National Geographic PT Jul 21

  • Uploaded by: Clodoaldo Gomes
  • Size: 23.3 MB
  • Type: PDF
  • Words: 31,732
  • Pages: 132
Report this file Bookmark

* The preview only shows a few pages of manuals at random. You can get the complete content by filling out the form below.

The preview is currently being created... Please pause for a moment!

Description

N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

|

JULHO 2021

TESOUROS NO LIXO

N U M AT E R R O S A N I TÁ R I O, I N Ú M E R O S FÓS SEIS TÊM EMERGIDO. ALGUNS SÃO

T U R I S MO D E SA FA R I EM TEMPO D E PA N D E M I A

00244 603965 000006

A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES EM P O RT U GA L

5

S O LU Ç Õ E S PA R A UM MU N D O C A DA V E Z MAIS QUENTE

N.º 244 MENSAL €4,95 (CONT.)

PRECURSORES DA NOS SA ESPÉCIE .

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

JULHO 2021

S U M Á R I O

2

24

Com cada vez mais emissões de gases com efeito de estufa, as ondas de calor serão mais prolongadas. O limiar térmico do século XXI poderá conduzir mais alguns milhões de seres humanos para longe da sua zona de conforto. A adaptação vai requerer uma alteração de paradigma que não cause danos ao ambiente.

A ausência de arvoredo nos bairros mais carenciados de Los Angeles expõe os moradores a cerca de 4°C a mais do que noutras zonas. Estas diferenças marcadas de temperatura são na realidade o legado de um urbanismo baseado em políticas racistas.

Demasiado calor para viver

T E X TO D E E L I Z A B E T H R OY T E

A sombra que divide

Na capa Crânio de um barburofelídeo, um dos setenta mil fósseis encontrados no aterro sanitário de Can Mata, na província de Barcelona, em Espanha. PAOLO VERZONE

T E X TO D E A L E JA N D R A B O RU N DA F OTO G RA F I A S D E E L L I OT RO S S

SAUMYA KHANDELWAL, THE NEW YORK TIMES VIA REDUX

R E P O R TA G E N S

S E C Ç Õ E S

38

Os fósseis da lixeira

A ampliação de um aterro sanitário permitiu importantes achados paleontológicos, entre os quais se destacam fósseis de primatas ancestrais, precursores de grandes símios antropomórficos e até dos seres humanos.

A S UA F OTO VISÕES EXPLORE Escada para o céu E D I TO R I A L N A T E L E V I SÃO P RÓX I M O N ÚM E RO

T E X TO D E J E N N I F E R P I N KOW S K I F O T O G R A F I A S D E PA O L O V E R Z O N E

54

A ciência dos campeões

Da canoagem à maratona, da marcha atlética ao alpinismo, os limites do ser humano são testados continuamente. Em Coimbra e no Porto, duas equipas de investigadores transformam as limitações em forças. T E XTO E F OTO G RA F I A S D E A N TÓ N I O LU Í S C A M P O S

66

Turismo de safari

No Norte do Quénia, a estratégia das zonas de conservação comunitárias, baseada na coexistência entre humanos e animais, tem permitido resistir ao embate da pandemia, que reduziu as receitas turísticas no país.

Envie-nos comentários para nationalgeographic @ rbarevistas.pt Siga-nos no Twitter em @ngmportugal

T E X T O D E T R I S TA N M C C O N N E L L F OTO G R A F I A S D E DAV I D C H A N C E L L O R

90

O massacre racial de Tulsa

Em 1921, uma multidão atacou o próspero distrito negro de Tulsa, no Oklahoma, num dos piores atentados terroristas da história dos Estados Unidos. O massacre durou dias e custou a vida a 300 pessoas. Depois, foi esquecido… TEXTO DE DENEEN L . BROWN FOTOGRAFIAS DE BETHANY MOLLENKOF

Torne-se fã da nossa página de Facebook: facebook. com/ngportugal

w

Mais informação na nossa página de Internet: nationalgeographic.pt Siga-nos no Instagram em @natgeomagazineportugal

Assinaturas e atendimento ao cliente Telefone 21 433 70 36 (de 2.ª a 6.ª feira) E-mail: [email protected]

DE CIMA PARA BAIXO: PAOLO VERZONE; ANTÓNIO LUÍS CAMPOS; DAVID CHANCELLOR; BETHANY MOLLENKOF

A HISTÓRIA VIVA NA QUINTA DE S. FRANCISCO À entrada da Quinta de S. Francisco, nos jardins junto ao Instituto RAIZ, no Eixo, erguem-se duas árvores de Ginkgo biloba, uma das mais antigas espécies vegetais do mundo. Os dois exemplares desta árvore primitiva são recentes naquele espaço de natureza, a poucos quilómetros de Aveiro, mas a espécie já existe no planeta há mais de 150 milhões de anos, sendo contemporânea dos dinossauros. Pólo de conservação da biodiversidade com cerca de 14 hectares, a propriedade da The Navigator Company reúne cerca de 400 espécies vegetais e para cima de 70 espécies de aves e outros animais, revelando-se um museu de história viva de assinalável riqueza botânica. Entre as cerca de 200 espécies de árvores e arbustos que habitam no espaço, sobressai um arboreto de eucaliptos centenários, ali plantados entre 1902 e 1906. Existem no mundo perto de 800 espécies de eucalipto e na Quinta de S. Francisco podem ser observadas cerca de uma centena, cuja notoriedade é avaliada pela raridade, beleza, cor, perfume ou impressionantes envergaduras que arranham o céu. No espaço florestal, os eucaliptos convivem em harmonia com carvalhos, cedros, ciprestes, e até uma majestosa sequoia e um extenso canavial de bambus, para além de árvores autóctones, como o carvalho alvarinho, o buxo, a gilbardeira ou o pinheiro-manso. Aberto à comunidade, o legado da Quinta de S. Francisco representa a defesa dos valores naturais e da biodiversidade que hoje são vertentes indissociáveis da gestão e do desenvolvimento sustentável do património florestal.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica. Fontes: Os Eucaliptos e as Aves da Quinta de S. Francisco, Grupo Portucel Soporcel, 2007 | Cerasoli, S., Caldeira, M. C., Pereira, J. S., Caudullo, G., de Rigo, D., 2016. “Eucalyptus globulus and other eucalypts in Europe: distribution, habitat, usage and threats. In: San-Miguel-Ayanz, J., de Rigo, D., Caudullo, G., Houston Durrant, T., Mauri, A. (Eds.), European Atlas of Forest Tree Species

publirreportagem

O Eucalyptus botryoides é uma das sete espécies de eucalipto no mundo que podem atingir mais de 80 metros de altura. A árvore mais alta na Quinta e uma das maiores no país é, precisamente, desta espécie, medindo 58,5 METROS. Neste espaço estão identificadas cerca de 70 ESPÉCIES DE AVES, e boa parte destas com nidificação confirmada no local, casos da toutinegra-de-barrete, da alvéola-branca, do rabirruivo, da águia-de-asa-redonda ou vários chapins. A Quinta de S. Francisco alberga o RAIZ – INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO DA FLORESTA E PAPEL desde 1996, instituição do Sistema Científico e Tecnológico Nacional que desenvolve as melhores soluções para maior ecoeficiência da indústria do papel.

V I S Õ E S

|

A SUA FOTO

H U G O M I G U E L M A R Q U E S O autor faz quase exclusivamente fotografia macro de louva-a-deus. Em Pedrógão Pequeno,

dois exemplares interagiam. A curiosa pose foi fortalecida pelo olhar de ambos, que parecem comunicar com o leitor.

A R M I N D O F E R R E I R A Num pequeno lago situado na pateira de Fermentelos, onde está proibida a pesca, este pequeno guarda-rios desafia a lei. “Foi um momento delicioso, que me fez ganhar o dia”, diz o autor.

PA U L O R O C H A M O N T E I R O O Caldeirão do Inferno, na ilha da Madeira, faz jus ao nome durante o percurso pedestre

para caminhantes intrépidos. ”A beleza do local superou as altas expectativas iniciais”, conta o autor. “Há paredes verticais por todos os lados, um ambiente sombrio, uma queda de água com um pequeno lago a seus ‘pés’ e um silêncio tão profundo quanto o abismo por baixo desta ponte rudimentar.”

V I S Õ E S

Indonésia

Um camarão-coral-bolha (Vir philippinensis) refugia-se no interior de um coral com o qual estabelece uma relação simbiótica. Estes pequenos crustáceos são quase translúcidos, pelo que se torna mais difícil fotografá-los. KHAICHUIN SIM / GETTY IMAGES

Indonésia

A tribo indonésia dos baduy recusa a tecnologia do mundo moderno e prefere viver em harmonia com os recursos da natureza. Especializou-se em construir pontes suspensas na selva, construídas sem outras ferramentas além das raízes entretecidas das árvores. FERRY R. TAN / GETTY IMAGES

Egipto

Um homem cobre o rosto na totalidade para se proteger da poeira levantada pelos blocos de calcário de uma pedreira na cidade de Minia. Estes operários costumam trabalhar em condições difíceis e pouco seguras a troco de salários irrisórios. KHALED DESOUKI / GETTY IMAGES

E X P L O R E Nos Alpes Austríacos, para atingir o cume, é preciso ascender PA R A O C UM E

R A Í Z E S DA RO TA

OUTROS CAMINHOS

Esta escada vertiginosa constitui um trecho da via ferrata Grosser Donnerkogel. A via ferrata é um caminho construído na face rochosa e íngreme da montanha. O termo ganhou popularidade depois de os montanhistas se apropriarem da rede construída nas Dolomitas durante a Grande Guerra para ajudar os soldados a deslocarem-se em grandes altitudes. Agora, estes caminhos permitem que montanhistas sem qualificações técnicas tenham acesso a panorâmicas excepcionais.

A primeira via ferrata foi instalada em 1843 na montanha Hoher Dachstein na Áustria pelo geógrafo e alpinista Friedrich Simony. Os caminhos modernos, nos quais os montanhistas se prendem ao cabo usando dois mosquetões de segurança, atraem os amantes de actividades ao ar livre. “Toda a experiência foi aterradora da melhor maneira possível”, brinca o fotógrafo Quin Schrock. A rota Donnerkogel, por norma requer cerca de três horas.

A via ferrata Donnerkogel pode ser aflitiva. “Para mim, é mais fácil confiar na rocha do que em estruturas feitas pelo homem”, diz Jess Dales (na imagem), um visitante no local. Há alternativas: um teleférico transporta os visitantes até metade da encosta e há trilhos da base ao cume. No topo de Donnerkogel, assinalado por uma grande cruz, obtém-se uma panorâmica sublime do glaciar Dachstein e das águas do lago Gosau no vale em baixo.

ESCADA PARA O CÉU N AT I O N A L G E O G R A P H I C

por esta “Escada para o Céu

´

37

V I A S F E R R AT A S N O D I S T R I T O D E S A L Z K A M M E R G U T, N A Á U S T R I A

131

C O M P R I M E N T O D E S TA E S C A DA (EM METROS)

2.054

A LT U R A D E D O N N E R K O G E L

(EM METROS)

R EU

TEXTO DE STEPHANIE PEARSON

NGM MAPS

O PA ÁUSTRIA

FOTOGRAFIA DE QUIN SCHROCK

JULHO 2021

«Acreditamos no poder da ciência, da exploração e da divulgação para mudar o mundo.» A National Geographic Society é uma organização global sem fins lucrativos que procura novas fronteiras da exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável. NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL

NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY

GONÇALO PEREIRA ROSA, Director

CHIEF EXECUTIVE OFFICER

MIQUEL APARICI, Director de Arte HELENA ABREU, Coordenadora editorial

r

p

ARIADNA HERNÁNDEZ FOX, Directora-geral M.ª LUZ MAÑAS, Directora comercial Madrid

JOSÉ LUIS RODRÍGUEZ, Tratamento de imagem

[email protected] - Tel.: 91 510 66 00

CONSELHO CIENTÍFICO

ANA GEA, Directora comercial Barcelona

AIRES BARROS, Presidente;

[email protected] - Tel.: 93 415 23 22

_____________________________________________

ALEXANDRE QUINTANILHA, Biologia CARLOS FABIÃO, Arqueologia

SERAFÍN GONZÁLEZ, Director de negócios

CARVALHO RODRIGUES, Aerospacial

digitais e serviços comerciais

CLÁUDIO TORRES, Arqueologia

___________________________________________

FRANCISCO ALVES, Arqueologia Náutica

IMPRESSÃO E ENCADERNAÇÃO

FRANCISCO PETRUCCI-FONSECA, Zoologia

Rotocobrhi, S.A.U. Ronda de Valdecarrizo n.º 13 28760 Tres Cantos – Madrid

GALOPIM DE CARVALHO, Geologia JOÃO DE PINA CABRAL, Antropologia Social

___________________________________________

JOÃO PAULO OLIVEIRA E COSTA, História da Expansão

ASSINATURAS

SALOMÉ PAIS, Botânica

VASP-PREMIUM

SUSANA MATOS VIEGAS, Antropologia Social

Tel.: (351) 21 433 70 36 (de 2.ª a 6.ª feira)

TERESA LAGO, Astronomia VANDA SANTOS, Paleontologia VIRIATO SOROMENHO-MARQUES, Ambiente VICTOR HUGO FORJAZ, Vulcanologia

[email protected]

___________________________________________

DISTRIBUIÇÃO

_____________________________________________

VASP, Distribuidora de Publicações, SA

TRADUÇÃO E REVISÃO

MLP – Media Logistic Park

Bernardo Sá Nogueira, Coordenação de tradução; Bernardo Sá Nogueira, Erica da Cunha Alves e Luís Pinto, Tradução; Elsa Gonçalves, Revisão

Quinta do Grajal

_____________________________________________

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO António Luís Campos: Anyforms; Carlos Neto de Carvalho; Filipa Capela (Internet e redes sociais); José Séneca

_____________________________________________

SIGA-NOS TAMBÉM EM nationalgeographic.pt facebook.com/ngportugal zinio.com/NatGeoPT instagram.com/natgeo_revistaportugal Canal National Geographic Portugal no YouTube

_____________________________________________

PROPRIETÁRIA/EDITORA RBA Revistas, S.L. Avda. Diagonal, 189 – 08018 Barcelona

Dr. Jill Tiefenthaler

SENIOR MANAGEMENT

Michael L. Ulica Shannon Bartlett CHIEF COMMUNICATIONS OFFICER: Crystal Brown CHIEF BUSINESS OPERATIONS OFFICER: Tara Bunch CHIEF HUMAN RESOURCES OFFICER: Mara Dell CHIEF SCIENCE AND INNOVATION OFFICER: Ian Miller CHIEF EXPLORER ENGAGEMENT OFFICER: Alex Moen CHIEF ADVANCEMENT OFFICER: Kara Ramirez Mullins CHIEF EDUCATION OFFICER: Vicki Phillips CHIEF LEGAL OFFICER: Sumeet Seam CHIEF OF STAFF: Kim Waldron CHIEF STORYTELLING OFFICER: Kaitlin Yarnall CHIEF FINANCIAL OFFICER: Rob Young PRESIDENT AND CHIEF OPERATING OFFICER: CHIEF DIVERSITY OFFICER:

BOARD OF TRUSTEES CHAIRMAN:

Jean M. Case

VICE CHAIRMAN:

Katherine Bradley

Brendan P. Bechtel, Afsaneh Beschloss, Ángel Cabrera, Elizabeth Comstock, Jack Dangermond, Joseph M. DeSimone, Alexandra Grosvenor Eller, Jane Lubchenco, Kevin J. Maroni, Strive Masiyiwa, Mark C. Moore, George Muñoz, Lyndon Rive, Edward P. Roski, Jr., Frederick J. Ryan, Jr., Rajiv Shah, Ellen R. Stofan, Jill Tiefenthaler, Anthony A. Williams, Tracy R. Wolstencroft EXPLORERS-IN-RESIDENCE

Enric Sala EXPLORERS-AT-LARGE

Robert Ballard, Lee R. Berger, James Cameron, Sylvia Earle, J. Michael Fay, Beverly Joubert, Dereck Joubert, Louise Leakey, Meave Leakey, Thomas Lovejoy, Rodrigo Medellin NATIONAL GEOGRAPHIC PARTNERS SENIOR MANAGEMENT

Periodicidade: mensal

Susan Goldberg David E. Miller DEPUTY CHIEF COUNSEL: Evelyn Miller GLOBAL NETWORKS CEO: Courteney Monroe HEAD OF TRAVEL AND TOUR OPERATIONS: Nancy Schumacher CHIEF FINANCIAL OFFICER: Akilesh Sridharan

Depósito Legal n.º B-8123-2021

BOARD OF DIRECTORS

2739-511 Agualva - Cacém Tel.: (351) 214 337 000

ISSN 2182-5459 Registo de imprensa n.º 123811 Tiragem média: 40.000 Estatuto editorial: nationalgeographic.pt/lei-transparencia Capital social: € 250.000 ACCIONISTAS – SÓCIO ÚNICO: RBA Holding de Comunicación, S.L.U. Interdita a reprodução de textos e imagens

EDITORIAL DIRECTOR:

GENERAL MANAGER NG MEDIA:

Jean M. Case, Rebecca Campbell, Josh d'Amaro, Karim Daniel, Nancy Lee, Kevin J. Maroni, Peter Rice, Frederick J. Ryan, Jr., Jill Tiefenthaler, Michael L. Ulica INTERNATIONAL PUBLISHING SENIOR VICE PRESIDENT:

Yulia Petrossian Boyle

Allison Bradshaw, Ariel Deiaco-Lohr, Kelly Hoover, Diana Jaksic, Jennifer Jones, Leanna Lakeram, Rossana Stella Copyright © 2021 National Geographic Partners, LLC. Todos os direitos reservados. National Geographic e Yellow Border: Registered Trademarks® Marcas Registadas. A National Geographic declina a responsabilidade sobre materiais não solicitados.

membro da ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE

CIF: B 64610389 [email protected]

CONTROLO DE TIRAGEM

NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE EDITOR IN CHIEF

Licença de NATIONAL GEOGRAPHIC PARTNERS, LLC.

Susan Goldberg

EXECUTIVE EDITOR: Debra Adams Simmons. MANAGING EDITOR, MAGAZINES: David Brindley. SENIOR DIRECTOR, SHORT FORM: Patty Edmonds. DIRECTOR OF VISUAL AND IMMERSIVE EXPERIENCES: Whitney Johnson. SENIOR EXECUTIVE EDITOR: Indira Lakshmanan. EXECUTIVE EDITOR, LONG FORM: David Lindsey. CREATIVE DIRECTOR: Emmet Smith. MANAGING EDITOR, DIGITAL: Alissa Swango. MANAGING EDITOR, SPECIAL PROJECTS: Michael Tribble.

INTERNATIONAL EDITIONS EDITORIAL DIRECTOR:

Amy Kolczak. DEPUTY EDITORIAL DIRECTOR: Darren Smith. TRANSLATION MANAGER: Beata Kovacs Nas. INTERNATIONAL EDITOR: Leigh Mitnick EDITORS ALEMANHA: Werner Siefer. AMÉRICA LATINA: Claudia Muzzi Turullols. BULGÁRIA: Krassimir Drumev. CAZAQUISTÃO: Yerkin Zhakipov. CHINA: Tianrang Mai. COREIA: Junemo Kim. CROÁCIA: Hrvoje Prćić. ESLOVÉNIA: Marija Javornik. ESPANHA: Ismael Nafría. ESTÓNIA: Erkki Peetsalu. FRANÇA: Gabriel Joseph-Dezaize. GEÓRGIA: Natia Khuluzauri. HOLANDA/BÉLGICA: Arno Kantelberg. HUNGRIA: Tamás Vitray. ÍNDIA: Lakshmi Sankaran. INDONÉSIA: Didi Kaspi Kasim. ISRAEL: Idit Elnatan. ITÁLIA: Marco Cattaneo. JAPÃO: Shigeo Otsuka. LÍNGUA ÁRABE: Alsaad Omar Almenhaly. LITUÂNIA: Frederikas Jansonas. POLÓNIA: Agnieszka Franus. PORTUGAL: Gonçalo Pereira Rosa. REPÚBLICA CHECA: Tomáš Tureček. ROMÉNIA: Catalin Gruia. RÚSSIA: Andrei Palamarchuk. SÉRVIA: Igor Rill. TAIWAN: Yungshih Lee. TAILÂNDIA: Kowit Phadungruangkij. TURQUIA: Nesibe Bat

RICARDO RODRIGO, Presidente ANA RODRIGO, Editora JOAN BORRELL FIGUERAS, Director-geral Corporativo AUREA DIAZ ESCRIU, Directora-geral BERTA CASTELLET, Directora de Marketing JORDINA SALVANY, Directora Criativa ISMAEL NAFRÍA, Director Editorial JOSEP OYA, Director-geral de Operações RAMON FORTUNY, Director de Produção

J U L H O

|

EDITORIAL

CONTRA AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

O contraste entre o sol e a sombra

TEXTO DE SUSAN GOLDBERG

A C I Ê N C I A A S S E G U R A que o mundo está mais quente e cada um de nós pode notá-lo de forma diferente. O meu indicador são as aves que já não migram para sul no Inverno: agora, vejo-as ao longo de todo o ano. Para resolver o aquecimento global, teremos de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. A primeira reportagem deste mês aborda esse desafio. Analisa o calor e a forma como os humanos devem adaptar-se a uma nova realidade quente, mas também como terão de trabalhar para a mitigar. Em contrapartida, a reportagem seguinte explora uma solução imediata e pouco tecnológica para o calor: a sombra. Estamos bem cientes dos seus benefícios para a saúde pública. Permanecer à sombra pode fazer-nos sentir até 10 graus mais frescos do que se estivéssemos ao sol. O princípio também se aplica ao local onde vivemos. Um estudo recente descobriu que bairros com uma cobertura densa de árvores são em média cinco graus mais frescos do que bairros, nas mesmas cidades, sem essas características. Contamos a nossa história de sombra a partir de Los Angeles. Provavelmente não ficará surpreendido ao saber que os bairros mais quentes tendem a ser áreas de baixos rendimentos. Redlining é uma prática discriminatória ilegal através da qual um credor hipotecário nega empréstimos ou uma companhia de seguros restringe os serviços a certas áreas de uma comunidade, muitas vezes devido às características étnicas da vizinhança do requerente. Esta prática de discriminação é responsável pela recusa de créditos para compra de habitação. O legado dessas desigualdades torna a própria sombra um bem carregado de significado. É uma medida duradoura de privilégio.

FOTOGRAFIA DE ELLIOT ROSS

“Não se vê verde nas áreas delimitadas a vermelho”, disse o ecologista urbano Vivek Shandas à jornalista Alejandra Borunda. Hoje, em alguns dos bairros mais pobres de Los Angeles, a percentagem de terra com sombra fornecida pela copa das árvores é de um dígito (em comparação com quase 40% de cobertura em bairros mais abastados). Vivek está a trabalhar com a cidade de Los Angeles para desenvolver programas de plantação de árvores. Los Angeles e muitas outras cidades já estão a plantar milhares de árvores, aumentando a cobertura fornecida pelas copas das árvores em áreas negligenciadas. Não é uma panaceia e vai demorar muito até fazer a diferença. Porém, à medida que as temperaturas aumentarem, a plantação de árvores de maneira equitativa em todos os bairros é um pequeno, mas significativo, passo. Obrigado por ler a National Geographic.

Enquanto Elliot Ross fotografava em Los Angeles, os utilizadores dos transportes públicos disseram-lhe que os abrigos das paragens ofereciam pouca sombra e que os passageiros em espera podiam ficar perigosamente sobreaquecidos, mesmo no Inverno. Áreas verdes das cidades tendem a concentrar-se: quase 20% das árvores situam-se em cinco bairros de habitação, onde reside 1% da população.

