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Description
(03) A paralaxe cognitiva eu defini como o deslocamento entre o eixo de uma construção teórica e eixo da experiência real desde a qual o indivíduo está criando a sua construção teórica. Não se trata de qualquer experiência pessoal, mas da experiência pertinente àquela construção, quer dizer, à situação cognitiva real dentro da qual ele está criando a sua construção. Isso não está no texto d’O Princípe, no entanto, o livro foi escrito em alguma situação real. Tudo que ele está construindo é uma idealização em cima de uma situação que estava lhe dizendo exatamente o contrário: “Olha, você não sabe os meios de chegar ao poder: você não sabe, seu chefe não sabe e as pessoas nas quais você aposta também não sabem.” E, no entanto, Maquiavel discursa como se soubesse. Ele está dando aulas; ele fala no tom de um mestre da arte do governo — coisa que ele não é absolutamente. (05) O pensamento verdadeiramente revolucionário só vai aparecer de maneira explícita em duas ocasiões. Ele surge nas primeiras heresias cristãs da modernidade — nas revoluções religiosas —, mas surge sob uma forma incipiente, ou seja, não forma um sistema coerente. A primeira exposição coerente de um projeto revolucionário aparece sem dúvida no movimento socialista, dentro da Revolução Francesa, nas décadas seguintes. E dessas expressões do movimento revolucionário, a mais plena é evidentemente a obra de Karl Marx. Eu não posso dizer que se trata de paralaxe cognitiva em Karl Marx; a paralaxe cognitiva já ficou para trás. Aqui você tem mesmo é a mentalidade revolucionária em ação e, portanto, você vai ter ali as famosas três inversões que são a marca característica da mentalidade revolucionária: a inversão do sentido do tempo; a inversão da relação sujeito-objeto; e a inversão da responsabilidade moral. (06) Todo mundo sabe que Karl Marx tem uma dívida enorme com Georg Friedrich Hegel. Nós podemos dizer que Hegel é uma transição entre a mera paralaxe cognitiva e a mentalidade revolucionária. É preciso ver que Hegel observa que o ser, antes de se determinar mediante a criação da natureza, tomado enquanto indeterminado, é idêntico ao nada. Portanto não adianta perguntar o que é o ser, o que é o tal do espírito, exceto olhando através da sua manifestação concreta na natureza, que é uma manifestação ao mesmo tempo opositiva. Só que para o espírito se determine de alguma maneira, seja mediante a criação na natureza ou de qualquer outra maneira, ele tem de ter poder de se determinar; e se ele tem o poder de se determinar, então ele não pode ser idêntico ao nada porque o nada não pode se determinar de maneira alguma — o nada, nada faz. A filosofia de Hegel começa a ficar interessante quando ele descreve o processo histórico da humanidade como uma sucessão de etapas da manifestação do espírito. Se você fala no sentido da história, o sentido da existência humana; o sentido de uma coisa nunca pode se esgotar nela mesma. O significado de um signo nunca pode ser o próprio signo, sempre tem de ser alguma coisa que o transcende; então a simples busca de um sentido na história já supõe um ponto de vista superior que unifica tudo. É claro que as análises históricas que Hegel faz baseado nisso são brilhantes. (07) Assim como Hegel tinha visto todo o processo histórico como um indeterminado inicial que se determina negando-se, e que, depois, reencontra-se consigo mesmo no fim
do processo; Marx quis ver se não havia um equivalente disso no mundo material. Porém, o que ele chama de matéria, na verdade, é uma coisa muito estranha, porque o conceito fundamental que ele usa não tem nada a ver com ciências da natureza (...) O foco de interesse de Karl Marx se centra num treco que ele chama trabalho, que é o esforço humano de transformação dos elementos naturais de acordo com as suas conveniências e necessidades. Karl Marx aderiu ao socialismo ainda muito jovem, e o movimento socialista — todo ele — via o socialismo como o estágio final da humanidade. Assim — impressionado de um lado pela filosofia de Hegel, e de outro lado pelo movimento socialista — ele se persuade de que aquele estágio final anunciado por Hegel, no qual o espírito se reconcilia consigo mesmo, seria exatamente o socialismo; não o mero estado leigo democrático, tal