129-174). 742 Ibid., p. 160. 743 A nossa análise debruça-se sobre as diferenças entre Rawls e Habermas. Para uma exposição sintética e reflectida de tais diferenças, leia-se nomeadamente J.-C. Merle («La réception des communautariens en Allemagne», in C. Colliot-Thélène e J.-F. Kervégan, De la société à la sociologie, Lyon, ENS Éditions, 2002). 744 J. Habermas, L’Intégration républicaine, op. cit., p. 293. 745 Ibid., p. 259 e segs. 746 Ibid, p. 264. 747 Ibid., p. 271. Habermas utiliza a expressão «poder administrativo» num sentido não técnico, incluindo nela tanto os órgãos propriamente administrativos do Estado como os parlamentos e o governo. 748 Ibid., p. 268. 749 Os mais importantes estão reunidos na compilação Libéralisme politique, op. cit. 750 Rawls chama «compreensivas» às doutrinas que englobam todas as concepções relativas ao valor da vida humana, em função das quais um indivíduo rege a sua conduta. O liberalismo político, tal como ele o entende, não é uma doutrina compreensiva, e também não está ligado a uma doutrina compreensiva específica.

751 J. Habermas, L’Intégration republicaine, op. cit., p. 93. 752 «Du lien interne entre État de droit et démocratie», L’Intégration républicaine, op. cit., p. 275-286. 753 Ibid., p. 305. Trata-se muito evidentemente de uma alusão ao critério proposto por C. Schmitt para distinguir o político de qualquer outra esfera da vida humana: a distinção entre amigo e inimigo. Cf. supra. 754 «Dix théses sur la politique», Aux bords de la politique, op. cit., p. 244. 755 «Anti-institucionalistas» não no sentido em que visassem a abolição das instituições, mas no de que a essência da política não reside, segundo eles, no ajustamento dos dispositivos institucionais. 756 Aos olhos dos leitores americanos, a grande inovação da Teoria da Justiça era a de integrar a crítica social na teoria liberal. 757 Cf. F. A. Hayek, Droit, législation et liberté, Paris, PUF, 1982. 758 «Demokratie als reflexive Kooperation. John Dewey und die Demokratietheorie der Gegenwart», in A. Honneth (dir.), Das Andere der Gerechtigkeit, Frankfurt, Suhrkamp, 2000, p. 282-309. 759 Cf. em particular: «Pathologien des Sozialen. Tradition und Aktualität der Sozialphilosophie», in Axel Honneth, Das Andere der Gerechtigkeit, op. cit., p. 11-60. 760 Cf. por exemplo os trabalhos de M. C. Nussbaum, em particular Frontiers of Justice, Cambridge, Harvard University Press, 2006. 761 A. Honneth, Das Andere der Gerechtigkeit, op. cit., p. 390, sublinhado nosso. 762 U. Beck, Pouvoir et contre-pouvoir à l’heure de la mondialisation, Paris, Flammarions, 2003. 763 Segundo a sugestão de É. Balibar (cf. nomeadamente La Crainte des masses, Paris, Galilée, 1997, p. 39-52).

As filosofias do vivente

Por filosofia do vivente, entendemos uma maneira de fazer a filosofia a partir dos conceitos propostos pela biologia: como a biologia alimenta e suscita interrogações que interessam à filosofia. O campo da biologia está classicamente dividido entre «genética» e «evolução». A genética oferece uma teoria das formas que leva em conta a constância dos tipos, ao passo que a teoria da evolução sublinha as relações de parentesco. Estes dois grandes eixos apresentam, por um lado, a dimensão formalista e estruturalista da biologia, com a sua insistência na identidade, na reprodução do mesmo, nas essências; por outro lado, a dimensão histórica do vivente, a diferença, o tempo e o devir. Essas duas dimensões são integradas no paradigma maior da biologia contemporânea: a «teoria sintética da evolução», ou teoria neodarwiniana, elaborada nas décadas de 1930-1940. Devido a essa origem relativamente tardia de um «paradigma biológico», o vivente permaneceu por muito tempo nas margens da epistemologia, que privilegiou a lógica, a astronomia ou a física. A filosofia do vivente nem por isso deixou de constituir um domínio de reflexão particularmente activo, que se instaurou segundo linhas diversas. Designa-se por «filosofia da biologia» a parte da epistemologia que procura compreender como as práticas e os conceitos mobilizados nas ciências do vivente podem modificar a nossa concepção da ciência em geral. Se a biologia é uma ciência como as outras, ela deve partilhar com a física ou a matemática características que fazem de todas essas disciplinas ciências em sentido estrito, e que a filosofia poderia identificar – leis ou modelos, por exemplo764. Mas coloca-se o problema do estatuto da biologia: terá ela um objecto que lhe seja próprio, independentemente das leis da física? Define-se a biologia como a ciência que se ocupa do vivente, mas o que é um vivente? Um homem, uma planta, uma bactéria dizem-se «viventes», mas quanto a uma molécula, a um vírus ou a um planeta? O objecto da biologia suscita a afirmação de um reducionismo que reconduz o vivente ao físico, e a um vitalismo que faz da vida uma força própria, independente do físico. A biologia deve afirmar que o vivente obedece

inteiramente às leis da física e dar razão aos fisicalistas contra os vitalistas ao negar a existência de uma componente metafísica da vida. Ao mesmo tempo, ela deve afirmar que o objecto biológico tem numerosas propriedades que não estão na natureza inanimada, e cuja análise mobiliza conceitos próprios («organismo», «selecção natural», «célula», «gene», etc.)765. A «máquina» pretendeu durante muito tempo fornecer o bom modelo do vivente766: estarão as insuficiências deste modelo ligadas à sua própria natureza, ou antes ao carácter rudimentar das máquinas evocadas – crivos e polés quando se deveriam convocar máquinas mais complexas, cibernéticas ou nanomáquinas? A imagem das nossas células como «máquinas moleculares» é ainda popular, recentemente reactivada pela ideia de nano-robôs que circulariam nas nossas veias e colaborariam com os outros organitos no organismo767. Essa tensão que trabalha o objecto da biologia, entre vitalismo e reducionismo, redobra-se devido à ambiguidade do termo «vida»: o vivente não é «a vivência». Se a vivência remete para o sentimento da experiência interior e conduz a uma fenomenologia, o vivente caracteriza-se pelas suas propriedades biológicas e materiais. A vivência tende a qualificar a vida como consciência ou sentir, ao passo que o vivente supõe o estudo de funcionamento em que intervém uma «matéria estranha» (nutrição, respiração, etc.) O vivente é o nível fundamental que explica a vivência, mas a vivência é a sede de interesse a partir da qual nos interessamos pelo vivente768. A filosofia do vivente tende doravante a conceber o organismo sem a máquina e os seus mecanismos. Deste modo, desenvolve-se uma corrente em torno dos conceitos de individuação e de finalidade, em particular a partir das obras de G. Simondon e de R. Ruyer. Simondon não toma como dado o indivíduo já constituído, mas procura o modo como se constitui a individuação. Segundo ele, a filosofia não conseguiu justificar a formação do indivíduo ao supor, no seu princípio, uma «substância» ou uma «forma», que supõem elas mesmas aquilo que está precisamente em questão (petição de princípio). É atribuído a uma entidade já individuada (como o átomo, ou a substância) o estatuto de princípio capaz de justificar a formação dos indivíduos, tais como eles se apresentam à percepção. Tais teorias fazem «sair a existência individuante da substância individuada», ao passo que seriam as condições de possibilidade dessas individualidades que seria preciso pensar. Tais pensamentos, que não deixam de ter ligação com as «metafísicas do devir» de A. N. Whitehead e de G. Deleuze, parecem muito distantes da nossa definição

da filosofia do vivente. Por uma parte, eles assumem um teor radicalmente antibiológico, mas ganham, porém, o favor de alguns biólogos. O seu interesse prende-se com um certo estado de «crise» da teoria genética. Genética O conceito de gene, nascido no início do século XX, foi reelaborado no quadro da biologia molecular, após a descoberta da estrutura bi-helicoidal do ácido desoxirribonucleico (1953) e a interpretação da sequência das bases enquanto constituintes do código genético dos indivíduos. O entusiasmo foi tal que se julgou haver-se revelado «o segredo da vida». A sucessão das bases e o seu emparelhamento sistemático buscavam com efeito um mecanismo simples para explicar o espantoso poder de auto-replicação de que é dotado o ADN. O conceito de gene não deixa porém de colocar numerosas dificuldades à filosofia das ciências. Ele mudou tão consideravelmente de rumo no decurso da história da genética que podemos interrogar-nos acerca da sua unidade. A genética mendeliana e a genética molecular serão a mesma ciência? O gene mendeliano pode dizer-se «fenomenológico»: ele regista simplesmente a variação de traços macroscópicos (ser uma ervilha frisada ou lisa, uma drosófila de olhos brancos ou vermelhos). O gene molecular é estrutural: uma sequência de ADN que supostamente fornece o código de fabricação dos elementos que integram a morfogénese e dos processos fisiológicos. Por um lado, a análise refere-se à transmissão de traços de um indivíduo à sua descendência: ela conduz ao cálculo de rácios, definindo a frequência de um traço numa população. Por outro lado, o interesse refere-se aos mecanismos moleculares que regem a relação do ADN com as proteínas. Entre o gene como elemento transmitido e o gene como elemento participante da construção e do desenvolvimento do organismo, haverá alguma correspondência possível? Não se pode identificar um nível molecular que corresponda aos genes discretos mendelianos (condições das características fenotípicas transmitidas). Por conseguinte, toda a tradução estrita de uma teoria a outra parece impossível. A epistemologia depara aí com um caso de equivocidade conceptual. Qual é o quadro conceptual geral em que funcionam o ADN e os genes? Através dos termos «informação», «programa», «operon», os biólogos descrevem a maneira como sequências determinadas de ADN (os genes) são «reguladas», sucessivamente activadas e desactivadas. Tais noções, apoiadas em metáforas desenvolvidas pela cibernética, tendem a assemelhar o

organismo a um computador que segue uma série de instruções. Daí, podem tirar-se diversos fios. O «código» suscitou novas reflexões acerca do seu aparecimento: a origem da vida. A interpretação cibernética do vivente em termos de «informação» incitou o aperfeiçoamento de máquinas que reproduzissem toda a complexidade dos comportamentos animais (e humanos): a vida artificial. A descoberta do «código genético» teve muito rapidamente as suas aplicações práticas: as biotecnologias que esperam modificar o vivente à discrição. A retórica da «chave da vida» trouxe a realização de imensos projectos internacionais, como o Projecto do Genoma Humano, que conduziu a um impasse: os biólogos renunciaram por fim à ideia de que as estruturas e funções complexas dos organismos vivos estivessem contidas no genoma, e portanto directamente acessíveis a partir do conhecimento das sequências. Além disso, tendo o próprio ADN, molécula-chave da construção do vivente, surgido como uma molécula inerte, questionaram-se os conceitos e modelos que estruturavam a genética. Isso levou a uma contestação geral do «reducionismo molecular» e do «programa». Redefiniu-se o que «fazem» os genes, questionou-se a relação deles com o ambiente, deslocou-se o interesse da dupla hélice do ADN cromossómico para todos os mecanismos citoplásmicos, pondo a tónica no «epigenético»769. O termo «genético» não implica que todo o ácido nucleico tivesse, por si mesmo, a capacidade de engendrar o conjunto do organismo que o contém, ainda que se lhe atribuísse a capacidade de auto-replicação. É a grande decepção do programa «informacional» nas ciências da vida: a decifração do genoma (o conjunto dos genes) não permitiu «apreender» directamente a essência da vida ou a receita mecanística para a fabricação dos corpos vivos. Assim, certos genes podem ser inactivados sem que o indivíduo padeça por isso. Uma corrente vigorosa proclama a «morte do gene» e apela à consideração dos «fenómenos emergentes»770. «Programa» e «código» são acusados de formarem uma metáfora essencialista, militar, reducionista. Criticou-se até o Kernmonopol, monopólio nuclear, como uma metáfora com preconceitos de género, que operava uma sexualização abusiva da célula771: segundo um esquema em que o núcleo, visto como o amo masculino da célula, controla um citoplasma passivo e feminilizado. A crítica do ADN nuclear e do seu papel hierárquico na construção do organismo levou a que se insistisse nos mecanismos citoplásmicos. A partir daí, destacam-se aparentemente duas maneiras de ler as

biotecnologias. Por um lado, a temática dos OGM (organismos geneticamente modificados) mostra como a tendência mecanista e reducionista autorizou práticas de sequenciação, de divisão e de patenteamento do ser vivo. O corpo vivo já não é um «organismo»; é analisado numa conjunção de diferentes «componentes bióticos», susceptíveis de serem separados, trocados, comerciados772. O nível do indivíduo parece dissolvido em proveito dos «replicadores» que o produziram, actores egoístas unicamente preocupados em produzirem cópias de si mesmos773. Por outro lado, a manipulação das células estaminais suscitou um renovado interesse pela plasticidade do vivente e pela adaptabilidade da célula. Porém, tais pesquisas, como as relativas à clonagem, consistem em «reprogramar» uma célula, em substituir-lhe o núcleo para lhe modificar a história – por onde se vê bem que a metáfora do programa ainda é operatória. Tais manipulações não deixam de ter efeito sobre o nosso conceito de «individualidade»774. Já no século XVIII, os fenómenos de regenerações após amputações, observadas em patas de lagostins, a reprodução por enxertia, cisão ou rebento, observada nos pólipos ou nos pulgões, incitaram os naturalistas a produzir uma teoria geral da reprodução alternativa à via sexuada. O organismo mostrou que podia ser dividido, rompido na sua «harmonia», sem ser destruído. No caso das biotecnologias, o nível de intervenção é diferente, uma vez que doravante se trata de intervir na identidade genérica dos organismos. Evolução A dimensão evolutiva forma o segundo aspecto fundamental da ciência do vivente e oferece-nos um outro olhar sobre as biotecnologias. O carácter evolutivo da vida justifica o vivente na sua profunda unidade genética e na sua diversidade, na dimensão de transformação das espécies, no parentesco que as une, da bactéria à baleia. A teoria darwiniana, apoiada nos conceitos de «variação» e de «selecção», ocupou primeiramente o locus classicus da teologia natural: as «admiráveis» (beautiful) adaptações e co-adaptações. Ela pôde assim justificar o mimetismo da borboleta que ganha a aparência de uma folha morta, ou de uma espécie comestível que ganha o aspecto de um parente venenoso. Mas, para S. J. Gould, a teoria da selecção natural jamais teria substituído a doutrina da criação se a adaptação perfeita fosse frequente na natureza. O tema da perfeição alimenta antes o sentimento providencialista de uma

natureza perfeitamente racional, ordenada e ecónoma. Darwin, em particular, não evoca os órgãos supostamente «perfeitos» senão como objecções à sua teoria que ele se dedicará a remover: onde se supõe uma perfeição, ele mostra que um olhar mais atento revela um conjunto de ajustamentos ou de defeitos. Deste modo, se a criação perfeita supõe um engenheiro, a consideração dos desvios convida a pensar noutro modelo: a intervenção da selecção natural, operando aquilo a que F. Jacob chamou «a reparação do vivente»775. A reparação permite sublinhar os constrangimentos estruturais que pesam sobre a evolução (ela trabalha a partir do existente), a contingência (a importância das circunstâncias) e a conversão de funções (um fragmento de maxilar torna-se um pedaço de orelha). As organizações (dispositivos, contrivances) são efectivamente «propositadas» (adaptadas a um propósito) mas nem por isso são previstas para tal uso, ou orientadas para ele. Por outras palavras, a adaptação não é um destino. Trata-se de um processo cego sem antecipação nem inteligência no seu princípio. As reparações põem em causa a tese de uma finalidade natural. Elas aproximam-se da evolução a partir não das adaptações mais bem sucedidas, mas de arranjos bizarros e de soluções atrevidas. Onde o providencialismo louva a maravilhosa adaptação entre uma estrutura e uma função, julgando ler nela um sinal da economia, da sageza e da omnipotência divinas, o darwinismo apresenta ao invés essa variação como uma acumulação sem razão de montagens singulares, localmente eficazes mas de alcance limitado, tal como ilustra o «polegar» do panda, que não é um dedo mas a deformação de um osso do punho776. O caso é geral: o olho (o fotorreceptor) apareceu sob formas muito diversas. Do mesmo modo, ao nível molecular, os cristalinos (as proteínas que representam entre 20 e 60% do peso do cristalino no olho) são na realidade enzimas ligeiramente transformados; quanto à hemoglobina, a sua função era a de simples despoluente nos organismos inferiores e só se tornou meio de transporte do oxigénio nos organismos superiores. A reparação aplica a plasticidade fisiológica; não existe relação necessária e sistemática entre estrutura e função. Deve-se pelo contrário constatar a versatilidade de funções em muitas moléculas, aquilo a que G. Canguilhem chamou «a vicariância» do vivente. A antiga economia providencial da natureza é reinterpretada como um bricabraque, onde do velho se faz o novo. O «jogo dos possíveis» significa que «se joga», que há flutuação e imperfeição. Uma vez começada a vida sob a forma de um organismo primitivo