O aumento de calor no século XXI talvez prive milhões de pessoas do conforto a que estão habituadas. T E XTO D E E L I Z A B E T H ROY T E

DEMASIADO CALOR

DASHT-E LUT, IRÃO De manhã, um viajante contempla aquele que deverá ser o lugar mais quente da Terra: o deserto de Lut. Em 2014, cientistas franceses obtiveram aqui uma medição de 610C à sombra, um potencial recorde mundial, se for repetido com instrumentos padronizados. À medida que a Terra aquece, outras regiões tornar-se-ão parecidas com Lut e inóspitas para os seres humanos. MATTHIEU PALEY

2

PARA VIVeR

NOVA DELI, ÍNDIA Aparelhos de ar condicionado nas fachadas de prédios de apartamentos na capital indiana. Por norma, as temperaturas costumam ultrapassar 40°C em Maio. Menos de 10% dos agregados familiares indianos possuem ar condicionado, mas este mercado regista um crescimento explosivo. SAUMYA KHANDELWAL, THE NEW YORK TIMES VIA REDUX

de modo a dissipar calor de duas maneiras essenciais: os vasos sanguíneos dilatam, transportando o calor até à pele para que ele possa irradiar, dissipando-se. O suor também se forma sobre a pele, arrefecendo-a por evaporação. Quando esses mecanismos falham, nós morremos. Parece linear. No entanto, é um colapso complexo que ocorre por etapas. Enquanto a temperatura interna de uma vítima de insolação vai subindo, o coração e os pulmões funcionam cada vez mais intensamente, de modo a manterem cheios os vasos dilatados. Uma vez atingido determinado ponto, o coração deixa de ser capaz de aguentar o ritmo. A pressão sanguínea baixa, induzindo tonturas, fazendo a pessoa cambalear e provocando-lhe fala arrastada. Os níveis de sal diminuem e os músculos contraem-se, sofrendo cãibras. Confusas, por vezes mesmo delirantes, muitas vítimas nem se apercebem de que precisam de ajuda imediata. Com o sangue a afluir maciçamente à pele sobreaquecida, o seu afluxo aos órgãos diminui, desencadeando reacções que decompõem as células. Algumas vítimas sucumbem com uma temperatura interna de apenas 40ºC. Outras conseguem aguentar 42ºC durante várias horas. O prognóstico é normalmente pior nas pessoas muito jovens e nos idosos. Mesmo que sejam saudáveis, os mais idosos encontram-se em clara desvantagem: as glândulas sudoríparas encolhem com a idade e muitos medicamentos de utilização comum enfraquecem os sentidos. Muitas vezes, as vítimas não sentem sede suficiente para beber. A sudação deixa de ser uma opção, uma vez que o corpo já não tem humidade disponível. Em vez disso, até ocorrem arrepios de frio. Chegado a este ponto, o enfermo pode morrer devido a um ataque cardíaco, mas os indivíduos em melhor forma podem resistir e padecer da chamada visão em túnel, alucinações e até do impulso de arrancar as roupas, que parecem lixa devido ao ardor nas terminações nervosas. Se desmaiar agora, será uma bênção, uma vez que os vasos sanguíneos começam a perder a sua integridade. Os tecidos musculares, incluindo os do coração, podem ser os seguintes na lista de colapsos. Assim que começam as fugas no aparelho digestivo, as toxinas entram na corrente sanguínea. O sistema circulatório reage, desencadeando um esforço maciço de coagulação. É um último recurso que ameaça ainda mais gravemente os órgãos vitais – rins, bexiga e coração. A morte avizinha-se. O CORPO HUMANO TEM EVOLUÍDO

6

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

PARIS, FRANÇA A fonte de Trocadero proporciona alívio durante a vaga de calor de 2019. Uma catastrófica antecessora, em 2003, desencadeara grandes reformas, como a obrigatoriedade de instalar arrefecimento em lares de idosos. Essas reformas resultaram: em 2019, a taxa de mortalidade em França foi 90% mais baixa. SAMUEL BOIVIN, NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

NO VERÃO DE 2003, um sistema de alta pres-

são atmosférica instalou-se sobre a Europa Central e Ocidental. Maciçamente aquecida sobre o Mediterrâneo, a gigantesca massa de ar rodopiante repeliu, durante várias semanas, as incursões de ar mais fresco provenientes do Atlântico. Em França, as temperaturas subiram radicalmente, ultrapassando durante oito dias a fasquia assustadora de 40°C. À medida que o calor aumentava, começaram a ocorrer mortes. Passado pouco tempo, os hospitais ficaram sobrecarregados. As morgues ficaram cheias e os camiões frigoríficos e congeladores dos mercados de alimentos aceitaram os cadáveres em excesso. Nas visitas ao domicílio, os prestadores de cuidados encontraram os seus clientes caídos no chão ou mortos nas poltronas. Nessa época, só uma pequena percentagem das residências francesas

estava equipada com ar condicionado). A polícia recebeu telefonemas para arrombar portas, “apenas para encontrar cadáveres atrás delas”, recorda Patrick Pelloux, presidente da associação francesa de médicos de emergência. “Foi absolutamente aterrador.” Muitos cadáveres só foram descobertos várias semanas mais tarde. Em França, mais de 15 mil mortes acabaram por ser atribuídas à vaga de calor. Em Itália, a situação foi ainda pior, com quase 20 mil mortos. Em todo o continente, mais de 70 mil pessoas (na sua maioria pobres, isoladas e idosas) perderam a vida. O mais quente Verão registado em 500 anos na Europa, como os cientistas haveriam de determinar mais tarde, esteve claramente associado às alterações climáticas. Em Paris, desencadeou um aumento do risco de mortalidade devido ao calor nesse ano em cerca de 70%. D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R

7

Entre as numerosas ameaças climáticas que os cientistas associam ao aquecimento global, o aumento das vagas de calor é a consequência mais intuitiva e imediata. A nível mundial, os últimos seis anos foram os mais quentes de que há registo. Na Europa, o pavoroso Verão de 2003 provou não ser uma mera excepção estatística: grandes vagas de calor atingiram o continente cinco vezes desde então e 2019 produziu recordes absolutos de temperatura em seis países da Europa Ocidental, incluindo a barreira de 46ºC que se fez sentir em França. Como é evidente, a derradeira solução para o aquecimento global consiste numa redução drástica das nossas emissões de gases com efeito de estufa. Se fracassarmos por completo nesse intento, em 2100 o número de mortes devidas ao calor poderá exceder 100 mil por ano nos EUA. Noutras regiões, a ameaça talvez se torne ainda maior: na Índia, por exemplo, o número de mortes poderá atingir 1,5 milhões, segundo uma investigação recente. E mesmo que consigamos refrear as emissões, o planeta continuará a aquecer durante várias décadas. Está em movimento uma força irresistível que alterará profundamente a forma como se vive em grande parte do planeta. O calor extremamente intenso tem consequências perniciosas, mesmo quando não é mortífero. Os investigadores associam as temperaturas mais elevadas a uma maior incidência de casos de bebés prematuros, com baixo peso e nados-mortos. As condições climáticas de maior calor tornam as pessoas mais violentas, em todos os escalões de rendimento, prejudicando os resultados das crianças nos testes escolares e diminuindo a produtividade. Segundo previsões da Organização Internacional do Trabalho, em 2030 os níveis elevados de calor reduzirão em 2,2% o total de horas de trabalho, o equivalente à perda de 80 milhões de postos de trabalho a tempo inteiro, principalmente nos países de baixo a médio rendimento. Mesmo nos países mais ricos, os assalariados com baixo rendimento que trabalham no exterior – na construção ou na agricultura, por exemplo – serão duramente atingidos. Em 2050, é provável que os níveis elevados de calor e humidade no Sudeste dos EUA tornem a época de cultivo totalmente “insegura para o trabalho agrícola, a manterem-se as práticas laborais actuais”, segundo um estudo da Universidade de Washington. Os seres humanos, juntamente com as suas colheitas e os seus animais domésticos, evoluíram ao longo dos últimos dez mil anos num nicho climático bastante restrito, centrado numa tempe8

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Dentro de 50 anos, um terço da população mundial poderá viver em lugares parecidos com o Saara, onde a temperatura média de Verão ultrapassa 40˚C.

ratura média anual de aproximadamente 12,8ºC. Os nossos corpos adaptam-se com facilidade a temperaturas mais elevadas, mas há limites para os níveis máximos de calor e de humidade que conseguimos tolerar. Até o ser humano em melhor forma e mais aclimatado ao calor morrerá após poucas horas de exposição a um estado de “bulbo húmido”, uma medição combinada de temperatura e de humidade que leva em conta o efeito inibidor da evaporação. Neste estado, a atmosfera é de tal maneira quente e húmida que já não é capaz de absorver o suor humano. Uma caminhada longa nestas condições poderá revelar-se fatal. Os modelos climáticos prevêem que, dentro de aproximadamente 50 anos, as temperaturas de bulbo húmido na Ásia Austral e em regiões do Médio Oriente ultrapassem regularmente o máximo crítico. Nessa altura, segundo um surpreendente estudo publicado em 2020 nas “Actas da Academia Nacional das Ciências” dos EUA, um terço da população mundial poderá viver em lugares semelhantes ao actual Saara, onde a temperatura média de Verão mais elevada ultrapassa 40°C. Milhares de milhões de pessoas terão de fazer uma dura escolha: migrar para climas mais frescos ou ficar e adaptar-se. O refúgio no interior de espaços com ar condicionado é uma solução de recurso óbvia, embora o próprio ar condicionado, na forma actualmente existente, contribua para o aquecimento do planeta e não seja economicamente comportável para muitas pessoas. O problema do calor extremamente intenso encontra-se mortalmente associado a problemas sociais mais importantes, incluindo o acesso à habitação, aos recursos hídricos e aos cuidados de saúde.

P

é a cidade mais quente dos EUA, com mais de 110 dias por ano com uma temperatura igual ou superior a 37,8°C. Regista-se aqui a maior parte das mortes causadas por calor no país. Em 2020, na comarca de Maricopa, registou-se um número recorde absoluto de 207 mortos, segundo o gabinete do médico-legista, que está incumbido de investigar todas as mortes não naturais, entre as quais se incluem as mortes relacionadas com a temperatura. Sempre que uma morte potencialmente relacionada com o calor é comunicada, Melanie Rouse, a investigadora principal do gabinete, entrevista as pessoas que estiveram recentemente com o falecido. Ela, ou ele, suava abundantemente? Queixava-se de dor de cabeça ou náuseas? Fazia trabalhos no exterior? “Tentamos apurar o que provocou este desfecho”, diz. “Tentamos perceber se existem outras causas de morte verosímeis.” No local da morte, os investigadores medem a temperatura do corpo e da sala. A mais elevada temperatura interior foi de 62,8°C em 2017! Procedem à extracção do líquido vítreo do globo ocular da vítima para análise química. As células decompõem-se rapidamente a temperaturas elevadas, “mas a esfera do globo ocular é um espaço protegido”, diz Melanie Rouse. Químicos e físicos analisam este líquido a fim de determinarem se o falecido se encontrava desidratado, se havia níveis elevados de glicemia no sangue ou se a função renal estava diminuída – causas de aumento da susceptibilidade ao calor. Mais de metade das mortes devidas ao calor registadas na comarca de Maricopa ocorreram no exterior, afectando sobretudo os sem-abrigo. A maior parte das mortes ocorridas em espaços fechados registou-se em casas móveis, cujo isolamento insuficiente dificulta a refrigeração. Nos países mais pobres, a situação é ainda mais grave. Na Índia, quando a temperatura excede 40°C, os organismos governamentais recomendam às pessoas que permaneçam dentro de casa e bebam água fresca. Mas estes conselhos de nada servem às dezenas de milhões de pessoas cujas casas são mais quentes no interior do que no exterior, que não possuem electricidade para ligarem ventoinhas ou aspersores ou que, como Noor Jehan, nem sequer têm casa. Noor, de 36 anos, viveu sempre na rua, num parque de Nova Deli. Todas as manhãs, empilha os seus escassos bens e caminha penosamente até ao emprego, num estaleiro de construção. Trabalha mesmo quando o termómetro marca 48°C. HOENIX, NO ARIZONA,

À semelhança de outros trabalhadores à jorna, não consegue alimentar os três filhos se faltar ao trabalho. “Quando regresso a casa, não tenho água para tomar banho e arrefecer um pouco”, conta. O sítio onde vai buscar a água potável encontra-se a mais de 1,5 quilómetros de distância. O marido de Noor Jehan trabalha com um riquexó, mas, subnutrido e desidratado, desmaia frequentemente com o calor. A sua irmã, Afsana, e os seus três filhos adaptaram-se colocando esteiras sobre o passeio para descansarem ou até para dormirem. “Os carros que passam criam uma ligeira brisa”, diz Afsana. Em Phoenix, David Hondula estuda as consequências sociais e sanitárias do calor urbano incessante. Ultimamente tem andado a calcorrear os passeios escaldantes da cidade em busca dos melhores lugares para plantar dezenas de milhares de árvores – uma reacção urbana cada vez mais comum ao aumento das temperaturas em todo o mundo. “Menor exposição ao calor diminui o risco”, explica. “Porém, acho que não serão as árvores plantadas a impedir a morte de pessoas devido ao calor.” Quando lhe pergunto qual seria a melhor solução, ele nem hesita. “Aumentar o acesso ao ar condicionado.”

E

o uso de aparelhos de ar condicionado nas habitações tem sido considerado um luxo. Em muitos lugares, porém, está a transformar-se numa necessidade de saúde pública, revelando-se essencial para a prevenção das mortes relacionadas com o calor. Segundo o Climate Impact Lab, um consórcio de centros de investigação sobre o clima, há boas notícias: prevê-se que, em 2099, o desenvolvimento económico aumente o uso de ar condicionado e o acesso aos cuidados de saúde, salvando milhões de vidas por ano. A Agência Internacional da Energia prevê que o número de unidades cresça exponencialmente de 1.600 milhões na actualidade para 5.600 milhões em meados deste século. Há más notícias associadas: a tecnologia de ar condicionado actualmente disponível sai demasiado cara ao planeta. Na maior parte dos sistemas, um líquido refrigerante é bombeado através de uma bobina de evaporação existente no interior da unidade. Ao transformar-se em gás dentro da bobina, o líquido atrai o calor e a humidade presentes no ar. No exterior do edifício, um compressor, um condensador e uma ventoinha reconvertem o gás em líquido, libertando o calor e (Continua na pg. 14) a água condensada. M TERMOS HISTÓRICOS,

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R

9

Sem dados

Oslo

Calgary Los Banos Los Angeles

AMÉRICA DO NORTE Chicago Nova Iorque Phoenix

Paris Madrid

EUROPA

Moscovo

Pequim A S I A Meca

S a a r a Cartum Niamei ÁFRICA

Bogotá

Novosibirsk Ulan Bator Tóquio Xangai

Abu Dhabi

Djibuti Adis Abeba

ÁREA EM DESTAQUE

Singapura

Kinshasa

AMÉRICA DO SUL São Paulo

OCEÂNIA

Joanesburgo

Custo projectado da mortalidade* É o somatório de dois cálculos: a componente económica do número de mortes devido à subida da temperatura, acrescido dos custos de adaptação ao calor.

Mais elevado Sem alteração Mais reduzido

PREÇO ELEVADO DO CALOR

Em 2050, o aumento do calor matará mais pessoas, mas as pessoas também se adaptarão. Investigadores do Laboratório do Impacte Climático elaboraram projecções dos “custos da mortalidade” futuros, que reflectem o valor económico das vidas perdidas e as despesas com adaptações como o ar condicionado. A localização geográfica, a distribuição etária e Milan o rendimento afectam as projecções. Muitas cidades ricas, mais frescas, usufruirão de benefícios líquidos, mas a maior parte da população mundial, residente em cidades Tianjin quentes sem meios para se adaptarem, assistirá à subida dos “custos” e de mortalidade. Nova Iorque Almaty

0

5

TEMPERATURA MÉDIA (˚C)

10

15

Paris

Ufa Chelyabinsk Jiamusi

La Paz

Mudanjiang Yekaterinburg Novosibirsk

Omsk

Praga

Xining

Sapporo Montreal

Helsínquia

Calgary

Toronto

Glasgow Berlim Copenhaga Hamburgo Otava Munique

Ulan Bator

Edmonton

Cabul Denver

Kiev

Vilnius

Riga

Projecções para os custos de mortalidade e temperatura até 2050 Cidades com população superior a um milhão de habitantes

Salt Lake City

Chifeng

Moscovo Minsk

Estocolmo

Istambul

Dalian Detroit Chicago Boston

Ürümqi Samara Harbin Changchun

CUSTO DE MORTALIDADE MAIS BAIXO

Seul

Bogotá

Vancouver

Minneapolis-St. Paul

AS CIDADES DO NORTE SAIRÃO VENCEDORAS As condições extremas de frio e de calor fazem escalar as taxas de mortalidade. Nas regiões frias, porém, é menos frequente as temperaturas descerem até níveis perigosamente baixos, poupando vidas, e os verões não são suficientemente quentes para forçarem adaptações dispendiosas.

Oslo

*O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas identifica futuros cenários climáticos, designados por Cenários de Concentração Representativos (RCP), que oscilam entre o cenário pessimista (RCP 8,5) e o cenário optimista (RCP 2,6). Os dados aqui utilizados seguem um RCP 4,5 para as projecções de 2040–2059.

CH IRÃO

Deserto de Lut

DESTINOS DIVERGENTES Muitas cidades do Paquistão são pobres Multan e sensíveis ao aumento do número de dias quentes, não dispondo do rendimento necessário para se adaptarem. Faisalabad A Índia, mais rica, enfrentará uma tendência semelhante nas temperaturas, mas com resultados menos Gujranwala catastróficos.

IN

A

Cabul

AFEG.

Faisalabad Multan

Lahore

PA Q U I S T Ã O

BALUCHISTÃO

Deli

Haiderabad

ÍNDIA

Carachi

Ma r Arábico

MAIOR CUSTO DE MORTALIDADE

Bombaim Haiderabad

Djibuti

Cartum Niamei

Lahore EQUAÇÃO ETÁRIA Com o calor, até cidades ricas como Madrid registarão custos de mortalidade mais elevados, por possuírem uma população mais idosa. Pelo contrário, numa cidade igualmente quente, mas mais jovem, como Adis Abeba, os custos serão menores.

Rawalpindi

Bamako

Mossul

Mandalay

Riade

Las Vegas Dallas-Ft. Worth

Calcutá Cantão

Ja

Casablanca Antananarivo

Banguecoque Chennai

25

30

Bombaim Caracas usaka Kampala

i ade a uat mal Medellín Nairobi Rabat

Manaus Phnom Penh Yangun Maracaibo

Deli

Cairo

Alexandria

Pretória

Santiago

Medina

Phoenix

Adana

20

Carachi

Dacca

Amritsar

Chongqing Taipé

Adis Abeba

Islamabade

Bagdade

Osaka Barcelona Atena

N'Djamena

Haiderabad, Paquistão

Alepo

Teerão Madrid

Katmandu

Ouagadougou

Peshawar

Recife Miami Rio de Janeiro Havana Lima Belo Horizonte Cali Goiânia Brasília

Fortaleza Kuala Lumpur

Singapura

Tegucigalpa Kigali

QUENTES, MAS JÁ ADAPTADAS Em cidades ricas e muito quentes, como Singapura, assistir-se-á a uma diminuição do custo de mortalidade. Encontrando-se bem adaptadas a condições climáticas quentes, prevê-se que se tornem ainda mais ricas em 2050.

Harare

Como interpretar a tabela

Aumento no custo de mortalidade

Actualidade

O início da linha de uma cidade apresenta a sua temperatura média e custo de mortalidade médio 2050 em 2019. O ponto final mostra a temperatura e o (projecção) custo da mortalidade projectados para 2050. JASON TREAT, CHRISTINE FELLENZ E EVE CONANT FONTE: CLIMATE IMPACT LAB

Sem mudança Diminuição

Cidades com população superior a: 30 milhões 20 milhões 10 milhões 5 milhões 2,5 milhões 1 milhão

Tóquio

Cidade do México Tianjin Dar-es-Salam Montreal Amritsar

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R

11

MECA, ARÁBIA SAUDITA Em Julho de 2020, as restrições impostas pela COVID-19 fizeram diminuir as multidões que circulavam na Grande Mesquita. Por norma, a hajj anual atrai milhões de peregrinos, para cinco dias de rituais em espaço aberto. Quando a hajj coincidir com o Verão, haverá riscos acrescidos de insolação, prevêem os climatologistas. XINHUA/EYEVINE/REDUX

Esta solução engenhosa, com um século de idade, tem três problemas. Em primeiro lugar, os hidrofluorcarbonetos habitualmente utilizados como líquido refrigerante são, eles próprios, gases com efeito de estufa. Por isso, têm um potencial de aquecimento global milhares de vezes superior, em termos moleculares, ao do dióxido de carbono. Em segundo lugar, os sistemas convencionais de ar condicionado não fazem desaparecer o calor: limitam-se a descarregá-lo no exterior. Segundo um estudo realizado em Phoenix, as unidades de ar condicionado podem provocar um aumento de 1ºC da temperatura nocturna no exterior. E, em terceiro lugar, os aparelhos de ar condicionado consomem gigantescas quantidades de electricidade: cerca de 8,5% do consumo mundial total. A maior parte dessa energia ainda é gerada pela queima de combustíveis fósseis. Em 2016, os aparelhos de ar condicionado foram responsáveis pela emissão de 1.130 milhões de toneladas de dióxido de carbono, prevendo-se que esse valor quase duplique em 2050. Como é evidente, precisamos de novas ideias. Para encorajá-las, o Instituto Rocky Mountain, um centro de reflexão com sede no Colorado, ajudou recentemente a promover um concurso internacional. Desafiou os engenheiros a conceberem um aparelho de ar condicionado com um quinto do impacte climático dos aparelhos comuns, um quarto do consumo energético e, no máximo, o dobro do preço do modelo de entrada de gama actualmente comercializado. Alguns concorrentes prescindiram dos refrigerantes líquidos e da compressão de vapor, trocando-os por novas tecnologias promissoras que ainda não se encontram totalmente disponíveis para venda generalizada. Um recorria a arrefecimento termoeléctrico: é provável que venha a ser mais adequado a aplicações muito localizadas, como o arrefecimento rápido de uma lata e não tanto para arrefecer uma sala inteira. Outro concorrente apresentou painéis para telhados revestidos com nanomateriais que repelem o calor solar, devolvendo-o ao espaço num comprimento de onda infravermelho que atravessa directamente a atmosfera. Em princípio, isso permitiria reduzir o aumento de temperatura de um edifício em alguns graus, “mas não é uma solução em si mesma”, afirma Iain Campbell, investigador sénior do Instituto. “Não funciona em condições de humidade e os painéis precisam de estar virados para o céu.” Ou seja, não é suficientemente útil para quem viva no terceiro andar de um prédio com dez pisos. 14

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

CIDADE DE NOVA IORQUE, EUA Na Universidade de Colúmbia, um painel revestido com uma inovadora película de polímero irradia o calor da atmosfera, projectando-o para o espaço exterior. Como esta imagem de infravermelhos demonstra, o interior encontra-se significativamente mais fresco do que a envolvente. Uma vez aplicados sobre as coberturas dos edifícios, estes painéis poderão reduzir as necessidades de ar condicionado. A investigação sobre o “arrefecimento radiante” tem vindo a aumentar. FRIO

CALOR

Os quatro finalistas, que competiram entre si em 2020 num “desafio de arrefecimento” para um prédio de apartamentos em Bahadurgarh, na Índia, utilizaram todos compressão de vapor convencional, mas recorreram a um elemento valorizador, utilizando novos refrigerantes com baixo (ou nulo) potencial de efeito de estufa e sistemas altamente eficientes de evaporação e condensação. Os dois co-campeões, denominados Equipa Daikin e Equipa Gree, arrefecem os seus condensadores com água, em vez de ar, para reduzirem o consumo de energia, e um deles serve-se de painéis solares para obter parte da electricidade. Espera-se que estejam disponíveis nas lojas em 2025, a cerca do dobro do preço do modelo de base. No entanto, os seus custos operacionais são tão baixos que o período de retorno do investimento será de apenas três anos – segundo as estimativas.

N

de Princeton, o arquitecto e engenheiro Forrest Meggers está a desenvolver outro tipo de sistema que não refrigera o ambiente de uma sala: só arrefece as pessoas, absorvendo o calor irradiado pela sua pele, através de painéis de tubos cheios de água montados nas paredes. Um protótipo da invenção, chamada Tubo de Frio, está pendurado no laboratório de Forrest Meggers. Parece-se com uma esteira tecida com palhinhas de plástico azul. Num dia como hoje, com 30°C de temperatura, se enchêssemos esses tubos fininhos com água a 17ºC, isso proporcionaria aos ocupantes do laboratório uma sensação de 24°C, mesmo com as portas de correr do laboratório escancaradas, devido à pandemia. Forrest Meggers apresenta-se vestido, da cabeça aos pés, com roupa de secagem rápida. A UNIVERSIDADE

Não é a primeira vez que os arquitectos utilizam painéis de arrefecimento radiante, em tectos e paredes, mas quase sempre equipados com desumidificadores, para impedir que a água condense nos painéis e caia sobre os computadores e as cabeças. Ao envolver os seus painéis com uma simples membrana de polietileno, que mantém o ar húmido afastado dos tubos, mas não o calor irradiado, Forrest afirma ter resolvido esse problema. Na cidade de Singapura, onde o Tubo de Frio foi pela primeira vez aplicado, o sistema gerou um ambiente confortável, utilizando menos de metade da energia de um ar condicionado convencional e originando metade do calor residual. A poupança de energia não é tão espectacular em ambientes áridos, mas os painéis radiantes equipados com isolamento por membrana conseguem ser mais eficientes do que os sistemas convencionais. D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R

15

CALIFÓRNIA, EUA Em Los Banos, no vale de San Joaquin, a apanha do tomate começa às 5 horas da manhã, para evitar parte do calor do dia. A legislação estadual obriga os agricultores a disponibilizarem água, sombra e a permitirem pausas para descanso, mas os apanhadores, pagos ao balde, podem negligenciar essas salvaguardas. O trabalho no exterior tornar-se-á cada vez mais perigoso em certas regiões dos EUA. KARLA GACHET

COMO O CORPO GERE O CALOR

Termorreceptores na pele

A manutenção de uma temperatura interna constante de cerca de 37°C é um jogo de equilíbrio. Os músculos e os órgãos geram calor que é dissipado através da pele. Contudo, o corpo também absorve calor do ambiente. O aquecimento climático está a expor quase um terço da população mundial a condições de calor potencialmente mortíferas.

Hipotálamo

Vasodilatação conduz mais sangue à pele

Um sistema para arrefecer O corpo transfere o calor para qualquer objecto em que toque, incluindo as roupas e a atmosfera circundante. A maior parte do arrefecimento do corpo dá-se através do calor irradiado pela pele e o suor que dela se evapora.

1 2 3 4

DETECÇÃO DO STRESS CAUSADO PELO CALOR Os receptores na pele e noutras partes do corpo sentem que o indivíduo está a começar a sobreaquecer. As condições climáticas, o nível de actividade e o vestuário podem afectar a temperatura interna.