como Hegel pensava. (08) Como o socialismo não é, para Marx, a conclusão de uma análise histórica, mas, ao contrário, é um dado fundamental que ele tinha antes de fazer qualquer análise histórica que prestasse; então, evidentemente, aí nós já temos a inversão do sentido do tempo. Pode-se discutir o que aconteceu na história, pode-se discutir o curso dos eventos na história, mas o final dela está garantido: é o socialismo. Karl Marx só vai ter de explicar por que as coisas são assim. Ele poderia ter explicado de outras maneiras, como outros — Proudhon, Bakunin etc. — explicaram também de outras maneiras; mas como ele estava também persuadido de que o processo descrito por Hegel devia ser reencontrado na própria dinâmica do processo econômico, então é ali que ele vai concentrar a sua atenção. (10) Mas a noção de trabalho abstrato não é do mesmo modo, porque as modalidades de trabalho que existem são tão diversificadas que são irredutíveis uma à outra. Você só as denomina de trabalho porque o que elas produzem ou ocasionam — pois nem sempre o resultado do trabalho é um produto, pode ser um serviço — tem um valor. Por exemplo, você chama de trabalho a um sujeito fazendo buracos n’água o dia inteiro? Não, você chama de diversão, de perda tempo, qualquer coisa.Nós só entendemos que algo é trabalho porque aquilo atende a uma finalidade social específica e essa finalidade se manifesta no fato de que o produto ou serviço decorrente tem um valor, quer dizer, alguém está disposto a pagar por aquilo. Marx está dizendo o contrário, que é o trabalho que define o valor; não só o valor de troca, mas o valor de uso. Será que ele está louco, bêbado? Não. Simplesmente a mente revolucionária é assim: inverte o sujeito e o objeto. Ele está tentando fazer um raciocínio, e no meio ele inverte, troca. Raciocínios desse tipo existem praticamente em cada página de O Capital. Qual é a diferença entre trabalho e não-trabalho? É o valor. Qualquer ocupação que não produza um bem ou serviço pelo qual a sociedade esteja disposta a pagar não é chamada de trabalho. Como chamar de trabalho um a sujeito fazer uma coisa absolutamente inútil, que ninguém quer e nem entende por que ele está fazendo? Qual é a diferença entre trabalho e qualquer outra atividade? É o valor. Então se o critério de distinção do trabalho é o valor associado a ele, não pode ser ao mesmo tempo ele que determina o valor. (11) É curioso que a figura do consumidor é um negócio distante, etéreo, em páginas e páginas de economia. O consumidor é evidentemente a peça-chave aqui. Se eu produzo
uma coisa que me deu vinte anos de trabalho, trabalhei dia e noite naquilo, e ninguém quer pagar nada, então aquilo não é um valor, não é uma mercadoria, eu não posso vender aquilo. Como é que eu posso dizer que o trabalho gera o valor? Não. O trabalho é orientado pelo valor possível, mas ele não o produz; o que o produz é a possibilidade de vender aquilo. Nesse trecho Karl Marx usa as palavras para dizer exatamente o contrário do que ele está percebendo e esse contrário nega ainda o que todo mundo pode observar. (13) Esse fetichismo da mercadoria surge do seguinte: Karl Marx inventou o trabalho abstrato como gerador do valor e a partir daí, no método de Karl Marx, o valor de uso sendo abstraído, sobra apenas as mercadorias como valor de troca, e elas se relacionam umas com as outras; mas isso não é a sociedade, isso é o método de Karl Marx. Ele confunde o seu método com o seu objeto e isso é inversão revolucionária da braba, isso é inversão de sujeito-objeto. Ele está vendo na sociedade algo que foi o método dele mesmo que inventou para fins de descrição e cálculo. Ele abstrai certas qualidades do objeto, concentra-se nelas. Foi Karl Marx quem separou mentalmente a mercadoria do seu valor de uso e da quantidade específica de trabalho que foi depositado ali, sobrando somente o trabalho abstrato. É só na perspectiva dele que as mercadorias se trocam umas às outras, que elas se tornam coisas dotadas de vida própria para além não só do trabalho que elas deram para ser produzidas, mas também do seu valor de uso. (14) Como é possível que a soma total do seu trabalho seja apresentada aos homens como uma relação social, não entre eles, porém entre os produtos? (15) Essa relação direta entre mercadorias só existe para