capaz de se reproduzir, a evolução operou-se por modificação de componentes existentes. A existência de ADN não específico (a oposição dos exões e dos intrões) fornece a matéria-prima para recombinações e permutas; as velhas sequências são utilizadas para novas funções e a diversificação precisa apenas de uma utilização diferente da mesma informação estrutural. É o que mostra a corrente da «evo-devo», nomeadamente a partir do estudo dos genes Hox. Estes genes são sequências que codificam o desenvolvimento dos organismos, as quais se acham particularmente bem conservadas ao longo de toda a filogenia, da drosófila aos vertebrados superiores777. As biotecnologias resultam da confluência das práticas seculares de melhoramento das espécies vegetais e animais por selecção e dos novos instrumentos celulares (enzimas de restrição, transcriptase inversa, transgénese). No cruzamento dessas duas linhagens, as biotecnologias não constituem uma antinatureza ou uma contra-natureza, mas propõem uma natureza possível e realizável. Elas são tornadas possíveis por algumas propriedades da matéria viva, como a maleabilidade e a estabilidade. Elas não fazem mais – pelo menos é o que declaram – do que propor uma «evolução dirigida» que reproduz e prolonga in vitro os mecanismos biológicos: a paridade entre natureza e laboratório permite pois a realização do possível778. A tese do jogo da natureza e o seu corolário prático, a reparação, dão ocasião a uma nova aposta: a genética pode passar de uma teoria da hereditariedade de aspecto fatalista, ou mesmo reaccionário, a uma teoria das manipulações, com matizes potencialmente progressistas: em lugar de transmitir o passado, ela pode abrir um futuro utópico, mas isso não sem um risco de alienação. Tais práticas revestem-se com efeito de importantes objectivos políticos: estão ligadas a empresas que se apropriam do vivente em nome da sua patenteabilidade; redefinem a medicina como um mercado da saúde que é partilhado entre os laboratórios; colocam problemas de liberdade pública, com o cadastro genético e a biometria. Interrogam a ética com a questão das «opções de vida» e das «opções de sociedade». A filosofia política, social, moral investiu o campo do vivente em torno das práticas biológicas e médicas sobre o orgânico: estatuto do embrião, propriedade do corpo, definição do humano. Do mesmo modo, fala-se de éticas ambiental e animal para essas filosofias que, apoiando-se por vezes no parentesco genealógico dos viventes, qualificam a natureza a partir da noção de «valor» e estendem a noção de «respeitabilidade» para além do campo do humano. Poderemos assim estender o estatuto jurídico (standing) a entidades que não são susceptíveis de clamar

justiça para defender esses direitos: gerações a vir, ecossistemas, animais, vegetais? Estes últimos com efeito não são desprovidos «de interesses», ainda que os não possam exprimir. É isso que tenta abarcar o conceito de «considerabilidade moral», contra a perspectiva restrita que limita a esfera dos direitos à esfera do humano779. O «neo-evolucionismo» tem igualmente um objectivo relativo à «biodiversidade»: as biotecnologias vão introduzir nas dinâmicas naturais organismos susceptíveis de ganharem primazia. A oposição que Darwin estabelecia no quadro da colonização entre «espécies insulares» e «espécies continentais» deveria doravante ser reformulada na das espécies «naturais» e das espécies «artificiais», em luta pela obtenção dos mesmos recursos. Como se formulará esse novo «contrato natural»? Classificação O vivente parece pois tolhido entre duas grandes abordagens: genética e evolucionária, replicação e variação, identidade e diferença. Essa tensão traduziu-se na história das classificações. Classificar é em sentido estrito formar classes, reagrupar indivíduos segundo as suas semelhanças e separá-los segundo as suas diferenças. Os níveis taxonómicos, ou taxa, estão hierarquizados segundo uma escala de graus de generalidade: dos mais vastos (reinos, ordens, classes) aos mais restritos (géneros, espécies, variedades)780. Estarão estes conceitos da sistemática adaptados a um pensamento evolucionário? A classificação foi relida como filogenia, dando a árvore genealógica da evolução do vivente, mas ela é em princípio independente, unicamente fundada na observação de afinidades estruturais e funcionais (cladística, taxonomia numérica). Os conceitos gregos de genos e de eidos, tomados a Platão e a Aristóteles, são por vezes tidos como responsáveis por «2000 anos de estagnação em taxonomia» e colocados na origem de uma tradição de essencialismo na biologia781. O essencialismo considera que a tarefa do conhecimento é descobrir e descrever a verdadeira natureza das coisas – ou seja a sua realidade oculta ou a sua essência, a qual se encontraria ao nível das formas, julgado mais, ou unicamente, «real». Por oposição, o espírito filosófico do darwinismo seria antes um nominalismo, para o qual não existem senão indivíduos (variações) e para o qual todos os termos gerais são construções artificiais. O essencialismo é acusado de ignorar as singularidades dos indivíduos em proveito das formas e de desqualificar toda a dinâmica ou todo o estado

transitório em proveito de um ideal intemporal. Ao invés, o pensamento da evolução seria susceptível de integrar a mudança, de pensar a vida como produção de novidade e de dissolver as categorias essenciais e os termos gerais. As unidades da lógica aristotélica são interrogadas de maneira especial pelo encontro com a perspectiva taxonómica: quando a biologia identifica espécies, será que ela designa «realidades»? «Indivíduos»? A classificação implica mais do que o vasto catálogo do vivente ou o inventário de todas as riquezas dos três reinos da natureza. Ela coloca, por meio dos conceitos da espécie e do género, uma questão de lógica: existirá o conhecimento somente por operadores de generalidade que dirigem a atenção acima do nível do individual ou da pura singularidade? A biologia evolutiva mostra que todo o sistema de classificação não vale um outro: o interesse da posição darwiniana é que ela nem é realista nem nominalista. As classes podem ser abstracções, mas não são arbitrárias: elas representam uma ordem na natureza que resulta dos processos evolucionários. As classes não são reais, mas os grupos de indivíduos (as «populações») sãono. Isso equivale a afirmar a realidade das propriedades relacionais. A classificação baseia-se pois na descoberta dessas propriedades e na sua integração num sistema cognitivo. Simbiose As práticas das biotecnologias não seriam compreensíveis sem a análise do mundo microbiano, encetada pela biologia molecular782. «Micróbio» designa uma escala de tamanho (10-6 m) e abrange organismos que pertencem a dois «super-reinos» ou «clados»: Bactéria e Archaea783. O seu estudo perturba a nossa irreprimível focalização nos «macróbios» e os expedientes que ela traz à nossa representação da organicidade e da individualidade, da oposição do vivo e do morto. O mundo da célula contém um verdadeiro «microzoo» que alarga o nosso material ontológico e nos revela uma sobreposição de níveis e de tipos de existência: priões, plasmídeos, organitos, simbiontes extra- ou intracelulares, como os Buchnera, pequenos genomas que habitam nas células dos afídeos (pulgões) com os quais co-evoluem. Esta vida microscópica revela, sob o indivíduo e a sua aparente autonomia, uma importante vida cooperativa e colectiva, mesmo numa simples célula eucariote, devida à endossimbiose. Um vegetal não poderia funcionar sem aquilo a que se chama a «rizosfera»; as térmitas ou a espécie Homo sapiens

tem um «microbioma», indispensável ao seu metabolismo e integrado no seu sistema imunitário. A própria ideia de um «organismo» monogenómico independente se torna duvidosa, na medida em que o funcionamento de cada entidade se baseia nas interacções entre as suas componentes simbióticas. Todo o «indivíduo» parece resolver não ser mais do que um colectivo unificado pelo funcionamento metabólico. Os «organismos» revelam-se como «metaorganismos». Essa natureza cooperativa do vivente tende a atenuar a ideia de uma distinção nítida entre vivente e não vivente. A descrição do espectro das formas de vida permite alcançar uma melhor compreensão das interacções e dos modos de coexistência e de interdependência que existem entre entidades. Mitocôndrias, plasmídeos, ou cloroplastos, todos entidades simbióticas, partes integrantes de um todo orgânico, poderão dizer-se «vivos»? Os vírus ocupam aqui um lugar à parte. São elementos de ADN ou de ARN que formam estirpes, mas não metabolizam por si mesmos e utilizam o material genético de um anfitrião para se reproduzirem. Conseguiu-se sintetizar artificialmente um vírus (1935). Esse feito renova a síntese artificial da ureia (1828): esta remete-os para um estatuto puramente mineral, ou significa que as macromoléculas que constituem o vivente nada têm de misterioso ou de essencialmente diferente do mundo da química. Porém, há aí uma dimensão superior. Um vírus não é uma mera molécula, ele tem uma forma de independência ou de autonomia parcial, que permite qualificá-lo como «organismo» ou «ser vivo». O vírus seria uma entidade «alternativamente viva», viva no interior do corpo e morta no exterior dele. Mas o problema clássico (essa entidade é ou não viva? Um indivíduo autónomo? Um organismo?) é doravante contornado: a questão do vivente não se coloca senão a propósito de um sistema ou de uma entidade colectiva, uma pluralidade cooperativa, capaz de metabolizar e de criar linhagens. A consideração das bactérias e dos micróbios convida igualmente a redefinir conceitos como o de «sexo»784. O sexo designa doravante todo o mecanismo de recombinação genética, uma simples mistura de genes, ou uma união entre moléculas de ADN provenientes de diferentes origens. No seio desta definição muito geral, distingue-se o «sexo eucariote», definido pelo processo de meiose, tal como o conhecemos por exemplo nos animais superiores, e o «sexo procariote», que designa processos (lisogenia, transdução, etc.) de recombinação genética de entidades autopoiéticas (como as células bacterianas) ou não autopoiéticas (como os vírus e os plasmídeos). Pode separar-se o «sexo» das categorias de género (masculino/feminino,

macho/fêmea) e da atribuição de uma finalidade reprodutiva. Ele descreve simplesmente o processo pelo qual uma nova combinação genética individual viva é formada a partir de genes de pelo menos duas fontes diferentes. Segundo esta definição, o vírus da gripe que nos faz adoecer é «sexual», uma vez que introduz os genes virais nas nossas células. Estas quatro dimensões do vivente (genética, evolutiva, taxonómica e simbiótica) põem em causa a ideia do vivente como indivíduo autónomo, mero exemplar de «tipos ideais» (a espécie). Enxertia, mundo microbiano e reparação evolutiva das biotecnologias convidam a filosofia a modificar as suas perguntas e os seus conceitos (organismo, indivíduo, vida). Os nossos conceitos inadequados nasceram da identificação rápida do «vivente» com uma máquina, ou da «vida» com a «nossa vida», com a vida tal como a vivemos. A filosofia do vivente, apoiada numa história natural que observa e descreve entidades «naturais», ou seja que funcionam segundo as leis da natureza, liberta-nos de tais preconceitos. Ela convida-nos a considerar, com novos olhos, uma nanomáquina que, tal como uma célula, mobiliza recursos para se replicar, mas igualmente a própria Terra, que pode ser pensada como um «super-organismo». Nestes ecossistemas alargados, as relações de competição e de cooperação são complexas: serão os organismos para o superorganismo o que as células são para o organismo? As espécies serão para ele o que os órgãos são para um organismo? Poderemos considerar tais associações naturais como formando um «organismo»? Tanto Stanislas Lem como Michael Crichton o sugeriram785. Estas questões ganham particular acuidade no momento em que a biologia toma consciência dos fenómenos de coexistência no seio da nossa própria individualidade. THIERRY HOQUET 764 Cf. D. L. Hull e M. Ruse, The Philosophy of Biology, Oxford, Nova Iorque, Oxford University Press, 1998; F. Duchesneau, Philosophie de la biologie, Paris, PUF, 1997; J. Gayon, «La philosophie et la biologie», in J.-F. Mattéi (dir.), Encyclopédie philosophique universelle, t. IV, Paris, PUF, 1998, p. 21522171. 765 E. Mayr, Qu’est-ce que la biologie?, Paris, Fayard, 1998. 766 G. Canguilhem, «Machine et organisme», in La Connaissance de la vie, Paris, Hachette, 1952; F. Duchesneau, Les Modéles du vivant de Descartes à Leibniz, Paris, Vrin, 1998. 767 K. E. Drexler, Engins de création, Paris, Vuibert, 2005. 768 G. Canguilhem, «La nouvelle connaissance de la vie. Le concept et la vie», in Études d’histoire et de

philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1983, p. 335-364; H. Jonas, Le Phénomène de la vie. Vers une biologie philosophique, Paris, Bruxelas, De Boeck, 2001. 769 Cf. L. E. Kay, Who Wrote the Book of Life?, Stanford, Stanford University Press, 2000; E. Fox Keller, Le Siècle du gène, Paris, Gallimard, 2003; E. Jablonka e M. J. Lamb, Epigenetic Inheritance and Evolution. The Lamarckian Dimension, Oxford, Oxford University Press, 1995. 770 Cf. nomeadamente J. Atlan, La Fin du «tout génétique», Paris, INRA, 1999; J.-J. Kupiec e P. Sonigo, Ni Dieu ni gène, Paris, Seuil, 2000; A. Fagot-Largeault, D. Andler, B. Saint -Sernin, Philosophie des sciences, Paris, Gallimard, 2002. 771 The Biology and Gender Study Group, «The importance of feminist critique for contemporary cell biology», Hypatia, 3-1, Bloomington, Indiana University Press, 1988, p. 61-76. 772 Analisado nomeadamente por D. Haraway no seu Manifesto Cyborg (1985). 773 R. Dawkins, O Gene Egoísta. 774 Cf. T. Pradeau e P. Ludwig, L’Individu, Paris, Vrin, 2008. 775 F. Jacob, Le Jeu des possibles, Paris, Fayard, 1981. [Traduziu-se por «reparação» o termo original bricolage. (N. do T.)] 776 S. J. Gould, O Polegar do Panda. 777 Cf. W. Gehring, La Drosophile aux yeux rouges, Paris, Odile Jacob, 1999. 778 Cf. C. Debru (e P. Nouvel), Le Possible et les Biotechnologies, Paris, PUF, 2003. 779 Cf. H.-S. Afeissa (dir.), Éthique de l’environment, Paris, Vrin, 2007. 780 Cf. as obras de H. Daudin, Études d’histoire des sciences naturelles, Paris, Alcan, 1926, 3 vols. e J.-M. Drouin, L’Herbier des philosophes, Paris, Seuil, 2008. 781 Cf. D. Hull, «The Effects of Essentialism on Taxonomy: Two Thousand Years of Stasis», BJPS, n.º 15, 1965, p. 314-326 e n.º 16, 1965, p. 1-118. 782 Cf. M. Morange, Histoire de la biologie moléculaire (1994), Paris, La Découverte, 2003, p. 70-75. 783 C. M. O’Malley e J. Dupré, «Size Doesn’t Matter. Towards a More Inclusive Philosophy of Biology», Biology and Philosophy, n.º 22, 2007, p. 155-191. 784 L. Margulis e D. Sagan, What Is Sex?, Nova Iorque, Simon & Schuster, 2007. 785 S. Lem, Solaris; M. Crichton, Presas.

Neurociências e pesquisas cognitivas Será o cérebro o piloto do navio do espírito?