Evaporação do suor arrefece a pele

O TERMÓSTATO CORPORAL INTUI A SITUAÇÃO O hipotálamo dá sinal às glândulas écrinas, existentes na pele, para libertarem um máximo de 1,4 quilogramas de suor por hora. Apenas 5% dos 2,5 milhões de glândulas estão activas em simultâneo. AFLUXO SÚBITO DO SANGUE À PELE Os vasos sanguíneos dilatam, canalizando mais sangue até aos capilares da pele. Esta “vasodilatação” transporta o calor do interior do corpo até à superfície, a partir da qual pode ser irradiado. O SANGUE E O SUOR ARREFECEM O CORPO O sangue e o suor dissipam a maior parte do calor através da pele: a expiração expele o calor restante. O suor arrefece quando se evapora, algo que pode ser quase impossível em condições de humidade elevada.

Quando corre mal Quanto mais tempo demorar a mobilização do sangue e dos líquidos até à pele, para a arrefecer, mas difícil se torna o processo para os nossos órgãos internos. Em condições de calor extremo, o stress pode conduzir à exaustão e, depois, à insolação — e, em última análise, à morte. EXAUSTÃO POR CALOR Náuseas, fadiga, cãibras, irritação cutânea e tonturas frequentemente causadas por uma combinação de temperaturas elevadas, esforço físico e humidade elevada são sinais que o corpo transmite ao cérebro para que este reduza a actividade e arrefeça. Estes sintomas podem evoluir e causar uma insolação mais mortífera. 18

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

INSOLAÇÃO Cefaleia, confusão, vómitos e perda de consciência podem acontecer quando o corpo atinge 40°C. As insolações requerem cuidados de emergência. Podem rapidamente causar lesões no cérebro, no coração, nos rins e nos músculos, conduzindo ao coma e à morte.

JASON TREAT E EVE CONANT; KELSEY NOWAKOWSKI ARTE: GABY D’ALESSANDRO FONTES: OLLIE JAY, UNIVERSIDADE DE SYDNEY; JASON LEE, UNIVERSIDADE NACIONAL DE SINGAPURA

Como os painéis refrescam os corpos humanos e não enormes volumes de ar, também poderão resultar em ambientes exteriores. O maior desafio à adopção generalizada desta tecnologia, suspeita Forrest Meggers, será uma questão de atitude. “Os engenheiros estão habituados a pensar sobre o conforto e a frescura no Verão em termos de ar condicionado”, diz.

A

onde vivo, escalona os seus bairros em termos de vulnerabilidade ao calor segundo factores de risco como a pobreza, o acesso ao ar condicionado e a disponibilidade de espaços verdes. Na zona norte de Manhattan, o bairro de East Harlem regista a a pior classificação deste índice. A sua taxa de pobreza de 31% é quase o dobro da média da cidade e apresenta uma das mais baixas taxas de propriedade de ar condicionado (88%) da cidade. Num dia escaldante de Verão, encontro-me com Sonal Jessel, directora de políticas públicas da organização sem fins lucrativos WE ACT for Environmental Justice, para darmos um passeio em East Harlem. Enquanto caminhamos, Sonal chama-me a atenção para um prédio de arrendamento, onde toalhas e trapos preenchem o espaço entre os aparelhos de ar condicionado e os caixilhos das janelas. “A conta da electricidade deve ter disparado”, diz. A população de East Harlem é 27% negra e os agregados familiares negros pagam, em média, centenas de euros a mais pela energia do que os agregados familiares brancos de rendimento equivalente. Segundo o referido estudo, os edifícios das comunidades negras são mais velhos e têm mais fugas e com maior número de moradores por unidade. “Se um indivíduo estiver a tentar trabalhar ou estudar na sala equipada com ar condicionado e estiverem lá mais três pessoas barulhentas, essa pessoa muda-se para outra sala e liga outro aparelho”, diz. Caminhamos para leste. Vêem-se poucas árvores nas ruas e o calor irradia dos passeios, dos edifícios e dos motores e tubos de escape dos automóveis. Eu e Sonal Jessel passamos por lotes cheios de ervas daninhas e lojas já fechadas muito antes da pandemia. “O bairro sofre profundamente por ver todos estes espaços devolutos”, diz ela. Esta situação também aumenta a vulnerabilidade dos moradores ao calor: quando o sociólogo Eric Klinenberg estudou a vaga de calor de 1995, durante a qual mais de 700 pessoas morreram, descobriu que os bairros de baixo rendimento CIDADE DE NOVA IORQUE,

Se melhorarmos a vida dos mais vulneráveis, conseguiremos também melhorar a nossa resiliência em condições extremas de calor.

com espaços públicos cheios de vida e muita actividade comercial registaram um menor número de mortes devido ao calor. Os residentes em bairros menos movimentados tinham menos probabilidades de saírem à rua em busca de algum alívio ou para visitarem vizinhos que se preocupassem com eles, depreendeu, porque não se conheciam uns aos outros, tinham menos sítios onde ir e, por vezes, receavam andar a pé pelas ruas. Por isso, permaneciam dentro de casa, sufocando de calor e morrendo. Nova Iorque mantém em funcionamento várias dezenas de centros de arrefecimento: bibliotecas, escolas, centros de dia para idosos e outros edifícios que abrem as portas ao público durante as vagas de calor. Em Nova Iorque, os centros encerram de noite e muita gente que poderia encontrar alívio nesses lugares nem sequer sabe da sua existência. Algumas pessoas recusam-se a ir para lá com receio de que os seus apartamentos vazios sejam assaltados, como Eric Klinenberg descobriu em Chicago. Em Phoenix, as pessoas sem-abrigo preferiram torrar em cidades de tendas, montadas sobre o asfalto dos parques de estacionamento, do que abandonar os seus bens terrenos enquanto procuravam alívio, relatou Ash Uss, uma activista local. A persuasão desses grupos a procurar espaços com ar condicionado poderá salvar vidas, como observou David Hondula. No entanto, também a diminuição do isolamento social poderá ser importante. Em Nova Iorque, a taxa de mortalidade dos moradores negros por problemas relacionados com o calor é duas vezes superior à dos brancos, embora esta taxa seja três vezes superior entre os brancos, comparados com os hispânicos, e cinco vezes superior se os compararmos com os asiáticos – talvez, em parte, por haver mais probabilidades de os brancos viverem sozinhos. D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R

19

BALUCHISTÃO, PAQUISTÃO Os crentes que realizam a árdua Hinglaj, uma peregrinação hinduísta através do deserto do Paquistão Ocidental, costumam frequentemente desmaiar em condições extremas de calor (40°C, na altura em que esta imagem foi captada). Quando a temperatura corporal aumenta, o coração tem de esforçar-se mais para bombear o sangue até à pele. Se não conseguir aguentar, a pressão sanguínea cai a pique. Os idosos correm riscos maiores. MATTHIEU PALEY

20

A gestão das condições extremas de calor pode ser mais complicada, porque é inseparável de outras questões sociais importantes. No entanto, se melhorarmos a vida dos mais vulneráveis da nossa sociedade, conseguiremos também melhorar a nossa resiliência em condições extremas de calor.

A

de 2003 desencadeou avaliações internacionais e reformas importantes. No espaço de um ano, a França ordenou a instalação de “salas de arrefecimento” em lares para idosos anteriormente desprovidos de ar condicionado, criou sistemas de vigilância do bem-estar por via telefónica, reforçou os sistemas de alerta ao calor e lançou uma campanha maciça de educação pública. Quando as temperaturas elevadas voltaram a surgir, foi atribuída a estas medidas uma redução de dez vezes dos valores da mortalidade. 22

VAGA DE CALOR EUROPEIA

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Temos a certeza absoluta de que as temperaturas elevadas continuarão a acontecer e que os aparelhos de ar condicionado, por si, não evitarão todas as mortes provocadas pelo calor. As pessoas continuarão a precisar de sair à rua. Por isso, em cidades quentes de todo o mundo, há equipas a plantar árvores e trepadeiras para impedir a passagem da luz solar. Estão a pintar coberturas de prédios, a plantar jardins em telhados, a montar estruturas nos passeios e nos parques, a instalar vaporizadores de ar húmido e aspersores nos parques de recreio. Estão em curso experiências com pavimento texturado permeável, que arrefece a atmosfera envolvente ao absorver e, em seguida, evaporar as águas pluviais. Segundo cálculos de investigadores do Instituto da Terra da Universidade de Colúmbia, a plantação de árvores em 17% da superfície terrestre de Nova Iorque e o tratamento da totalidade das coberturas

DASHT-E LUT, IRÃO Estes nómadas montam o seu acampamento no deserto de Lut, onde há mais vida do que parece. Segundo hipótese formulada pelos cientistas, os cadáveres das aves migratórias – que regularmente se desviam do seu curso e encontram aqui a morte – servem de sustento a raposas, osgas e gafanhotos. MATTHIEU PALEY

dos edifícios de maneira a reflectirem a radiação solar, em vez de a absorverem, permitiriam baixar a temperatura geral da cidade em cerca de 1ºC. “Não sabemos se o recurso a todas estas ferramentas será suficiente para sobrevivermos a mais meio grau de aquecimento”, muito menos aos três graus de aumento previstos até final do século, afirma Kristie Ebi, que estuda os efeitos do aquecimento global na saúde humana, na Universidade de Washington. “Mas não fazer nada será, certamente, insuficiente.” Será por isso decisivo repensar a forma como construímos edifícios para sobrevivermos a um futuro mais quente. Até meados do século XX, a maior parte dos edifícios era construída tendo em conta o clima. Nas latitudes mais quentes, os arquitectos incorporavam vigas, cúpulas, clarabóias, poços de ar e janelas operáveis para favorecer a ventilação cruzada e as correntes de ar

ascendentes. Toldos, persianas para filtrar a luz, estores de lâminas orientáveis e alpendres protegiam as salas do sol. As ventoinhas de tecto, que chegam a consumir mil vezes menos energia do que um aparelho de ar condicionado, eram omnipresentes. No entanto, à medida que a elegância e a influência da arquitectura modernista – com as suas janelas inoperáveis e divisórias de alumínio e vidro – se espalhavam pelo mundo a partir dos EUA e da Europa, o mesmo acontecia à dependência face ao ar condicionado por meios mecânicos. A arquitectura bioclimática está de novo na moda. Porém, temos de viver nas cidades que já existem. Não iremos provavelmente demolir, nem remodelar substancialmente, centenas de milhares de torres com isolamento deficiente e consumo intenso de energia. Em vez disso, como sugere o arquitecto Daniel Barber, talvez possamos remodelar as nossas expectativas. É chegado o momento, segundo ele, “de nos habituarmos a aceitar, senão mesmo a valorizar, o desconforto”. Antigamente, sentir um bocadinho de calor a mais no Verão era aceitável até para os mais ricos. Na opinião de Daniel Barber, deveríamos aprender a aceitar isso de novo. À luz deste paradigma, a frescura luxuosa das nossas salas de congressos, ou o “deleite térmico” que acolhe o peão transpirado quando as portas de um centro comercial se abrem de par em par, transformar-se-iam em artefactos de uma loucura passageira de finais do século XX. Na perspectiva de Daniel Barber, o devorador de energia que é o Norte Global, onde abunda o excesso de conforto, transferiria a sua porção da “riqueza térmica” para o Sul Global carente de energia, pelo menos até desistirmos dos combustíveis fósseis. Seria uma espécie de indemnização a título de conforto por termos sido os primeiros a desencadear as alterações climáticas. “Os arquitectos já dispõem das ferramentas e do conhecimento necessários para reduzir a nossa dependência do arrefecimento mecânico”, afirma. Agora, o seu projecto consiste em tornar o desconforto desejável, talvez mesmo revelador de estilo. Como é evidente, o estilo só resulta até um certo ponto. O desconforto auto-imposto será uma atitude ética difícil de propor às audiências de massas dos países ricos, e o próprio Daniel Barber reconhece as limitações do corpo humano. “Quando estiverem 60°C, espero, por Deus, que haja um ar condicionado para mim e para si também”, diz. “Mas quando estiverem 29,5°C, por favor limite-se a abrir a janela.” j D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R

23

Na soalheira Los Angeles, a inexistência de árvores em zonas habitadas por famílias de baixo rendimento deixou muitas comunidades mais vulneráveis ao aumento da temperatura. É um legado do planeamento urbano da cidade e do seu historial de políticas públicas racistas. T E XTO D E A L E JA N D RA B O RU N DA F OTO G RA F I A S D E ELLIOT ROSS

a SOMBRA

24

que DIvide

bem do momento em que teve pela primeira vez consciência do poder da sombra. Frequentava o terceiro ciclo e andava a correr num campo de futebol de Huntington Park, uma vila atravessada por linhas de caminhos de ferro e cabos de alta tensão, situada imediatamente a sul da linha do horizonte Los Angeles. Corria tão depressa debaixo do sol escaldante que sobreaqueceu. Ficou com a visão desfocada. O coração batia-lhe com força. Atordoado, dirigiu-se aos tropeções até um enorme pinheiro no canto sudoeste do campo. Era praticamente a única árvore existente em redor. Sob aquele abrigo, as tonturas de Miguel começaram a melhorar. A frequência cardíaca abrandou. Recuperou os sentidos, reanimado pela sombra profunda e fresca. Aquela simples bênção é abundante noutros pontos da cidade, sobretudo nos bairros ricos e maioritariamente brancos. No entanto, em bairros com habitantes predominantemente negros ou latinos, a sombra é um bem cada vez mais escasso. Los Angeles não é Phoenix nem Dallas. Tem um clima moderado, mas também é afectada por ondas de calor e aqui, ao contrário de qualquer outra cidade norte-americana, estes podem ocorrer em qualquer altura do ano. As alterações climáticas estão a agravar o problema. Já é altura de “desligar o sol”, diz Christopher Hawthorne, director de projectos da cidade de Los Angeles. Na sua opinião, a cidade precisa de descobrir formas de criar zonas de sombra, mais frescas, que podem até salvar vidas. MIGUEL VARGAS RECORDA-SE

é uma metrópole feita para o sol e não para a sombra. Na transição para o século XX, os governadores do Sul da Califórnia seduziram os migrantes do Oriente com visões de “uma luz do Sol quase eterna”. A atracção da luz excepcional perdurou graças à promoção de Hollywood e à celebração de artistas locais como Robert Irwin. “Há muitos dias em que o mundo quase não tem sombra”, disse Irwin à revista “New Yorker” em 1998. “Luz do dia, na verdade imensa luz, e nenhuma sombra.” Em Los Angeles, o planeamento urbano dá prioridade ao acesso ao sol. A legislação urbanística define frequentemente a quantidade de tempo durante o qual um edifício pode projectar sombra para que não sombreie excessivamente quintais, pátios ou parques. Os arquitectos projectaram edifícios e quarteirões inteiros de modo a serem transparentes à luz solar, deixando-a penetrar A CIDADE DE LOS ANGELES HOJE

26

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A National Geographic Society, empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho fotográfico do explorador Elliot Ross sobre a resiliência climática das comunidades nativas do Alasca. ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY

em todos os recantos. Depois da crise energética da década de 1970, a cidade tinha mais uma razão para garantir o acesso do sol a todo o lado e na actualidade tem mais capacidade solar instalada do que qualquer outra cidade do país. Contudo, num cenário de alterações climáticas, a luz solar de Los Angeles já não é tão positiva. Até meados deste século, se não se registarem significativos esforços internacionais para controlar as emissões de carbono, prevê-se que Los Angeles tenha 22 dias por ano com uma temperatura superior a 35ºC – mais do triplo do registo actual. Nos subúrbios do vale de San Fernando, poderá haver mais de 90 dias assim – um trimestre inteiro. O calor já é um factor que aumenta o risco de morte em Los Angeles, mesmo quando não é a sua causa directa. Durante uma vaga de calor curta, a taxa de mortalidade – atribuível a todas as causas de morte – aumenta 8% face ao valor normal. Passados quatro ou cinco dias, esse

O planeamento urbano de Los Angeles, centrado na utilização do automóvel, sugere que a cidade deve ser apreciada a partir do interior de um veículo com ar condicionado. Sem muita sombra, os peões como estes torram frequentemente ao sol.

PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

Uma árvore solitária cresce numa zona industrial junto da baixa da cidade de Los Angeles, onde as superfícies podem atingir temperaturas superiores em 80C às dos bairros com mais vegetação. Neste lugar, vivem apenas cerca de cem pessoas, mas cerca de 50 mil deslocam-se aqui para trabalhar.

valor cresce para 25%, podendo atingir 48% nas comunidades idosas negras e latinas. “É muito simples, na verdade. Se nos preocuparmos com o conforto das pessoas, basta darmos-lhes mais oportunidades de usufruírem de sombra”, diz V. Kelly Turner, especialista em planeamento urbano da Universidade da Califórnia. A SOMBRA QUE DIVIDE

27

Num dia quente, sentimos muito mais calor sob luz solar directa do que à sombra, mesmo que a temperatura atmosférica seja a mesma. Essa temperatura resulta da velocidade à qual as moléculas do ar se deslocam e aquecem um ser humano ao colidirem com ele. No entanto, a radiação solar também aquece o organismo. Directamente expostos à luz solar, podemos sentir-nos até 11 graus mais quentes do que numa sombra ali ao lado. O mesmo se aplica aos edifícios, passeios e outros grandes objectos: a luz solar directa transmite mais energia e, consequentemente, mais calor. O asfalto é particularmente absorvente e, juntamente com o betão, liberta na atmosfera esse calor capturado durante várias horas, mesmo após o desaparecimento do Sol, contribuindo para o efeito de ilha de calor urbano. Uma árvore bem posicionada, por outro lado, pode manter um edifício 10 graus mais fresco do que se estivesse completamente exposto ao sol. A sombra mantém tudo mais fresco e a cidade sobreaquecida tem reparado nisso.

Q

europeus chegaram à bacia de Los Angeles, encontraram uma paisagem cuidadosamente mantida pelos tongva e pelos restantes habitantes nativos, uma rede ecológica rica com vastas zonas de sombra. Florestas de carvalhos e outras árvores serpentavam ao longo dos rios e nas terras altas que são agora a zona leste de Los Angeles, dando sombra e uma nutritiva chuva de bolotas. Os espanhóis abateram muitos dos carvalhos para aproveitarem a sua madeira e limparam outras áreas florestadas para criarem espaço para o gado. Fizeram sombra, construindo edifícios, em vez de plantarem árvores: as ruas foram dispostas ao longo de um eixo com aproximadamente 45 graus em relação ao sentido norte-sul, de modo a maximizar o Sol e a sombra durante todo o ano. Arcadas compridas revestiam as fachadas das missões e das residências. No século XIX, os colonos provenientes do Leste dos EUA remodelaram de novo a paisagem, plantando novas culturas e pomares de citrinos. No século XX, usando água extraída do outro lado da bacia de Los Angeles, acabaram por criar uma “floresta urbana”, na expressão de Travis Longcore, cientista ambiental da UCLA. Após a Segunda Guerra Mundial, uma casa unifamiliar com um carro estacionado ao lado de 28

UANDO OS COLONIZADORES

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

um jardim com um belo relvado tornou-se a metáfora do sonho americano e a crescente população de Los Angeles assimilou-a. A densidade arbórea cresceu 150% entre a década de 1920 e o início da década de 2000, altura em que havia muito mais de dez milhões de árvores na cidade. No entanto, as florestas urbanas são alimentadas com dinheiro e este não se encontra distribuído de forma igual. A maior parte da sombra de Los Angeles existe em terrenos privados, em locais como Los Feliz, Hollywood ou Brentwood, onde os residentes podem comprar árvores e pagar despesas, frequentemente avultadas, com os seus cuidados. Actualmente, quase 20% das árvores da cidade localizam-se em somente cinco quarteirões, que servem de lar apenas a 1% da população. Por contraste, as árvores não germinaram tão depressa nas zonas mais pobres da cidade. Na primeira metade do século XX, a prática discriminatória do redlining (bairros pobres demarcados por uma linha vermelha) negou a muitas pessoas de outras etnias créditos à habitação e conduziu a um enorme desinvestimento no património público, incluindo as árvores. As árvores públicas plantadas nesses bairros eram frequentemente negligenciadas pelos serviços florestais por falta de financiamento. Além disso, para criar espaço para os automóveis, a cidade removeu árvores das ruas e estreitou os passeios. A disparidade é gritante: em alguns dos bairros mais pobres da cidade, como Huntington Park, a sombra das árvores cobre muito menos de 10% da área, enquanto em sítios mais abastados, como Los Feliz, a cobertura arbórea pode alcançar quase 40%. A disparidade tem um impacte directo da saúde pública. Bairros anteriormente discriminados como “zonas vermelhas” são, em média, 4,2 graus mais quentes do que os bairros mais ricos. “Simplesmente, não se vê verde nas zonas vermelhas”, diz Vivek Shandas, ecologista urbano da Universidade Estadual de Portland, consultor da cidade de Los Angeles num projecto para plantação mais equitativa de árvores. Em alguns troços de uma das avenidas de Los Feliz, as raízes de figueiras-estranguladoras com décadas de idade estendem-se pelos dois passeios da sossegada estrada com dois sentidos. Ramos luxuriantes encontram-se no meio da avenida com 12 metros de largura. Luz encoberta e fresca tremeluz na erva que cresce no chão. Contudo, 11 quilómetros mais a sul nessa mesma avenida, na zona Centro-Sul de Los Angeles, não há barreiras contra o sol. (Continua na pg. 36)

SAN

MTS.

Zonas vermelhas

Com o New Deal da década de 1930, a Home Owners’ Loan Corporation (HOLC) criou mapas codificados com cores para a avaliação de risco no crédito de habitação. Utilizou um sistema V a l e San de classificação chamado “redlining”, Fe r na classificando os bairros por cores. nd o Ajudou assim a impor a segregação.

S

CALIFÓRNIA

S

210

405

Los Angeles foi uma entre mais de cem áreas urbanas dos EUA afectadas pelo sistema de classificação dos bairros por cores.

5

2 210 101

110

San Gabriel Vale de

10 10 REDUZINDO A DIVERSIDADE Os burocratas citaram a presença ou a proximidade de “elementos raciais subversivos” como causa para atribuírem uma classificação baixa à zona. O seu alvo principal eram os afro-americanos, os judeus e as pessoas de ascendência mexicana e japonesa. Zonas “mistas” com rendimentos inferiores eram consideradas “perigosas” e os créditos eram recusados aos moradores. Era legal impor restrições raciais à realização de escrituras de compra e venda de imóveis e os bairros brancos com “protecções” contra a venda a minorias recebiam classificações mais altas.

VERM

605 5

LAX

105

110 405

710

ington

Península Palos Verde

OCEAN O 5 km

PA

405 n Pedro Baía Sa

o

CÍ FI CO

COMO A DISCRIMINAÇÃO MOLDOU LOS ANGELES Durante grande parte do século XX, a segregação incentivada pela administração federal forçou a maioria das pessoas de cor a viver em zonas residenciais de densidade populacional mais elevada e de menor qualidade. Ao mesmo tempo, os moradores brancos recebiam créditos para aquisição de habitação em bairros exclusivos, onde o valor das casas subiu. O acesso desigual ao crédito e a disparidade racial na distribuição de riqueza mantêm-se, apesar de as políticas discriminatórias da habitação terem sido proibidas nas décadas de 1960 e 1970.

A HOLC classificava apenas bairros residenciais, não abrangendo zonas comerciais, industriais ou outras.

AINDA SEGREGADOS E ESTRATIFICADOS A classificação dos bairros por cores é proibida há 50 anos, mas o seu legado perdura, concentrando a pobreza e as pessoas de cor em algumas zonas e os brancos ricos noutras. População não-caucasiana em áreas com categorias HOLC, 2019 0

30%

60%

90%

A B C D Rendimento médio das residências, 2019 (em dólares) A B C D

0

$50.000

$100.000

$150.000

RILEY D. CHAMPINE. FONTES: JEREMY S. HOFFMAN, MUSEU DA CIÊNCIA DE VIRGÍNIA; UNIVERSIDADE DE RICHMOND, DIGITAL SCHOLARSHIP LAB; RICHARD ROTHSTEIN, “THE COLOR OF LAW: A FORGOTTEN HISTORY OF HOW OUR GOVERNMENT SEGREGATED AMERICA”, 2017; GABINETE DE CENSOS DOS EUA

EM LOS ANGELES, A MAIOR PARTE DA SOMBRA CONCENTRA-SE EM COMUNIDADES ONDE AS PESSOAS PODEM PAGAR A MANUTENÇÃO DAS ÁRVORES.

CLASSIFICAÇÃO A, ROLLING HILLS

EM ZONAS DE BAIXO RENDIMENTO, MAIORITARIAMENTE HABITADAS POR MINORIAS ÉTNICAS, A FALTA DE INVESTIMENTO PÚBLICO IMPLICA MENOS ÁRVORES.

CLASSIFICAÇÃO D, HAWTHORNE

CLASSIFICAÇÃO A, LOS FELIZ

CLASSIFICAÇÃO B, LOS FELIZ

CLASSIFICAÇÃO C, EAST HOLLYWOOD

CLASSIFICAÇÃO D, PICO-UNION

EM LOS ANGELES, A PRESENÇA DE ÁRVORES REFLECTE A DESIGUALDADE URBANA 32

À medida que percorremos de norte para sul a Vermont Avenue, as árvores tornam-se mais escassas e faz mais calor: são dez quilómetros que reflectem os efeitos duradouros da discriminação do sistema redlining, que classificava por cores as zonas A

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

(“verdes” ou melhores para investir) a D (“vermelhas” ou piores). Nas zonas de categoria A, um mapa de 1939 refere que a propriedade de certas casas ficava “perpetuamente limitada a caucasianos”. A B era “razoavelmente homogénea”, mas a

classificação C estava definida por “elementos raciais subversivos” e possíveis “infiltrações” das zonas de categoria D – como aquela que se encontra em Pico-Union, quase sem árvores e com uma temperatura muito mais alta do que dez quilómetros a norte.

