AULA cof 50

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Description

(01) Você não pode esquecer que tudo aquilo que eu expliquei da simples apreensão refere-se à simples apreensão da natureza de um objeto. E a apreensão da natureza é como se respondesse implicitamente a pergunta “o que é”. Você percebe que isto é um gato, isto é uma árvore, isto é um jacaré, este é o Olavo de Carvalho e assim por diante. (02) O que acontece hoje, já de uma tradição de alguns séculos, é colocar em dúvida a percepção originária, a percepção de substância, e até questionar tal noção — é este é o ponto. René Descartes, Galileu e outros, inauguram o tipo de enfoque no qual só interessa a observação dos caracteres matematizáveis; ora, estes caracteres jamais nos darão uma substância — esta não é matematizável; um gato não é mais gato ou menos gato, um jacaré idem. A simples apreensão lhe dá uma informação de ordem unitária absoluta: isto é um jacaré, isto é um gato, isto é uma mesa e assim por diante. É com base nisso que todo processo cognitivo vai se desenrolar. Quer dizer, a simples apreensão não lhe dá tudo, isto seria absolutamente impossível. Se você pudesse perceber tudo por simples apreensão você seria Deus, pelo conhecimento instantâneo de todas as coisas — isto absolutamente não é possível. Nós temos o conhecimento instantâneo da identidade das substâncias, e mesmo quando você pode errar, você não erra na percepção; se for analisá-la, a percepção está corretíssima. As conclusões que você tira depois é que podem confundir tudo. (03) Durante milênios, todo processo verbal da filosofia acompanhava sempre o raciocínio — ou seja, a formação do juízo e do raciocínio — e, portanto, aquilo se construía em cima da simples apreensão. A proposta da fenomenologia é retornar à simples apreensão e tentar extrair todo suco que ela possa dar, antes de fazer qualquer raciocínio em cima. Como se dissesse: a descrição fenomenológica, se não é préracional é pré-raciocínio; não podemos dizer que ela é racional nem irracional, estas categorias não se aplicam. (04) Então, suponha já uma observação contínua. Essa observação só vale se você tiver primeiro a percepção da natureza do ente. Agora, o que aconteceu na transição da Idade Média para a Ciência Moderna? A noção de substância foi abandonada e sobram só os estados, tais como observados cientificamente e matematizados. Você sabe tudo o que acontece, apenas não sabe para quem acontece. Essa foi a grande objeção de Leibniz a todo este negócio racionalista moderno. Todos os caracteres mensuráveis e matematizáveis de um ser não bastam para dizer o que ele é; você precisa ter de apreender primeiro a forma substancial do ente, tal como ela se apresenta, e então saberá que tais ou quais estados aconteceram a determinado ente. A percepção de substância não é por si matematizável, mas ela é a pré-condição sem a qual você não pode matematizar nada — você estará matematizando o nada. Quer dizer que a descrição total que as Ciências dão do mundo, das duas uma: ou ela se assenta na noção de substância ou ela é uma fantasmagoria. Lembrem-se do texto do Jean Doujat, que diz que a maior parte dos cientistas são filosoficamente realistas, ou seja, eles acreditam na existência do mundo exterior objetivo, onde existem coisas e, portanto, substâncias; logo, formas substanciais. Eles acreditam, mas estas noções todas não fazem parte da sua Ciência. São noções filosóficas que eles subscrevem na prática, mas não na teoria. Isso faz com que a Ciência vire um jogo de esconde-esconde. Eles sabem que estão falando de substâncias. Por exemplo, se o sujeito é um químico, ele está falando de substância — além de substância no sentido químico, elas são substâncias no sentido filosófico, são coisas que existem. Ele sabe que está falando de coisas que existem, mas a própria noção de existência não é uma noção quimicamente expressável. As noções de existência, de relação e de propriedade não são quimicamente expressáveis; tudo isso são conceitos filosóficos que estão na base de todas as ciências.