O interesse dos filósofos pelo cérebro e pelo sistema nervoso não é recente: de Descartes a Bergson, passando por Diderot, La Mettrie, Maine de Biran e James, o que disseram médicos e fisiólogos sobre esse órgão sempre reteve a atenção dos filósofos. Contudo, foi somente durante a segunda metade do século XX, com os trabalhos de Flourens, Broca, Wernicke, Helmholtz, e sobretudo Ramón y Cajal, o primeiro a descrever a organização cerebral e as conexões neuronais, que o cérebro se tornou um objecto filosófico, e o lugar por excelência do estudo das relações do corpo e do espírito786. Os medievais consideravam o coração como o princípio de individuação do ser humano: se dois gémeos siameses tinham duas cabeças mas um único coração e um único tronco, considerava-se que eram um único indivíduo. Hoje em dia, o princípio de identidade é o cérebro, e a medicina considera que o sinal da morte clínica é a morte cerebral, e já não a paragem do sistema cardiovascular. Os filósofos, porém, levaram tempo a colocar o cérebro no centro das suas reflexões sobre as relações entre o espírito e o corpo. Bergson, apesar do seu interesse pela neurologia, considerava o cérebro como uma central telefónica e desvalorizava a sua função cognitiva para acentuar o seu papel na planificação da acção. O cérebro não tinha maior lugar na concepção behaviorista do espírito, uma vez que o mental se reduz nesta à sua face estritamente externa e às meras relações entre stimuli e respostas comportamentais, deixando de lado a «caixa negra» interna. A concepção filosófica que melhor incarna esse distanciamento do poder causal do cérebro é o «behaviorismo lógico» defendido por positivistas lógicos como Hempel787, que entende reduzir o significado dos enunciados psicológicos ao de enunciados relativos ao comportamento. Por exemplo, «Ele está com dor de dentes» não significa mais do que: «Ele faz caretas agarrando o maxilar e faz estes ou aqueles gestos.» Mas não se podem definir os estados mentais por comportamentos a menos que se suponha que os comportamentos em questão são causados por estados

mentais. Em A Noção de Espírito788, Gilbert Ryle sustenta uma versão subtil desta tese, contra o mito «cartesiano» do espírito «fantasma na máquina», defendendo a ideia segundo a qual o espírito não é algo de interno, físico ou mental, mas um conjunto complexo de disposições. Embora seja mais complexa, a noção de Wittgenstein789, segundo a qual um processo interno necessita de critérios externos, participa da mesma desconfiança em relação à ideia de que se poderia alojar o espírito por dentro. A reacção veio de filósofos como H. Feigl, U. T. Place e J. J. C. Smart790, que defenderam a tese da identidade do espírito e do cérebro, a que chamaram também «materialismo do estado central». Sustentam que os estados mentais são idênticos a estados físicos do cérebro, no sentido em que tipos de propriedades mentais (a dor, os estados conscientes, as crenças, os desejos, etc.) são idênticos a tipos de estados cerebrais. Mas a redução proposta é-o somente em princípio, pois ela não está empiricamente verificada, e a teoria da identidade pressupõe um modelo muito forte da redução científica que requer que as propriedades mentais e as propriedades físicas sejam co-extensivas. Segundo a concepção da redução das teorias de E. Nagel791, isso carece da existência de «leis-pontes» que permitam reduzir as leis de um domínio às de um outro. Todavia, se existissem leis-pontes desse género, seria preciso que toda a propriedade mental «realizada» num organismo tivesse um mesmo substrato físico nos outros organismos. Isso suporia, por exemplo, que a dor fosse realizada pelo mesmo substrato neuronal num humano, num polvo ou numa rã. Mas embora haja algo de comum quando esses diferentes tipos de organismos experimentam a dor, é óbvio que os eventos ocorridos no sistema nervoso de cada um deles não são idênticos, o que é igualmente verdadeiro entre dois indivíduos no seio de uma mesma espécie. É aquilo a que se chama a «realizabilidade múltipla» dos estados mentais, e isso constitui um sério obstáculo à ideia de uma redução espírito-cérebro. Além disso, a identidade tem a sua lógica própria: se entendermos dizer que todo o estado mental consciente (a propriedade de experimentar uma dor, ou a percepção visual, por exemplo) é idêntico a um estado neuronal ou a uma configuração de estádios neuronais, tem de admitir-se que, segundo o princípio de indiscernibilidade dos idênticos, toda a propriedade de propriedade mental é também uma propriedade de um estado neuronal, o que é absurdo: se virmos vermelho, a nossa experiência tem a propriedade de se referir ao vermelho, mas isso não implica que o nosso estado neuronal seja vermelho. Aqui, o materialista pode responder que é preciso distinguir o processo relativo à propriedade de ter uma dor da

sensação qualitativa experimentada quando se tem uma dor, tal como é preciso distinguir a referência das expressões «a estrela da tarde» e «a estrela da manhã» (que é a mesma) do sentido dessas expressões (que é diferente). Mas essa distinção entre o que seria «em si» a dor (um estado cerebral) e a maneira como ela seria sentida é justamente o que é negado pelo dualismo: neste caso, a essência da dor ou de outros estados qualitativos ou fenomenais é o seu modo de aparecer, e há um abismo irredutível entre o cérebro e os qualia conscientes792. Face a tais objecções, o teórico da identidade pode adoptar dois tipos de estratégias. A primeira consiste em negar que a maneira como nos aparecem os eventos mentais e o conteúdo das nossas experiências tenha qualquer importância que seja quanto à sua natureza e aos seus poderes causais. Segundo esta concepção, desde que as bases neuronais da consciência tenham sido estabelecidas, deixará muito simplesmente de haver lugar para continuar a falar de «experiências conscientes», de «percepções», de «lembranças», de «crenças», de «desejos», etc. A versão mais radical desta tese «eliminativista» é defendida por Paul Churchland793, para quem a nossa «psicologia popular» ou ingénua não passa de uma mitologia ou de uma teoria falsa, ao mesmo título da química do flogisto, que será substituída, quando a nossa ciência do cérebro estiver mais avançada, por taxonomias apropriadas em termos de conexões neuronais. Eliminar o mental e reduzi-lo não são a mesma coisa. Reduzir uma teoria a outra, por exemplo a termodinâmica fenomenológica à termodinâmica estatística, é admitir que os fenómenos descritos pela primeira são reais, ao passo que eliminar uma teoria é sustentar que ela é falsa e que os seus termos nada designam. Mas a eliminação da psicologia popular pelas neurociências não se produziu, porque a primeira não é simplesmente uma teoria científica ou protocientífica do espírito, mas um esquema geral de compreensão de nós mesmos, uma «postura intencional» impossível de eliminar794. A segunda estratégia que pode ser adoptada pelo teórico da identidade consiste em enfraquecer a sua tese, renunciando à ideia de que se possam identificar tipos de estados mentais com tipos de estados físicos, para adoptar apenas a tese segundo a qual todo o evento mental particular é idêntico a um evento físico particular ou a outro. É uma consequência directa da realizabilidade múltipla. Admite-se assim que a dor possa ser realizada pela activação de certas fibras neuronais nos humanos, mas que ela se efectue por outros eventos físicos em organismos diferentes. Em lugar de sustentar que propriedades como «dor» ou «crença» sejam co-extensivas com propriedades

físicas, sustenta-se que as propriedades mentais sejam co-extensivas com uma disjunção de ocorrências particulares de propriedades mentais. É aquilo a que se chama a teoria da identidade das ocorrências. Mas sobre ela também existem duas versões. A primeira versão não é mais do que o desenvolvimento da velha ideia aristotélica segundo a qual a alma é a forma do corpo: a natureza de um estado mental não é constituída pelo seu substrato material, mas pela sua função. No seguimento de Turing795, os filósofos funcionalistas contemporâneos, como H. Putnam, D. Lewis e J. Fodor796 exprimiram essa ideia comparando o espírito ao programa informático de um computador que se possa adaptar a múltiplas bases materiais. A metáfora teve sucesso, mas a tese funcionalista tem um alcance mais vasto. Ela expõe que um estado mental é constituído pela sua função, a qual é o papel causal desempenhado por esse estado, constituído pelas suas causas e os seus efeitos característicos. Assim, a dor é o estado mental cujo papel é o de receber entradas sensoriais que detectem os danos sofridos pelo organismo e que tenham por efeitos característicos o evitamento desses danos. A tese pode ser estendida à ideia de função biológica, o que a distingue da metáfora do espírito-computador. Durante cerca de trinta anos, o funcionalismo foi a tese dominante das ciências cognitivas. Ele permitiu o desenvolvimento de um tipo de investigação que se achava no cruzamento das neurociências, da psicologia cognitiva, da inteligência artificial e da robótica. O velho projecto positivista de uma unidade da ciência, que aliaria a física, a biologia, as neurociências e as ciências sociais, viveu então uma segunda juventude. Depressa se constatou porém que a unificação não era fácil. O funcionalismo é um fisicalismo fraco. Ele admite que todo o evento mental é um evento físico, mas não admite que todo o tipo de evento mental seja um evento físico. Não implica portanto o reducionismo. Neste sentido, nem a psicologia nem a biologia, nem as ciências sociais e as «ciências especiais» são redutíveis à física, porque todas elas assentam em generalizações estruturais. Até que ponto pode o funcionalismo fazer abstracção não só dos detalhes físicos, mas também de certas características mentais? Ele parece adaptar-se a estados mentais que desempenhem um papel explícito na acção, como as crenças e os desejos, mas torna-se bem mais problemático quando se trata de estados mentais cuja natureza não seja relacional mas intrínseca, como é o caso das experiências vividas e das propriedades fenomenais. Mesmo que se defina a dor pelo seu papel funcional, ela está sempre associada a uma certa qualidade sentida, um «que efeito isso faz797». Mas um «morto-vivo» que fosse

desprovido de experiências conscientes embora tivesse todas as funções humanas habituais teria verdadeiramente estados mentais798? Um indivíduo colocado numa sala onde recebesse instruções em chinês, que ele não compreenderia mas ligaria a respostas correctas graças a um conjunto de regras que associassem as frases chinesas a outras frases chinesas poderia ser creditado como compreendendo chinês799? Cada uma destas experiências de pensamento permite entender que as malhas da rede funcionalista são demasiado largas. A segunda versão da tese da identidade das ocorrências recusa a própria ideia de que possa haver leis psicológicas. O funcionalismo admite generalizações do tipo: «Sendo de resto todas as coisas iguais, se X tem sede e se X crê ter diante de si um copo de água, ele beberá esse copo.» Mas até que ponto são as coisas «de resto todas iguais»? Se X crê que a água do copo não é potável, ele não cumprirá a acção especificada. Devem pressupor-se todas as espécies de condições de normalidade e de racionalidade. A isso soma-se o facto de que os estados mentais são holísticos, e só se podem atribuir tendo por fundo outras atribuições, o que parece interditar a possibilidade de leis psicológicas estritas, isoláveis da mesma maneira que o podem ser as leis físicas. A negação da existência de leis psicológicas segue a par da negação da teoria da identidade dos tipos, pois, se não há leis mentais, elas também não podem ser reduzidas a estados físicos. É no entanto possível, como mostrou D. Davidson800, defender a seguinte conjunção de teses: 1) não há leis psicológicas nem psicofísicas estritas; 2) os eventos mentais e físicos mantêm entre si relações causais; 3) os eventos mentais ocorrentes são idênticos a eventos físicos. Este «monismo anómalo» é um materialismo. Ele aceita a ideia de que o mental depende do físico, e o princípio dito de «sobreveniência» (segundo o qual o físico é suficiente para o mental, ou que estabelece que toda a diferença mental implica uma diferença física), mas nega que isso implique a redução. Deixa de se ver porém em que é que as propriedades mentais possam ter a mais pequena eficácia causal: elas tornam-se puramente epifenomenais, e o espírito reduz-se ao esquema de interpretação pelo qual se atribuem estados mentais. Para que pode então servir a ideia de que os eventos mentais são eventos cerebrais? Se quisermos manter ao mesmo tempo o materialismo e a tese segundo a qual as propriedades mentais têm um poder causal e explicativo, o cérebro deve poder ser a causa do espírito e não apenas a sua condição suficiente. Estamos visivelmente num impasse: ou a identidade do cérebro e do espírito é demasiado forte quando implica um reducionismo ou um eliminativismo, ou

então ela é demasiado fraca quando o não implica. Algo não funciona no argumento da realizabilidade múltipla do funcionalismo. Porque deveríamos nós supor que a relação entre um espírito e um cérebro é tão lassa quanto a que existe entre um programa informático e a sua realização material num computador? Até onde nos poderemos abstrair da base material? Até que ponto a variação no substrato altera a natureza do tipo de objecto? O que causa problema é a ideia de que os eventos neuronais que instanciam leis funcionais seriam ocorrências disjuntas. Mas se as propriedades funcionais (como a dor) são sobrevenientes às disjunções de eventos neuronais, como se justifica que tais eventos não tenham qualquer relação entre si? Poder-se-á admitir que um gene tenha propriedades causais a um nível superior ou «macro» sem que as configurações moleculares que as sustêm ao nível inferior ou «micro» estejam fortemente unificadas801? J. Kim802 mostrou que se deveria adoptar uma concepção da redução das propriedades mentais às propriedades físicas mais forte que a do funcionalismo. Kim propõe que se atribua uma caracterização funcional a todas as propriedades psicológicas, que especifique o papel causal destas, e que se admita que essas propriedades são realizadas em configurações causais neuronais, elas próprias classificáveis em tipos. Isso autoriza pelo menos reduções de propriedades no seio de cada espécie: se a dor não é a mesma coisa nos polvos e nos mamíferos, ela deve ser fortemente unificada no seio de cada espécie. O fisicalismo deve ser mais robusto do que um fisicalismo funcionalista ou «anómalo». A resistência filosófica à ideia de que uma teoria do espírito se deve reduzir de uma maneira ou de outra a uma teoria do cérebro apoia-se principalmente em dois tipos de argumentos, encontrando-se a fonte de ambos em Wittgenstein. O primeiro é avançado por filósofos críticos das ciências cognitivas803. «Que o cérebro, dizem-nos eles, seja o órgão do pensamento, o substrato da consciência, das crenças e das emoções, é uma coisa sobre a qual poderemos concordar. Não é – para parafrasear Aristóteles acerca da alma804 – o cérebro que pensa, mas o homem, por meio do seu cérebro.» Do mesmo modo, os filósofos que criticam as explicações dos fenómenos psicológicos das ciências cognitivas gostam de denunciar o «sofisma do homúnculo»: não é o olho que vê, não é um homúnculo em nós que calcula, compreende ou infere, mas o indivíduo inteiro. Este argumento é um non sequitur: o facto, inegável, de que os critérios (os nossos conceitos, a «gramática») pelos quais reconhecemos o pensamento, a consciência, ou a visão diferem daqueles pelos quais reconhecemos os mecanismos cerebrais, não implica que o pensamento

nada tenha a ver com os mecanismos em questão. O facto de chamarmos «sonho» ao tipo de acontecimentos de que temos consciência durante o nosso sono e do qual nos recordamos ao despertar não implica que a natureza dos sonhos possa ser constituída por processos cerebrais de que não temos consciência. O segundo tipo de argumento provém dos filósofos que defendem uma concepção «externalista» da intencionalidade e dos conteúdos mentais: o que nós pensamos ou percebemos é determinado em larga medida pela natureza do ambiente a que pertencemos, e um indivíduo que fosse uma nossa réplica física mas que vivesse num ambiente diferente do nosso não teria os mesmos conteúdos mentais. Há diversas variedades de externalismo, segundo se «estenda» o espírito à acção e às relações com o ambiente físico e biológico, ou às relações sociais e linguísticas. De acordo com o externalismo social, que nisso vai ao encontro da crítica de Comte contra a assimilação do espírito ao cérebro, o espírito não está dentro, mas fora, nas suas obras, nas instituições humanas. Trata-se de saber se se entende manter uma concepção causal do espírito. Se as crenças, desejos e outros estados mentais – incluindo os estados conscientes ou qualia – desempenham presumivelmente um papel causal na acção, é algo que o externalismo dos conteúdos mentais não permite explicar, pois os processos causais devem ser locais, ou seja estar situados onde se acha a pilotagem do sistema nervoso, e não distais ou exteriores ao organismo. Ele viola portanto o princípio da sobreveniência do mental em relação ao físico. Quando estou a apanhar sol, é certamente uma causa exterior ao meu organismo que age, mas a causa está à superfície da minha pele. O externalismo tem razão na medida em que o espírito é em grande medida constituído por relações externas (sociais, linguísticas, institucionais, históricas) com a mera caixa craniana. Mas erra ao confundir essa constituição com a causalidade exercida pelos estados mentais e pelos estados cerebrais, se os primeiros são sobrevenientes aos segundos. Se quisermos manter o lugar do espírito na natureza, o cérebro deve ter um poder causal. Ele não será porventura o único piloto do navio do espírito, mas é no navio dele que estamos embarcados. As técnicas da imagística cerebral e a compreensão das bases neuronais do espírito alteraram a maneira como compreendemos questões como a da identidade humana. Parece longínqua a época em que se perguntava se o homem tem uma essência ou se é constituído pela cultura e pela história. Já ninguém duvida do facto de que a compreensão da relação entre o inato e o

adquirido passa pela compreensão das bases genéticas da natureza humana, e da questão de saber como evoluíram as estruturas do cérebro. Por mais distantes que pareçam as discussões sobre a doença mental e a psicopatologia que opuseram os defensores da autonomia da psychê e os «organicistas». Não que os segundos tenham ganho, mas o facto é que a questão da liberdade e da pessoa passa pela compreensão do grau de plasticidade das estruturas neuronais e da sua relação com o ambiente. Aquilo a que ainda há um século se chamava o problema filosófico «do conhecimento de outrem» já não pode ser colocado sem levar em conta o que sabemos das estruturas da «teoria do espírito», que a nossa espécie partilha em parte com os primatas. Grande número das nossas doenças são doenças cerebrais: priões, Alzheimer. Isso, a meu ver, em nada altera a natureza dos problemas metafísicos clássicos, como o da liberdade e do determinismo, que não estão de modo algum resolvidos; mas o cérebro tornouse o órgão metafísico por excelência. PASCAL ENGEL 786 Cf. M. Jeannerod, Le Cerveau-machine. Physiologie de la volonté, Paris, Fayard, «Le Temps des sciences», 1983. 787 C. Hempel, «L’analyse logique de la psychologie», Journal de Synthèse, 10, 1935, republicado em D. Fisette e P. Poirier (ed.), Philosophie de l’esprit, Paris, Vrin, «Textes clés», 2002, vol. 1. 788 G. Ryle, The Concept of Mind, Londres, Hutchinson’s University Library, 1949. 789 L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, Oxford, Blackwell, 1953. 790 U. T. Place, «Is Consciousness a Brain-Process?», British Journal of Psychology, 71, 1956; J. Smart, Philosophy and Scientific Realism, Londres, Routledge, 1963. 791 E. Nagel, The Structure of Science, Londres, Routledge, 1960. 792 S. Kripke, Naming and Necessity, Oxford, Blackwell, 1980. 793 P. Churchland, Matter and Consciousness, Oxford, Oxford University Press, 1984. 794 D. Denett, Consciousness Explained, Nova Iorque, Littlebrown, 1991. 795 A. Turing, «Computing Machinery and Intelligence», Mind, 1950. 796 H. Putnam, «The nature of mental States», 1967, in D. Fisette e P. Poirier, op. cit.; Representation and Reality, Cambridge, MIT Press; D. Lewis, «How to define theoretical terms», Philosophical Papers, Oxford, Oxford University Press, 1992; J. Fodor, The Language of Thought, Cambridge (Massachussetts), MIT Press, 1975.