DESEQUILIBRADO As zonas de classificação A têm uma quantidade mais ou menos igual de cobertura arbórea e superfícies expostas ou “paisagens rígidas” (como edifícios e pavimento). Nas zonas com classificação D, as paisagens rígidas dominam o ambiente, deixando pouco espaço para o crescimento de árvores de grande porte.

37%

27%

A B C D

20% 17% 0

L

Cobertura das copas vs. Cobertura de superfície impermeável

40%

0

54%

64% 67%

MÉDIAS PARA ZONAS COM CATEGORIAS HOLC NA REGIÃO DE LOS ANGELES

RILEY D. CHAMPINE, THEODORE SICKLEY. FONTES: LABORATÓRIO DE ESTUDOS DIGITAIS DA UNIVERSIDADE DE RICHMOND; AGÊNCIA PARA A PROTECÇÃO DO AMBIENTE DOS ESTADOS UNIDOS

As árvores do centro de LA

Per

Reservatór Hollywoo

onto representado a página anterior

Quatro zonas da Vermont Avenue, com classificações diferentes nos mapas da HOLC de 1939, mostram os efeitos ambientais do redlining: menos arvoredo em zonas com classificações inferiores.

110

Cobertura arborizada 2019 Zonas com categoria HOLC em 1939

C89

A

14,3%

L. Parque Echo

B

C

D

Zonas vermelhas

As auto-estradas eram frequentemente projectadas de modo a atravessarem zonas vermelhas, expondo os residentes das suas proximidades a mais poluição.

10

10

60 5

110

Rio Los A ng ele

HUNTINGTON PARK 1 km

AS ÁRVORES PODEM AJUDAR A ARREFECER UMA CIDADE A cobertura arbórea de uma cidade é uma infraestrutura à semelhança do sistema de esgotos. O arvoredo desenvolvido é potencialmente mitigador do efeito de “ilha de calor”, no qual os pavimentos e edifícios podem reter o calor e aumentar as temperaturas muito acima do que acontece nas paisagens naturais fora da cidade. No entanto, a manutenção de uma floresta urbana demora tempo e consome recursos, sobretudo num clima quente como o de Los Angeles, onde a irrigação é cara. 34

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Uma floresta urbana eficaz contém uma variedade de espécies de árvores adaptadas ao calor, com copas amplas e folhagem densa. A chuva ou a água existente no subsolo, que se evapora através das árvores, podem arrefecer a temperatura atmosférica até 5°C. Objectos que criem sombra podem arrefecer a temperatura à superfície até 25°C num dia quente. DIANA MARQUES. FONTE: YUJUAN CHEN, TREEPEOPLE

s

Reserva Holl

Pontos quentes

Tempe em z

B

As te turas mais baixas à superficie no centro de Los Angeles registam-se nos montes e junto de corpos de água.

Imagens de satélite de um dia quente de Julho mostram os locais onde o efeito de ilha de calor urbano é mais severo. O calor dá tréguas às zonas com mais sombra, a maioria das quais com categorias mais altas em 1939.

representado ina anterior

110

Temperatura média à superfície* 35°C ou menos

C

55°C ou mais

45°C

arque Echo

10

D

bras projectadas por arranha-céus proporcionam frescura no núcleo urbano da cidade.

10

60 5

110

LO S

AN G EL E S

Rio Los A ng ele

Zonas industriais com grandes estruturas de metal e betão são os pontos mais quentes da cidade.

S UL

s

HUNTINGTON PARK

1 km

À medida que Los Angeles tem mais dias extremamente quentes devido às alterações climáticas, a capacidade do arvoredo urbano para baixar as temperaturas poderá salvar vidas. Actualmente, porém, a cobertura arbórea da cidade encontra-se sobretudo em zonas onde os moradores são tendencialmente brancos e ricos. Nos bairros mais pobres, classificados como zonas vermelhas e negligenciados, não existe esta protecção contra o calor.

Os pontos representam áreas HOLC no centro de Los Angeles e na região da grande Los Angeles 52°C Temperaturas à superfície* (°C)

NÃO HÁ SOMBRAS EM PARTE DE LOS ANGELES

RILEY D. CHAMPINE, THEODORE SICKLEY FONTES: JEREMY S. HOFFMAN, MUSEU DE CIÊNCIA DE VIRGÍNIA; UNIVERSIDADE DE RICHMOND, DIGITAL SCHOLARSHIP LAB; GABINETE DE CENSOS DOS EUA; EPA; NASA

D48

48 44

C89

Temperatura média à superfície por categoria* D 46,9 C 46,4 B 45,0 A 42,2

B73

40

A43

36 32

0

10

30 50 Cobertura arborizada

70%

*TEMPERATURA MÉDIA À SUPERFÍCIE DA TERRA NO DIA 3 DE JULHO DE 2020

LOS ANGELES NÃO É A ÚNICA Baltimore, Maryland, também contratou moradores para plantar árvores em comunidades necessitadas. Phoenix, Arizona, está a escolher os bairros mais quentes para plantar árvores, construir estruturas de sombra e redesenhar ruas. Boston, Massachusetts, é uma de muitas cidades que criaram mapas de sombra sofisticados para os esforços de planeamento no futuro. Para mais artigos sobre como ajudar o planeta, visite natgeo.com/planet.

Ladale Hayes planta uma árvore no âmbito de uma campanha de Los Angeles para plantar 90 mil árvores até ao fim de 2021. Ladale trabalha para a organização sem fins lucrativos North East Trees e lidera uma equipa de jovens para plantação nos bairros onde vivem. As árvores precisarão de muitos anos de cuidados até que a sua sombra proporcione alívio.

Rachel O’Leary e Cindy Chen trabalham para uma organização sem fins lucrativos chamada City Plants e andavam à procura de sítios para plantar árvores no Centro-Sul da cidade. Num longo quarteirão, encontraram apenas nove árvores na rua. Seis eram tão jovens que só faziam um projecto de sombra. Um cão rafeiro estava deitado ao fresco sob um jacarandá excessivamente podado. Trabalhadores da construção civil descansavam à sombra de duas figueiras de troncos grossos. O resto do quarteirão estava exposto ao sol. Cindy criou um modelo informático que descobre as pequenas parcelas de terra onde a cidade pode acrescentar árvores, mas a proposta é mais difícil do que parece. Nesse quarteirão, dos 8.220 metros quadrados de terrenos sob gestão pública (incluindo a rua), apenas cerca de mil metros quadrados são potencialmente plantáveis. O modelo 36

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

de Cindy pôs de lado os sítios que não serviam para plantar árvores, por neles existirem acessos para automóveis, bocas de incêndio, becos e outros obstáculos. O espaço que sobrou chegava para mais 16 árvores de rua. Não é muito, reconhece Rachel O’Leary, mas esta área tem actualmente menos de 3% de cobertura da vegetação. “Meia dúzia de árvores é melhor do que nenhumas”, diz.

L

OS ANGELES PRETENDE PLANTAR

mais 90 mil árvores até finais deste ano para aumentar a cobertura vegetal em mais de 50% até 2028 em bairros negligenciados como o Centro-Sul da cidade. A campanha está longe de ser uma solução rápida, admite, sem rodeios, Rachel Malarich, directora florestal da cidade. As árvores demoram anos, ou mesmo décadas, a crescer e pre-

cisam de uma grande quantidade de água. O benefício, porém, supera largamente os custos. Christopher Hawthorne defende uma abordagem holística que leve em conta as necessidades de sombreamento em todas as decisões relacionadas com o planeamento urbano desta e de outras cidades. “Em vez de abrirmos a porta ao sol e à luz solar, precisamos de começar a pensar em projectos que nos protejam do sol e do calor”, diz. Numa escala maior, isso implicaria reorientar a cidade, afastando-a dos automóveis e devolvendo espaço aos peões e às árvores. Poderia significar estreitar as ruas e permitir que fossem sombreadas por edifícios mais altos do que a actual legislação permite. Existem leis que ditam o direito ao calor nos edifícios e, na Europa, até à luz solar. Talvez tenha chegado o momento de garantir o direito à sombra e à frescura.

A cidade começou a dar passos pequenos. Num concurso público de projectos para reimaginar candeeiros de iluminação pública, os concorrentes tiveram de imaginar duas ou três funções – dar luz, fazer sombra e, se possível, talvez servirem de suporte a obras de arte. Os abrigos das paragens de autocarro serão os próximos a reconfigurar e, ainda antes disso, a cidade vai acrescentar 750 abrigos em paragens muito usadas nas ruas mais quentes. Qualquer sombra, de qualquer género, seria mais do que bem-vinda, diz Esmerita Gómez enquanto espera pelo autocarro na esquina de Vermont Avenue com Venice Boulevard, perto da baixa da cidade de Los Angeles. “Antigamente, havia aqui três árvores, mas cortaram-nas.” Ela coloca-se cuidadosamente sob a sombra estreita do poste de uma linha telefónica até o autocarro parar à sua frente. O processo de descobrir ou fazer sombra é uma aptidão bem aperfeiçoada pelos moradores latinos da cidade, comenta James Rojas, planeador urbano que cresceu na zona oriental. Veja-se o caso dos pátios, alpendres e terraços de Boyle Heights: são uma miscelânea de soluções criativas de sombra. Tapetes de bambu atados a vedações de ferro forjado. Chapéus de sol desbotados encaixados no sítio certo, encostados a treliças cobertas de buganvílias. Lonas penduradas com elegantes dobras “para proteger mi padre y la Virgen de Guadalupe”, diz Gubernal Velasquez, debaixo de um belo toldo branco, apontando na direcção do seu pai idoso e de um ícone religioso. São soluções de design de necessidade que a cidade pode incentivar enquanto espera que as copas cresçam ou que se processe uma remodelação urbana. Miguel Vargas, o plantador de árvores, prefere a visão de longo prazo. Conhece bem como é precioso um momento à sombra e sabe que é ainda mais importante para as abuelitas do seu bairro que vão buscar os netos a pé, para as empregadas domésticas que esperam pelo autocarro na paragem ou para todas as pessoas que não têm um equipamento de ar condicionado. Uma gota de suor escorre-lhe pela bochecha enquanto ele escava um buraco para uma de 1.400 novas árvores que ajudou a plantar em Huntington Park. “Isto não vai acontecer a curto prazo. Não vamos sentir os efeitos este ano, nem talvez daqui a dez anos. As pessoas que os vão sentir são da próxima geração”, diz. “Devagar, mas com segurança, haveremos de lá chegar, para que faça menos calor nos bairros de habitação social.” j A SOMBRA QUE DIVIDE

37

OS VALIOSOS FÓSSEIS QUE APARECERAM NA LIXEIRA

Xènia Aymerich, conservadora-chefe do Instituto Catalão de Paleontologia Miquel Crusafont (ICP) segura o crânio de um barburofelídeo com dentes de sabre. É um de mais de 70 mil fósseis descobertos em Abocador de Can Mata, um aterro sanitário situado nos arredores de Barcelona e um paraíso para os paleontólogos.

Numa lixeira, os paleontólogos vão descobrindo muitas espécies ancestrais, incluindo alguns precursores dos símios… e dos seres humanos.

Can Mata é o maior aterro sanitário activo da Catalunha e continua a crescer. Fartos do cheiro e do barulho, muitos moradores querem o seu encerramento. Contudo, cada expansão permite aos paleontólogos acederem a fósseis enterrados nas profundezas que, de outro modo, seriam inalcançáveis.

O solo de Can Mata contém fósseis fascinantes com cerca de 11,2 milhões a 12,5 milhões de anos, incluindo espécies de primatas ancestrais que não se encontram em nenhuma outra parte do mundo. A expansão da lixeira é acompanhada por paleontólogos desde 2002.

POUCOS LUGARES SÃO MENOS CONVIDATIVOS DO QUE UMA LIXEIRA NUMA NOITE GELADA. N O E N TA N T O ,

ali estava o paleontólogo Josep Robles em Dezembro de 2019, em busca de pistas raras sobre a história da evolução humana. Durante grande parte dos meses anteriores, passara várias noites por semana em Abocador de Can Mata, o maior aterro sanitário activo da Catalunha, em Espanha. Sete dias por semana, 24 horas por dia, as escavadoras mergulhavam as suas garras metálicas no subsolo para abrirem mais um poço fundo onde enterrar o lixo da cidade de Barcelona e arredores. Josep Robles era um de oito paleontólogos que trabalhavam por turnos, mantendo-se atentos às toneladas de terra amarelada pejada de rochas, removida pelas escavadoras. Durante o dia, o aroma doentiamente adocicado da podridão atraía bandos de gaivotas. A terra, macia e fina como açúcar em pó, erguia-se em pequenas nuvens, a cada passo dado por Josep Robles. De noite, ele vestia várias camadas de roupa e colocava uma lanterna frontal sobre o capacete. Sempre que detectava uma massa que parecia ter potencial, acenava para o operador da escavadora, pedindo-lhe que parasse enquanto investigava o objecto de perto. Se se mostrasse promissora, o paleontólogo cobria-a com folha de alumínio reflectora para ser retirada de manhã, à luz do dia. Depois, afastava-se e a máquina voltava a rugir. O solo de Can Mata contém uma enorme variedade de fósseis que abrangem mais de um milhão de anos da época geológica designada por Miocénico, entre cerca de 11,2 milhões e 12,5 milhões de anos. A partir de 2002, vários paleontólogos do Instituto Catalão de Paleontologia Miquel Crusafont (ICP), da Universidade Autónoma de Barcelona, encontraram mais de 70 mil fósseis deste período, incluindo fósseis de antepassados de cavalos, rinocerontes, veados, elefantes, um antigo parente do panda-gigante e o esquilo voador mais antigo do mundo. Também ali descobriram uma enorme variedade de vestígios ancestrais de roedores, mas também de outros grupos como as aves, anfíbios e répteis. Contudo, alguns dos achados mais importantes são fósseis de espécies de primatas que não se encontram em nenhum outro lugar. Muitos são hominóides muito antigos, precursores dos gibões, dos grandes símios e dos seres humanos. 44

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Alba Rico Barrio é uma das cientistas que visitaram a lixeira ao longo dos anos para ajudarem a escavar as suas riquezas paleontológicas. Os fósseis que emergiram de Can Mata até à data representam mais de 85 espécies de mamíferos e cerca de 15 espécies de aves, anfíbios e répteis.

No Miocénico Médio, havia dezenas de espécies de hominóides. Tiveram origem em África, mas também já existiam na Ásia e na Europa há 12,5 milhões de anos. Os ossos de primata descobertos em Can Mata estão a ajudar a reconfigurar o quadro de um período das profundezas do nosso passado que, em muitos aspectos, permanece obscuro. “Can Mata permitiu-nos mostrar que, naquele horizonte temporal, os primatas eram muito mais diversificados do que se pensava”, diz David Alba, director do ICP. E cada nova pista fornecida por um fóssil ajuda-nos a desvendar alguns dos mais profundos mistérios da nossa espécie: O que somos? De onde viemos? E quando começámos a ser? a cerca de 40 quilómetros para noroeste de Barcelona, Can Mata entrou para o mapa dos fósseis de primatas no início da década de 1940, quando Miquel Crusafont, que deu nome ao ICP, ali descobriu parte da mandíbula e alguns dentes de um grande símio do Miocénico. Achados subsequentes contribuíram para transformar Can Mata num sítio paleontológico de referência internacional. Apesar do seu estatuto, também começou a funcionar legalmente como aterro sanitário em meados da década de 1980. No início do século XXI, quando a empresa gestora do aterro, a Cespa Waste Management, quis escavar novas células para enterrar o lixo, com um mínimo de 30 metros de profundidade, foi obrigada pela lei espanhola que rege o Património Histórico a garantir que as suas máquinas não esmagariam fósseis nem os enterrariam debaixo das ilhas de lixo. A Cespa contactou alguns cientistas para supervisionar as escavações e eles saltaram de entusiasmo perante a possibilidade de acederem às profundezas da lixeira. Em 2002, os paleontólogos independentes (actualmente todos do ICP) Isaac Casanovas-Vilar, Jordi Galindo e David Alba (então douLO C A L I Z A DA

torando) começaram a acompanhar as escavações em Can Mata. Três semanas depois de começarem a trabalhar, escavaram o dente de um dinotério, um enorme parente do elefante com presas curvadas para baixo. Investigando melhor o local, encontraram o fragmento de um osso do dedo. “Comentei que me parecia de um primata”, recorda David Alba. O paleontólogo correu até ao automóvel e trouxe o molde da mão de um Hispanopithecus, um símio extinto que fora descoberto num vale das proximidades. Depois de compararem os dois, os paleontólogos continuaram inseguros sobre o que tinham descoberto. Em seguida, encontraram três fragmentos de um canino, que David Alba colou, e uma série de fragmentos de ossos minúsculos e frágeis espalhados perto de um bloco. De câmara em punho, Alba deitou-se de barriga para baixo para ver melhor o que havia sob o bloco. Ficou estarrecido, ao aperceber-se de que estava a contemplar directamente um rosto ancestral. “Nós os três, muito nervosos, mal falávamos”, conta. “Virámo-lo ao contrário e ali estava a cara de um Pierolapithecus a olhar para nós. Foi um dos momentos mais importantes da minha vida.” Pierolapithecus catalaunicus foi o nome que atribuíram à nova espécie de grande símio ali identificada, embora a equipa o trate pela alcunha de Pau. Com cerca de 12 milhões de anos, é um dos esqueletos de primata do Miocénico mais completos até hoje descobertos. Em seguida, a equipa encontrou mais ossos do peito, do dorso inferior e dos pulsos do animal. É o fóssil de primata mais antigo conhecido que apresenta provas inequívocas de uma característica única dos símios e dos seres humanos: uma estrutura corporal ortógrada, ou erecta. “Não devemos confundir isto com bípede”, sublinha Alba. “Algumas pessoas usam a palavra ‘erecto’ com o significado de ‘bípede’. Isso está errado.” (Continua na pg. 52)

CADA FÓSSIL AJUDA-NOS A DESVENDAR OS PROFUNDOS MISTÉRIOS DA NOSSA ESPÉCIE: O QUE SOMOS? DE ONDE VIEMOS? E QUANDO COMEÇÁMOS A SER? 46

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A bacia de Vallès-Penedès, na Catalunha, é um sítio de importância mundial para a paleontologia. Durante milhões de anos do Miocénico, uma falha activa provocou o abatimento gradual da bacia, criando um reservatório de restos de animais em progressiva acumulação. Os sedimentos escorridos da cordilheira Pré-litoral enterraram posteriormente os ossos em sedimentos, preservando-os por milhões de anos. Deposições sedimentares Elevação miocénicos 1.675m Antigo fluxo de sedimentos Jazidas 0m de fósseis

Sant Jeroni 1.236m

d or

C

.

PORT UGA L

ENTERRADOS NA HISTÓRIA CATALUNHA

Madrid

E S PA N H A

l

ér P

ra o t i

l

ès

ened P s allè lha V

Fa

Terrassa

4 km

Sabadell

Mollet del è s Vallès d e n 296m Pe è s Martorell Sant l l a lBadalona Cugat r a o V t i L ia c a a Barcelona ir

ATERRO DE CAN MATA

e

n



er

it

Llobr ega t

ed

d

M

r o C

e

M

Vilafranca del Penedès

h il

ar

B

o

Castelldefels

Vilanova i la Geltrú

PRIMEIROS ACHADOS As condições ambientais eram ideais para os primatas ancestrais. Quatro espécies (apresentadas a negrito) foram descobertas em Can Mata. Nas novas escavações, os cientistas esperam descobrir mais primatas. Pliopithecus canmatensis Símios do Velho Mundo

Pliobates cataloniae (”Laia”)

Hominóide Gibões

12,5 Milhões de anos

MIOCÉNICO SUPERIOR

12

11,5

11

Pb. cataloniae

Pp. canmatensis D. fontani P. catalaunicus

Dryopithecus fontani Pierolapithecus catalaunicus (”Pau”) Anoiapithecus brevirostris (”Lluc”)

Pequenos macacos

MIOCÉNICO MÉDIO

Estes símios deslocavam-se usando sobretudo os quatro membros, mas são a primeira espécie adaptada para se erguer na posição erecta e trepar.

A. brevirostris

Já escavado

Hominídeo

9m

Orangotangos Gorilas Chimpanzés Bonobos Grandes macacos

Homídeo Humano

A actividade tectónica causou a inclinação das camadas de sedimentos. As mais antigas já foram escavadas, mas faltam as mais recentes.

ROSEMARY WARDLEY E DIANA MARQUES FONTES: DAVID M. ALBA E ISAAC CASANOVAS-VILAR, INSTITUTO CATALÃO DE PALEONTOLOGIA MIQUEL CRUSAFONT; EU-DEM

70m

Uma vez retirados do aterro, os fósseis são armazenados na sede do ICP, em Barcelona, onde aguardam preparação e estudo. O conservador Jordi Galindo (na imagem) verifica as etiquetas de pedaços de terra cheios de fósseis, acondicionados em espuma de poliuretano.

Entre os ossos e dentes encontrados em Can Mata (em sentido horário a partir do topo esquerdo) contam-se restos de um porco extinto, um trágulo, um cágado gigante e um antepassado de um elefante. Variantes de químicos presentes nos fósseis, chamados isótopos, encerram pistas sobre o clima da região no passado, como alterações na precipitação e na temperatura. Os isótopos de carbono também indicam os tipos de plantas ou presas que os animais consumiam. 50

Em vez disso, uma estrutura corporal ortógrada permite subir, pendurar-se em ramos, baloiçar entre ramos e, por vezes, caminhar sobre duas patas. Embora alguns destes comportamentos tenham talvez evoluído diversas vezes de forma independente, a estrutura corporal ortógrada poderá ter resultado de uma única evolução ou talvez de duas. Segundo David Alba e os seus colegas, o fóssil sugere que o último antepassado comum de todos os hominídeos poderá ter sido ortógrado. Nesse caso, ele poderá dar-nos uma pista sobre o que terá dado vantagem evolutiva a certas espécies. A equipa de Can Mata ficou também entusiasmada com a descoberta de outro novo hominóide a que chamaram Anoiapithecus brevi52

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

rostris, com cerca de 12 milhões de anos. A face da maioria dos primatas é protuberante, mas a face deste macho fossilizado, que recebeu a alcunha de Lluc, era intrigantemente plana, fazendo lembrar as faces do nosso próprio género, o Homo. Os investigadores propuseram que tal seria o resultado de uma evolução convergente, na qual características semelhantes evoluem em organismos não aparentados ou com parentesco distante. Depois, em 2011, apareceu o fóssil de uma fêmea de Pliobates cataloniae, que recebeu a alcunha de Laia. Esta espécie recém-encontrada viveu há cerca de 11,6 milhões de anos, ou seja, cerca de meio milhão de anos depois de Pau.

Álex Pérez, director de colecções do museu de ciência CosmoCaixa, em Barcelona, examina os ossos fossilizados do Pliobates cataloniae, um dos primatas ancestrais identificados em Can Mata. Esta espécie diminuta mostra que alguns antepassados antigos dos símios modernos e dos seres humanos eram muito mais pequenos do que os cientistas pensavam.

A compreensão das raízes dos grandes símios é importante para perceber as origens dos hominídeos, o táxon que surgiu depois de a nossa linhagem e a dos chimpanzés se separarem do seu antepassado comum, há seis a oito milhões de anos. A linhagem humana “não apareceu do nada”, diz David Alba. “Por isso, precisamos de saber a partir de onde evoluiu.” dos fósseis da lixeira já forneceu mais de 85 espécies de mamíferos que viveram no tempo destes primatas pré-históricos. Um dos achados mais recentes foi o Chalicotherium, um ungulado alto e com garras que parece uma estranha mistura de preguiça-gigante, urso, cavalo e gorila. Outra foi um A M I N A D E O U RO

barburofelídeo com dentes de sabre que não é um verdadeiro felídeo – a família que inclui os leões e os tigres. Em vez disso, pertencia a uma família de carnívoros que divergiu dos antepassados dos felídeos há possivelmente 40 milhões de anos. Todos os fósseis datam de um importante período de transição, entre o Miocénico Médio e o Superior, quando as florestas húmidas subtropicais da região estavam a tornar-se mais áridas e as pradarias se expandiram. Estas descobertas permitem aos cientistas reconstituir as alterações ambientais ocorridas em Can Mata ao longo de um milhão de anos, em intervalos temporais de 100 mil anos. Esse objectivo é possível porque Can Mata tem um registo geológico longo e contínuo. “Os ecossistemas conseguem tolerar alterações durante algum tempo, mas quanto? É uma pergunta à qual tentaremos responder para este ambiente em particular e neste tempo em particular”, defende Isaac Casanovas-Vilar, do ICP. Será possível escavar nas próximas décadas? Alguns moradores da zona estão fartos de Can Mata, do seu fedor intenso, da interminável procissão de camiões de lixo libertando fumos de escape, da sua expansão constante. No Outono de 2019, enquanto Josep Robles e os colegas monitorizavam as escavadoras, manifestantes reuniram-se junto da entrada da lixeira, empunhando cartazes escritos em catalão. Prou pudors. Tanquem l’abocador. Volem respirar en pau. “Chega de maus cheiros.” “Fechem o aterro.” “Queremos respirar em paz.” Contudo, num referendo recente, os moradores aprovaram a expansão da lixeira, potencialmente até ao final da década. Por isso, os cientistas não partirão tão cedo. E têm muito trabalho para fazer com os fósseis já identificados. Apenas 20% dos seus achados foram limpos de sedimentos endurecidos e quimicamente preservados. Há milhares de outros embrulhados em papel castanho e película aderente, guardados em salas de armazenamento frescas e subterrâneas. Numerado e etiquetado, cada pacote aguarda que um investigador curioso o desembrulhe. Alguns estão à espera há quase 20 anos. “Isto é trabalho para as próximas três ou quatro gerações de paleontólogos”, diz David Alba. “Tenho a certeza de que há fósseis interessantes aqui escondidos.” j O S VA L I O S O S F Ó S S E I S D E C A N M ATA

53

Em Coimbra, o canoísta olímpico e vice-campeão europeu de K1 500 João Ribeiro leva a cabo diferentes testes físicos, orientados pelo investigador Amândio Santos. À esquerda, mede o consumo máximo de oxigénio, enquanto rema num simulador laboratorial. À direita, num pletismógrafo de deslocamento de ar, que utiliza a densitometria para determinar a composição corporal.