É a velha proposta do Leibniz, que a fenomenologia no século XX veio confirmar integralmente, em que temos de trazer de volta as formas substanciais. (05) A percepção da substância é imediata ou então ela não acontece. Milhões de observações detalhadas não dirão para você o que é uma coisa — saber em que estado ela está, o que ela está fazendo, o que está acontecendo, como aquilo sucede etc. Mas tudo isso se baseia na possibilidade que nós temos da simples apreensão. A simples apreensão é mágica, porque ela une indissoluvelmente o singular e o universal; ou melhor, a pessoa percebe um ente sob a categoria universal a qual ele pertence. (06) Acontece que a modernidade apostou na hipótese de vir a conhecer a realidade das coisas através da abordagem científica experimental matemática — o que é absolutamente impossível porque, ou este aparato cognitivo da ciência se baseia na noção da substância, ou então ele não está falando de nada; então podemos passar à noção seguinte: a noção de juízo. O juízo é uma afirmação interior, é uma sentença interior (que acontece no verbum mentis), acompanhado de afirmação ou negação — quer dizer aquilo que você interiormente acredita. O juízo se expressa verbalmente numa proposição, sentença ou afirmação. Existe, porém, uma diferença entre o juízo e proposição: o juízo pode ser sem palavras (por isso que diz ser apenas o verbum mentis); é uma coisa na qual se acredita. Logo, o juízo só com o juízo (ou o julgamento) só acontece dentro da consciência humana, é um ato imanente da consciência. Quando eu estou interiormente fazendo um juízo, não está acontecendo nada na sua cabeça nem na cabeça do outro. Já a proposição é uma fórmula verbal, é a expressão verbal do juízo. (07) Se eu expresso essa proposição para uma outra pessoa, ela é verdadeira ou falsa? Depende de como a pessoa entenda a minha proposição. Ou seja, a pessoa terá de, por sua vez, transformar a proposição (que é uma mera estrutura verbal) num juízo e, interiormente, mconcordar ou discordar. Acontece que eu formei o meu juízo a partir de algo que eu acredito ter percebido ou de algo que eu pensei. E o ouvinte? O ouvinte não tem esta sequência, ele tem a sequência inversa: ele tem uma proposição (uma estimulação sonora), que ele vai ter de transformar em experiência imaginária e criar um juízo interior. Neste processo ele pode errar e parar longe do meu juízo originário — isso acontece com uma frequência extraordinária. Ou seja, como eu só posso esclarecer o sentido de uma proposição, eu não posso forçar o sujeito a ter o mesmo juízo que eu tive (e nem a minha percepção); eu só posso cercar as possibilidades de erro, por assim dizer negativamente, através de proposições corretivas que ele também pode não entender exatamente no mesmo sentido. A conclusão disso é muito simples: não existem proposições verdadeiras; não existem sentenças verdadeiras. Alguém pergunta sobre a Bíblia; nenhuma proposição que está escrita na Bíblia é verdadeira, porque depende como você a entende. Por exemplo, está escrito “no princípio, Deus criou o céu e a terra”; e você entende que ‘no princípio’ é ‘muito antigamente’, e entende que Deus criou o céu e a terra pegando uma matéria qualquer, modelando com terra... Você já entendeu tudo errado e isso é absolutamente falso. O que Moisés escreveu no Pentateuco reflete o juízo que ele teve e que lhe foi inspirado por Deus. Mas não quer dizer que você vai entender como Moisés entendeu. Então você não pode dizer que a proposição “no princípio, Deus criou o céu e a terra” é verdadeira em si. O que é verdadeira é o juízo que Deus inspirou a Moisés e que ele exteriorizou com estas palavras. Isso quer dizer que não existem elementos exteriores nos quais possamos nos apoiar totalmente em matéria de verdade ou falsidade. Por isso que Santo Agostinho dizia que no interior do homem habita a verdade. O juízo só existe para a consciência concreta,