797 T. Nagel, Mortal Questions, Cambridge, Cambridge University Press, 1979. 798 D. Chalmers, The Conscious Mind, Oxford, Oxford University Press, 1996. 799 J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind, Cambridge, MIT Press, 1992. 800 D. Davidson, Essays on Actions and Events, Oxford, Oxford University Press, 1980. 801 E. Sober, «The Multiple Realizability Argument Against Reductionism», Philosophy of Science, 66, 1999, p. 542-564. 802 J. Kim, Mind in a Physical World, Cambridge, MIT Press, 1998. 803 V. Descombes, La Denrée mentale, Paris, Minuit, 1995. 804 Da Alma, I, 4.

As descobertas filosóficas negativas da física contemporânea

O impacto filosófico da física não poderia ser mais bem pensado do que na perspectiva enunciada por Merleau-Ponty do seguinte modo: O sentido da física é fazer-nos fazer «descobertas filosóficas negativas» ao mostrar que certas afirmações que pretendem uma validade filosófica não a têm na verdade […]. A física destrói certos preconceitos do pensamento filosófico e do pensamento não filosófico sem por isso ser uma filosofia. Ela limita-se a inventar expedientes para suprir a carência dos conceitos tradicionais, mas não estabelece conceitos de direito. Ela incita a filosofia a pensar conceitos que sejam válidos na situação que é a sua805.

De facto, muitas das aquisições da física contemporânea obrigam a questionar certas formas gerais das nossas representações do mundo, mesmo nos seus enunciados filosóficos elaborados. Decerto que, desde o início da física no sentido moderno do termo, ou seja com a ruptura galilaica do início do século XVII, e depois com os seus desenvolvimentos nos séculos XVIII e XIX, muitas das ideias recebidas que estruturavam (e muitas vezes estruturam ainda…) as nossas concepções se viram de novo postas em causa: a mobilidade da Terra, a existência do vazio, a homogeneidade dos fenómenos terrestres e celestes, a pregnância de forças indetectáveis pelos nossos sentidos (electricidade, magnetismo) – outras tantas descobertas que impõem um considerável distanciamento entre as nossas percepções e as nossas concepções. Mas, a partir do fim do século XX, as ciências físicas iriam fazer as categorias gerais do pensamento sofrerem abalos ainda mais consideráveis – ou, para o dizer de modo positivo, iriam permitir ajustar e afinar essas categorias. A profundidade dessas mutações pode ser avaliada pelo tempo que foi preciso – perto de um século! – para as assimilar além da sua mera formulação técnica pelos especialistas. Repensar as categorias tradicionais da física

A temporalidade e a espacialidade A relatividade. Se Einstein, no início do século XX, não inventa de modo algum o princípio de relatividade do movimento (uniforme), já implicitamente presente em Galileu, três séculos antes, e formalizado pela mecânica newtoniana, ele mostra a necessidade de lhe modificar a expressão articulando de maneira profunda e simétrica o espaço e o tempo. Não que o conceito de espaço-tempo, senão o próprio termo, seja novo. Desde que o tempo começa a ser concebido como «o número do movimento» (Aristóteles), que ele se intrica com o espaço: a distância percorrida por um móbil depende do sistema de referência por que ela seja medida (o trajecto por TGV de Paris a Marselha é de 800 quilómetros de comprimento avaliados em relação ao terreno, e de 0 quilómetros em relação ao comboio!). Mas, doravante, o enunciado temporal homólogo também é verdadeiro. A duração de um fenómeno já não é absoluta e universal, ela depende igualmente do referencial: o tempo necessário para a viagem não é o mesmo segundo seja medido pelos relógios das gares ou pelo relógio de pulso do viajante. Essa novidade radical só é perceptível para velocidades muito grandes, bastantes superiores às das práticas humanas correntes, o que explica a sua descoberta tardia e o seu carácter contraintuitivo. Em consequência, espacialidade e temporalidade não podem mais ser limitadas a formas a priori da intuição pura (não empírica), tal como queria Kant: essas formas continuam a ser demasiado vagas e demasiado imprecisas para justificarem a essência das idealidades que as devem exprimir, e só uma investigação empírica lhes poderá dar um conteúdo rigoroso. Um século de desenvolvimento das novas noções de espaço e de tempo mostrou a solidez e a coerência destas. Os paradoxos que assombravam as primeiras exposições da teoria foram domesticados; fosse por eles terem dependido de imperfeitos e provisórios enunciados (não, não há «dilatação dos tempos» nem «contracções das lonjuras», mas somente efeitos observacionais de perspectiva, ou melhor de paralaxe, generalizados); fosse por a experiência ter confirmado a realidade de fenómenos inesperados dos quais, subitamente, se pôde fazer a assimilação intelectual (como a do envelhecimento diferencial na famosa experiência dos gémeos separados e reunidos após trajectos diferentes). Hoje em dia é forçoso pensar-se que a teoria da relatividade põe em evidência uma estrutura espaciotemporal universal e objectiva do real. Assim, no fundo esta teoria está muito mal nomeada, na medida em que os seus conceitos essenciais são os absolutos que ela separa, as suas invariantes, independentes de todo o sistema

de referência arbitrária. Ela é para o espaço-tempo o que a geometria é para o espaço, e seria certamente mais bem compreendida sob a designação de «cronogeometria». Mas o papel desta teoria estende-se muito para além dos seus meros aspectos espaciotemporais, ou seja da descrição do movimento, e afecta em profundidade a nossa compreensão da matéria. A estruturação da cena do mundo que ela impõe constrange muito naturalmente os actores que nele se movem e interagem. Por outras palavras, as propriedades dos objectos materiais ganham no quadro einsteiniano aspectos que são inéditos no quadro galilaico-newtoniano. As modificações das noções de espaço e de tempo implicam a alteração da noção de velocidade, que, por seu turno, exige uma refundação de noções como a de energia, por exemplo. É assim que surge a famosa equivalência einsteiniana da massa e da energia (E=mc2). Do mesmo modo, a inércia de um corpo (a sua capacidade de resistir à transformação do seu estado de movimento) depende doravante da sua velocidade e aumenta indefinidamente quando esta tende para uma certa velocidade-limite – o que implica efectivamente a impossibilidade de a ultrapassar, em todo o caso para um corpo maciço. Mas, novidade ainda mais estranha, a teoria permite a existência de corpos de massa nula, que se deslocam portanto sempre à velocidade-limite c – que é porventura a velocidade da luz (caso os fotões tenham efectivamente massa nula), mas desempenha um papel bem mais geral e mais profundo, enquanto constante estrutural do espaço-tempo. A cosmologia. Observemos para começar que a cosmologia moderna, ao considerar o universo na sua totalidade única como um objecto tratável pelos métodos da física, abre fissuras num preconceito epistemológico comum que defendia que só era possível o tratamento científico de objectos genéricos. As propriedades do universo em larga escala são regidas pelos efeitos da gravitação, forçosamente de longo alcance. Einstein desenvolveu sob a designação (ainda que algo enganosa) de «relatividade geral» uma teoria da gravitação conforme à sua nova cronogeometria. A universalidade da gravitação permite uma descrição puramente geométrica da sua acção, nos termos de um espaço-tempo com propriedades estruturais variáveis de ponto em ponto. A força newtoniana é aí substituída pelo efeito de uma curvatura espaciotemporal, o que modifica profundamente a própria concepção das interacções entre os corpos celestes. Duas perspectivas filosóficas essenciais aparecem nesta nova descrição. Por

um lado, ao nível da espacialidade, torna-se possível conceber um Universo finito, mas sem limites, o que dissipa ipso facto a velha aporia grega sobre o destino da flecha atirada para os confins do universo. No entanto, essa possibilidade não parece corresponder aos dados observacionais, que privilegiam um universo infinito. Por outro lado, o universo, na maior parte dos modelos compatíveis com tais dados, vê-se dotado de uma história evolutiva. Ele está em expansão, desenvolvendo-se a partir de um estado primordial de muito alta densidade e temperatura («Big Bang»), e vê até ser-lhe atribuída uma idade definida, digamos de 13 mil milhões de anos. Assim reaparece no cerne da ciência contemporânea uma velha questão metafísica, a da própria origem do universo. Mas essa «origem» temporal não pode aqui ser pensada ao modo de um começo, e o seu valor numérico finito é perfeitamente compatível com um estatuto conceptual que releve da infinitude, o que exclui toda a interpretação abusiva de tipo criacionista. A prazo, a teoria cosmológica-padrão deve, na fase inicial da história do universo, ser substituída por uma teoria quântica, ainda em gestação. A substancialidade A física clássica assentava na noção de corpúsculo, ou ponto material, entidade de base da mecânica newtoniana, essência abstracta da ideia de corpúsculo. Ela acreditava poder considerar toda a substância como montagem de um conjunto de tais corpúsculos, e formalizar assim um atomismo consequente. Notemos a evidente idealidade de uma tal noção, e o seu carácter no mínimo pouco intuitivo: como atribuir uma propriedade física como a massa a um objecto pontual, ou seja sem extensão espacial? De facto, a fecundidade de uma tal abstracção decorre de ela levar ao extremo na ordem do pensamento percepções visuais directas como as de um grão de pó ou de um planeta longínquo. Restava porém um problema fundamental, levantado por Descartes e bem percebido pelo próprio Newton (era a este ponto que se referia o seu famoso Hypotheses non fingo), a saber a dificuldade de compreender a existência de interacções à distância entre esses corpúsculos, através do vazio e sem agente intermediário. Foi para resolver essa aporia que emergiu no último terço do século XIX, após longos e laboriosos desenvolvimentos, a noção de campo, primeiramente no seio do electromagnetismo maxwelliano. Não se sublinhou suficientemente o carácter radical da mudança assim introduzida na ontologia da física. O campo havia inicialmente sido concebido como uma descrição fenomenológica de um

estado de um meio subjacente, suporte da propagação das ondas mediadoras das interacções (a água para as ondas, o ar para o som). A renúncia a um hipotético éter que desempenharia tal papel para a luz, devido às suas propriedades demasiado problemáticas, privara o campo electromagnético de toda a interpretação em termos mecânicos e, ao mesmo tempo, promovera-o a uma existência autónoma. Surgia assim um ser físico dotado de um estatuto ontológico de pleno exercício, mas com características radicalmente distintas das das entidades corpusculares clássicas: não localizado numa porção prédefinida do espaço e sem forma própria, desprovido de uma massa substancial específica embora sendo portador de energia, caracterizado por uma propagação simultaneamente global e diferencial. O campo, embora desempenhasse maravilhosamente o seu papel de vector das interacções e suprimisse a acção à distância e as suas dificuldades insuperáveis, exigia a concepção de um modo inédito de existência material. Não se tratava de menos do que renunciar à ideia das necessárias e naturais qualidades primeiras da matéria no sentido de Descartes e de Locke: um campo não tem extensão, nem solidez, nem figura, nem mobilidade, para retomar o rol lockeano dessas qualidades. A noção de campo obriga afinal a renunciar ao ideal cartesiano de uma necessária e suficiente descrição «por figuras e movimentos». Mas antes mesmo que esta inovação radical pudesse ser dominada, ela iria ser suplantada e amplificada pelo desenvolvimento da teoria quântica a partir do início do século XX. Onde a física clássica concluía por uma dualidade ontológica dos seus objectos ideais, partículas ou campos, a quântica demonstrava um monismo fundamental, não conhecendo senão um único tipo de objecto, os «quantões». Decerto que estes, por vezes, e em todo o caso aquando das suas primeiras revelações observacionais, se assemelham seja aos corpúsculos clássicos, seja às ondas. Mas não se trata senão de aparências aproximativas (e mutuamente exclusivas), sob as quais se acha uma essência única. A natureza dos quantões leva ao seu auge o conflito com a intuição comum, como é bem mostrado pelo seu posicionamento em relação à antinomia fundamental do contínuo e do discreto. Essa antinomia tem dois aspectos, segundo se refira à espacialidade ou à quantidade. Se esses aspectos são confundidos na física clássica tanto para os corpúsculos (discretos quanto às suas posições espaciais e à sua enumeração) quanto para as ondas (contínuas quanto à sua extensão espacial e à sua amplitude), eles distinguem-se para os quantões, discretos e enumeráveis em quantidade (o que justifica o seu nome), contínuos e deslocalizados quanto à sua espacialidade. A natureza quântica do

mundo material requer assim modos de inteligibilidade originais. A mutação einsteiniana das propriedades materiais dos objectos físicos vem ainda acrescentar-se à mudança das nossas concepções da substancialidade. Com efeito, a equivalência massa-energia mina a lei clássica de conservação da matéria, identificada desde Lavoisier com a da massa. Numa interacção entre dois quantões, por exemplo, uma parte da sua energia cinética pode transmutarse em energia de massa, permitindo o aparecimento de novos quantões – e vice-versa. Compreende-se que fenómenos como o da transformação de um par electrão-positrão em fotões (de massa nula!), seja e+ + e– → γ + γ, ou a criação de um tal par seja γ + X → e+ + e– + X, tenham podido ser descritos como uma «aniquilação» ou uma «criação» de matéria e interpretados como um golpe lançado a toda a concepção materialista da natureza. Mas com o recuo do tempo, já não se deve ler nisso mais do que a necessidade de uma refundação, certamente profunda, das nossas concepções da própria matéria. É um enunciado mais geral, o da conservação da energia sob as suas diversas formas, incluindo a massa, que doravante assegura a permanência de uma materialidade com conteúdo renovado. A elementaridade Desde o atomismo filosófico dos materialistas da Antiguidade até à física e à química atomistas do século XIX, uma mesma ideia prevalece: a de uma composição dos corpos muito diversos da natureza a partir de um pequeno número de elementos fundamentais, estáveis e inalteráveis. Sucede ainda que a natureza desses constituintes considerados como elementares deverá ter sido modificada quando, no início do século XX, a descoberta do núcleo atómico mostrou que os átomos, longe de serem indivisíveis como pretendia a sua designação, eram de facto compostos por electrões, fotões e nucleões, estes últimos revelando cinquenta anos mais tarde serem eles próprios constituídos por quarks e gluões, mas foi a própria noção de elementaridade que se achou modificada. Três ideias se impuseram a este respeito: – antes de mais, a noção de estabilidade, a priori consubstancial à de elementaridade, está… desestabilizada. A classificação dos quantões em famílias homogéneas obriga a pôr no mesmo plano alguns objectos estáveis e outros instáveis, submetidos à desintegração quando isolados. É o caso dos nucleões, uma vez que o protão é estável, ao passo que o neutrão se

desintegra espontaneamente ao fim de cerca de um quarto de hora; – seguidamente, a possibilidade de dividir um objecto composto nos seus componentes, intuitivamente necessária à própria noção de composição, torna a ser posta em causa ao nível dos quarks: na medida em que as forças que ligam essas entidades no seio dos nucleões crescem indefinidamente com a sua distância mútua, é impossível partir um nucleão e isolar os quarks, que, contudo, o constituem e lhe explicam as propriedades; – enfim, a ideia usual de elementaridade requer uma permanência estática dos objectos aos quais ela se aplica. Já não há nada disso no mundo quântico, onde um electrão, por exemplo, cuja elementaridade se admite, só é ele próprio em virtude de uma dinâmica interna: interagindo em permanência com os fotões que emite e absorve, ele é, por assim dizer, composto de si mesmo e desses fotões, e as suas propriedades são profundamente afectadas por essa interacção intrínseca. Há aí um profundo questionamento do reducionismo ontológico que constituía um dos objectivos epistemológicos da física clássica. Já não é possível representar-se o real como estruturado por uma sucessão de níveis unilateralmente encadeados, sendo cada um deles integralmente determinado, em princípio pelo menos, por aquele que lhe é subjacente. Doravante é preciso aceitar interacções «descendentes», pelas quais um sistema composto age sobre os seus componentes. O exemplo mais simples é aqui o do neutrão, espontaneamente e intrinsecamente instável em estado isolado, mas que pode ser estabilizado de maneira absoluta no seio de um núcleo atómico, dada a sua pertença colectiva. Pode ver-se neste abalo do reducionismo ingénuo a pertinência ao nível porventura mais fundamental da ideia de complexidade, muito frequentemente vaga mas não obstante indispensável, que as ciências da vida ou da informação a partir de agora convocam. A individualidade O atomismo da física clássica acomodava-se a uma concepção individual dos componentes da matéria, segundo a qual, em conformidade com a intuição comum dos objectos vulgares, os diferentes átomos que constituem um corpo podem ser separadamente identificados e distinguidos: mesmo que dois átomos de oxigénio do ar, por exemplo, tenham propriedades intrínsecas (massa, energia, estrutura, etc.) idênticas, diferenciam-se pelas suas posições espaciais. Tal distinção é porém insuficiente do ponto de vista do «princípio dos indiscerníveis» de Leibniz na sua versão forte, que exige a dois indivíduos