T E X TO E F OTO G R A F I A S D E A NTÓ N I O LU Í S CA M P O S

Da canoagem à maratona, da marcha atlética ao alpinismo, os limites do ser humano são testados continuamente. Em Coimbra e no Porto, duas equipas de investigadores transformam as limitações em forças.

A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES

H

atingi o topo do pico Huayna Potosi, a 6.088 metros de altitude, na Bolívia. A noite persistia e só se adivinhava a alvorada do dia no horizonte, por cima da selva amazónica. O termómetro marcava -15ºC. O vento forte cessara e, à medida que a luz preenchia a metade oriental do meu campo de visão, a neve ganhava cores indescritíveis. Ao fim de três dias de ascensão, senti o êxtase. E alguma confusão crescente nas horas seguintes. O corpo reagia como nunca o havia sentido, com um torpor e uma incompreensível desconexão entre músculo e cérebro... Pela primeira vez, sentia algo de que há muito ouvia falar: o mal agudo de altitude (conhecido pela sigla anglófona AMS, correspondente a Acute Mountain Sickness). Este fenómeno representa uma das maiores dificuldades no alpinismo, mas não se conhece cabalmente o processo fisiológico subjacente. A parada é alta: em casos extremos, é a vida que está em risco. Faz-se sentir aproximadamente a partir da cota de 3.000 metros de altitude e há grande variação na susceptibilidade de indivíduo para indivíduo. No entanto, é sobretudo nos picos mais altos que se torna um assunto sério: nos Andes e sobretudo nos Himalaia e no Caracórum, montanhas que acolhem os 14 cumes da Terra com mais de oito mil metros. A essa altitude, as complicações por insuficiente aclimatação podem provocar edemas pulmonares e cerebrais. Se a descida não for rápida, estas patologias podem provocar a morte. O AMS é constituído por um conjunto de sintomas, que incluem dor de cabeça, falta de apetite, dificuldade no sono e vómito. Quando não passa com a ingestão de um paracetamol, é sinal de perigo. Na verdade o corpo está sobrecarregado pela drástica diminuição da pressão atmosférica, provocando uma pressão H Á Q U AT R O A N O S ,

56

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Em sua casa, a maratonista Sara Ribeiro dorme numa tenda especialmente desenvolvida para simular altitude e provocar nos atletas os benefícios dos estágios em altitude, regulando a mistura gasosa do ar existente na tenda como parte do plano de treino para os Jogos Olímpicos de Tóquio.

interior, particularmente preocupante no caso dos pulmões e do cérebro. Por norma, estes sintomas são moderados, pelo que a aclimatação deve ser realizada de forma progressiva e pensada. Como orientação padronizada, não se deve subir mais de 300 a 400 metros de altitude por dia. Atendendo a que o Acampamento-Base do Evereste está a 5.364m de altitude e o acesso do lado nepalês se faz de Lukla, a 2.860m, em teoria, demoraria uma semana de caminhada só para lá chegar. Para minimizar este tempo, há um atalho tecnológico: as câmaras hipobáricas, onde se passa tempo a pressões e concentrações gasosas progressivamente similares às que se encontrarão na montanha, permitindo partir já parcialmente aclimatado. As câmaras, porém, são poucas e caras.

Em altitude, as noites são também mal dormidas: acorda-se muito, a respiração é superficial e acelerada, longe dos 12/14 ciclos habituais por minuto, o que provoca apneia do sono e cansaço acumulado. Embora sejam múltiplos os processos fisiológicos envolvidos na aclimatação à altitude, a principal reacção do corpo consiste na produção de mais glóbulos vermelhos, responsáveis pelo fornecimento de oxigénio às células. Esta reacção fisiológica tem como objectivo compensar a deficiência de oxigénio inalado, resultante da rarefacção dos gases à medida que a altitude vai subindo e a pressão atmosférica descendo. Mas não é instantânea – daí a necessidade de a subida em altitude acontecer de forma lenta e gradual, permitindo a adaptação do corpo. A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES

57

NEM A FORMA FÍSICA OU A IDADE SÃO INDICADORES SEGUROS. HÁ ATLETAS JOVENS E EM EXCELENTE FORMA FÍSICA QUE NÃO PASSAM DO ACAMPAMENTO-BASE.

O mal agudo de altitude é um dos principais riscos para os alpinistas. Pode ser sentido a partir de 3.000 metros. O fotojornalista António Luís Campos experienciou esta resposta fisiológica a 6.088m, no topo do pico Huayna Potosi, na Bolívia (à esquerda). 59

Até estar nestas altitudes extremas, é difícil prever como cada ser humano reagirá: são precisas viagens, muito tempo e dinheiro para obter essa resposta! Testando diferentes pessoas de um mesmo grupo, através de um oxímetro, rapidamente se percebe que o nível de aclimatação é variável. E nem sequer a forma física ou a idade são indicadores seguros. Há exemplos de atletas jovens e em boa forma física que nunca passam do Acampamento-Base. E quando a limitação é a genética, pouco há a fazer. Portugal não é, dada a sua modesta orografia e latitude meridional, uma referência do alpinismo mundial, mas isso não impediu que um nome se destacasse: João Garcia. O primeiro português a ascender ao Evereste completou um feito que, à época, apenas nove outras pessoas tinham obtido: ascendeu aos 14 picos mais altos do planeta, acima da cota de 8.000 metros, sem recurso a oxigénio suplementar. Estará ele particularmente adaptado? A resposta é pragmática: “A minha mãe é alentejana, o meu pai das Caldas da Rainha, não tenho certamente uma genética adaptada à altitude!”, brinca. “No alpinismo, a capacidade de sofrimento é importante, o treino igualmente e o que distingue um bom atleta de um atleta excelente é a cabeça. Mas também é importante não ser mais forte mentalmente que fisicamente!” Poucos como João Garcia podem falar com conhecimento de causa sobre a progressão do AMS no organismo. “O processo ainda não está explicado”, diz. “Uma das teorias sugere que existe uma membrana intracraniana, responsável pelo ‘amortecimento’ do inchaço – se for espessa, pode talvez permitir um buffer e minimizar os sintomas.” Nas situações mais graves, o alpinista pode sentir alucinações. “É um processo estranho”, conta João Garcia. “É como se existissem dois processadores dentro da tua mente: discutes contigo próprio e há duas personagens. Com pouco oxigénio, não tens o mesmo discernimento.” O alpinista conhece na pele os elevados riscos da montanha: na expedição ao Evereste, as coisas não correram como previsto. As condições meteorológicas agravaram-se e desorientou-se, o que o obrigou a pernoitar acima da cota de 8.000m (a chamada “Zona da Morte”). Tanto tempo exposto à altitude e frio extremos resultou em queimaduras por frio e na consequente amputação dos dedos e operações plásticas ao nariz. Ainda assim, sobreviveu. O seu companheiro, o belga Pascal Debrouwer, não teve a mesma sorte. Ali a diferença entre sobreviver e perecer é uma ténue linha em que a experiência e a preparação jogam um importante papel. Mas não é uma ciência exacta. 60

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Garcia recorda: “Na minha segunda grande expedição, ao Dhaulagiri, a sétima mais alta montanha da Terra, a aclimatação foi insuficiente. Hidratei pouco e a 7.400m comecei a ter quebras de tensão. A certa altura, enquanto subia uma vertente nevada, a 45º de inclinação, tive a percepção de que ia apagar. O meu último instinto antes de desmaiar foi cravar o piolet no gelo. Acordei pendurado pelo pulso, preso pela dragoneira! Tive sorte e desci assim que pude.” testar a susceptibilidade ao AMS? Seria um enorme avanço científico. E é precisamente um dos vectores de investigação sobre a hipoxia (diminuição da pressão parcial de oxigénio) a que a equipa do Centro de Investigação e Actividade Física, Saúde e Lazer da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP) se dedica. Em 2003, na primeira expedição lusa ao Pumori, no vale do Khumbu, com 7.191m, liderada por João Garcia, esteve presente outra pessoa a partir do Porto. José Magalhães, investigador do CIAFEL e aficionado pela montanha, dedicou boa parte da sua carreira ao estudo da hipoxia e aproveitou esta expedição para estudar o efeito da privação de oxigénio no organismo. Foram realizadas colheitas de sangue, análises de composição corporal, testes funcionais de performance, assim como biopsias de tecido muscular, na perna, antes e depois da ascensão, com o objectivo de analisar adaptações fisiológicas e bioquímicas decorrentes da exposição prolongada a estes ambientes de elevada altitude por parte de nativos residentes ao nível do mar. Quase duas décadas mais tarde, o investigador prossegue objetivos nesta área de estudo. Rodeado de sofisticados equipamentos científicos do âmbito da fisiologia e bioquímica, que evidenciam a complexidade destes trabalhos de investigação, conta: “Nessa expedição, entre outras alterações fisiológicas sistémicas e teciduais, foi possível observar níveis elevados de stress oxidativo, alterações fenotípicas musculares muito evidentes, como a atrofia muscular, o comprometimento da morfologia vascular e a disfunção mitocondrial com concomitante prejuízo da bioenergética celular. À semelhança de outros estímulos para o nosso organismo, a exposição a estes ambientes de altitude, particularmente por residentes de baixa altitude, também interfere com o que, habitualmente, se designa por equílibrio redox, ou seja, a relação entre a produção de compostos oxidantes e a capacidade antioxidante do nosso organismo. Curiosamente, aquilo que foi considerado em tempos como um “paradoxo do oxigénio”, um ambiente severo de hipoxia, rarefeito em E SE FOSSE POSSÍVEL

moléculas de oxigénio, é susceptível de incrementar a produção de espécies reactivas de oxigénio e, consequentemente, induzir stress oxidativo adicional com potenciais consequências deletérias no organismo dos indivíduos expostos a estas condições.” Para melhor estudar o efeito da exposição aguda à altitude no contexto do stress oxidativo, José e o colega António Ascensão experimentaram-no na primeira pessoa. Numa câmara hipobárica em Barcelona, participaram num estudo que contou com 8 pessoas e 40 animais. Com pressão barométrica equivalente a 5.500m, uma exposição aguda severa (15 minutos) resultou num conjunto de alterações fisiológicas e bioquímicas deletérias, das quais se destacam a disfunção cognitiva, cefaleia intensa e vómito e incremento dos níveis de stress oxidativo avaliado no plasma dos participantes. Esta é também uma condição a que muitos pilotos de aviação são sujeitos, preparando-os para a eventualidade de executar operações críticas em hipoxia. Adicionalmente, “os mecanismos subjacentes à susceptibilidade da população exposta aos ambientes de altitude ao referido AMS têm constituído um foco de interesse na comunidade científica. A par do famoso teste desenvolvido por Jean Paul Richalet que utiliza dados respiratórios, “pretendemos encontrar marcadores bioquímicos complementares que tornem mais sólida a identificação da referida susceptibilidade ao AMS”, reforça José Magalhães. Jorge Beleza, da mesma equipa, reforça: “É paradoxal, mas verificamos que os atletas de endurance podem ter pior resposta à hipoxia do que pessoas normais.” Junto dele, de máscara respiratória na cara, com um longo tubo ligado à bolsa que controla a mistura gasosa, Tiago Costa, guia de trekking e montanhista, pedala vigorosamente e grossas gotas de suor escorrem-lhe pela fronte, durante o teste de resposta ventilatória. Este exame, recente em Portugal, faz parte do seu plano de treino para a ascensão ao Denali, o pico mais alto da América do Norte. Os investigadores portuenses não estão sozinhos neste campo científico. O Prémio Nobel da Medicina, em 2019, foi atribuído a três conceituados investigadores pelo trabalho dedicado à hipoxia: Peter Radclift, William Kaelin e Gregg Semenza. A pertinência do estudo no âmbito da hipoxia não se limita a desportos de montanha, pois há outras situações que afectam milhões de pessoas, como as comunidades de altitude e trabalhadores que desempenham funções nesse ambiente, incluindo as equipas do telescópio ALMA, no Chile, onde tarefas física e intelectualmente complexas, relacionadas com a astrofísica, cobram um preço ao corpo e à mente.

Também a exposição a condições de hipoxia, não “foge à máxima” “a dose faz o veneno”! Doses moderadas de hipoxia obedecendo a protocolos definidos têm uma utilidade terapêutica bastante reconhecida. Sabe-se por exemplo do efeito cardioprotector de episódios intermitentes de hipoxia, que aumentam a tolerância cardíaca contra eventos patológicos. sentado num banco de jardim, Alex Gavan não poderia estar mais distante da realidade que viveu algumas semanas antes. O alpinista romeno, que aos 39 anos conta já com sete ascensões a picos acima da cota de 8.000 metros, todos sem recurso a oxigénio nem ao auxílio de sherpas em altitude, foi um dos candidatos à primeira subida invernal do K2, o segundo pico mais alto do mundo e extremamente perigoso (um em cada quatro alpinistas que atingem o cume morre na descida). A geografia difícil, aliada a temperaturas (-60ºC) e ventos (200km/h) extremos, tornaram a sua subida invernal no Santo Graal do himalaísmo, só conseguido em 2021, por uma equipa de dez nepaleses (e ainda assim com recurso a garrafas de oxigénio). Este histórico feito foi ensombrado pela morte de cinco outros alpinistas, todos próximos de Alex. Quando questionado sobre a sua visão sobre os efeitos da hipoxia numa montanha deste tipo, ele não tem dúvidas: “Acima de 8.000 metros, estamos a morrer lentamente e o nosso corpo definha a cada minuto. Em particular no Inverno, não há margem para qualquer tipo de erro e temos de ser extremamente cuidadosos com a aclimatação. Especialmente sem oxigénio suplementar, que para mim é a essência do verdadeiro alpinismo.” Embora não se saiba a causa do desaparecimento da equipa dos três últimos montanhistas falecidos no K2 (os dois primeiros foram acidentes independentes a menor altitude), há suspeitas de que o facto de o grupo estar insuficientemente aclimatado poderá ter contribuído para a tragédia. D O O U T R O L A D O DA E U R O PA ,

ser habitualmente associada à altitude, existem outros ambientes aos quais o corpo humano não está bem adaptado. Na véspera dos Jogos Olímpicos de Tóquio, o frenesi aumenta entre milhares de atletas. No entanto, para subir ao pódio, já não chega simplesmente correr, remar ou saltar mais do que os outros. É preciso estar um passo adiante e Amândio Santos, docente da Faculdade de Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra, ele próprio um desportista, sabe-o bem. Passam pelo seu laboratório alguns dos melhores atletas do mundo. A P E S A R D E A A C L I M ATA Ç Ã O

A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES

61

A FISIOLOGIA E PERFORMANCE SÃO TESTADAS AO PORMENOR PARA CRIAR PLANOS DE TREINO EM QUE O CONHECIMENTO SE JUNTA À PURA CAPACIDADE FÍSICA.

Numa câmara especificamente desenvolvida para aclimatação de atletas de alto rendimento, com temperatura e humidade controladas, a selecção olímpica francesa treina-se para Tóquio. Uma fotografia térmica de Yohann Diniz, campeão e recordista do mundo dos 50km marcha (à direita) permite analisar como as diferentes partes do seu corpo reagem a condições extremas. 63

A equipa de canoagem é presença habitual, destacando-se Emanuel Silva, Fernando Pimenta e João Ribeiro, os últimos dois recém-medalhados nos Campeonatos da Europa. No laboratório, a fisiologia e performance destes atletas são testadas ao pormenor para desenvolver planos de treino que juntam o conhecimento científico à capacidade física. A fama desta unidade de Coimbra ultrapassou fronteiras, razão pela qual não surpreende uma animada conversa, em francês. Está nas instalações a selecção olímpica francesa de marcha, com a estrela Yohann Diniz. E embora em 2014 este tenha batido o recorde mundial de 50km marcha de bandeira verde e rubra na mão (o seu avô era português), o Campeonato do Mundo de Doha em 2019 não lhe deixou boas memórias. O calor extremo e a falta de aclimatação conduziram à desistência. Apesar de disputada à meia-noite, a prova foi muito diferente daquilo para que a maioria dos atletas se treinara. Muitos chegaram impreparados. O português João Vieira não foi um deles. Aos 43 anos, com o apoio da equipa de Amândio Santos, alcançou ali a medalha de prata.

É numa câmara de 25 metros quadrados especialmente preparada para o efeito, com temperatura e humidade controladas, que os atletas treinam em passadeiras eléctricas, em condições similares às que encontrarão em Tóquio. Durante a sessão de uma hora, chegam a perder 2kg, mesmo ingerindo muitos líquidos. Na penumbra, o investigador explica: “A termorregulação neste tipo de condições climáticas tem um papel determinante. Nestas condições, a evaporação é responsável por 80% da perda de calor. Com altas temperaturas e o ar saturado de humidade, a evaporação deixa de existir e diminui a capacidade do corpo para perder calor, levando a um aumento da temperatura central e a activação exagerada de todos os mecanismos de defesa que podem ser a perda de líquidos, perda de volume plasmático, aumento da pressão arterial, aumento da frequência cardíaca, fraqueza muscular, desorientação e perda de equilíbrio postural, podendo mesmo em casos extremos levar à morte.” A descrição torna-se óbvia quando se olha para a fotografia térmica de Diniz durante o treino.

COMO A ALTITUDE AFECTA A PERFORMANCE

Monte Evereste 8.849m 8.000

metros

SÃO BEM CONHECIDOS OS EFEITOS DA ALTITUDE SOBRE O CORPO HUMANO,

mas, após a conquista das grandes montanhas do planetas, percebeu-se também que o treino em altitude (ou a simulação das condições de altitude) ajudaria a performance atlética.

Monte Branco 4.809m 4.000

metros

2.000

Guarda 1.056m

Serra da Estrela 1.993m

metros

1.000 Altitude

Lisboa

0

metros

metros

Factores ou agressões ambientais: • Variações extremas de temperatura entre o dia e a noite; • Radiação solar elevada; • Baixa disponibilidade de água potável e risco de desidratação; • Hipoxia hipobárica.

Pressão barométrica Pb (mmHg)

760

631

585

430

253

Pressão parcial de oxigénio no ar PO2 (mmHg)

159

132

122

90

53

20,93

20,93

20,93

20,93

20,93

9

2

Percentagem de oxigénio no ar (O2) 15

Temperatura típica 0C

15

0

-15 -30 -45

-11 -43

15 0 -15 -30 -45

Qualquer montanhista sabe que os primeiros efeitos fisiológicos das condições de altitude são as cefaleias, a dificuldade de dor e a sensação de fadiga, bem como a falta de apetite. Em condições extremas continuadas, o sujeito pode desenvolver edema pulmonar ou edema cerebral.

64

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A zona da cabeça e peito é notoriamente mais quente do que o abdómen. A análise destes dados é útil para todos. Por um lado, os investigadores têm acesso aos melhores entre os melhores, em tempo real. Por outro, ajudam-nos a desenvolver planos de treino e soluções práticas que melhoram a performance e dão uma vantagem sobre os concorrentes, num palco onde a vitória se decide ao segundo. Um exemplo disso é o protótipo do chapéu que Yohann testa em Coimbra: além de uma aba larga no pescoço, tem bolsos especiais para armazenar gelo, que lhe arrefecerá a cabeça (e, consequentemente, o corpo).

Quase estanques, estas tendas estão ligadas a um compressor que regula a mistura gasosa no interior, pobre em oxigénio, simulando uma maior altitude (embora sem alterar a pressão atmosférica). Isto provoca uma reacção fisiológica do corpo, que adapta o metabolismo e, quando em esforço ao nível do mar, proporciona uma capacidade atlética adicional. As atletas dormem ali, durante períodos de tempo controlados, nos meses anteriores às provas. Bem-disposta, de pijama discreto e um ou dois cabelos fora do lugar, Sara diz: “A primeira noite que cá dormi tive uma enorme dor de cabeça e dormi mal. Mas depois passou, e actualmente não sinto diferença”, conta. “Durmo como um bebé.” De regresso a sul, passo pela serra da Estrela, aproveitando um dos melhores invernos dos últimos anos para treinar escalada em gelo. Nas encostas do Cântaro Magro, a água solidificou, emprestando um cenário alpino à paisagem. Não será aqui que voltarei a sentir mal de altitude, mas o chamamento das montanhas renova-se. Questionado sobre a sua obsessão com o Evereste, o alpinista pioneiro George Mallory explicou-a assim: “Porque está lá!” j

dos desportistas não se limita à câmara de treino em Coimbra. Mais a norte entre incontáveis rochedos de granito e outras tantas fabriquetas, encontramos as maratonistas olímpicas Sara Ribeiro e Carla Rocha. As fundistas do Sporting têm uma divisão muito particular nas suas casas: o “quarto da tenda”. Não são particulares adeptas do campismo, mas esta é uma peça-chave do seu plano de preparação para Tóquio. E S T E T I P O D E P R E PA R AÇ ÃO

PERDA DE PESO CORPORAL EM ALTITUDE Altitude absoluta e duração da exposição

31 dias 8.000 metros

8.000 (metros)

5.000 3.000 2.000 1.000 0 Semanas

12 semanas entre 8.000 metros e 5.000 metros

5 semanas entre 7.000 metros

7.000 6.000 4.000

Altitude (m) 8.000

8 dias 4.300m

1

20 dias 5.000 metros

12 dias 4.300m

2

Perda de Peso 3-3,5% 5,4%

NOS PRIMEIROS MOMENTOS O ser humano diminui a saturação arterial de oxigénio, aumenta a frequência ventilatória, a frequência cardíaca e a síntese de eritropoietina. Produz também mais espécies reactivas de oxigénio e radicais de oxigénio.

8 a 10 semanas 5.500 metros

e 4.000 metros

7.000 6.000 5.000 4.000 3.000 2.000

3

4

3%**

5

6

7

8

9

10

11

7,5%

10%

PERDA DE MASSA MUSCULAR EM ALTITUDE (kg) Ascensão ao Evereste* Antes

ADAPTAÇÕES MORFOLÓGICAS NO MÚSCULO ESQUELÉTICO Exposição crónica em humanos

Depois

+ 2.2 67.2 — + 1.8 Peso 70.7 — Massa gorda

1.000 0 12 Semanas

+ 1.3 6.7 —

+ 1.0 6.9 —

Depois

Antes Área secção transv. tecido muscular (cm2) Área secção transv. tecido gordo (cm2)

+ 23.00 170.00 —

+ 21.00 152.00 —

+ 17.00 35.00 —

+ 15.00 31.10 —

+ 1.8 60.3 — + 1.6 Massa magra 64.1 —

Rácio capilar / fibra

*Simulada em câmara hipobárica

Densidade capilar + 89.00 + 73.00 538.00 — 483.00 — (um-2) Área média + 580.00 + 710.00 3360.00 — 4170.00 — das fibras (um-2) Densidade de volume + 0.53 + 0.81 4.23 — 4.88 — mitocondrial (%)

HABITUAÇÃO À ALTITUDE Permanecendo semanas ou meses em altitude, os atletas sentem: Diminuição do peso corporal; Diminuição da massa muscular; Degradação do tecido muscular esquelético; Redução do débito cardíaco; Aumento da hemoglobina e hematócrito; Redução do volume plasmático. ILUSTRAÇÕES: ANYFORMS DESIGN

+ 1.99 —

0.31

+ 1.79 —

0.36

Em oito a dez semanas de treino em altitude (a cerca de 5.500 metros), o músculo esquelético adapta-se em parâmetros mensuráveis e que podem fazer a diferença em competição atlética. No entanto, poucos são os atletas que podem dedicar dois a três meses do seu treino a estas condições extremas.

** estudo em laboratório — comida ad libitum. Kayser, B. et al. (1992) J. Appl. Physiol. 73 (6): pp. 2425-2431. Glisezinski et al. (1999) Eur. J. Physiol. 439: pp. 134-140, 1999

66

Conservação duradoura Conseguirão os animais selvagens e as comunidades humanas que vivem em seu redor prosperar sem vedações? No Norte do Quénia, a pandemia testou esta ideia. T E X TO D E T R I STA N M c C O N N E L L F OTO G R A F I A S D E DAV I D C H A N C E L LO R

O sol dissipa a névoa matinal nos vales de Samburu. A beleza do Norte do Quénia atrai os turistas a esta região de pastores, gado e animais selvagens. Há forte competição pelo espaço, pela água e pelas pastagens.

PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

Na Zona de Conservação de Vida Selvagem de Lewa, uma equipa captura uma zebra de Grevy (uma espécie ameaçada) para ajudar a constituir uma nova manada na Zona de Conservação Comunitária de Sera. A Sera foi fundada pelas comunidades samburu locais, com o apoio do Northern Rangelands Trust (NRT), uma organização financiada em grande parte por ONG e governos ocidentais para promover esforços de conservação liderados pelas comunidades.

Quando Long’uro (à esquerda) caiu num poço, uma hiena roeu-lhe a tromba, reduzindo-a a um coto. No Santuário de Elefantes de Reteti, gerido pela comunidade, na Zona de Conservação de Namunyak, os funcionários locais cuidam dele e de outras crias órfãs. Long’uro sobreviveu contra todas as probabilidades, mas não se sabe se algum dia poderá regressar à natureza.

À porta da clínica de Biliqo, um vento quente chicoteia o solo, levantando a poeira. Arranca pedacinhos de lixo presos nos arbustos espinhosos, faz rodopiar garrafas de plástico deitadas no chão e levanta parte do hijab azul-índigo de Madina Kalo, que se encontra junto da porta de madeira da clínica. Estamos a meio do ano, a estação seca principal no Norte do Quénia. A terra apresenta-se ressequida pelo sol. A paleta de cores é clara e luminosa, como uma fotografia sobreexposta. Vestida com a túnica branca de enfermeira e máscara cirúrgica, Madina semicerra os olhos e depois volta a entrar na clínica, apreendendo a frescura do interior. Atende cerca de 30 pessoas por dia, a maioria das quais pastores que se queixam de maleitas rotineiras como infecções respiratórias, malária e diarreia. Quando há casos graves, Madina reencaminha os pacientes para a vila de Isiolo, o que os força a uma viagem a pé de cinco horas através de uma estrada de terra batida. O lixo e a letargia de Biliqo não inspiram ideias de turismo ou de natureza. Contudo, a vila é uma de 39 comunidades de conservação criadas pelo Northern Rangelands Trust (NRT), uma organização queniana de conservação. A troco da promessa de reforço da protecção do seu ambiente e dos animais selvagens, os habitantes das zonas de conservação recebem serviços e benefícios essenciais, frequentemente financiados pelo dinheiro dos safaris turísticos. 72

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A enfermeira Madina Kalo leva um rapaz recém-nascido à mãe, Hadija Galma, numa clínica construída pelo NRT em Biliqo, com fundos europeus. “Temos de começar por cuidar da saúde das pessoas antes de podermos começar a falar em conservação”, diz Madina.

É uma experiência de coexistência em grande escala, baseada na ideia de que os seres humanos e os animais selvagens podem prosperar juntos. Numa área com 44 mil quilómetros quadrados, centenas de milhares de pessoas, milhões de cabeças de gado e populações importantes de animais selvagens convivem lado a lado. Cerca de dois terços dos animais selvagens do Quénia vivem fora de parques e reservas nacionais e muitas zonas de conservação tornaram-se uma parte essencial do ecossistema nacional da conservação. Quando a pandemia provocou o encerramento das fronteiras e obrigou os aviões a permanecerem em terra, os turistas desapareceram do Norte do Quénia, negando a África uma grande parte dos rendimentos que o turismo de vida selvagem lhe fornece todos os anos: 23,8 mil milhões de euros em 2018. No Quénia, o turismo representava pelo

menos 8% do PIB. Temeu-se que as conquistas de conservação das últimas décadas se esfumassem. Grande parte deste trabalho apoia-se no turismo, que financia os vigilantes da natureza, a investigação e os postos de trabalho em zonas onde há pouco emprego, constituindo uma alternativa à caça de animais ou ao abate de árvores. Muitos trabalhadores do sector da conservação consideram as zonas comunitárias como exemplos para o futuro da conservação e do desenvolvimento sustentáveis, sob lideranças locais, apesar de o NRT enfrentar críticas de alguns quenianos, segundo os quais a organização é demasiado grande e poderosa. No momento em que o modelo de conservação comunitária ganha contornos mais bem definidos no Norte do Quénia, a pandemia representa o mais importante teste de stress conhecido até à data. C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A

73

A conservação africana já se encontrava em crise antes do coronavírus. Financiamento insuficiente, má gestão, caça furtiva, destruição de habitat e alterações climáticas são factores incluídos numa longa lista de ameaças causadoras de colapsos da biodiversidade e de um decréscimo acentuado das populações de espécies em risco, como as tartarugas-de-pente, os pangolins, os grifos-africanos ou os elefantes. Para aqueles de nós que vivem a uma distância romântica e segura dos animais selvagens, eles fazem parte de um património natural global: é bom saber que existem e é maravilhoso vê-los na vida real. Mas o que diremos das pessoas que vivem a seu lado? E se um leopardo matar a sua cabra ou um elefante espezinhar o seu filho? E se não conseguir pagar as suas despesas médicas ou escolares e souber que há mercado para vender peles de leão e presas de elefante? E se a sua família tiver fome e houver uma girafa a uma caçada de distância? O que valem, então, os animais selvagens vivos? E o que valem mortos? A missão do NRT é aumentar o valor dos animais para as pessoas que partilham a paisagem com eles e interligar os seus futuros. Com base em ideais de propriedade comunitária da terra e de autogovernação, cada zona de conservação é uma entidade jurídica distinta, sendo gerida por um conselho eleito de líderes comunitários. Algumas zonas de conservação estão mais perto de satisfazer esses ideais do que outras. Os conselhos precisam de gerir os desejos frequentemente concorrenciais dos diversos membros da comunidade, por vezes distantes entre si, incluindo pastores nómadas que nem sempre estão presentes nas negociações sobre o planeamento do território. Por vezes, esse sentimento de exclusão coincide com divisionismos étnicos, exacerbando os conflitos. Zonas de conservação com conselhos mais representativos e activos conseguem assegurar maior participação e benefícios para a comunidade, enquanto outras se esforçam por cumprir os princípios de governação básicos. O NRT não é proprietário de terras e funciona como organização de cúpula, desempenhando tarefas de administração, angariação de fundos, formação de agentes de segurança e planeamento estratégico. Se a autogovernação tiver alicerces robustos, as instituições acabarão por se tornar mais fortes e mais responsabilizáveis. Os doadores estrangeiros, que garantem 90% do financiamento do NRT, suplementado pelas receitas turísticas, outros rendimentos comerciais 74

e alguns fundos disponibilizados pelos governos locais, ajudaram o NRT a gerir melhor a pandemia do que a maioria dos parques e reservas de vida selvagem dependentes do turismo. No entanto, os doadores também transformaram o NRT num alvo para aqueles que olham o dinheiro e a influência estrangeiros como formas de imperialismo. “É uma ONG internacional, embora actue como ONG local”, resume Achiba Gargule, investigador de problemas comunitários, que cresceu numa comunidade pastoril do Norte do Quénia. Independentemente desses pormenores, o NRT está a construir um grande ecossistema interligado que depende menos dos altos e baixos do turismo, tem fontes de rendimento mais diversificadas e acaba por ser mais resistente face aos choques globais.

A

a clínica de Madina era constituída por dois edifícios dilapidados e uma maca velha, mas agora tem uma nova maternidade com dez camas, um edifício com consultórios médicos e, dentro em breve, terá alojamento para o pessoal e um laboratório. A clínica é propriedade do Ministério da Saúde do Quénia, paga por governos europeus e foi construída pelo NRT, numa tentativa pragmática de suscitar a adesão das pessoas à sua agenda de conservação. É um equilíbrio de interesses do qual Madina é participante informada. “A saúde é o mais importante para cada comunidade”, diz, enquanto regista os pacientes do dia. “Não podemos falar com pessoas que não estão bem. Temos de começar pela saúde das pessoas antes de começarmos a falar de conservação.” As comunidades pastoris são uma componente essencial das paisagens áridas do Norte do Quénia. Ferozmente independentes e armadas, deslocam-se com o gado em busca de pasto. A rivalidade pelos escassos recursos é intensa e pode tornar-se violenta. Uma manada crescente é um símbolo de sucesso e um escudo protector contra a catástrofe. No entanto, à semelhança dos animais selvagens, o gado precisa de espaço para deambular, erva para comer, água para beber, o que significa que gado e conservação concorrem frequentemente entre si. O desafio é portanto encontrar uma forma de ambos prosperarem. “Aqui, no Norte, as vedações nunca protegerão os animais”, diz Tom Lalampaa, um samburu conservacionista e director-geral do NRT. “Temos de de garantir que as pessoas se transformem nes(Continua na pg. 80) sa vedação.” N T I GA M E N T E ,

CHRISTINA SHINTANI. FONTES: NORTHERN RANGELANDS TRUST; GABINETE NACIONAL DE ESTATÍSTICA DO QUÉNIA; P. WANG E OUTROS, HBASE DATASET, NASA SEDAC; INICIATIVA DA ESA PARA AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, PROJECTO LAND COVER 2017; OXFORD COVID-19 GOVERNMENT RESPONSE TRACKER; DAVID CHIAWO

171.422 Julho 2018

Conservação resiliente

Chegada mensal de turistas aos dois aeroportos principais 119.670 Fevereiro 2020

Áreas geridas pelo Northern Rangelands Trust

111.984 Janeiro 2013

Restrições de viagem COVID-19 17 Março - 1 Agos.

47.406 Dezembro 2020 Ponto mais baixo do turismo Abril 2020 12

N

O turismo caiu a pique durante a pandemia. No entanto, as zonas de conservação do NRT ajudaram a manter operações essenciais em funcionamento devido às suas múltiplas fontes de financiamento, sobretudo doadores estrangeiros.

Década da associação à NRT 1990

2000

2010

50 km

Pradaria

Alojamento turístico

Área agrícola

Santuário de vida selvagem

ÁFRICA

Corredor de vida selvagem

R

D E

na

Songa

L E V A

Chalbi

Reserva e P.N. Marsabit

Melako Biliqo Bulesa

Elefantes de Reteti

QUÉNIA

UGANDA

Nannapa Ltungai

Ruko

Girafa de Rothschild Eldoret

Nakuprat-Gotu

k*

Res. Nac. Bisandi

Reserva e P.N. Mt. Quénia

Primeira área estabelecida, 1995

P.N. Aberdare

Nakuru

Naivasha

P.N. Hell’s Gate

Nairobi

P.N. Colinas Chyulu

*As zonas de conservação de Kalepo, Ngilai e Nalowuon são administradas colectivamente sob a designação Namunyak Conservancy.

P.N. Amboseli

QUÉNIA TANZÂNIA

Kilimanjaro 5.895m

Tsavo Oriental

P.N. Tsavo Ocidental

Res. Nac. Boni

Awer Ishaqbini Hirola

Pate Hanshak Nyongoro

Baixo delta do Tana Reserva Florestal Arabuko Sokoke

Mombaça MBA

Res. Nac. Colinas Shimba

ÍNDI CO

Victória

Ishaqbini Hirola

O rendimento gerado pelo turismo, pelo gado, Ndera pelo artesanato e por outros pequenos negócios ajuda as comunidades a pagar bens essenciais como propinas escolares, cuidados de saúde e projectos hídricos. O resto NBO destina-se às operações de conservação. Parque Nacional

Kisii

Lago

Res. Nac. Arawale

Apoio das comunidades

Narok

Res. Nac. Masai Mara

Garissa

ANO OCE

Kisumu

Res. Nac. Rahole

P.N. Kora Leparua P.N. Meru Res. Nac. Ngare Mwingi Ndare

Il Ngwesi

T E R I F

Res. Nac. Chepkitale

nya

Sera

Kaptuya

Masol

P.N. Monte Elgon

mu

Na

Res. Nac. Turkana Sul

D O

Pellow

LIA MÁ A I ÉN

N

ka

Deserto

ÁREA DO MAPA

SO

A

Tu r

Shurr

Jaldesa

QUÉNIA

QU

Uma rede quase contígua de zonas de gestão comunitária permite que animais migratórios como elefantes atravessem locais antes atormentadas pela caça furtiva e pelo conflito. No entanto, isso também cria problemas, como a destruição de culturas.

G

go La

P.N. Sibiloi

Julho 2020 618

Sobrevivendo à catástrofe

ET I QU ÓPIA ÉN IA

O Northern Rangelands Trust (NRT) é uma organização de 39 zonas de conservação, que pertencem e são geridas por comunidades do Norte do Quénia. Representando quase meio milhão de pessoas, sobretudo pastores, as zonas de conservação ajudam a proteger espécies ameaçadas como elefantes e rinocerontes. O modelo de conservação comunitária pretende encontrar um equilíbrio sustentável entre os modos de vida tradicionais e os recursos naturais de que dependem.

76

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

"Antigamente, combatíamos uns contra os outros: os samburu, os rendille e os borana. A zona de conservação começou a unir-nos”, diz. — Pauline Lolngojine, antiga presidente da Sera Conservancy

Seguindo uma cerimónia de iniciação samburu, que assinala o início da idade adulta, o ancião Sikitau Lenkees veste o novo guerreiro Lubulu Lekilemo com as contas do seu clã. Os novos guerreiros passam 15 anos a guardar vacas, ovelhas e cabras. No Norte do Quénia, a actividade pastoril sofre consequências das alterações climáticas. Para apoiar os modos de vida tradicionais e criar novas oportunidades, o NRT promove pastagens sustentáveis e mercados de gado e concede empréstimos a pequenas empresas, formação profissional e emprego. C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A

77

Pastores e gado acordam com o nascer do Sol em Namunyak. A maioria das zonas de conservação do NRT reservou terra exclusivamente para os animais selvagens e o resto é gerido por planos de pastoreio, a fim de melhorar os pastos. No entanto, as directizes que ditam quando e onde o gado pode pastar podem ser controversas, sobretudo quando há pouco pasto de qualidade.

Macacos-de-cara-preta fazem investidas simuladas contra a porta e as janelas, enquanto conversamos. “Se as pessoas cuidarem dos animais selvagens da mesma forma que cuidam do seu gado, então teremos uma vitória.” É também uma tarefa em evolução constante. Os conselhos de conservação são incentivados a reservar parte das suas terras exclusivamente aos animais selvagens. O resto é gerido por planos desenvolvidos por comissões de conservação das pastagens e aprovados pelos conselhos comunitários para o seu uso pelos animais domésticos e pelos animais selvagens. As directrizes reguladoras de quando, onde e quantos animais podem pastar, contudo, podem causar controvérsia, sobretudo entre aqueles que se sentem excluídos da tomada de decisões e consideram qualquer restrição como ameaça potencial à sua existência. Hassan Roba, especialista em zonas secas do Fundo Christensen, que dá apoio aos povos nativos e às suas paisagens, defende que estes planos de pastoreio comprometem a flexibilidade de deslocação segundo as chuvas e, frequentemente, reservam à vida selvagem terras que também são as melhores pastagens para o gado. “São formas muito idealistas de pensar na maneira como a terra é gerida”, afirma. “No entanto, mesmo na prática, tem sido dada prioridade aos animais selvagens. Os animais de criação são apenas um extra.”

S

para as pessoas e para os animais selvagens, nada funciona. “A paz é tudo”, diz Pauline Lolngojine, mãe solteira de 11 filhos, líder comunitária, pacificadora e antiga presidente do conselho de administração da Sera, uma zona de conservação de 340 mil hectares do NRT. Conversamos sob os beirais ondulados de uma igreja pentecostal construída com madeira, em Archers Post, uma vila junto do limite sudoeste de Sera. Quando Pauline era pequena, o Norte do Quénia era mais selvagem, distante da autoridade central de Nairobi e armado até aos dentes. O gado era constantemente roubado e os assaltos na estrada comuns. “Combatíamos uns contra os outros: os samburu, os rendille e os borana. Porém, a zona de conservação começou a unir essas comunidades”, diz. A Sera formou-se em 2001, promovendo a cooperação e criando um objectivo partilhado com uma vantagem partilhada: melhorar a gestão das terras e aumentar os rendimentos. “Vimos que era bom conservar para podermos ganhar dinheiro através dos animais selvagens”, diz. 80

EM SEGURANÇA

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Abrindo caminho entre as cabras, uma mulher recolhe água num furo aberto pelo NRT na Zona de Conservação de Biliqo Bulesa. Os poços e sistemas de irrigação são serviços que os conselhos locais das zonas de conservação financiam com as taxas que os turistas pagam, mas também podem cobrir custos operacionais das zonas de conservação. O NRT obtém donativos do estrangeiro e de governos locais.

O investimento de longo prazo na construção da paz significa que, em tempos difíceis, como uma pandemia ou uma seca, há uma estrutura que dilui as tensões e mantém a estabilidade. A colaboração e o dinheiro ajudam, mas a segurança também requer a aplicação da lei, que assume a forma das patrulhas e unidades móveis de vigilantes do NRT. As unidades móveis foram criadas para proteger os elefantes e os rinocerontes, mas o duplo papel dos vigilantes da natureza como reservistas de policiamento torna-os parte integrante de uma arquitectura de segurança regional com falta de pessoal e de financiamento. Com capacidade para combater a criminalidade não relacionada com animais selvagens, como os roubos de gado e os assaltos nas estradas, as unidades móveis ajudaram a preencher uma lacuna da segurança.

Armados com carabinas, deslocam-se em grupos de 12 pessoas por veículo, reabastecendo-se em movimento e dormindo sob as estrelas. Ganham, no mínimo, 290 euros por mês, mais do dobro do salário normal de um vigilante. Cada unidade é constituída por membros de três a quatro tribos diferentes e a sua natureza multiétnica permite que as equipas se desloquem a qualquer lugar e falem com qualquer pessoa. Com dois metros de altura, Losas Lenamunyi é um homem magro, de cabeça rapada e sorriso desdentado. O comandante cresceu a criar gado junto do bairro de lata da estrada de Sereolipi, onde pessoas de etnia samburu eram frequentemente tratadas com animosidade e desconfiança pelos vizinhos borana, gabra e rendille. Actualmente, partilham todos um Land Cruiser. “Trago no carro todas as tribos”, diz.

Losas não frequentou a escola e diz nunca ter pensado muito nos animais selvagens. Tornou-se vigilante da natureza pelo dinheiro. “Não havia oportunidades de conseguir um trabalho qualquer”, diz. Como vigilante da natureza, “os meus filhos têm comida suficiente”. A procura de emprego tornou-se clara numa sessão de recrutamento de vigilantes realizada na Melako Conservancy. Para três postos de trabalho disponíveis, apareceram 200 candidatos. Reuniram-se na margem sul do rio, vestindo sarongs e calçando sandálias, com facas de 30 centímetros de comprimento presas nos cintos e bastões de caminhada na mão. “São as pessoas com formação que conseguem os empregos”, diz Andrew Dokhole, presidente da Melako. “É por isso que escolhemos os vigilantes entre os habitantes locais”. E acrescenta: “É a sua única oportunidade.” C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A

81

Um elefante capturado numa armadilha debate-se na lama, na Zona de Conservação de Nannapa. Pastores alertaram o director da zona de conservação para o sofrimento do animal e veterinários e vigilantes da natureza iniciaram o salvamento. Utilizando um tractor, cordas e as mãos, libertaram o animal exausto.

Com mais de 1.300 pessoas contratadas como vigilantes da natureza, administradores e outros cargos das zonas de conservação do NRT, a organização é um dos maiores empregadores do Norte. A organização está envolvida em tantos assuntos que Matt Brown, da Nature Conservancy, e membro do conselho de administração do NRT, diz: “Enquanto ONG detida pela comunidade, o NRT está a fazer, essencialmente, o trabalho do governo local.” Não é um papel que o NRT queira desempenhar de forma permanente, diz, e é uma caracterização daquilo que causa desconforto a Tom Lalampaa. Todas as vozes críticas partilham a mesma convicção: o NRT é um projecto neocolonial que mina a soberania queniana e usurpa as responsabilidades do governo. “O NRT deveria ser liderado pela comunidade e pertencer à comunidade”, diz Achiba Gargule. “Mas o que estamos a ver é que está ligado a organizações de conservação muito grandes e muito importantes em todo o mundo.” Numa tentativa de contrariar essas críticas, o NRT tornou a sua direcção executiva e o seu conselho de administração responsabilizáveis perante um conselho de anciãos, composto pelo presidente de cada zona de conservação. Há questões sobre o poder efectivo desse conselho, mas o NRT insiste que a sua existência e proeminência são importantes. Segundo Tom Lalampaa, o NRT não procura substituir o governo, mas acrescenta que “o Norte do Quénia tem sofrido algumas carências e as zonas de conservação do NRT ajudaram a supri-las”.

D

os governos sediados em Nairobi trataram o Norte com desprezo. Os colonos britânicos pouco interesse tinham pela região, considerando que não valia a pena apropriarem-se da terra árida para ali instalarem explorações agrícolas e ganadeiras. Em 1963, a independência trouxe uma nova elite dirigente, dominada por quenianos do Sul, que também olhavam com sobranceria os habitantes do Norte, por entenderem que o seu modo de vida de pastores itinerantes os tornava difíceis de governar. Esta negligência deixou um vazio que o NRT ajudou a preencher, prestando serviços essenciais a troco da conservação. “O essencial nisto é influenciar as pessoas”, diz Ian Craig, um dos fundadores do NRT e seu director de conservação. “Como posso influenciá-lo e levá-lo a pensar de forma compatível com a nossa?” 84

U R A N T E M A I S D E UM S É C U LO,

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

É uma estratégia abertamente transaccional. Aos 68 anos, Ian é a força motriz geradora de confiança e também um alvo de críticas por ser um proprietário de terras branco com ascendência colonial. Deu-me boleia no seu Piper Super Cub monomotor amarelo para conversarmos. “É um país grande”, diz Craig entre estalidos, através do equipamento de auscultadores. Elevamo-nos sobre o vale do Rifte, sobrevoando uma paisagem dura composta por lagos formados por actividade tectónica, escarpas aguçadas e afloramentos vulcânicos. Enquanto nuvens de tempestade semelhantes a bigornas se formam sobre o altíssimo lado oriental do vale e raios denteados explodem no céu, Ian vai abanando a aeronave de dois lugares para a direita e para a esquerda.

Um vigilante da natureza do Serviço de Vida Selvagem do Quénia carrega a pele seca de um leão morto devido a causas naturais, até um local de armazenamento. O serviço empresta-o para cerimónias culturais, como iniciações à idade adulta, permitindo a continuidade das tradições sem necessidade de matar mais leões. Apesar disso, à medida que o número de animais selvagens recupera nas zonas de conservação e as populações humanas crescem, o conflito entre ambas tem aumentado.

O NRT nasceu da Lewa Wildlife Conservancy, uma reserva de vida selvagem privada com 25 mil hectares, outrora um rancho ganadeiro fundado pelo avô de Ian em 1922. Quando este o herdou, cerca de 50 anos mais tarde, continuou a ser um magnífico pedaço de pradaria e floresta, com colinas suaves e vales profundos, mas teve dificuldades para subsistir como rancho. “Vivíamos constantemente em situação de seca. Não conseguíamos ganhar dinheiro. Era uma catástrofe”, diz. Em meados da década de 1980, os conservacionistas convenceram-no a erguer vedações em volta de dois mil hectares de terra, criando um santuário vedado para rinocerontes-negros, gravemente ameaçados pelos caçadores furtivos que os matavam para lhes removerem os cornos. Vivia-se então em África o apogeu da caça

furtiva ao elefante para obtenção do seu marfim. Abatiam-se todos os anos dezenas de milhares de animais. Com os rinocerontes abrigados no seu quintal e os elefantes chacinados nas redondezas, Ian percebeu com clareza que a Lewa não sobreviveria em isolamento. As populações humanas cresciam, o número de cabeças de gado aumentava, as espécies de animais selvagens diminuíam e as paisagens degradavam-se. Se o problema eram as pessoas, então a solução teria de passar por elas. Em 1995, ano em que a família transferiu o resto do seu rancho para Lewa, Ian convenceu os maasai laikipiak, donos de um “rancho de grupo” (uma estrutura queniana de propriedade da terra na qual os moradores partilham a posse das terras de pasto), a mudarem de perspectiva.

Gnus deslocam-se pelas savanas queimadas da Reserva de Caça de Masai Mara, que depende do turismo para financiar as suas operações de conservação. Quando a pandemia suspendeu as viagens, muitos funcionários locais perderam o emprego e alguns foram obrigados a actividades ilegais como a caça furtiva. Menos dependentes do turismo, as zonas de conservação comunitárias do NRT revelaram-se mais resilientes.