fins de cálculo, não como realidade das relações sociais. (18) De onde Karl Marx tira a ideia de que o capitalista é indiferente ao que está produzindo? Ele tira isso do fato de que o seu método é indiferente a essa diferenças; o seu método faz abstração dessas diferenças. Então, novamente, ele está projetando o método no objeto. (20) Karl Marx enunciará a sua famosa teoria da mais-valia, que diz que o empresário venderá o produto criado pelos seus trabalhadores pelo verdadeiro valor do trabalho que eles desempenharam, mas que só pagará uma parte desse valor de trabalho. Essa proposição é absurda, mas tão absurda em si mesma, porque pressupõe que, primeiro, existe um valor fixo do trabalho pelo qual você mede tudo o mais. O fato é que o valor de uma mercadoria não depende do que os trabalho que foi investido nela, e sim do que os consumidores pretendam pagar; mas como a figura do consumidor não existe aqui, este é um mundo onde só se produz e se vende: ninguém compra. Esta teoria da mais valia não precisa normalmente nem ser examinada em si mesma porque a absurdidade dela decorre do que foi dito antes. (21) Nós não chegamos à constatação desta absurdidade discutindo com o texto, mas simplesmente tentando imaginar as coisas do jeito que ele está descrevendo. OBS: NA PÁG. 21 HÁ UMA DESCRIÇÃO DO QUE É A CIÊNCIA. (24) Quando Kant diz que nós não podemos conhecer a coisa em si, somente a parte fenomênica: isso é a paralaxe cognitiva. Afinal, sou eu que não posso conhecer a coisa
em si e só posso conhecer a parte dela que se apresenta fenomenicamente; ou, ao contrário, é a própria coisa que não tem capacidade de se mostrar em si mesma, mas só de se mostrar para alguém? Hoje está claro para mim que a limitação da nossa própria perspectiva corresponde a uma limitação estrutural da própria coisa — se eu estou observando um animal vivo, então eu não estou observando o seu ventre aberto numa seção de dissecção —, eu não posso ver as duas coisas ao mesmo tempo. (26) Você tem de aprender a dirigir o seu conhecimento pela realidade das coisas e pela admissão de que você está dentro da realidade e a assumir essa realidade que lhe cerca permanentemente; nunca esquecendo que você dentro disso é um mosquitinho, é um átomo desse tamanho. A confiança de que a realidade externa é existente e de que você é parte dela — isso é básico. (27) Por baixo da realidade, existe um negócio que nós chamamos verdade. A verdade é aquilo que a realidade nos diz e que, portanto, você pode dizer a respeito dela. Qualquer verdade que você diga, você a diz desde a sua posição no espaço e no tempo. Não basta você dizer verdades abstratas e genéricas. É preciso que o seu enunciado abstrato e genérico tenha uma raiz na experiência real de tal modo que a sentença abstrata possa ser convertida novamente em experiência humana real e vice-versa. Qualquer enunciado abstrato cujo equivalente experiencial você não conhece é um flactus vocis, ou é uma afirmativa meramente formal de ordem puramente lógica, mas que não está dizendo nada. São Boaventura dizia que você conhece Deus primeiro no mundo exterior, depois na sua própria alma e depois em si mesmo — eu só conheço Deus em si mesmo por algumas interferências que ele fez na minha vida; eu sei que foi Ele, eu sei que foi, porque eu não poderia fazer aquilo e o acaso também não poderia fazer —, mas o método que eu dei para vocês do Mundo dos Princípios é conhecer Deus na natureza, no universo físico. Para conhecê- Lo dentro de você, pense qual é a diferença total que faz entre você estar vivendo dentro de uma realidade que tem dimensões superiores infinitas, inteligentes e inteligíveis, ou você imaginar que você está apenas num mundo de presenças físicas mudas, sem significado e onde todo o significado foi apenas criação cultural humana. A diferença que isso faz na conduta das pessoas é monstruosa. O sujeito ateu pode alegar: “Ah, mas o sujeito religioso nem sempre se comporta melhor do que o ateu” etc, mas o que estou falando não tem nada que ver com ser religioso. Eu estou falando em admitir a presença real de Deus. Quantos religiosos fazem isso? Para a maioria Deus é um homem ou é um ente. Quanto cara religioso não imagina Deus assim como o faz Richard Dawkins, uma espécie de serzão que está fora e acima do mundo, observando tudo?