distintos diferenças qualitativas essenciais; segundo o exemplo clássico, não pode haver duas folhas idênticas no parque de Charlottenburg, contrariamente ao caso dos nossos dois átomos. Era por isso aliás que Leibniz recusava o atomismo clássico. A teoria quântica permite aqui deslocar o problema. Na descrição que ela oferece de um sistema composto por quantões idênticos, já não é possível atribuir a cada um dos constituintes qualquer propriedade individual que seja, mesmo que fosse a sua posição. A perfeita simetria do estado global do sistema em relação a toda a permutação dos seus constituintes afecta a cada um a mesma propensão para ocupar todos os sítios disponíveis. Por outras palavras, o estado colectivo, mesmo que seja definido por um conjunto de estados individuais, não pode ser descrito atribuindo a cada constituinte um desses estados. Essa simetrização é a prazo de uma extrema importância concreta, uma vez que sustém as estatísticas quânticas (de Fermi-Dirac e de BoseEinstein), as únicas a poderem explicar propriedades essenciais do mundo macroscópico, como a impenetrabilidade dos sólidos ou a coerência da radiação laser. Mas, devido a isso, a individuação dos quantões no seio de um conjunto perde toda a pertinência: pode certamente afirmar-se que há oito electrões num átomo de oxigénio, mas em princípio é impossível numerá-los e identificá-los separadamente. A sua enumeração releva da mera cardinalidade, excluindo a ordinalidade. A negação leibniziana dos indiscerníveis é assim refutada, ao preço porém de um considerável enfraquecimento da noção de individualidade. De uma maneira mais geral (para além do caso dos quantões idênticos), a teoria quântica não permite descrever o estado de um sistema composto de subsistemas pela simples conjunção dos estados destes. Melhor ainda, conhecendo o estado do sistema composto, não é possível atribuir separadamente a cada um dos subsistemas um estado particular determinado – o que, claramente, deixa mal a individuação desses subsistemas. Esta característica essencial da teoria quântica, que está no cerne do seu formalismo desde a década de 1920, e ainda que claramente detectada por Schrödinger em 1935, permaneceu durante muito tempo implícita. Conhecida pelo nome de não-separabilidade (fala-se também de intricação, mas teria sido sem dúvida preferível um neologismo, por exemplo «implexidade»), ela está hoje em dia no cerne de uma compreensão aprofundada da teoria quântica, mas igualmente de múltiplos desenvolvimentos práticos (informática quântica).

A causalidade Uma consequência inesperada da cronogeometria einsteiniana é a de enfraquecer a extensão espaciotemporal das relações de causalidade. Nem na concepção comum nem na ciência clássica existindo nenhuma limitação quanto à velocidade de propagação de uma influência qualquer que seja, um evento pode ser causa de qualquer outro que lhe seja posterior, e efeito de qualquer outro que lhe seja anterior. Mas, uma vez que existe uma velocidade-limite que nenhuma influência causal poderia superar, tal não é já o caso. Por exemplo, distando a Terra do Sol oito minutos-luz, nenhum evento que se produza no Sol poderia afectar a Terra antes de uma demora de oito minutos. O conjunto das causas (resp. efeitos) possíveis de um evento não ocupa senão uma zona espacial limitada do seu passado (resp. futuro). Mas a física clássica, pelo menos no seu domínio de jurisdição, tinha questionado, sem que isso haja sido muitas vezes notado, a própria noção de causa, ao substituir a concepção de uma causalidade múltipla e qualitativa que remontava a Aristóteles, por um determinismo quantitativo único. De facto, as leis da mecânica determinam de maneira absoluta o estado de um sistema a todo o instante em função desse estado num instante dado. Segundo os célebres termos de Laplace, «devemos encarar o estado presente [de um sistema físico] como o efeito do seu estado anterior e como a causa daquele que se lhe seguirá». Mas não é certo que o termo «causa» guarde aqui a sua legitimidade, na medida em que a distinção de natureza entre efeito e causa é suprimida pela homogeneidade da série temporal. Ainda assim, a teoria quântica pareceu trazer um golpe fatal a esse determinismo. Contrariamente ao caso de uma partícula clássica, a posição e a velocidade de um quantão não têm em geral determinação numérica única (o que é expresso pelas famosas «relações de incerteza de Heisenberg»). Elas não podem pois ser numericamente previstas de maneira absoluta no decurso do tempo. A teoria quântica substitui então às atribuições deterministas da física clássica avaliações probabilistas. Mas este enfraquecimento do determinismo deve-se ao facto de procurarmos para um sistema quântico uma previsão em termos clássicos, a de valores numéricos determinados para as grandezas físicas. Se o sistema é caracterizado em termos intrinsecamente quânticos, pelo seu «vector de estado» (ou «função de onda»), ele evolui segundo um modo perfeitamente determinista, pelo menos enquanto esteja isolado. Em compensação, a sua evolução só pode ser descrita de maneira aleatória desde que o sistema interaja com o exterior, com um aparelho de medida por

exemplo, ou mais geralmente com um ambiente macroscópico descrito de maneira clássica. Esta ideia (conhecida pelo nome de «descoerência»), desenvolvida muito tardiamente (a partir dos anos 1980), atenuou amplamente as dificuldades conceptuais outrora ligadas ao aparente indeterminismo da teoria quântica, sem as resolver definitivamente. Resta porém compreender melhor quando e como um objecto macroscópico, de constituição fundamentalmente quântica, pode relevar, pelo menos aproximadamente, das teorias clássicas, e esclarecer assim a relação conflitual entre dois determinismos heterogéneos, clássico e quântico. Por uma ironia singular, pouco antes de ser retomada e adoptada pela teoria quântica, a questão do determinismo havia ressurgido no próprio seio da física clássica. A retoma na década de 1970 de trabalhos empreendidos em particular por Poincaré no início do século XX, mostrava que a mecânica newtoniana, salvo casos muito particulares de sistemas elementares (como o pêndulo simples), não permitia, de facto, efectivas previsões deterministas. É que a maioria dos sistemas mecânicos exibem, na sua evolução temporal, uma extrema «sensibilidade às condições iniciais»: uma ligeiríssima diferença na caracterização do estado inicial provoca afastamentos exponencialmente crescentes quanto à determinação do estado nos instantes ulteriores. Isto faz-se acompanhar por comportamentos temporais extremamente irregulares, ilustrando aquilo que foi baptizado com o oximoro «caos determinista». Se é esse o caso para sistemas mecânicos ainda que simples, a mesma situação vale a fortiori de maneira geral para sistemas complexos, como a atmosfera – daí as limitações intrínsecas da previsão meteorológica ou climática. Num sentido mais lato, são ipso facto invalidadas todas as considerações banais sobre o pretenso paradoxo que opõe determinismo físico e livre-arbítrio humano. A cientificidade Um dos efeitos maiores do desenvolvimento da física no século XX é porventura o de ter posto em causa, para além das categorias gerais do pensamento estudadas acima, a própria noção de «ciência». Na base dos desenvolvimentos da física clássica, que supostamente oferecia o cânone mais acabado de cientificidade, concordava-se em pensar que uma ciência digna desse nome deveria produzir conhecimentos experimentalmente reprodutíveis, socialmente neutros e conceptualmente inteligíveis. Ora estes três critérios foram no mínimo abalados pela transformação das práticas da física moderna. A sua organização colectiva, a sua dimensão económica e as suas implicações

sociais colocam difíceis questões quanto à validade dos critérios clássicos de cientificidade, tanto nos sectores da «ciência pesada» (física nuclear e subnuclear, astrofísica espacial) como nos domínios directamente ligados à produção industrial (electrónica, física dos materiais). O aperfeiçoamento da arma nuclear durante a Segunda Guerra Mundial (Projecto Manhattan) assinalou a passagem de uma ciência fundamental relativamente autónoma para uma tecnociência intimamente ligada às exigências sociais, militares e industriais em primeiro lugar. Esta transformação fez-se acompanhar por uma mudança de escala da investigação, quanto ao seu financiamento (vários milhares de milhões de euros para um grande acelerador ou um telescópio), às suas instituições (equipas de várias centenas de investigadores), às suas escalas de tempo (vários anos). Tal situação levou a privilegiar as experiências mais susceptíveis de darem resultado, e ao mesmo tempo a evitar tanto quanto possível a sua replicação. São portanto os projectos mais convencionais que são postos em funcionamento, em detrimento das perspectivas mais aventurosas. No plano teórico, o uso cada vez mais desenvolvido dos meios de cálculo informático e das técnicas de simulação digital levou a instaurar formalismos matemáticos de uma considerável sofisticação que se desenvolvem sem que o seu domínio conceptual esteja bem garantido. Os conhecimentos são portanto validados mais pela constatação empírica da sua adequação do que pela sua inteligibilidade racional. Não nos deverá espantar então que as inovações da ciência física aqui exploradas datem no essencial da primeira metade do século XX. Será este crescente afastamento do ideal racional da ciência irreversível? O futuro o dirá. Devemos agora interrogar-nos sobre a maneira como esta transformação das categorias fundamentais da física encontrou eco entre os filósofos. Tirar as consequências filosóficas de uma alteração conceptual Que a física faça descobertas filosóficas negativas não implica decerto, aos olhos de Merleau-Ponty, que as negações (do espaço e do tempo absolutos, do princípio de permanência, do determinismo clássico, etc.) possam ser simplesmente convertidas em afirmações para oferecer, em substituição do senso comum, uma ontologia pronta a usar. «A ciência não traz ontologia, mesmo sob forma negativa»: aqueles que, filósofos ou físicos, pensem o contrário, correm o grande risco de se contentarem com uma «ontologia

ingénua», ou, para falar desta vez como Bergson, de manterem uma «metafísica inconsciente». É por isso que, uma vez desviadas do caminho as categorias tradicionais (espaço, tempo, substância, individualidade, causalidade), resta produzir uma «elaboração ontológica» das teorias, a única capaz, senão de reconciliar a ciência e o senso comum, pelo menos de conceder novos quadros conceptuais à ideia de um mundo comum em que a actividade racional do sábio possa coexistir com a evidência do percebido. Russell, que deplorava a tendência dos filósofos para interpretarem sistematicamente a teoria de Einstein nos termos da sua própria metafísica, não estava tão distante desse ideal quando exortava os seus colegas a avaliarem a revolução conceptual introduzida pela relatividade, para dela extraírem as suas derradeiras consequências. É que ela decorre fundamentalmente, como explica Whitehead, de um novo sentido da «natureza», em relação ao qual as querelas sobre a questão de saber se a relatividade ou a física quântica se inclinam mais para o lado do realismo ou do idealismo (em razão do papel fundamental que neles parece desempenhar a relatividade dos «pontos de vista», os «observadores», «o acto de aferição») acabam por parecer secundárias, senão puramente verbais. Os avanços da física reanimam assim o projecto de uma metafísica da natureza. Existem porém outras maneiras de encarar a ligação entre filosofia e ciência. O positivismo lógico (Schlick, Carnap, Reichenbach) e o neokantismo (Cassirer, Brunschvicg) privilegiaram, em sentidos diferentes, uma abordagem epistemológica. Do ponto de vista de uma teoria do conhecimento, o trabalho de explicitação dos métodos e dos quadros conceptuais da física, e mais especialmente da teoria da relatividade e da teoria quântica, deve então permitir precisar certas questões que se prendem com os princípios do conhecimento científico (estatuto das leis da natureza, lugares relativos do a priori e da experiência, natureza da explicação e da objectividade físicas, interpretação das probabilidades, etc.) para seguidamente tirar delas as consequências filosóficas mais gerais, no quadro de um programa de refundação da própria filosofia a partir do modelo fornecido pela análise lógica dos conceitos científicos (Círculo de Viena), ou ainda do ponto de vista de uma dialéctica da razão, contemporânea e tributária dos avanços da ciência (Bachelard). Uma elaboração ontológica das descobertas científicas A «confrontação» com a teoria da relatividade, tentada por Bergson na sua obra Duração e Simultaneidade (1922), tem um valor exemplar: a preocupação

de tornar a dar uma «figura» ao universo, ou de pelo menos tornar pensável a interconexão dos seres e das durações, leva o filósofo a criticar a ontologia do tempo pulverizado da relatividade, e, mais positivamente, a defender a ideia de uma convergência entre a ideia comum do tempo universal e os princípios filosóficos subjacentes à teoria de Einstein. À custa, é certo, de algumas contorções, e mesmo de algumas distorções (nomeadamente sobre o caso do célebre paradoxo dito «dos gémeos de Langevin»). A ontologia do «tempo real», único e universal, não é decerto dada tal e qual na teoria da relatividade – nem tão-pouco, atentemos nisso, na ideia newtoniana do tempo absoluto, à qual não se pensa regressar. Bergson insiste no facto de que a relatividade apela a um esforço de invenção filosófica especial: trata-se na ocorrência de distinguir um novo modo de articulação das durações locais no seio da totalidade do universo material – um modo de articulação que leva em conta descobertas relativistas sem rasgar o tecido conjuntivo da experiência. O problema é portanto de natureza essencialmente cosmológica. A linha argumentativa de Bergson equivale a mostrar que os tempos múltiplos ou «abrandados» são tempos «fictícios», meros auxiliares matemáticos destinados a exprimir um efeito de perspectiva cinética; enquanto múltiplos e abrandados, eles não podem ser «vividos» nem tornar-se objecto de nenhuma medida directa, embora sempre se possa recompô-los na base de leituras de relógios, conferindo-lhes por uma espécie de transfusão de realidade o carácter de unidade do fluxo temporal naturalmente associada à ideia de «tempo próprio». Quanto ao espaço-tempo, ele próprio não passaria de uma cómoda construção matemática, e só mantendo a ilusão de poder ocupar simultaneamente todos os pontos de vista sem se situar em parte alguma é que o físico seria levado a conceder um valor ontológico à sua estrutura geométrica806: neste ponto Bergson alinha pela orientação instrumentalista de Poincaré, embora anunciando certas análises de Merleau-Ponty. A estratégia que ele põe em funcionamento para criticar as extrapolações metafísicas abusivas dos sábios e dos vulgarizadores aproxima-o aliás, por vezes estranhamente, de certas posições operacionalistas defendidas alguns anos mais tarde por um físico como Bridgman, para o qual o significado de um conceito não é mais do que o conjunto das operações pelas quais se determina o seu objecto. Na mesma época, Whitehead elaborava um projecto metafísico comparável nas suas intenções gerais, ainda que bem diferente pelo seu método e pela natureza dos utensílios mobilizados. Em Principles of Natural Knowledge (1919) e The Concept of Nature (1920), ele mostrava de que maneira os

quadros matemáticos da relatividade podiam ser abstraídos do mundo da percepção (é o método dito da «abstracção extensiva», cuja ideia já havia sido indicada por Russell alguns anos antes). No seguimento, ele criticava a concepção substancialista de um espaço-tempo que predominasse sobre as relações efectivas exibidas nos processos físicos. Acima de tudo, propunha uma versão da teoria da relatividade que se queria concorrente da de Einstein (The Principle of Relativity, 1922). O exame filosófico da física quântica confirma Whitehead quanto à ideia de que é requerida uma refundação da ontologia tradicional: a interconexão dos fenómenos da natureza não pode mais ser pensada nos termos de uma interacção universal entre substâncias (corpúsculos, partículas); ela adquire um carácter ao mesmo tempo mais formal e mais concreto quando se substitui a uma ontologia das substâncias e das propriedades uma ontologia dos eventos e das relações (Science and the Modern World, 1925). Essa metafísica do processo e do devir extensivo, que ainda hoje encontra eco nas especulações de certos físicos, distingue-se pelo facto de à partida não reconhecer à dimensão temporal o carácter de um continuum geométrico: reapreendido como dimensão do devir, o tempo deve ser pensado como atómico (epochal). Uma teoria do conhecimento reformada no contacto com a física A interpretação filosófica da teoria da relatividade pelo positivismo lógico construiu-se, em larga medida, na base de uma reavaliação empirista da herança kantiana, e mais particularmente da ideia do sintético a priori. As hesitações de Reichenbach e do próprio Schlick quanto ao alcance exacto da redefinição relativista das condições de medida do espaço e do tempo disso prestam testemunho: tão depressa se trata de fazer alinhar a filosofia pela escola da relatividade ao esforçar-se por precisar, à maneira de Einstein, o sentido empírico e operacional dos conceitos fundamentais, como se trata de sublinhar, por detrás das operações de medida, a actividade coordenadora de princípios constitutivos (estipulações e definições convencionais) que relevam de um «a priori relativizado» (Reichenbach). As relações entre geometria e experiência, já abordadas tanto por Poincaré como por Einstein, fornecem quanto a isto um terreno de discussão privilegiado (ver Philosophie der RaumZeit-Lehre, 1928). Paralelamente, e sobre questões muito próximas, os neokantianos entendem destacar uma nova figura da constituição transcendental da objectividade: por um lado, o a priori releva menos das condições formais da intuição que dos