A comunidade local concordou em reservar parte das suas terras à protecção dos animais selvagens, pondo em prática planos de pastoreio nas terras restantes, atraída pela promessa das receitas provenientes do turismo de safaris. Durante algum tempo, o modelo funcionou. A norte de Lewa, os 8.900 hectares de escarpas rochosas e vales florestados de Il Ngwesi estendem-se desde o planalto de Laikipia até às planícies ao longo do rio Ndare. Um novo estabelecimento hoteleiro ecológico abriu no ano seguinte. À medida que a zona-tampão em redor de Lewa crescia, aumentavam também as ambições de Ian Craig. Pouco depois, foi a vez de Namunyak, abrangendo os picos graníticos e as cristas afiadas da cordilheira de Mathews, uma espinha dorsal com 80 quilómetros de comprimento de ilhas florestadas que emergem entre as nuvens, centenas de metros acima da savana. Seguiram-se mais zonas de conservação. A sua influência cresceu, em âmbito e escala, até que, em 2004, com financiamento da USAID, Ian Craig contribuiu para a criação do NRT. Pretendia ligar entre si e conservar paisagens enormes, interligadas por corredores de migração de animais selvagens, onde as comunidades humanas e o seu gado pudessem coexistir com a vida selvagem. “A narrativa da conservação não é um parque nacional dos animais”, afirma. “Este modelo tem que ver com conectividade”, acrescenta, referindo-se ao mosaico de parques nacionais públicos, reservas privadas e terras comunitárias no Norte do Quénia. “Estas bolsas de terra são grandes, mas não são suficientemente grandes… Para os animais selvagens conseguirem sobreviver, respirar e crescer, precisam daquelas comunidades.” Por sua vez, as comunidades beneficiam com o turismo. Em cada zona de conservação, os turistas pagam uma taxa de conservação que é dividida numa proporção de 60/40 entre os programas comunitários da zona de conservação e as suas operações. Os programas financiam propinas escolares, projectos hídricos e despesas médicas e a percentagem destinada às operações paga os vigilantes da natureza, os veículos e o equipamento. As taxas variam, mas os turistas estrangeiros pagam habitualmente até 80 euros por dia, enquanto os habitantes quenianos podem pagar um quinto desse valor. 88

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

E

M NENHUM OUTRO SÍTIO DO NORTE

se encontra uma concretização mais lucrativa do potencial turístico do que em Sarara Camp, um hotel ecológico na zona sul de Namunyak. Quando o acampamento foi construído, em 1997, “não havia paz, nem para os humanos nem para os animais selvagens”, lembra o guia de safaris e motorista Daniel Lenaipa, que cresceu ali. A segurança viabilizou o regresso dos elefantes, leopardos, mabecos e outros animais, bem como a vinda de turistas. Em 2019, os visitantes de Sarara pagaram cerca de 288 mil euros em taxas, custeando assim o orçamento de toda a zona sul de Namunyak, o equivalente a quase um quarto do rendimento turístico de todas as zonas de conservação do NRT nesse ano. Surgiu então o coronavírus. “Nos últimos 10 ou 15 anos, temos obtido receitas destinadas à comunidade e, pela primeira vez, talvez não houvesse nada para lhes dar dessas receitas por provirem apenas dos turistas”, diz Moses Lenaipa, antigo membro do conselho de Namunyak e actual director do orfanato para elefantes Reteti, no centro de Namunyak. Encontro-me com o director de Namunyak, Tom Letiwa, em Reteti, numa manhã escaldante, enquanto olho os bebés elefantes num recinto vedado perto de nós alimentados à mão com biberões de leite de cabra fortificado, adquirido a mulheres autóctones. “Este ano, as receitas serão muito baixas”, disse. A rápida reacção do Quénia para abrandar a propagação da doença, encerrando escolas, tornando obrigatório o uso de máscaras faciais, decretando o recolhimento obrigatório a nível nacional e impondo restrições ao tráfego transfronteiriço, sugeriu a todos os quenianos que as repercussões da pandemia seriam graves. Os habitantes de Namunyak viram que não havia turistas e perceberam que não haveria dinheiro, diz Tom. O NRT fez cortes salariais nas sedes e pressionou os doadores no sentido de continuarem a pagar aos vigilantes da natureza e de manterem intactos os orçamentos operacionais das zonas de conservação. Também houve uma injecção de financiamento público. As autoridades distritais criaram um fundo anual de 904 mil euros para ajudar as nove zonas de conservação do distrito de Samburu e o governo nacional contribuiu com 1,8 milhões de euros para pagar os ordenados dos vigilantes do NRT, no âmbito do seu plano de estímulo face à COVID-19.

Ao contrário do que sucedeu em zonas protegidas mais dependentes do turismo, como na Reserva de Caça de Masai Mara, na região ocidental do Quénia, e nos parques nacionais, no Norte do Quénia não se registou, desde o princípio da pandemia, qualquer aumento significativo da caça ilegal, nem das intrusões humanas nas terras, para as utilizarem como pasto, para plantarem culturas agrícolas, nem para efeitos de construção. Isso não ficou a dever-se apenas ao facto de o financiamento de emergência ter ajudado os vigilantes da natureza a manterem as suas patrulhas. O sucesso da conservação comunitária proporcionou outras vantagens além dos euros turísticos: ajudou a impedir o desespero económico que obrigou algumas pessoas a recorrerem a essas actividades. Apesar disso, as zonas de conservação do NRT viram crescer a criminalidade não-ambiental, incluindo roubos de gado e assaltos nas estradas. Poderão ter gerido a pandemia melhor do que outros, mas sentiram seguramente as consequências da perda de emprego e do encerramento dos mercados de gado. Entretanto, algumas populações ameaçadas, como as do elefante, do órix, da girafa-reticulada e da zebra de Grevy, mantêm-se estáveis ou em crescimento nas zonas de conservação do NRT. A caça furtiva ao elefante diminuiu e os animais deambulam cada vez mais longe e com mais liberdade. No entanto, esta liberdade também provocou um aumento do abate retaliatório de elefantes, que agora têm mais probabilidades de pisar culturas ou até de matar pessoas. Enquanto isso, o problema da pastagem excessiva não desapareceu por completo, mas a existência de planos de pastoreio apoiados pelo conselho de administração de uma zona de conservação deu alguma autoridade aos líderes locais para aplicarem uma política que pretende promover o bem maior em detrimento dos interesses próprios de curto prazo. Críticos como Achiba Gargule argumentam que a liderança do NRT pressiona os conselhos comunitários a concretizarem os seus objectivos de conservação, quer estes sejam ou não benéficos para todos. “O NRT é tão poderoso que consegue influenciar tudo com as zonas de conservação”, diz. “Mas até que ponto a voz [da comunidade] é ouvida?” Ian Craig reconhece que a vantagem do NRT é exercer influência sobre as comunidades para proteger os animais selvagens. É aí que as contrapartidas entram em cena: será que a vantagem de

As populações ameaçadas do elefante, do órix, da girafa reticulada e da zebra de Grevy encontram-se estáveis, ou em recuperação, nas zonas de conservação do NRT. atrair um hotel ecológico compensa o isolamento de terra e pasto para os animais selvagens? Valerá a pena seguir um plano restritivo do pastoreio em troca de uma escola e uma clínica? Que parte dos recursos naturais estará uma comunidade disposta a prescindir e o que ganha em troca? Num mundo de incerteza, o desenvolvimento de fontes de financiamento novas e fiáveis é essencial. “A COVID-19 gera risco em todo o lado, mas também é uma oportunidade de reiniciar e melhorar a agenda da conservação”, diz Giles Davies, fundador da Conservation Capital. Este grupo de investimento financia projectos que ajudam a proteger paisagens em todo o mundo, incluindo na terra natal do fundador, o Quénia, onde trabalhou com o NRT. “Precisamos que a conservação mude, deixando de pensar em termos de sobrevivência e passando a pensar em termos de prosperidade.” A gestão do NRT e das 39 zonas de conservação custou 5,7 milhões de euros em 2020, “uma ninharia” na opinião de Ian Craig, dados os objectivos do NRT. “São trocos, em termos reais, tendo em conta o impacte no número de vidas que temos sob a nossa alçada.” Essas vidas incluem as mães, filhos e homens idosos que formam fila ao sol, à porta da nova clínica de Madina Kalo, em Biliqo. Incluem os pastores para os quais o risco de roubo foi reduzido graças a Losas Lenamunyi e aos vigilantes da natureza seus colegas. Incluem os jovens de Melako que sonham trabalhar como vigilantes da natureza. E incluem Daniel Lenaipa, de Namunyak, que sabe que, à medida que a pandemia abrandar, os turistas regressarão porque a segurança é fiável, os animais selvagens prosperam e a paisagem está protegida. j C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A

89

Robert Turner reza junto do local da vala comum recém-encontrada no cemitério de Oaklawn, em Tulsa. Foi a primeira identificada resultante do ataque desferido em 1921 contra Greenwood, um bairro habitado por cidadãos negros. Turner é pastor da Igreja Metodista Episcopal Africana Vernon, um dos poucos edifícios que sobreviveu à violência da época.

90

GERAÇÕES PERDIDAS

Há um século, uma multidão branca massacrou cerca de trezentos cidadãos negros no próspero bairro negro de Tulsa, no Oklahoma. Agora, a cidade consegue finalmente reconciliar-se com essa devastação.

T E X T O D E DENEEN L. BROW N F O T O G R A F I A S D E BETH A NY MOLLE NKOF

92

A J U STE D E CON TA S COM O PA S SA D O Depois de o cidadão negro Dick Rowland, de 19 anos, ser acusado de agressão, uma multidão de brancos atacou Greenwood, saqueando, incendiando e matando. Um fotógrafo desconhecido registou a destruição e escreveu uma legenda a descrever a cena.

SOCIEDADE HISTÓRICA & MUSEU DE TULSA

I.

No dia 1 de Junho de 1921, uma multidão avançou sobre Greenwood, um bairro habitado por população negra em Tulsa, no estado de Oklahoma. Mary E. Jones Parrish agarrou na sua filha pequena e as duas fugiram para salvar a vida. Esquivando-se aos tiros, desceram a correr a Avenida de Greenwood. O céu zumbia com o ruído de aviões civis a largarem bombas improvisadas de aguarrás. Milhares de habitantes negros fugiam à medida que a multidão avançava, saqueando, incendiando casas, igrejas e outros edifícios, e disparando a sangue frio. “Sai já da rua com essa criança ou vão ser as duas mortas!”, berrou alguém. Porém, Mary Parrish não encontrava lugar para se esconder. Achou que seria um “suicídio” permanecer no seu prédio “porque este seria destruído e a morte na rua era preferível, pois esperávamos ser abatidas a qualquer momento”, recordou no seu livro “Events of the Tulsa Disaster”, publicado em 1922, no qual se incluem depoimentos de testemunhas sobre aquilo que viria a ser conhecido como o Massacre Racial de Tulsa de 1921. 94

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Residentes negros (alguns dos quais combatentes veteranos da Grande Guerra) tentaram impedir que os amotinados brancos atravessassem as linhas de caminho-de-ferro que separavam Greenwood do resto de Tulsa, mas, em número muito inferior, não foram capazes. Muitos cidadãos negros de Tulsa que sobreviveram à violência foram agrupados e confinados em campos de internamento. DEPARTAMENTO DE COLECÇÕES ESPECIAIS, BIBLIOTECA MCFARLIN, UNIVERSIDADE DE TULSA

“Alguns levavam bebés ao colo ou conduziam pela mão crianças a chorar e a gritar; outros, velhos e fracos, fugiam em busca de segurança”, escreveu a sobrevivente. Mary correu na direcção de Standpipe Hill, o ponto mais alto de Greenwood, mas não se sentiu segura. Viu o êxodo de habitantes negros de Tulsa e colunas de fumo erguendo-se daquilo que fora outrora um próspero bairro comercial. O condutor de um camião chamou-a. Ela e a filha saltaram para o interior. Ao fim de dois dias de tumultos, cerca de trezentos cidadãos negros tinham sido assassinados e o bairro de Greenwood fora destruído. O ataque foi um dos piores actos de terrorismo da história dos EUA e fez parte de uma vaga de violência racial cometida pela população branca contra as comunidades negras, durante a Grande Guerra. Segundo alguns historiadores, aquilo

que aconteceu em Greenwood foi “um massacre, um pogrom, ou, para utilizar um termo mais moderno, uma limpeza étnica”, assim ficou escrito no relatório da Comissão para os Motins Raciais de Tulsa, de 2001, a primeira investigação feita pelo estado sobre os ataques sangrentos. Demorou 80 anos, uma distância temporal que reflecte a forma como a comunidade branca de Tulsa, no essencial, se eximiu de culpas pelo massacre e o encobriu durante várias gerações. “Para outras pessoas, tratou-se de uma guerra racial”, prosseguiu a comissão. “No entanto, seja qual for a palavra usada, é certo que, quando tudo acabou, o bairro afro-americano de Tulsa fora transformado num campo de terra queimada, com lotes vazios, fachadas de lojas em ruínas, igrejas incendiadas e árvores enegrecidas e (Continua na pg. 101) desfolhadas.” A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O

95

96

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Empresários e profissionais negros prosperavam em Tulsa, antes do massacre. Em 1920, médicos, dentistas e farmacêuticos assistiram a um congresso médico em frente do Williams Dreamland Theatre (no topo). A sala de cinema pertencia a Loula Williams (à esquerda, com o marido, John, e o

filho, William). Loula também era proprietária de uma confeitaria popular, enquanto o sucesso de John como motorista de empresários do petróleo e mecânico numa fábrica de gelados lhe permitiu abrir a sua própria oficina de reparação de automóveis. Florence Mary Parrish (ao centro)

aprendeu a dactilografar com a mãe, Mary E. Jones Parrish. Mais tarde, haveria de recolher depoimentos cruciais sobre o ataque. J.B. Stradford (à direita, com a mulher, Augusta) construiu um hotel. As famílias Williams, Parrish e Stradford sobreviveram à agressão de 1921. As suas empresas não.

EM SENTIDO HORÁRIO, A PARTIR DO TOPO: SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA/BIBLIOTECA DO CONGRESSO; COLECÇÃO PRIVADA DE LAUREL STRADFORD; SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA; SOCIEDADE HISTÓRICA & MUSEU DE TULSA

DESTRUIÇÃO DURADOURA

Quando a multidão branca incendiou 1.115 casas, numerosas empresas e outros bens, em 1921, “as poupanças de uma vida inteira foram reduzidas a cinzas”, escreveu um grupo de destacados cidadãos negros de Tulsa. As companhias de seguros recusaram-se a pagar, invocando cláusulas sobre motins incluídas nas suas apólices. Os proprietários negros interpuseram 193 acções judiciais para obterem indemnizações. Com a anulação dos processos, os prejuízos tornaram-se definitivos. PREJUÍZOS INDIVIDUAIS Compilados com base nas acções judiciais contra as companhias de seguros e a cidade, estes montantes reflectem uma amostra dos prejuízos dos moradores, como se o valor tivesse aumentado a uma taxa de juro agregada de 6%, valor de referência seguido para determinar a rendibilidade do investimento.

Stalie Webb Delegado de polícia

1.174.664 $

Barney Cleaver Delegado de polícia e proprietário de imóveis. Foi o primeiro agente de polícia negro de Tulsa. Encontrando-se de serviço nessa noite, tinha a casa a arder quando regressou. Mais tarde, prestou depoimento contra o chefe de polícia, acusando-o de negligência.

20.785.306 $

Caroline Lollis Proprietária de imóveis

3.325.839 $

James Henri e Carlie Marie Goodwin

678.604 $

A. F. Bryant Médico. Perdeu uma farmácia. Reconstruiu-a.

Henry Wilson Hoteleiro, proprietário de bens imóveis

Andrew C. Jackson

1.017.906 $

3.991.889 $

3.294.623 $

P. J. Eldridge Dono de um restaurante

2.069.743 $

Sam Mackey Carpinteiro. Depois de incendiadas a casa onde vivia e mais duas arrendadas, reconstruiu-as em tijolo. A casa ainda existe.

5.428.833 $

Jackson, cirurgião de renome, foi abatido a tiro e o seu prédio de escritórios destruído. A viúva interpôs acção judicial contra a cidade.

Muitas das pessoas que perderam as suas casas refugiaram-se em tendas da Cruz Vermelha e em barracas.

Os bisavós da deputada Regina Goodwin perderam 14 propriedades, incluindo esta.

Reabriu o seu restaurante no bairro comercial.

Igreja Episcopal Metodista Africana

Tenda

Escola primária Dunbar

Igreja Adventista do Sétimo Dia Bethel

C OMU N I DA D E P RÓ S P E R A A convergência entre o crescimento da indústria petrolífera e a segregação fomentada pelas Leis de Jim Crown fomentou o desenvolvimento do bairro. As empresas de cidadãos negros satisfaziam quase todas as necessidades do bairro. O dinheiro permanecia ali e a “Wall Street Negra” prosperava.

Mercearias/ Talhos

41

Restaurantes

30

Outros

Unidades de alojamento 11

Salões de jogos 9

Hotéis 5

12

MANUEL CANALES; SCOTT ELDER. FONTES: LARRY O’DELL, SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA; WILLIAM A. DARITY, UNIVERSIDADE DE DUKE; “A REPORT BY THE OKLAHOMA COMMISSION TO STUDY THE TULSA RACE RIOT OF 1921”, 2001. FOTOGRAFIA: SOCIEDADE HISTÓRICA E MUSEU DE TULSA

610.743.750 $

OKLAHOMA

C Á L C U L O D A R I Q U E Z A P E R D I D A . Em valor actualizado em dólares, os prejuízos materiais da destruição totalizam 26.752.705 dólares. No entanto, o custo de longo prazo imposto às vítimas inclui a perda de capacidade para construir riqueza e transmiti-la aos descendentes. Seguindo esse critério, perderam-se 610.743.750* dólares de riqueza acumulada.

J. D. Mann Merceeiro, dono de vários imóveis.

2.985.858 $

6.200.746 $

Bairro histórico de Greenwood

Área queimada em 1921 Associação de moradores de Greenwood em 2021

Mann perdeu oito propriedades de arrendamento e a sua mercearia, que conseguiu reabrir.

Will Roberson Canalizador, proprietário de imóveis. Perdeu 12 casas no incêndio.

Tulsa

James Johnson Pastor religioso, proprietário de bens imóveis. Perdeu quatro casas, incluindo aquela em que vivia.

9.466.528 $

Panorâmica em baixo

0,5km

244

Hope Watson Dono de uma lavandaria de limpeza a seco. Reconstruiu a sua casa.

Mural “Wall BAIXA DE Street Negra” TULSA Cemitério

444

Oaklawn

3.921.314 $

A. L. Ferguson Farmacêutico. A sua drogaria no Hotel Stradford ardeu. Reabriu-a mais tarde.

6.446.740 $ Igreja Metodista Episcopal Africana Vernon Encontrando-se em construção quando a multidão atacou, a igreja foi reconstruída e ainda existe.

A. W. Brown Pastor religioso. Mudou-se para outra casa, igualmente em Greenwood.

2.797.206 $

Permaneceu em Tulsa, mas não reconstruiu a sua loja.

W. A. Baker Merceeiro

1.866.161 $

PANO RÂMIC A

Perspectiva parcial de Greenwood, a partir do Liceu Booker T. Washington.

DISTRITO FINANCEIRO G R E E N WO O D

Capela de Brown Igreja C.M.E.

NÚMERODE BAIXAS A Cruz Vermelha dos EUA contabilizou os prejuízos Estabelecimentos queimados 141 causados a pessoas e bens. Residências Quanto ao número de queimadas mortes, o relatório 1.115 deste organismo refere “NINGUÉM SABE.”

Relatório inicial

Pilhados

36

314 A maior parte dos feridos apresentava ferimentos de bala e queimaduras.

Mortes projectadas por historiadores: até 300 Ferimentos 714

* O TOTAL DE PREJUÍZOS EM DÓLARES, AO VALOR DE 1921, ELEVAVA-SE A $1,8 MILHÕES. CONVERTIDO EM DÓLARES DE 2021, ESSE MONTANTE EQUIVALERIA A 26.752.705 USD. CASO TIVESSE SIDO INVESTIDO DURANTE 100 ANOS, A UMA TAXA DE JURO AGREGADA DE 6% (VALOR DE REFERÊNCIA PARA DETERMINAR A RENDIBILIDADE DO INVESTIMENTO), O TOTAL DE PREJUÍZOS TERIA UM VALOR DE 610.743.750 USD.

100

A J U STE D E CON TA S COM O PA S SA D O Laços profundos unem o jornalista J. Kavin Ross a Tulsa. O seu bisavô perdeu um bar durante os motins e o pai propôs a legislação que abriu a primeira investigação oficial sobre o massacre no Oklahoma. Há muito que Ross apelava para que a cidade fizesse buscas para encontrar sepulturas em massa.

Cerca de dez mil pessoas (a quase totalidade da população negra e perto de um décimo do número total de habitantes de Tulsa) ficaram sem abrigo. Alguns dos mais destacados cidadãos de Greenwood abandonaram a cidade depois de serem falsamente acusados de instigação dos motins. “Além dos bens materiais, perdemos pessoas. Perdemos gerações, não apenas riqueza geracional. Perdemos corpos”, afirma a deputada estadual Regina Goodwin, cujo avô e bisavós sobreviveram ao massacre. “Alguns sonhos ficaram por realizar e, para maior tristeza, alguns sonhos nunca foram sonhados”, acrescenta. “Lembrem-se do poema clássico de Langston Hughes: ‘O que acontece a um sonho adiado?’” Hoje em dia, com várias gerações de descendentes das famílias negras de Tulsa do princípio do século XX ainda dispersas, o bairro das lojas de Greenwood encontra-se reduzido a um único prédio de apartamentos quase exclusivamente habitado pela população branca. No entanto, a cidade está finalmente a tentar reconciliar-se com o Massacre Racial de Tulsa, uma desgraça que há muito se esforça por esquecer.

II.

do massacre, Greenwood era uma próspera comunidade negra, num país onde a segregação racial era um tema da vida quotidiana. Em 1905, a descoberta de petróleo catapultou Tulsa para um crescimento económico explosivo. Multidões acorriam à região em busca de emprego. Cidadãos negros abandonavam as suas terras no Mississípi, no Missouri e no Texas para se instalarem em Greenwood. Alguns chamavam-lhe a terra prometida, uma esplendorosa meca cheia de oportunidades e a possibilidade de construir uma comunidade negra capaz de florescer pelos seus próprios meios. Em 1908, O.W. Gurley construiu um dos primeiros edifícios de Greenwood, uma hospedaria que alugava quartos à beira de um “trilho lamacento”, segundo a descrição feita no relatório da comissão dos motins, que mais tarde se transformaria na Avenida Greenwood. Mais tarde, “adquiriu 12 a 16 hectares, urbanizou-os em lotes e vendeu-os ‘exclusivamente a negros’.” Greenwood era impressionante. Nos edifícios de tijolo que ladeavam por completo a rua das lojas, havia “dois teatros, mercearias, confeitarias, restaurantes e salões de bilhar”, escreve Scott Ellsworth em “Death in a Promised Land: The

N A A LT U R A

SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA

Os jornais fizeram reportagens sobre a violência. O “Black Dispatch”, um semanário da cidade de Oklahoma, comparou a devastação ocorrida com a Grande Guerra. Contudo, as

memórias do massacre esbateram-se no silêncio colectivo: as forças de Tulsa não queriam a reputação da cidade manchada; os residentes negros não queriam que se repetisse.

Tulsa Race Riot of 1921”. “Algumas das onze hospedarias e quatro hotéis da Tulsa negra estavam aqui localizados.” Médicos, advogados, agentes de seguros, tipógrafos, banqueiros e outros empresários negros abriram os seus negócios em Greenwood. Mary Parrish descreveu algumas residências como “casas de beleza e esplendor”, embora a maioria das pessoas vivesse de forma bastante modesta. Em 1921, o bairro de Greenwood, racialmente segregado da comunidade branca de Tulsa pelas Leis de Jim Crow, era um mundo auto-suficiente. Tinha escolas reconhecidas a nível nacional, incluindo a escola primária Dunbar Elementary School e a secundária Booker T. Washington High School, dois jornais negros, o “Tulsa Star” e o “Oklahoma Sun”, um hospital cujos proprietários eram negros e mais de uma dezena de igrejas negras. A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O

101

“Depois de longos anos de esforços e sacrifícios, as pessoas começavam a olhar para Tulsa como a metrópole negra do Sudoeste”, escreveu Mary Parrish. “Foi então que a devastadora catástrofe se abateu sobre nós, reduzindo a átomos as ideias, os ideais e, não menos importante, a mera evidência material da nossa civilização.” O massacre surgiu pouco antes do Verão Vermelho, uma época de terror ocorrida em 1919, quando multidões de brancos mataram e lincharam centenas de cidadãos negros em mais de 25 lugares de todo o país. Bairros prósperos como Greenwood ameaçavam desestabilizar a hierarquia racial que dominara a vida norte-americana durante grande parte dos primeiros 145 anos do país, da mesma forma que os soldados negros regressados da Primeira Guerra Mundial exigiam os mesmos direitos humanos pelos quais tinham combatido no estrangeiro. O Ku Klux Klan reagiu com uma vaga de violência racial. Os cidadãos negros fugiram do Sul, procurando refúgio nas cidades do Oeste e do Norte, onde também prevaleciam “novas e especialmente insidiosas formas de pensamento 102

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

militante racista branco”, como lhes chamou o historiador Scott Ellsworth. “Nestes anos, tenho reparado num crescente ódio racial por parte das camadas mais baixas da população branca, ressentida com a prosperidade e a independência dos negros”, disse E.A. Loupe, sobrevivente do massacre de Tulsa, a Mary Parrish. Estas forças “caíram sobre os bons cidadãos com todo o ódio e vingança fermentado durante muitos anos”.