individual, real, agente, do indivíduo que está pensando no assunto — só ali que aparece a verdade. Não estou me referindo agora à verdade das próprias coisas, estou falando da verdade não enquanto manifestação do ser, mas enquanto conhecimento. (08) Não se pode tocar, ver, medir a consciência humana e, no entanto, é só ali que existe a verdade (repito: não me refiro à verdade das coisas, mas do conhecimento). As bibliotecas inteiras, todos os registros: nada disso tem verdade, tudo isso são apenas sementes de juízos verdadeiros que nós obteremos lendo aquelas coisas. No momento em que você tem alguma representação mental, alguma referência a algo que é exterior à própria proposição, entra aí não a ambiguidade da linguagem, mas a ambiguidade das coisas. Isso não é uma limitação da linguagem, isso é a contingência da própria realidade das coisas. As coisas podem revelar para você instantaneamente a sua natureza, a sua forma substancial; porém, ela pára aí. Quando você lê as definições elas vão se reportar a elementos do mundo extralingüísticos ou vão estar fechadas dentro do mundo intralingüístico? Se estão fechadas dentro do mundo intralingüístico, então elas não significam nada fora das palavras que as designam; estariam ainda assim dentro de uma linguagem totalmente formal. (09) O ser humano fica angustiado com isso por saber que nada garante para ele a sua posse da verdade. A verdade só existe na consciência humana que a intelige, no momento em que a intelige. Não adianta fixar aquilo numa fórmula verbal perfeita, porque no instante seguinte você mesmo lendo aquilo pode pensar outra coisa. Então, só no momento em que o juízo reflete a percepção real de alguma coisa, e você expressa para si mesmo, é que se tem a verdade. Tão logo você disse aquilo, você transformou em proposição, entra o risco. E, no entanto, parece que a maior parte dos alunos entende o que estou dizendo nas aulas; por quê? Porque querem entender; porque a consciência está voltada para a busca da verdade. É este desejo da verdade e este ato da consciência que intelige, e que faz o juízo interior verdadeiro, o nosso único ponto de contato com a verdade. O fato de o ser humano querer a verdade, mesmo sobre uma coisa bem modesta, simples e humilde, prova a sua liberdade. A capacidade que o ser humano tem de perceber e conhecer a verdade é função do exercício da sua liberdade e responsabilidade pessoal. Não há nenhuma garantia. Os procedimentos usados tradicionalmente (historicamente) para criar, senão esta garantia, ao menos um simulacro dela, são basicamente dois: (1) Os dogmas religiosos: as pessoas se apegam, pegam a Bíblia e dizem “isto aqui é a palavra de Deus, portanto é a verdade”. Não, depende de como você entende a coisa. Dizer, por exemplo, que “Jesus é filho de Deus Pai”; se você entender no sentido de filho carnal, já não entendeu nada. A responsabilidade cognitiva é a responsabilidade mais alta que o ser humano tem, e não existe nenhuma defesa externa; mas existem simulacros e o primeiro deles então é o dogma religioso — a proclamação de verdades uniformes que devem valer para todos. O juízo se transforma num verdadeiro juízo quando você assume o sentimento de aprovação com plena responsabilidade — é a crença integral; “Eu sei que isso é verdade e se eu esquecer disso depois, o errado sou eu e, não, a verdade”. Quando chega neste ponto que se tem um juízo, este pode ser transformado em proposição e ser objeto de discussão, de prova ou de refutação. Os produtos toscos, anteriores a este, não podem; as hesitações da alma não podem. Nem mesmo o sentimento de aprovação constitui o juízo. Então, o juízo no sentido lógico não é sequer definível sem o apelo aos elementos psicológicos, interiores, os elementos reais interiores — sentimento, vontade,

liberdade etc. As definições que os manuais lógicos dão de juízo, são somente definições formais, não estão dizendo o que é um juízo realmente. (2) O segundo refúgio da mente desesperada é a lógica e a ciência, é a formalização perfeita. A ciência tal como é ensinada hoje pretende ensinar a verdade que valha por si mesma, que se impõe obrigatoriamente a todos [0:50], independentemente da consciência individual. O ideal das ciências, tal como se praticam hoje em geral — não digo todas, mas a maioria das pessoas faz isso — é produzir verdades tão claras e auto-probantes que ninguém precisa pensá-las para que elas sejam verdade, elas não precisam ser conhecidas porque valem independente do ser humano — o que é uma coisa absolutamente utópica, impossível, que se conseguisse transformaria um ser humano em um ET, quer dizer um processo de estupidificação.

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