princípios, eles próprios revisíveis, da coordenação legal dos fenómenos; por outro lado, ele deve levar em conta a necessária correlação intersubjectiva dos pontos de vista no seio de um processo contínuo de unificação racional da experiência. É assim que Cassirer e Brunschvicg fazem eco dos empiristas lógicos, mas também de físicos como Weyl ou Eddington, quando mostram que a categoria de substância está destinada a desaparecer em proveito de uma caracterização estritamente relacional (funcional, estrutural) dos conceitos fundamentais: o éter ou o campo electromagnético, por exemplo, acabam por se identificar com um conjunto coordenado de relações legais, ou seja de «puras determinações do conhecimento experimental» (Cassirer, Zur Einsteinschen Relativitätstheorie, 1921). A objectividade física manifesta-se então através das propriedades formais de simetria e de invariância reveladas pelo jogo de pontos de vista equivalentes. Enfim, a própria categoria de relação, tal como ela é usada na construção do quadro teórico, não é separável das condições concretas da medida, pelo que o elemento invariante da realidade física, longe de aparecer como um novo absoluto, se define a si mesmo através da «reciprocidade entre as condições da mensuração e a realidade mensurada» (Brunschvicg, A Experiência Humana e a Causalidade Física, 1922). Porém, por ter querido substituir o progressivo desmantelamento da ontologia substancialista da mecânica clássica no seio de um processo histórico globalmente convergente, o neokantismo foi levado a sobreavaliar as continuidades e a minorar o trabalho, por vezes violento, de refundação conceptual implicado pela promoção da categoria da relação. Reagindo a tal orientação, Bachelard defende, a partir dos anos 1930, a ideia de um «realismo algébrico» libertado dos últimos resíduos de imaginação mecanista (como a intuição da trajectória contínua de um móbil num meio): um realismo em acto, que procuraria a realidade ao cabo de um trabalho de integração racional cada vez mais minucioso e mais bem articulado das possibilidades experimentais e instrumentais. Mas quer se trate da redefinição dos quadros espaciotemporais, da pretensa dualidade ondas/corpúsculos ou do determinismo, Bachelard insiste incessantemente na necessidade de francas rupturas: do pensamento newtoniano, diz ele, não se pode sair senão «por arrombamento» (O Novo Espírito Científico, 1934). Dever-se-ia acrescentar que nunca se acabou de sair dele, e é sem dúvida por isso que não se deverá esperar da filosofia que ela produza de uma vez por todas a metafísica adequada à física contemporânea. A epistemologia histórica acomoda-se assim a um alegre pluralismo

ontológico, que rompe com o projecto positivista, formulado a partir do final da década de 1920 por Carnap, de uma refundação das ciências por meio de um apuramento lógico da linguagem destas. A ideia segundo a qual todo o enunciado científico pode ser derivado por meio de um raciocínio dedutivo ou indutivo, tendo por base enunciados de observação elementares, susceptíveis de verificação, alimentou ao longo do último século diferentes iniciativas fundacionais. Ela serviu igualmente de ponto de partida para o projecto de uma unificação dos diferentes domínios da ciência no sentido do fisicalismo, que é uma variante do reducionismo. Esta orientação da epistemologia positivista foi criticada no seu princípio por autores tão diversos quanto Quine, Popper, Hanson, Kuhn, Lakatos, Feyerabend ou Van Fraassen. Todos eles visam de uma maneira ou de outra uma certa concepção da relação entre teoria e observação, conceitos teóricos e base empírica. Popper sugere assim substituir a norma verificacionista por uma forma de «falsificacionismo» (ou «refutacionismo») que avalia as teorias, não segundo o seu grau de confirmação empírica, mas segundo a sua capacidade para se exporem a uma refutação experimental (Logik der Forschung, 1934). Essa mesma ideia encontra o seu limite em considerações relativas ao holismo semântico (já defendido por Duhem) ou à lógica das revoluções científicas, que levam a pôr em causa a possibilidade de uma partilha clara entre termos observacionais (que correspondam a propriedades observáveis) e termos não observacionais (ou «teóricos»). Estes últimos são com efeito inseparáveis de quadros teóricos globais (ou «paradigmas») que até certo ponto aparecem como incomensuráveis. As consequências relativistas das teses de Kuhn e Feyerabend foram criticadas por Putnam no quadro de uma teoria «externalista» da referência dos termos científicos: duas teorias que diferem pelo conteúdo que atribuem a certos conceitos podem, no entanto, referir-se a um domínio comum de realidade, e dar lugar a uma comparação indirecta. A reflexão votada ao significado dos termos teóricos desemboca assim, mais geralmente, num inquérito acerca do próprio estatuto das teorias científicas, e da maneira como elas representam efectivamente a realidade. Como compreender os enunciados de tipo legal? Qual é a concepção científica da causalidade? Serão os modelos mobilizados por uma teoria produto de simples aplicações ou interpretações empíricas da estrutura definida pelas suas relações e termos primitivos, ou relevarão eles de uma lógica autónoma? Estas são algumas das questões debatidas hoje em dia, a partir das diferentes posições epistemológicas distribuídas entre realismo e anti-realismo: realismo

convergente, realismo estrutural, empirismo construtivo, instrumentalismo, etc. Notemos, para concluir, que a divisão entre abordagens «epistemológicas» e abordagens «ontológicas» nada tem de absoluto. De facto, a filosofia dos físicos – da qual se não tratou aqui – constituiu-se frequentemente por uma espécie de vaivém entre esses dois pólos; o panteão filosófico ecléctico de Einstein é disso uma boa ilustração. Quanto à filosofia da física contemporânea, ela distingue-se desde há três décadas por um regresso em graça das abordagens francamente metafísicas, nomeadamente acerca do estatuto do espaço-tempo, do devir ou da causalidade. Pergunta-se, por exemplo, se o espaço-tempo tem alguma consistência para além da rede de relações que organiza, ou ainda se a física pode dispensar integralmente uma referência ao momento presente, enquanto as investigações em gravidade quântica deixam entrever, ao reclamarem-se das intuições de Mach e de Poincaré, o projecto de uma génese relacional e dinâmica do espaço e do tempo em si mesmos, que faria saltar o último ferrolho do classicismo relativista: a ideia segundo a qual os eventos do espaço-tempo se destacam dele como se de um pano de fundo. JEAN-MARC LÉVY-LEBLOND ÉLIE DURING 805 M. Merleau-Ponty, La Nature, Paris, Seuil, «Traces écrites», 1995, p. 138. Merleau-Ponty colhe a expressão «descobertas filosóficas negativas» junto dos físicos London e Bauer: Fritz London & Edmond Bauer, La Théorie de l’observation en mécanique quantique, Paris, Hermann, 1939, p. 51. 806 Sobre esta questão, cf. o livro de É. Meyerson, La Déduction relativiste, Paris, Payot, 1925.

As etapas da filosofia matemática contemporânea

Ao longo de toda a segunda metade do século XX, o pensamento matemático foi dominado pelo estruturalismo matemático, herdeiro directo da escola de álgebra alemã da década de 1920. A partir da década de 1940, este organizouse em torno dos trabalhos da escola matemática francesa e de um grupo de matemáticos conhecido pelo nome de Bourbaki. A sua principal tese é a de que a matemática tem uma arquitectura intrínseca, governada por estruturas abstractas como as de grupo, de espaço vectorial, de espaço topológico ou de conjunto ordenado. As suas relações com as ciências humanas, e mais particularmente com a filosofia, foram complexas e, no fundo, demasiado fragmentárias e inconclusas para serem inteiramente satisfatórias. Com os trabalhos de Michel Foucault (1926-1984), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), ou Jacques Lacan (1901-1981) na década de 1960, a notoriedade da escola estruturalista nas ciências humanas, cujas teses e interesses dominantes eram em boa medida independentes das do estruturalismo matemático, complicou ainda mais as coisas. Ela está, de facto, na origem de mal-entendidos que dificultam a compreensão da história recente das interacções entre a filosofia e a matemática no que estas têm de pertinente do ponto de vista da evolução da matemática e da sua epistemologia. O rápido declínio do estruturalismo como corpo de doutrina dominante no seio da matemática a partir da década de 1980, a emergência de novas temáticas, a existência de uma profunda renovação das interacções entre a matemática e as ciências físicas e biológicas, as lacunas da filosofia das matemáticas académica e a sua surpreendente ligação a problemáticas desusadas ou marginais (os problemas de fundamento saídos da teoria dos conjuntos, o intuicionismo, a lógica matemática): outros tantos fenómenos que hoje em dia necessitam de repensar em profundidade as ligações entre a matemática e a sua filosofia. É ao esboço dos contornos ainda muito incertos do devir dessas ligações, e dos hipotéticos traços de uma filosofia da matemática do século XXI adequada

às exigências conceptuais da ciência contemporânea que será consagrado este artigo. No entanto, como o futuro não se pode construir sem um renovado entendimento dos sucessos e dos fracassos das epistemologias matemáticas do século XX, convirá começar por estabelecer um quadro de conjunto destas, procurando atribuir às diversas correntes, por vezes contraditórias, que moldaram a história recente da filosofia da matemática, o lugar que lhes cabe. Do kantismo ao logicismo: Gottlob Frege Um preconceito assaz difundido pretende que a moderna filosofia da matemática se identifica com os problemas de lógica e de teoria dos fundamentos saídos da obra de Frege (1848-1925). Como todos os preconceitos, este não é desprovido de justificações históricas e teóricas, mas peca igualmente por ignorância e tendenciosismo. De facto, se a obra de Frege condiciona toda a epistemologia da matemática do século XX, a sua influência vai muito para além do domínio restrito da lógica matemática e dos correlatos filosóficos desta, e a sua compreensão passa por uma confrontação com a tradição filosófica mais autêntica: Aristóteles, Leibniz e, sobretudo, Kant. Para este último, a matemática está intimamente ligada à «estética transcendental», no sentido em que ela se identifica com as condições de possibilidade a priori do nosso entendimento do mundo físico. A aritmética (a ideia de número e as suas ramificações) proviria da nossa relação originária com o tempo, ao passo que a geometria seria oriunda da nossa relação com o espaço e com as suas condições de possibilidade. Deste ponto de vista, a actividade matemática seria sintética a priori: contrariamente aos juízos analíticos, onde o predicado contém sempre menos do que o sujeito da proposição, os juízos matemáticos procedem sempre por acrescento de conhecimento. Duas das principais teses kantianas foram refutadas sem apelo. A possibilidade de conceber a geometria e a sua axiomatização matemática como indissociáveis da nossa intuição do espaço foi primeiramente contradita pela emergência das geometrias não euclidianas, com o aparecimento, no século XIX, da geometria hiperbólica e dos trabalhos de Riemann807 (1826-1866), e depois, no início do século XX, pela descoberta da relatividade, primeiro restrita e depois geral, por Einstein (1879-1955). Deve assinalar-se que o carácter incontornável da intuição geométrica na constituição do pensamento matemático, durante muito tempo posto em causa devido à impossibilidade técnica de associar um sistema de axiomas simples e único ao espaço físico,

está hoje de novo na ordem do dia – embora a noção de intuição geométrica seja agora concebida em termos diversos dos da época de Riemann, ou mesmo da época de Einstein. O outro golpe desferido na filosofia da matemática kantiana foi efectuado por Frege. Se este último jamais tornou a questionar a concepção kantiana da geometria, em compensação ergueu-se contra a ideia de um carácter sintético dos enunciados aritméticos. A ideia principal dos trabalhos de Frege, indissociável dos problemas que a análise matemática (o estudo das funções, das séries, ou ainda das integrais) tinha de enfrentar no início do século XX, era a de que a aritmética é uma ciência inteiramente analítica, onde por analítica se deve entender formalmente dedutível das leis puras do pensamento, sem apelar portanto a qualquer intuição espacial ou temporal. Toda a filosofia da matemática directamente oriunda de Frege [o logicismo, em particular com os trabalhos do primeiro Russell (1872-1970)] se atém a essa ideia da possibilidade de estender o poder das leis puras do pensamento, do quadro restrito da lógica aristotélica a um domínio bastante mais vasto, cujo campo de aplicação compreenderia no todo ou em parte a matemática. Infelizmente, o programa logicista iria chocar logo nos primeiros anos do século XX com os paradoxos da teoria dos conjuntos (como a inexistência do «conjunto dos conjuntos que não se pertencem», ou paradoxo de Russell), que interditaram a recondução da aritmética à lógica, tal como a concebera Frege. Mais radicalmente ainda, esse projecto viu-se condenado pelos teoremas de Gödel (1906-1978), aos quais voltaremos, que mostraram que toda a tentativa de recondução da matemática aos procedimentos de alcance limitado que são os das teorias de tipo lógico se confrontava necessariamente com constrangimentos técnicos insuperáveis. Neste sentido, a filosofia da matemática de Frege estava condenada ao fracasso, embora as suas teses tenham revolucionado profundamente a maneira como, depois dele, se concebeu o problema da fundação da matemática. No que respeita à filosofia kantiana, se algumas dessas teses foram invalidadas, ela continuou porém a estruturar uma boa parte dos debates filosóficos ulteriores (com, entre outros, Hilbert, Husserl, ou ainda Cavaillès e a escola epistemológica francesa). Do logicismo à lógica matemática Apesar do insucesso do programa logicista fregeano, a temática dos fundamentos continuaria a estar, durante os primeiros trinta anos do século XX, no cerne dos debates sobre a filosofia da matemática. Em torno dessas

questões, distinguiram-se então particularmente três grandes correntes de pensamento: o programa hilbertiano, as ideias saídas do Círculo de Viena, comodamente designadas pelo nome «positivismo lógico», e o intuicionismo de Brouwer. Hilbert (1862-1943) é um dos grandes matemáticos do século XX – tanto pelos seus trabalhos ou pelas ideias programáticas com que soube alimentar a matemática ulterior como pelo ímpeto que soube dar à escola matemática alemã e, para além dela, ao desenvolvimento da álgebra moderna. Contrariamente aos de Frege, os seus contributos relativos aos fundamentos da matemática não visam tanto elucidar as relações entre a lógica e a matemática quanto estabelecer a validade incondicional da análise moderna em que o infinito desempenha um importante papel, sob diversas formas. Mostrar que as manipulações do infinito que se encontram disseminadas na matemática e na física são legítimas: é essa, pois, a ambição hilbertiana. Em nome de uma concepção muito clássica da verdade e do poder da intuição, só os raciocínios que se apoiam em considerações finitárias (onde o raciocínio só manipula entidades finitas, e não procede senão por esquemas de inferência finitos) são considerados legítimos por Hilbert. Daí resulta a ideia de procurar reconduzir toda a matemática a regras de manipulação de símbolos, e de provar que o seu uso não conduz a nenhuma contradição. Os célebres resultados de Gödel estabelecem, a partir do início dos anos 1930, o carácter vão do programa hilbertiano: toda a teoria matemática não trivial (na ocorrência, que contenha a aritmética) admite enunciados verdadeiros mas indecidíveis no interior da teoria. Por outras palavras, a noção de verdade ultrapassa a formalização. Mais radicalmente, nunca se pode provar a coerência (a não-contradição) de uma teoria matemática somente por meio dos seus instrumentos, o que condena definitivamente a ideia de provar a coerência das teorias matemáticas como a análise moderna com métodos puramente finitários. Os resultados de Gödel tiveram um impacto considerável. Eles não conduzem a mais do que o estabelecimento de uma especificidade e de uma irredutibilidade fundamental do pensamento matemático em relação à lógica. Uma vez compreendido o seu alcance, a comunidade matemática desviou-se aliás muito rapidamente da questão dos fundamentos e da lógica matemática, preferindo concentrar-se na matemática propriamente dita e no seu desenvolvimento. Bem entendido, não foi por isso que as investigações cessaram. Os resultados de Gödel foram assim aprofundados; outros teoremas