III.

começou da mesma maneira que muitos dos tumultos do Verão Vermelho: com a acusação de que um homem negro agredira uma mulher branca. No dia 30 de Maio de 1921, Dick Rowland, de 19 anos, entrou no elevador do Edifício Drexel, na baixa de Tulsa. Enquanto subia do primeiro para o terceiro andar, poderá ter dado um encontrão na operadora do elevador, uma jovem de 17 anos chamada Sarah Page, ou pisado o seu pé. Ela guinchou, alguém veio ver o que tinha sucedido e Dick fugiu a correr. O M A S SAC R E D E T U L SA

Cinco dias depois de o seu escritório ser incendiado, o advogado B.C. Franklin (à direita, nesta fotografia histórica), o seu sócio I.H. Spear e a sua secretária Effie Thompson abriram actividade numa tenda, contrariando os esforços feitos no sentido de impedir que os proprietários negros reconstruíssem os seus imóveis. Quase 100 anos mais tarde, os sobreviventes e descendentes – incluin-do Ellouise Cochrane-Price (em cima), cujo pai era primo de Dick Rowland, o adolescente acusado – interpuseram uma acção judicial contra a cidade, exigindo indemnizações. MUSEU NACIONAL SMITHSONIAN DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-AMERICANA (À ESQUERDA)

Boatos sobre o incidente alastraram pela comunidade branca de Tulsa, tornando-se “mais exagerados à medida que corriam de boca em boca”, segundo a Sociedade Histórica e Museu de Tulsa. No dia seguinte, um cabeçalho do “Tulsa Tribune” urrava: “Caça ao Negro que Atacou uma Rapariga num Elevador.” Sarah afirmou que Dick “a atacara, arranhando-lhe as mãos e a cara e rasgando-lhe a roupa”, noticiava o jornal. Dick Rowland foi detido e levado para o Tribunal da Comarca de Tulsa. Pouco depois, uma multidão cercou o tribunal para o linchar. Um grupo de homens negros armados, muitos dos quais veteranos de guerra, correu de Greenwood até ao tribunal para proteger Rowland. Tencionavam impedir um linchamento. O xerife rejeitou a ajuda, mas conseguiu evitar que Dick Rowland fosse linchado. As acusações contra ele seriam, mais tarde, retiradas. No entanto, as atenções da multidão tinham mudado de alvo. Um homem branco confrontou um veterano negro armado. Ouviu-se um disparo e a situação descontrolou-se, gerando o caos. A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O

103

Nessa noite, centenas de brancos, muitos dos quais nomeados ajudantes do xerife pelos funcionários da cidade, marcharam sobre Greenwood. Foram impiedosos. Alguns homens brancos irromperam pela casa de um casal de anciãos negros. “O homem, um paralítico de 80 anos, estava sentado numa cadeira”, segundo uma notícia, publicada dez dias depois por um jornal de Chicago. “Mandaram-no levantar-se e ele disse-lhes que era inválido, mas que o faria se o ajudassem, e eles mandaram a mulher ir-se embora, mas ela não queria deixá-lo. Ele disse-lhe que se fosse embora. Quando ela saiu, um dos cães danados disparou contra o homem e, depois, pegaram fogo à casa.” George Monroe, então com 5 anos, lembrava-se de se ter escondido com as irmãs mais velhas e com um irmão debaixo da cama dos pais. Monroe viu os homens saquearem o quarto e pegarem fogo às cortinas. “Enquanto estava escondido, um dos tipos pisou-me um dedo da mão e eu quase gritei, mas a minha irmã pôs-me a mão sobre a boca para que não me ouvissem.”

amontoou no relvado da sua casa, ele saiu para a rua com as mãos no ar e disse: “Estou aqui, rapazes. Não disparem.” Dispararam de qualquer maneira contra o respeitável médico, que morreu esvaindo-se em sangue. O Hospital Frissell Memorial, único hospital na cidade que prestava assistência a negros, já fora transformado em brasas pelo fogo. Homens brancos de uniforme “transportaram latas com petróleo até à Pequena África”, o nome posto a Greenwood pela população branca. “Depois de saquearem as casas, pegaram-lhes fogo”, escreveu Walter White, um investigador da NAACP que se deslocou a Tulsa pouco depois do massacre. Este homem negro cuja cor de pele clara lhe permitia passar por branco enquanto entrevistava testemunhas de linchamentos e homicídios por todo o país, ficou chocado com a informação recolhida em Tulsa. “Foram-me contadas muitas histórias de terror: não por pessoas de cor, mas por moradores brancos”, escreveu White numa reportagem publicada na revista “Nation” em 1921.

Os amotinados brancos atearam fogos, casa a casa. Incendiaram

IGREJAS, HOTÉIS, MERCEARIAS E A BIBLIOTECA PÚBLICA DA COMUNIDADE NEGRA. A multidão impediu os bombeiros de apagarem os incêndios.

A brutalidade da multidão tornou-se evidente em todo o bairro de Greenwood. “Eu estava na baixa com um amigo quando mataram aquele velhote simpático de cor, que era cego”, contou um sobrevivente do massacre à comissão. “Tinha as pernas amputadas. Junto das ancas, o corpo estava amarrado a uma pequena plataforma de madeira com rodas. O coto de uma das pernas era maior do que o da outra e saía do rebordo da plataforma, arrastando ao longo da rua. Deslocava-se de um lado para o outro usando as mãos, protegendo-as com luvas de basebol. Ganhava a vida vendendo lápis aos transeuntes ou aceitando donativos pelas músicas que cantava.” A multidão atou-lhe uma corda à volta do pescoço e arrastou-o pelas ruas de Greenwood, puxando-o com um automóvel. A.C. Jackson, a quem um dos fundadores da Clínica Mayo chamou “o mais capaz dos cirurgiões negros da América”, tentou desmobilizar a multidão. Quando um grupo de amotinados se 104

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Tulsa foi, provavelmente, a primeira cidade norte-americana alvo de bombardeamentos aéreos. Pilotos brancos locais descolaram nos seus aviões armados com dispositivos incendiários. “Da janela do meu escritório, eu conseguia ver os aviões a sobrevoarem em círculos”, relatou o advogado B.C. Franklin num depoimento dactilografado. “Na Baixa, na [Rua] East Archer, vi o velho Hotel Mid-Way em chamas, ardendo de cima para baixo, e assim sucessivamente, vários edifícios a arderem a partir do telhado. ‘O quê, também há ataques a partir do ar?’, perguntei.” Viu então três homens a correr na Avenida de Greenwood. “Os três homens (um dos quais carregando uma mala pesada ao ombro) foram mortos enquanto atravessavam a rua. Assassinados mesmo à minha frente.” Enquanto a noite caía sobre os horrores do dia 31 de Maio, alguns cidadãos esconderam-se, rezando para que o pior da violência tivesse terminado. Mas o pior ainda estava para vir.

“Na noite de terça-feira, 31 de Maio, aconteceu o motim”, contou mais tarde uma testemunha a Mary Parrish. “Na manhã de quarta-feira, ao nascer do Sol, deu-se a invasão.” A multidão retrocedera apenas para recuperar forças. Cerca de dez mil pessoas aglomeraram-se nos arredores de Greenwood. Uma metralhadora foi montada no alto de um silo de cereais. Exactamente às 5h08 dessa manhã, um silvo penetrante rasgou o silêncio da manhã. “Soltando urros selvagens e frenéticos”, recordou mais tarde uma testemunha, “começaram a emergir homens da estação ferroviária de mercadorias e da longa fila de vagões e, evidentemente, de trás das pilhas de poços de petróleo.” Os amotinados brancos atearam fogo “casa a casa, quarteirão a quarteirão”, enquanto caminhavam ao longo de Greenwood. Incendiaram “uma dúzia de igrejas, cinco hotéis, 31 restaurantes, quatro drogarias, oito consultórios médicos, mais de duas dúzias de mercearias e a biblioteca pública da comunidade negra. Mais de um milhar de casas foram queimadas e os fogos tornaram-se de tal maneira quentes que as árvores e edifícios externos da vizinhança também irromperam em chamas.” A multidão impediu que os bombeiros da cidade apagassem os fogos. Nesse dia, os cidadãos negros perderam bens no valor de milhões de dólares. Os prejuízos de Gurley, um dos fundadores da comunidade, elevaram-se a 157.783 dólares, segundo o relatório da Comissão do Massacre Racial de Tulsa. O valor actual dos seus bens destruídos (acrescido de um juro anual de 6%) cifrar-se-ia em 53,5 milhões de dólares – uma potencial fortuna perdida.

IV.

o cheiro a morte pairava na cidade. O governador recrutou unidades da Guarda Nacional exteriores para garantirem a paz. As unidades locais tinham-se associado à multidão destruidora. Em vez de protegerem os moradores de Greenwood, tinham-nos detido em campos de internamento no salão de congressos da cidade, no campo de basebol e nos terrenos da feira. Os cidadãos negros de Tulsa foram mantidos sob vigilância armada, “não podendo partir sem a permissão dos seus empregadores brancos”, segundo um relatório do massacre feito em 2020 pela Human Rights Watch. “Quando finalmente conseguiram partir, foi-lhes exigido que usassem cartões de identificação verdes ao peito.”

Enquanto se encontravam sob detenção, as multidões assaltaram-lhes as casas e enterraram os corpos das vítimas. Sobreviventes negros recordaram posteriormente terem visto cidadãos negros despejados em massa dentro de valas comuns, atirados para cima de camiões ou para as águas do rio Arkansas. “Eu vi dois camiões carregados de corpos”, contou um sobrevivente à comissão dos motins. “Viam-se negros com as pernas e os braços espetados para fora das tábuas da caixa do camião. Em cima deles, vi um rapazinho mais ou menos da minha idade. Pela sua cara, parecia que tinha morrido de medo.” Nunca foi detido qualquer cidadão branco por participação no massacre. Durante quase 80 anos, a cidade de Tulsa viveu mergulhada no silêncio quanto aos acontecimentos desse dia. Os sobreviventes negros que regressaram, para a reconstrução, nada disseram. Os líderes da cidade encobriram-no. Nos arquivos da Universidade de Tulsa, alguém se serviu de uma navalha para cortar todos os artigos publicados em revistas sobre o assunto. O artigo do “Tulsa Tribune” afirmando que Rowland agredira Page foi arrancado do jornal, bem como o editorial “Linchar Negros Esta Noite”. E contudo, a história do massacre não podia ser apagada, afirma Regina Goodwin, a deputada estadual. “As almas permanecem e nós honramo-las, mas estas foram gerações que poderiam ter nascido e nós não as temos. Aquelas pessoas foram massacradas, assassinadas, queimadas e abatidas a tiro. Eram pessoas. Perdemos papás, mamãs e bebés. Eles foram assassinados, houve fogo-posto e nunca ninguém foi acusado. Não houve sequer uma condenação e ninguém foi responsabilizado. E nós nunca nos esqueceremos.”

N O R E S C A L D O D O M A S S AC R E ,

V.

76 anos depois do massacre, o estado de Oklahoma abriu uma investigação sobre os acontecimentos. Don Ross, deputado ao parlamento estadual cujo avô sobrevivera à violência, redigiu um despacho que instituiu a Comissão sobre os Motins Raciais de Tulsa, em resposta a um repórter local que classificara um atentado à bomba em 1995 como a mais grave ocorrência de agitação civil desde a Guerra da Secessão. “O meu pai ripostou ao repórter: ‘Não, a pior ocorrência registou-se a uma hora de distância do Capitólio, em Greenwood’”, contou J. Kavin Ross, filho de Don Ross. “Foi isso que deu origem à reportagem.” E M 1 9 9 7,

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O

105

J. Kavin Ross, um jornalista de Tulsa, colaborou com a comissão, entrevistando e gravando em vídeo os depoimentos de mais de 75 sobreviventes. Foi pavoroso “ouvi-los contar as suas histórias, do ponto de vista de crianças. Muitos tinham 5, 9, 10 anos e alguns eram adolescentes”, disse. “Era algo que ficara retido na sua mente durante todo aquele tempo. Diziam: ‘Lembrei-me de outra coisa. Volte cá e entreviste-me outra vez.’” Em 1998, uma equipa dirigida por Scott Ellsworth, cujo novo livro “The Ground Breaking: An American City and Its Search for Justice” relatou o encobrimento e a investigação do massacre, identificou três locais onde poderiam existir sepulturas em massa: Newblock Park, o Cemitério Booker T. Washington e o Cemitério Oaklawn. O testemunho ocular de Clyde Eddy, um cidadão branco de Tulsa, alargou as buscas em Oaklawn. “Eu e um primo meu íamos a passar pelo velho cemitério de Oaklawn”, contou Eddy à comissão em 1999. “Vimos um grupo de homens a trabalhar, escavando uma vala, e depois vimos um monte de caixas de madeira em cima de terra. Fomos lá e demos uma espreitadela. Caminhámos até à pri106

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

meira caixa e estavam lá dentro os corpos de três negros. A caixa seguinte era muito maior e havia lá dentro, pelo menos, quatro corpos.” Uma equipa examinou o local descrito por Eddy, descobrindo uma anomalia com “todas as características de uma vala escavada, ou trincheira, com paredes verticais e um objecto indefinido no meio do centro aproximado”. Contudo, a zona estava reservada para enterramentos de brancos em 1921. A comissão decidiu não autorizar uma busca física e a presidente da câmara municipal de Tulsa na altura encerrou a investigação antes que os cientistas pudessem escavar, afirmando que não queria perturbar as sepulturas vizinhas. As buscas pareciam ter terminado. No entanto, em 2018, publiquei um artigo que foi publicado na primeira página do “The Washington Post” no qual questionava o encerramento das investigações. Eu viajara até Tulsa para visitar o meu pai e reparei que a urbanização estava a transformar Greenwood num bairro chique, um lugar considerado solo sagrado do massacre pelos descendentes dos sobreviventes. Poucos dias depois da publicação do artigo, o presidente da

Sobreviventes feridos encheram as camas do hospital provisório da Cruz Vermelha em Tulsa. “Embora os registos indiquem 763 feridos”, relatou esta organização de socorro, “neste número não se incluem as pessoas feridas posteriormente encontradas em quase todas as estradas que saíam de Tulsa”. A tia-avó de Phoebe Stubblefield perdeu a sua casa durante o ataque. Agora, a antropóloga forense (em cima) vai ajudar a identificar os restos mortais das vítimas encontradas nas sepulturas em massa. BIBLIOTECA DO CONGRESSO (ESQUERDA)

câmara municipal da cidade, G.T. Bynum, anunciou a reabertura das investigações para se procurarem as sepulturas em massa. “Se houver sepulturas colectivas em Tulsa, deveremos encontrá-las”, disse-me o autarca. “Se alguém for assassinado em Tulsa, nós temos um contrato com os cidadãos garantindo que tudo faremos para descobrir o que aconteceu e fazer justiça. É por isso que estamos a tratar este caso como um inquérito de homicídio de habitantes.” Este político do Partido Republicano reconheceu que a cidade encobrira o massacre durante quase um século, mas, como presidente da câmara municipal, prometeu apurar a verdade. “Para mim, é mais importante estar do lado certo da história”, afirmou. Mesmo assim, continua a sofrer pressões vindas de todos os lados. Alguns cidadãos brancos fizeram-lhe frente, dizendo que deveria deixar o passado enterrado. Entretanto, os moradores negros descendentes de sobreviventes continuam a exigir uma busca exaustiva de sepulturas em massa, bem como indemnizações pela riqueza que foi destruída. A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O

107

Brandi Ishem, finalista do ensino secundário, posa diante de um mural comemorativo da Wall Street Negra, nome pelo qual o bairro de Greenwood se tornou conhecido. Pintada em 2018, a obra decora um muro de retenção da estrada que actualmente atravessa Greenwood, dividindo o bairro em dois. O mural tornou-se um local popular para retratos de finalistas.

Em 2019, a cidade constituiu uma comissão formada por descendentes, investigadores e activistas comunitários. A seu pedido, um grupo de peritos recorreu ao radar de penetração no solo para procurar provas de anomalias nos locais identificados em 1999. Sob direcção do Oklahoma Archeological Survey, a equipa realizou buscas no cemitério de Oaklawn e em Newblock Park, ao mesmo tempo que a cidade negociava o acesso a um terceiro local, o terreno de propriedade privada Rolling Oaks Memorial Gardens, outrora chamado Cemitério de Booker T. Washington. No dia 16 de Dezembro de 2019, os cientistas anunciaram a descoberta de anomalias sob o solo de Oaklawn e numa zona chamada The Canes, actualmente um acampamento de pessoas sem-abrigo, perto do local onde a auto-estrada I-244 atravessa o rio Arkansas. 108

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

VI.

o mais antigo lugar público de enterramento actualmente existente em Tulsa, localiza-se a poucos quarteirões de distância de Greenwood. Na sua entrada, ainda há um mapa a mostrar a linha que divide o talhão dos “brancos” do talhão dos “de cor”. Em Julho de 2020, os cientistas escavaram numa zona para pessoas “de cor”. Passados oito dias de escavações, os cientistas ainda não tinham encontrado sepulturas em massa. A cidade decidiu alargar a busca. Três meses depois, no dia 19 de Outubro de 2020, começou uma segunda escavação, numa área onde se suspeitava que tivessem sido enterrados 18 cidadãos negros em 1921. Dois dias mais tarde, os cientistas encontraram os restos de uma trincheira sob uma árvore, junto das lápides de Reuben Everett e Eddie Lockard, as O C E M I T É R I O D E O A K L AW N ,

O local de enterramento poderá conter muitos mais caixões, depositados uns sobre os outros. “Poderá haver mais de 30 pessoas enterradas nesta sepultura em massa”, diz. Foram talhados degraus no solo duro, “presumivelmente para se poder entrar e sair do poço de sepultamento”, diz. É improvável que quem escavou a sepultura se tivesse dado a tanto trabalho só para enterrar meia dúzia de pessoas.

VII.

antes dos estudos bíblicos, o reverendo Robert Turner, pastor da Igreja Metodista Episcopal Africana Vernon caminha até à Câmara Municipal para protestar contra o massacre e exigir indemnizações. “Pessoas negras foram assassinadas nesta cidade, abatidas por terrorismo racial de massas”, grita. “Vidas inocentes foram ceifadas. Bebés queimados. Mulheres queimadas. Mães queimadas. Avós queimadas. Avôs queimados. Maridos queimados. Casas queimadas. Escolas queimadas. Hospitais queimados. O nosso santuário queimado. O sangue dos que foram assassinados em Tulsa ainda clama em alta voz.” Quando recebeu as notícias do achado, porém, Turner deixou-se cair em silêncio sobre os joelhos, junto da vedação de ferro forjado do cemitério, e rezou. Kristi Williams também foi ao cemitério. A sepultura em massa fora descoberta no local onde ela e outros activistas negros haviam encenado uma “morte colectiva” em 2019, para chamarem a atenção para as vítimas do massacre. Na companhia de doze pessoas, Kristi deitara-se sobre a relva perto das duas lápides marcadas como pertencendo a vítimas conhecidas dos motins. De súbito, dois dos activistas deram um salto. “Sentiram algo a puxá-los para baixo, vindo da terra”, contou Kristi. “Achámos que estavam a armar-se em parvos. Mas quando recebemos a notícia de que tinham descoberto uma sepultura em massa no local, de repente fez-se luz. Os nossos antepassados estavam a chamar por nós e era ali que se encontravam.” No limite do cemitério, Kristi Williams verteu uma libação de água e rezou: “Antepassados, obrigada por chamarem por nós. Rezo para que sejamos capazes de vos ligar a todos às vossas famílias e que nos ajudeis neste processo para que se faça justiça. Tenho tanta pena que isto vos tenha acontecido.” j T O D A S A S Q U A R TA S - F E I R A S ,

únicas sepulturas de vítimas conhecidas do massacre assinaladas no cemitério. A vala continha um mínimo de 11 caixões. “Isto é uma sepultura em massa”, comunicou a arqueóloga estadual Kary Stackelbeck aos jornalistas, numa conferência de imprensa em Tulsa. No entanto, acrescentou que seriam necessárias mais investigações para apurar se os corpos pertenciam a vítimas do massacre. Indícios de lesões traumáticas, ferimentos causados por armas de fogo ou queimaduras poderiam associar as ossadas ao massacre, afirma Phoebe Stubblefield, a antropóloga forense responsável pelo exame dos restos mortais. No entanto, Phoebe Stubblefield, cujos antepassados sobreviveram à violência, afirma que, antes de poder fazê-lo, precisa de obter permissão de um juiz para proceder à exumação dos restos mortais.

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O

109

N AT I O N A L

G E O G R A P H I C

|

NA TELEVISÃO

Impact com Gal Gadot E S T R E I A : 1 0 D E J U L H O, À S 1 3 H 3 0

Primal Survivor E S T R E I A : 1 6 D E J U L H O, À S 2 2 H 1 0 TO DA S A S S E X TA S - F E I R A S

Hazen Audel viaja até alguns dos lugares mais inóspitos do planeta para participar em desafios individuais de superação da sua resistência. Das florestas tropicais da Papua Nova-Guiné aos desertos do Saara e às montanhas geladas dos Himalaia, Hazen contará apenas consigo.

Bob Ballard E S T R E I A : 2 5 D E J U L H O, ÀS 22H30

O canal National Geographic apresenta “Impact com Gal Gadot” um documentário que acompanha as histórias de seis mulheres com um impacte extraordinário nas suas comunidades. Enfrentando a violência de gangues, a contaminação da água, a degradação ambiental ou discriminação, as mulheres que figuram no documentário insurgem-se contra o destino e contrariam a adversidade. Conheça a história de uma bailarina, no Brasil, que criou através da dança uma comunidade que ajuda as raparigas a lutarem por um futuro melhor, bem como outras inspiradoras. Produzido pela actriz Gal Gadot, o documentário não deixará ninguém indiferente.

Bob Ballard, o explorador que descobriu os destroços do Titanic e do Bismark, entre várias outras expedições oceanográficas e arqueológicas, regressa agora à National Geographic com um documentário íntimo sobre a sua vida, os seus triunfos e tragédias. ENTERTAINMENT ONE (NO TOPO); NATIONAL GEOGRAPHIC (AO CENTRO E EM BAIXO)

Sharkfest S Á B A D O S E D O M I N G O S , A PA RT I R DA S 1 7 H

America’s Funniest Home Videos: Animal Edition E S T R E I A : 2 8 D E J U L H O, À S 1 7 H

Do quintal à savana, passamos momentos com animais que nos fazem rir, suspirar e sorrir, proporcionando-nos sempre boa disposição. Alfonso Ribeiro, o actor celebrizado pela série “O Príncipe de Bel-Air”, apresenta o programa.

Critter Fixers ESTREIA: 2 DE J U L H O, À S 1 7 H DIDIER NOIROT (NO TOPO); NATIONAL GEOGRAPHIC (AO CENTRO E EM BAIXO)

O famoso especial de programação Sharkfest está de volta ao Nat Geo Wild com mais de vinte estreias sobre um dos animais que mais curiosidade gera em todo o mundo: o tubarão. Sharkfest mostra-lhe de perto um dos mais temidos predadores da natureza, desmitificando preconceitos e apresentando este fantástico predador sob uma aura mais auspiciosa. Entre os vários documentários exibidos nos fins de semana de Julho, destacam-se as estreias dos programas “The Croc That Ate Jaws”, “Rogue Shark?”, “Sang Eating Sharks”, “Shark Attack-Tics”, “Shark Gangs”, “50 Shades of Sharks”, “Shark Attack: The Paige”, “ The Sharks of Hawaii”, “Sky Sharks”, “World’s Biggest Bullshark”, “World’s Deadliest Shark”, “Shark Attack Files” e “When Sharks Attack 7”.

No Sul de Atlanta, os Dr. Hodges e Ferguson são amigos de longa data que trabalham no Hospital Veterinário Critter Fixer. Com a sua equipa, tratam e cuidam de mais de 20 mil pacientes. Visitam quintas em toda a zona rural da Geórgia, resolvendo emergências muito especiais.

P R Ó X I M O

N Ú M E R O

Os gladiadores de Roma Antiga

Apesar das representações da literatura e do cinema, sabe-se que os gladiadores eram por norma profissionais. Os seus combates tinham mais que ver com o espectáculo do que com a matança veiculada pelos mitos.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

|

AGOSTO 2021

Rãs de cristal: Como se viverá transparência total fora da Terra Os avanços dramáticos no campo da genética, da biologia molecular e da óptica proporcionam à comunidade científica uma nova visão sobre estes diminutos anfíbios de pele transparente distribuídos pela América Central e do Sul.

Experiências conduzidas na Terra permitem imaginar como serão os assentamentos humanos noutros planetas, como Marte, onde várias equipas científicas desenvolvem projectos inovadores de colonização sustentável.

No limite da sobrevivência

Na aridez do deserto do Kalahari, as secas e o aumento das temperaturas ameaçam ainda mais o delicado equilíbrio de que depende a vida. A água e os nutrientes são bens escassos neste território inóspito.

RÉMI BÉNALI

História

JÁ CONHECE AS NOSSAS EDIÇÕES ESPECIAIS?

Grandes Personagens

Cosmo

Viagens

Matemática

Cultura

Arqueologia

Grandes Mulheres

Similar documents

National Geographic PT Jul 21

Clodoaldo Gomes - 23.3 MB

Doc - 19 jul. 2021 - 5-21 p. m.

Charly Vargas - 57.7 KB

Economics Jul 05, 2021

Pranay Choudhary - 2 MB

PT ApresentacaoFinal

Ivo Nunes Luiz - 1.6 MB

Feasibility report Final pt.

Neil Dave Suarez - 121.8 KB

National Security Concerns

Pau Lo - 81.3 KB

P1 INSTRUCONTROLG5 2-21

Britney Calderon - 168.6 KB

IBM_Curs 03-04_20-21

Ana Bunduc - 2.3 MB

TAREA 21

KAREN NOEMI VELASQUEZ ARANGO - 151.9 KB

TAREA 3 REPORTE DE PRÁCTICA 21-09-21

Jose Ramirez - 488.4 KB

Surat Minat PT Krakatau Steel

Anugrah Mandiri - 225.4 KB

21 DE SEPTIEMBRE

Rene Cruz - 1.1 MB

© 2024 VDOCS.RO. Our members: VDOCS.TIPS [GLOBAL] | VDOCS.CZ [CZ] | VDOCS.MX [ES] | VDOCS.PL [PL] | VDOCS.RO [RO]