permitiram compreender melhor as limitações da abordagem hilbertiana, matizando por vezes algumas das conclusões epistemológicas que dela se haviam podido extrair. Mas, no essencial, tinha-se virado uma página, em definitivo: depois de Gödel, as investigações sobre os fundamentos da matemática empreendida no espírito hilbertiano, quaisquer que pudessem ser o seu alcance intrínseco e o seu interesse para a lógica matemática enquanto disciplina científica, iriam tornar-se de uma importância marginal e ceder o lugar a outras interrogações epistemológicas, mais directamente relacionadas com a realidade do trabalho matemático. Paralelamente ao desenvolvimento do programa hilbertiano, as reflexões sobre os fundamentos deveriam contribuir para o nascimento de um dos movimentos filosóficos mais importantes do século XX: o positivismo lógico, do qual a filosofia analítica contemporânea é a herdeira crítica. Por comodidade, agruparemos aqui sob as expressões positivismo lógico e empirismo lógico o Círculo de Viena808 e os trabalhos de Carnap (1891-1970), Hahn (1879-1934), Neurath (1882-1945), Schlick (1882-1936), Wittgenstein (1889-1951) e da sua posteridade filosófica, sem levar em conta as diferenças notáveis que tenham podido existir, tanto entre as correntes do positivismo lógico, como no seio das filosofias de cada um dos seus membros nos diversos momentos do seu percurso. O positivismo lógico é herdeiro de duas tradições: o empirismo, segundo uma linhagem que vai de Hume (1711-1776) a Mach (1838-1916), e a corrente lógica ou lógico-semântica que, vinda de Bolzano (1781-1848), vai até Frege e Russell passando por Peirce (1839-1914). Bolzano, tal como Frege mais tarde, e mais radicalmente que este, torna a pôr em causa o kantismo e os seus antagonismos fundamentais (analítico/sintético, a priori/a posteriori). Opõe assim a objectividade da lógica (a validade incondicional das suas asserções) ao subjectivismo transcendental. As reflexões sobre os fundamentos da matemática no final do século XIX, em torno do logicismo e da teoria dos conjuntos, com Frege e Russell, mas também em torno dos fundamentos da geometria, com Hilbert e Poincaré (1854-1912), nas décadas de 1920-1930 irão levar Carnap e Wittgenstein a reactualizarem e radicalizarem as teses de Bolzano e dos seus herdeiros invertendo as ideias orientadoras da tradição semântica para darem primazia à sintaxe e às suas regras sobre as questões de significado. O projecto director do empirismo lógico é indissociável de um certo optimismo do início do século XX quanto à possibilidade de uma unidade das ciências. Os novos instrumentos da lógica, à imagem das transformações

operadas na matemática, devem permitir-lhe erradicar do campo da investigação científica os conceitos metafísicos e os «falsos problemas» filosóficos e epistemológicos. Apesar da primazia atribuída pela tradição do positivismo lógico a ideias fortemente influenciadas pela ciência do início do século XX, e a despeito de contribuições importantes para a lógica e a sua filosofia (como, por exemplo, trabalhos em torno das noções de sintaxe e de semântica), o seu alcance quanto à filosofia matemática propriamente dita é bastante discutível. Bem entendido, uma obra filosófica maior como A Sintaxe Lógica da Linguagem809 de Carnap, que visa construir um sistema de referência para todas as sintaxes, vai buscar a maior parte do seu conteúdo técnico à matemática efectivamente realizada, e ilustra a esse título um fenómeno histórico importante: o impacto das investigações acerca dos fundamentos da matemática sobre a génese das modernas filosofias da linguagem. Para tal, ao levar ao limite a ideia de um primado do analítico sobre o sintético, o positivismo lógico deveria aderir maioritariamente à ideia de que os enunciados matemáticos são tautológicos: à maneira dos enunciados analíticos em Kant, eles não conteriam mais do que as premissas do raciocínio, a saber, para cada teoria, um certo número de axiomas. Num tal contexto, estando estes enunciados privados de conteúdo, as questões clássicas e fundamentais da filosofia matemática (papel da intuição, estatuto dos «objectos matemáticos», dinâmica da criação, beleza dos resultados) acham-se no essencial desprovidas de sentido. Este fenómeno explica sem dúvida o pouco impacto, para além das problemáticas lógicas, das ideias dominantes da matemática do século XX sobre a tradição saída do positivismo lógico (as filosofias da linguagem, a filosofia analítica). Este fracasso da filosofia em estabelecer um diálogo frutuoso com a matemática do seu tempo deve porém ser parcialmente mitigado. Embora se refiram apenas a domínios assaz específicos da actividade matemática, duas temáticas saídas da corrente de pensamento do empirismo lógico revelam-se pertinentes para a filosofia matemática e levantam questões cujo tratamento permanece, ainda hoje, actual. A primeira está ligada à lógica indutiva e à filosofia das probabilidades, de que Carnap foi um dos artesãos, mas para a qual matemáticos como o estatístico italiano Bruno de Finetti (1906-1985) contribuíram igualmente de maneira determinante. O epistemólogo de origem canadiana Ian Hacking (1936) é, presentemente, um dos representantes emblemáticos desse ramo da filosofia e um dos melhores conhecedores da sua história. A actividade matemática estrutura o nosso conhecimento do mundo, e

todo o progresso nesse domínio melhora a nossa compreensão dos fenómenos, até nos juízos correntes, como os juízos indutivos e probabilistas. A lógica indutiva tira proveito das ideias e das técnicas das probabilidades e da estatística para elucidar os nossos modos de apreensão do real em situações de incerteza onde a lógica tradicional se revela incompetente. Estas pesquisas põem assim em evidência a propensão da matemática para se apresentar como hermenêutica do real, a saber como um conjunto de instrumentos teóricos e conceptuais aptos a ajudarem-nos a interpretar a realidade, e isso para além do estrito domínio da actividade científica. A outra temática saída do empirismo lógico remete para os trabalhos de Wittgenstein. Se a sua filosofia está submetida às limitações já assinaladas, em compensação ela revela-se muito interessante quando se trata de descrever de um modo filosófico, não a actividade do matemático profissional ou a dimensão teórica e conceptual do corpus matemático, mas antes os actos matemáticos mais elementares. Assim, a ideia de que o pensamento matemático elementar (a actividade de contar, por exemplo) está organizado segundo regras indissociáveis do significado que nós conferimos à nossa actividade matemática, é extremamente profunda e rica, e a filosofia da matemática deveria confrontar-se com ela. Seria por isso desejável que as concepções de Wittgenstein fossem reexaminadas num futuro próximo sem preconceitos filosóficos, na medida em que um diálogo – ainda que polémico – com filosofias como o criticismo kantiano e a sua teoria do esquematismo dos conceitos poderia permitir aprofundar as ideias demasiado fragmentárias e inconclusas que emergem dos seus textos, nomeadamente do Curso sobre os Fundamentos da Matemática810. A par do programa hilbertiano e do positivismo lógico, a terceira grande corrente da filosofia matemática é o intuicionismo de Brouwer (1881-1966). Tem numerosos aspectos em comum com Hilbert: tal como Hilbert, Brouwer é uma das grandes figuras da matemática do início do século XX. Contribuiu de maneira decisiva para a emergência da topologia algébrica moderna, a teoria que se ocupa da classificação das formas geométricas, uma das mais belas teorias matemáticas desenvolvidas no século passado, cujo alcance vai bem para além da mera topologia, uma vez que os seus teoremas intervêm hoje em dia em todos os domínios da matemática pura (como a aritmética ou a geometria algébrica), e em numerosas aplicações da matemática. Brouwer partilha com Hilbert o interesse pela certeza matemática e pensa ser necessário baseá-la em fundamentos indubitáveis. Pensa também que só procedimentos

finitários estão aptos a garantir a validade dos enunciados matemáticos mas, ao contrário de Hilbert, para o qual todas as tentativas visaram demonstrar a validade da utilização do infinito nos raciocínios da análise moderna, Brouwer pensa que se deve romper deliberadamente com os desenvolvimentos da matemática do seu tempo e limitar o campo matemático aos meros domínios em que a intuição garante a veracidade dos resultados obtidos. O intuicionismo, a teoria que Brouwer desenvolveu e da qual Heyting (18981980) ofereceu uma formulação matemática sistemática, baseia-se numa concepção da matemática que faz dela uma actividade humana cujos fundamentos devem ser necessariamente reconduzidos aos poderes cognitivos limitados da consciência e da intuição. O intuicionismo apoia-se numa visão de conjunto da matemática em que a estética desempenha um importante papel, ao passo que a eficácia e a função que a matemática desempenha nas ciências da natureza são relegadas para segundo plano. Hermann Weyl (1885-1955), outra grande figura da matemática e da epistemologia da primeira metade do século XX, não se enganará a esse respeito: apesar das suas simpatias intuicionistas, ele acabará por reconhecer que a aplicação da matemática à física moderna, a da relatividade e da mecânica quântica, requer o uso do infinito e a superação das limitações que Brouwer lhes quisera impor. De facto, apesar do seu interesse histórico, o intuicionismo, se sempre conservou uma certa influência no domínio da lógica matemática e na filosofia da lógica, rapidamente desapareceu, após Brouwer, do campo do interesse matemático para somente sobreviver na comunidade assaz marginal dos herdeiros directos deste. A razão disso é simples: o intuicionismo não soube trazer à matemática mais do que limitações bastante artificiais que bloqueiam o uso dela na física e na análise. Do ponto de vista estético, longe de oferecer um acesso mais directo à beleza matemática, a matemática intuicionista está sobrecarregada de detalhes técnicos que refreiam os ímpetos da intuição matemática para a abstracção. O desenvolvimento da matemática reserva porém algumas surpresas, e a lógica intuicionista regressa hoje em dia à actualidade por uma via bastante inesperada. Os trabalhos do matemático Alexandre Grothendieck (1928), na década de 1970, mostraram com efeito a existência de conexões profundas entre a geometria algébrica (o estudo dos objectos geométricos definidos por equações polinomiais), a topologia (o estudo qualitativo das formas) e a lógica. A lógica intuicionista surge naturalmente neste contexto geométrico, em estreita ligação com a teoria das categorias – uma teoria alternativa à dos

conjuntos, simultaneamente de um ponto de vista técnico e epistemológico. O alcance filosófico do intuicionismo deverá na mesma ocasião ser reavaliado, mas essa necessária reavaliação, caso tenha lugar, assumirá sem dúvida contornos bastante distantes dos da filosofia intuicionista clássica da matemática. Os trabalhos de Grothendieck e toda a teoria das categorias sugerem com efeito que não há necessariamente primazia do lógico sobre o matemático: a arquitectura das intuições fundamentais que governam o pensamento científico poderia muito bem ter uma estrutura inteiramente diversa daquela que até aqui tem sido tomada por adquirida, tanto na matemática clássica como na variante intuicionista! Da fenomenologia ao estruturalismo Hilbert, o Círculo de Viena, Brouwer: outras tantas figuras-chave da filosofia da matemática do início do século XX. Outros desempenharam um papel decisivo, como Poincaré ou Enriques (1871-1946), mas a sua obra passará aqui em silêncio para somente conservarmos, de uma história complexa, os aspectos mais salientes e significativos. Falta porém à chamada um filósofo maior, cuja obra influenciou profundamente a epistemologia francesa da matemática, e cujas ideias principais têm, ainda hoje, um papel importante nos debates sobre a filosofia da matemática contemporânea: Husserl (1859-1938). Contrariamente às filosofias oriundas da lógica matemática e da rejeição do sintético a priori kantiano, que militam por uma refundação radical da epistemologia, quando não concluem pelo fim da metafísica, a filosofia husserliana, a fenomenologia, está fortemente ancorada na tradição. Herda desta diversas questões, como a do estatuto dos objectos matemáticos ou a do papel constitutivo da consciência e da intuição, com uma acuidade filosófica e instrumentos conceptuais muito mais poderosos que os que foram postos em funcionamento por um Brouwer. No entanto, a filosofia husserliana virou-se resolutamente para a matemática moderna e tomou nota do poder dos métodos simbólicos e lógicos. A fenomenologia quer triunfar onde outras filosofias da matemática falharam. Ela visa pensar simultaneamente a actividade criadora da consciência e as estruturas formais da matemática realizada, que põem em evidência rigidezes sintácticas e estruturas simbólicas autónomas. Husserl desenvolve assim a ideia de uma extensão do campo da lógica tradicional que permitiria justificar, para além da forma dos juízos, os conteúdos de pensamento. Diversas dificuldades obstam porém à eficácia da fenomenologia

husserliana. Assim, na maior obra de filosofia matemática da sua maturidade, Lógica Formal e Lógica Transcendenta811l, Husserl optou por sublinhar o carácter crucial dos pontos técnicos de lógica ligados à noção de encerramento dos sistemas axiomáticos (a noção de teoria nomológica, na qual o sistema de objectos do domínio é definido de maneira unívoca) que seguidamente se iriam revelar pouco pertinentes, nomeadamente devido aos teoremas de Gödel. A força da fenomenologia deve ser procurada para além das tentativas de Husserl em participar nos debates hilbertianos sobre os fundamentos. Ela reside antes de mais nos múltiplos instrumentos que define e põe em funcionamento para pensar, na matemática, a relação da consciência do matemático com o trabalho no domínio de objectos por ele considerado. É nisso que ela conserva, ainda hoje, toda a sua pertinência. Qualquer que seja o juízo que cada um possa fazer sobre as suas diferentes escolas de pensamento em epistemologia da matemática, a primeira metade do século XX conclui-se finalmente com a dupla constatação de um grande triunfo e de um grande fracasso. Grande triunfo: a filosofia da matemática foi renovada, mais do que alguma vez em toda a sua história, pelos debates sobre os fundamentos, sobre a lógica matemática, sobre o formalismo e o papel da consciência na edificação do saber científico. Fracasso: por causa dos teoremas de Gödel, o formalismo e o projecto hilbertiano tiveram de ser abandonados; a escola do positivismo lógico difundiu a ideia de que, se «as proposições da lógica dizem todas a mesma coisa, ou seja nada812», a mesma conclusão vale para as proposições matemáticas; a própria fenomenologia se revelou incapaz de dar uma solução filosófica satisfatória às aporias do formalismo. Em parte alguma esse fracasso foi mais bem analisado do que na obra póstuma de Cavaillès, Sobre a Lógica e a Teoria da Ciência813. Cavaillès (1903-1944) é uma das figuras mais comoventes da filosofia do século XX. Quando rebenta a Segunda Guerra Mundial, é um dos jovens filósofos cuja obra promete marcar profundamente a epistemologia do século XX. Combatente durante o Inverno de 1939-1940, é feito prisioneiro, evade-se durante a sua transferência para a Alemanha e torna-se um dos fundadores dos primeiros movimentos da Resistência. Detido em Agosto de 1943 pelos serviços da contra-espionagem alemã, morre fuzilado. A sua obra, demasiado breve, impressiona pela sua largueza de vistas, pela sua maturidade e pelas perspectivas que ficariam sem amanhã, à falta de herdeiros que estivessem à altura da tarefa.

O olhar que Cavaillès lança sobre as filosofias da matemática do início do século XX é, no essencial, conforme ao quadro que delas oferecemos anteriormente. Em Sobre a Lógica e a Teoria da Ciência, após haver analisado a herança kantiana, ele recusa a aptidão das filosofias neopositivistas para pensarem a matemática, antes de dirigir um olhar crítico ao empreendimento husserliano: «É em função de Husserl, um pouco contra ele, que eu tento definir-me814.» As conclusões de Cavaillès pesarão duradouramente na epistemologia francesa: Não é uma filosofia da consciência mas uma filosofia do conceito que pode dar uma doutrina da ciência. A necessidade geradora não é a de uma actividade, mas de uma dialéctica […]. Não há uma consciência geradora dos seus produtos, ou simplesmente imanente a eles, mas ela está de cada vez no imediato da ideia.

E Cavaillès dá igualmente a dianteira ao papel incontornável do progresso matemático para a filosofia da ciência: o devir da ciência «não é aumento de volume por justaposição mas revisão perpétua dos conteúdos por aprofundamento e rasura»815. Esta preocupação de Cavaillès em tornar a dar, após a fase de euforia assaz dogmática do início do século XX, todo o lugar à matemática real, ao seu devir e à sua lógica interna, conserva ainda hoje, apesar de todos os contributos que tingiram a segunda metade do século XX, toda a sua actualidade: procurar-se-ia em vão na literatura epistemológica recente uma doutrina da ciência apoiada por uma filosofia do conceito adequada aos saberes contemporâneos. As razões disso são múltiplas, mas em primeiro lugar deve colocar-se a pregnância do pensamento estruturalista na matemática, desde a Segunda Guerra Mundial até à década de 1980. Assentando o estruturalismo na ideia da existência de uma arquitectura intrínseca do corpus matemático, os fenómenos mais interessantes que se prendem com ela seriam no fim de contas redutíveis a sistemas de axiomas no interior da teoria dos conjuntos. Além disso, o estruturalismo, para ser uma verdadeira concepção da matemática, da sua natureza e do seu devir, é quase inteiramente obra de matemáticos. Muito reservados quanto ao alcance dos debates acerca dos fundamentos e da lógica, estes militam deliberadamente a partir da década de 1950, à semelhança de Bourbaki, por uma autonomia do pensamento matemático em relação à filosofia, induzindo uma das maiores contradições da epistemologia recente: devido a essa tomada de posição inicial, o estruturalismo matemático, uma das maiores correntes do pensamento científico do século XX, teve apenas um eco bastante limitado, e isso por vezes

através de interpretações muito discutíveis – é o caso das tentativas de descrição matemática das estruturas do inconsciente em Lacan. Um dos maiores sucessos da epistemologia francesa da segunda metade do século XX prende-se precisamente com o facto de ter tentado pensar num modo autenticamente filosófico o significado do empreendimento estruturalista na matemática. As suas duas obras marcantes são inquestionavelmente a Filosofia da Álgebra816 de Jules Vuillemin e As Idealidades Matemáticas817 de JeanToussaint Desanti. Tais obras demarcam-se resolutamente do estilo da filosofia matemática das décadas de 1920-1930: ao invés do logicismo e dos neopositivistas, os autores são inteiramente levados pelo conhecimento e pelo estudo dos materiais científicos – a álgebra do século XIX para Vuillemin, a teoria das funções de variáveis reais para Desanti. O empreendimento deles vai portanto resolutamente na direcção indicada por Cavaillès, visando conceitos e conteúdos científicos. Rapidamente irá porém perder o fôlego e não terá mais do que uma repercussão bastante limitada. Entre os próprios matemáticos, o entusiasmo pelo estruturalismo acaba por definhar. A ideia de estrutura, tal como ela é ilustrada na teoria abstracta dos grupos, justifica somente uma parte muito limitada da matemática: nem as probabilidades, nem a combinatória, nem uma grande parte da análise se prestam a uma abordagem estruturalista. Mais grave ainda: a aplicação da matemática às ciências da natureza é difícil de pensar de maneira satisfatória no contexto do estruturalismo. A década de 1980 concluise com um abandono do estruturalismo enquanto corpo de doutrina preponderante no seio da comunidade matemática, abrindo assim caminho a novas abordagens. Indicar os percursos actuais do pensamento matemático é bastante difícil, por falta de recuo, mas também por simples ausência de teorias ou de autores cuja profundidade ou influência os tornem incontornáveis. Encontram-se efectivamente aqui ou ali diversas teorias que o pretendem justificar: neologicismo, implicacionismo, ficcionalismo, cognitivismo, mas, para além da sua falta de impacto e do seu carácter bastante artificial do ponto de vista da matemática contemporânea, o seu alcance parece demasiado restrito para alguma vez poder dar lugar a uma verdadeira teoria da ciência. Desses debates em curso, reteremos apenas a renovação do platonismo, muito comummente adoptada pelos matemáticos. Gödel e o platonismo

O impacto dos teoremas de Gödel na filosofia matemática foi considerável. Em termos filosóficos, o seu corolário mais marcante é a necessidade de repensar, a partir de novos fundamentos, as noções de verdade e de «probabilidade» nas relações destas com o funcionamento dos sistemas dedutivos e com a sua sintaxe. No entanto, talvez devido à pregnância do estruturalismo que considerava tais questões bastante anedóticas, os resultados de Gödel não conduziram de modo algum às mudanças conceptuais da epistemologia matemática que seria lícito esperar-se, como se pensar a verdade para além dos sistemas formais e da lógica se houvesse tornado uma tarefa impossível depois de Frege, Hilbert, ou do Círculo de Viena. O próprio Gödel fez, contudo, uma tentativa através de uma releitura do platonismo, tentativa recentemente retomada por matemáticos de primeiro plano como Alain Connes (1947). Bem entendido, o platonismo, concebido como teoria filosófica que atribui aos objectos matemáticos uma existência real e um estatuto de objecto a parte inteira, sempre existiu. A teoria assume porém um novo sentido e ganha um poder de convicção graças aos teoremas de Gödel, os quais mostram haver «qualquer coisa» na matemática que escapa à lógica e resiste a todas as tentativas de redução da matemática a uma teoria puramente formal e vazia de conteúdo. Assim, segundo Gödel, os objectos matemáticos formam «uma realidade não sensível, que existe independentemente dos actos e das disposições do espírito humano, e só pode ser percebida, e provavelmente percebida de maneira muito incompleta, pelo espírito humano818». A intuição matemática desempenha um papel decisivo nos processos de percepção intelectual dos objectos matemáticos complexos que escapam a toda a forma de experiência sensorial. Afirmar que o platonismo, ainda que pós-gödeliano, é susceptível de abrir novos caminhos à filosofia das ciências do século XX pode certamente parecer paradoxal, dada a ingenuidade conceptual tantas vezes presente nas reivindicações de platonismo por parte dos matemáticos. Não se deve esquecer porém a mensagem de Gödel e, mais próximo de nós, a de Alain Connes819: para um matemático, os objectos matemáticos existem, e essa existência, essa presença necessitam ainda hoje de ser pensadas com toda a radicalidade necessária – uma radicalidade que verosimilmente se deverá procurar numa renovação da fenomenologia, a única teoria do conhecimento do século XX apta a pensar a nossa relação com os objectos matemáticos com a largueza de vistas necessária.

As tarefas da filosofia matemática De facto, a filosofia matemática não poderá ser, amanhã, o que foi no século XX. Para além das análises já efectuadas sobre as lacunas das filosofias recentes, ela deve aprender a acabar com a sua relativa autonomia face a outras problemáticas filosóficas e reencontrar o seu estatuto de ponta de lança da teoria do conhecimento – uma dimensão que percorreu a filosofia clássica, de Platão a Kant, e só subsistiu, durante o século passado, em Husserl. A evolução geral da ciência abre por outro lado novos horizontes. O conhecimento do homem «neuronal» e dos condicionamentos biológicos e fisiológicos do pensamento não poderia deixar de, a prazo, interagir com a nossa concepção da natureza do pensamento matemático. As ciências da natureza, as suas constantes interacções com a matemática, colocam igualmente questões decisivas a respeito da ligação entre determinismo, causalidade e modelização matemática, a epistemologia dos sistemas dinâmicos ou ainda a aptidão da matemática para descrever o mundo fenomenal. Todas estas interrogações supõem, para serem levadas a cabo, que a filosofia matemática renove profundamente os seus métodos e os seus objectivos. Ela não poderá fazê-lo senão reatando com todo o seu passado, e isso bem para além de Frege, uma vez que os problemas com que ela se confronta hoje em dia são os que o século XX, o dos epistemólogos pós-fregeanos, havia maioritariamente acreditado poder ignorar, quer se trate do estatuto dos objectos matemáticos ou da surpreendente adequação da matemática aos fenómenos. FRÉDÉRIC PATRAS 807 B. Riemann, Sobre as Hipóteses Que Servem de Fundamento à Geometria. 808 J. Sebestik e A. Soulez (ed.), Le Cercle de Vienne. Doctrines et controverses, Paris, Méridiens Klicksieck, 1986. 809 R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, Viena, Springer, 1934. 810 L. Wittgenstein, Lectures on the Foundations of Mathematics, Cambridge, 1939 (University of Chicago Press, 1989). 811 E. Husserl, Logique formelle et logique transcendentale, trad. francesa por S. Bachelard, Paris, PUF, 1957. 812 Sobre a vacuidade das proposições da lógica, vejam-se, por exemplo, as proposições 5.142, 6.1 ou 6.11

do Tractatus Logico-Philosophicus de L. Wittgenstein. 813 J. Cavaillès, Sur la logique et la théorie de la science, Paris, Vrin, 1947. 814 Ibid., Prefácio, p. VII. 815 Ibid., p. 78. 816 J. Vuillemin, La Philosophie de l’algèbre, Paris, PUF, 1962. 817 J.-T- Desanti, Les Idéalités mathématiques, Paris, Seuil, 1968. 818 K. Gödel, Collected Works, Oxford, Oxford University Press, 1986-2002, t. 3, p. 323. 819 A. Connes, Triangle de pensées, Paris, Odile Jacob, 2000.

Indicações bibliográficas

A FILOSOFIA ANTIGA

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A FILOSOFIA MODERNA

Continuidade e transformação da filosofia

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A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

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décomposition de la pensée; t. 4, De l’aperception immédiate. Estudos Descombes, V., Le Même et l’Autre. Quarante-cinq ans de philosophie française (1933-1978), Paris, Minuit, 1979. Janicaud, D., Ravaisson et la métaphysique, Paris, Vrin, 1997. Montebello, P., La Décomposition de la pensée. Dualité et empirisme transcendantal chez Maine de Biran, Grenoble, Jérôme Millon, 1994. Wahl, J., Tableau de la philosophie française, Paris, Gallimard, 1962. –, Les Philosophies pluralistes d’Angleterre et d’Amérique (1920), Paris, Les empêcheurs de penser en rond, 2005. A alma posta a nu. Da psicologia à psicanálise Obras Aristote [Aristóteles], De l’âme, trad. do grego para francês por R. Bodéüs, Paris, Flammarion, «GF», 1993. Castoriadis, C., L’Institution imaginaire de la société, Paris, Seuil, 1975, e «Points Essais», 1999. Freud, S., Essais de métapsychologie, trad. do alemão para francês por J. Laplanche e J.-B. Pontalis, Paris, Gallimard, 1990. Lacan, J., Séminaire XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalise, Paris, Seuil, 1973. Leibniz, G. W., Nouveaux Essais sur l’entendement humain, trad. do alemão para francês, introd. e notas de J. Brunschwig, Paris, Flammarion, «GF», 1966. Platon [Platão], Phédon, trad. do grego para francês por L. Robin, Paris, Les Belles Lettres, 1967. Estudos Canguilhem, G., «Qu’est-ce que la psychologie?», Études d’histoire et de philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1970. Vaysse, J.-M., L’Inconscient des Modernes, Paris, Gallimard, 1999. Martin Heidegger e os seus herdeiros Obras Derrida, J., Glas, Paris, Galilée, 1974. Gadamer, H. G., Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, Tubinga, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1960, reed. 1986.

Heidegger, M., Sein und Zeit, Tubinga, Niemeyer, 1927, reed 1953 e 2001. –, «Vom Wesen der Wahrheit (1930)», Wegmarken, Heidegger Gesamtausgabe, t. IX, Frankfurt, Klostermann, 1976, p. 177-202. –, «Der Ursprung des Kunstwerkes», Holzwege, Frankfurt, Klostermann, 1950, p. 7-69. –, Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) [1936-1938], Heidegger Gesamtausgabe, vol. 65, Frankfurt, Klostermann, 1989. –, «Die Frage nach der Technik», Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, Neske, 1954, p. 13-44. –, «Das Ge-Stell», Bremer und Freiburger Vorträge, Heidegger Gesamtausgabe, t. LXIX, Frankfurt, Klostermann, 1994, p. 24-45. A tradução francesa das obras de Heidegger está disponível na Gallimard, colecção «Bibliothèque de philosophie». Estudos Beaufret, J., Dialogue avec Heidegger, t. III, Approche de Heidegger, Paris, Minuit, 1974. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) Obras Tractatus Logico-Philosophicus, trad. do alemão para francês por G.-G. Granger, Paris, Gallimard, «Tel», 2001. Le Cahier bleu et le Cahier brun, trad. do inglês para francês por M. Golberg e J. Sackur, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de philosophie», 1996. Remarques sur les fondements des mathématiques, trad. do alemão para francês por M.-A. Lescourret, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de philosophie», 1983. Estudos Hacker, P. M. S., Wittgenstein’s Place in Twentieth Century Analitic Philosophy, Oxford, Blackwell, 1996. Kenny, A. J. P., Wittgenstein, Londres, Allen Lane, 1973. Monk, R., Wittgenstein. The Duty of Genius, Londres, J. Cape, 1990. Schroeder, S., Wittgenstein, Cambridge, Polity Press, 2006. Jean-Paul Sartre (1905-1980) Obras L’Être et le Néant (1943), Paris, Gallimard, «Tel», 1976.

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Os autores

Direcção da obra Jean-François Pradeau Professor de Filosofia. Universidade de Lyon III Colaboradores Jean-Christophe Bardout Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Rennes I Thomas Bénatouïl Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Nancy II Bruno Bernardi Professor agregado de Filosofia, Marselha Rudolf Bernet Professor de Filosofia. Universidade de Lovaina (K. U. Leuven) Arnaud Berthoud Professor emérito em Economia. Universidade de Lille I Enrico Berti Professor de Filosofia. Universidade de Pádua Joël Biard Professor de Filosofia. Universidade de Tours Étienne Bimbenet Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Lyon III Arnaud Bouaniche Professor de Filosofia. Gondecourt Frédéric Brahami Professor de Filosofia. Universidade de Franche-Comté

Luc Brisson Director de investigação. CNRS, UPR 76 Philippe Cabestan Professor agregado de Filosofia. Paris Giuliano Campioni Professor de Filosofia. Universidade de Pisa Fabien Chareix Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris IV – Sorbonne Catherine Colliot-Thélène Professora de Filosofia. Universidade de Rennes I Paolo Cristofolini Professor de Filosofia. Scuola Normale Superiore de Pisa Dominique Demange Engenheiro. United Monolitich Semiconductors (UMS) Pierluigi Donini Professor de Filosofia. Universidade de Milão Élie During Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris Oeste – Nanterre La Defense Pascal Engel Professor ordinário de Filosofia Contemporânea. Universidade de Genebra Laurent Jaffro Professor de Filosofia. Universidade de Clermont-Ferrand II Richard Glauser Professor de Filosofia. Universidade de Neuchâtel Miguel Angel Granada Professor de Filosofia. Universidade de Barcelona Frédéric Gros Professor de Filosofia. Universidade de Paris XII – Val-de-Marne Peter Hacker Professor de Filosofia. Saint John’s College, Oxford

Thierry Hoquet Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris Oeste – Nanterre La Defense Brad Inwood Professor de Filosofia e de Estudos Clássicos. Universidade de Toronto Jean-François Kervégan Professor de Filosofia. Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne Théodore Kisiel Professor de Filosofia. Universidade de Northern Illinois Christian Lazzeri Professor de Filosofia. Universidade de Paris Oeste – Nanterre La Defense Jérôme Lèbre Professor agregado de Filosofia. Saint-Quentin Jean-Marc Lévy-Leblond Professor emérito de Física e de Epistemologia. Universidade de Nice Alain de Libera Professor de Filosofia. Universidade de Genebra. Salvatore Lilla Scriptor graecus da Biblioteca Vaticana e professor de Patrística e de Paleografia Grega. Istitute Patrístico Augustiniarum, Roma Alessandro Linguiti Professor de Filosofia. Universidade de Siena Carole Maigné Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris IV – Sorbonne Cyrille Michon Professor de Filosofia. Universidade de Nantes Pierre-Marie Morel Professor de Filosofia. École Normale Supérieure – LSH, Lyon Catherine Osborne Professora de Filosofia. Universidade de East Anglia (Norwich) Frédéric Patras

Director de investigação. CNRS e Universidade de Nice Pierre-Yves Quiviger Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris I – PanthéonSorbonne Alain Renaut Professor de Filosofia. Universidade de Paris IV – Sorbonne Emanuela Scribano Professora de Filosofia. Universidade de Siena Luisa Simonutti Professora de Filosofia. CNR – Universidade de Milão John Skorupski Professor de Filosofia. Universidade de Saint Andrews (Escócia) Carlos Steel Professor de Filosofia. Universidade de Lovaina (K. U. Leuven) Richard C. Taylor Professor de Filosofia. Universidade Marquette, Wisconsin Rainer Thurnher Professor de Filosofia. Universidade de Innsbruck Jean-Marie Vaysse Professor de Filosofia. Universidade de Toulouse – Le Mirail Mario Vegetii Professor de Filosofia. Universidade de Pavia Denis Vernant Professor de Filosofia. Universidade de Grenoble – Pierre Mendès France Wayne Waxman Professor de Filosofia. Universidade de Maynooth (Irlanda) Dominique Weber Professor agregado de Filosofia. Sceaux Peter Welsen Professor de Filosofia. Universidade de Trèves

Índice CAPA Ficha Técnica Prefácio O nascimento da filosofia Platão Aristóteles Os saberes e as ciências na cidade grega O atomismo antigo O estoicismo O cepticismo antigo A filosofia imperial (século I a.C. – século II d.C.) Plotino O neoplatonismo de Proclo A herança da filosofia grega no cristianismo antigo grego e latino Damasco e Bagdade Averróis/Ibn Rushd Filosofia política e teologia na Idade Média Tomás de Aquino João Duns Escoto Guilherme de Ockham O mundo e o poema Thomas Hobbes René Descartes As Reformas Blaise Pascal Bento Espinosa John Locke Nicolau Malebranche A ciência da natureza humana Gottfried Wilhelm Leibniz George Berkeley A filosofia natural no século XVII: Galileu, Huygens, Newton David Hume Jean-Jacques Rousseau

Emanuel Kant A economia política Iena. Pós-kantismo e romantismo Georg Wilhelm Friedrich Hegel Arthur Schopenhauer John Stuart Mill Søren Kierkegaard Friedrich Nietzsche A ciência da sociedade Edmund Husserl O empirismo filosófico francês A alma posta a nu Martin Heidegger e os seus herdeiros Ludwig Wittgenstein Jean-Paul Sartre Maurice Merleau-Ponty Investigações epistemológicas Michel Foucault Filosofia política: poder e democracia As filosofias do vivente Neurociências e pesquisas cognitivas As descobertas filosóficas negativas da física contemporânea As etapas da filosofia matemática contemporânea Indicações bibliográficas Os autores

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