AULA cof 127

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(01) Eu disse que faria a aula de hoje só com base em perguntas, porém me ocorreu que seria interessante indicar para vocês algumas fontes de informação sobre o período estudado. (02) Esses detalhes são muito importantes, pois quando queremos compreender estes períodos, essas etapas da história, não podemos ter medo de examinar a coisa por todos os ângulos possíveis, e de fazer todas as perguntas necessárias. Se, porém, nós já temos uma crença dogmática assentada, e essa crença se fundamenta em algo que nos parece ser o consenso científico, consenso académico, de uma época, então, certamente estamos nos deixando levar por uma ilusão perigosíssima. Não existe nada que seja mais frágil do que um consenso científico, embora para um público leigo isso pareça ter uma autoridade tremenda. Não se pode esquecer que um consenso é apenas um consenso. Se você perguntasse qual é a possibilidade de que uma determinada verdade seja percebida uniformemente por toda uma classe de pessoas ao redor do mundo inteiro? Ou seja, todos vão perceber exatamente a mesma coisa? Do mesmo jeito? É só fazer esta pergunta e você entenderá que consciência científica não quer dizer coisíssima nenhuma. (03) Lembro-me, por exemplo, quando escrevi uma pequeno artigo sobre Newton, dizendo que a física de Newton havia espalhado uma onda de burrice no universo ocidental. Eu recebi centenas de cartas de pessoas que estavam absolutamente traumatizadas, passadas, profundamente ofendidas com aquilo. Eram pessoas que tinham estudado matemática ou física, mas não tinham estudado história, e não tinham a menor idéia dos efeitos que o mecanicismo teve sobre a civilização européia, para eles isso era novidade. E, de repente, um sujeito falando mal de Newton. Então, perguntavam-me como eu ousava falar mal de Newton. Uai! Mas Newton é Deus? Então qual é a autoridade especificamente divina de que ele dispõe? Outra coisa que me espantou muito foi a quantidade enorme desses correspondentes que diziam que Newton tinha a obtido a lei da gravitação universal a partir de observações, quando não é verdade! Newton coloca certas premissas que são experimentalmente inverificáveis, como, por exemplo, a idéia do espaço absoluto – um espaço sem nada dentro. Ora, o espaço não é nada mais do que a possibilidade de conter algo dentro: se você tirar esta possibilidade não há espaço de jeito nenhum. Então, e apenas uma palavra, um flatus vocis. [00:10] E, também, o tempo absoluto, ou seja, o tempo sem acontecimento, o tempo sem transformações. Mas o que é isto? Toda a estrutura da demonstração de Newton está baseada nesses dois conceitos que ele tirou do nada, ele inventou. São postulados que ele coloca no começo, e, sem os quais, a teoria da gravitação não funcionaria. O fato de que esta teoria coincida com a realidade em determinados pontos não prova que os conceitos fundamentais do qual ele partiu tenham alguma validade, pois estes conceitos são usados apenas como instrumentos lógicos. Você pode inventar: de três ou quatro premissas absurdas, que, cruzadas, formem um aparato de observação que, na verdade, funciona como um sistema de medições. Outro exemplo: todo mundo usa o sistema métrico. De onde saiu o sistema métrico? Saiu da idéia de medir a circunferência da terra e dividir por certo número. Bom, hoje sabemos que essa medida estava errada, nem por isso o metro deixa de funcionar. Karl Marx dizia que a maioria geralmente está errada. No mundo científico também a maioria geralmente está errada, só que colocar este erro em dúvida requer das pessoas uma mudança de atitude mental que às vezes é impossível. Um indivíduo que está sobretudo envolvido na prática científica, na vida de laboratório, de todos os dias, ele não pode parar para questionar os conceitos fundamentais em que ele está se baseando. Simplesmente não dá tempo de fazer isso. Então, quando uma ciência questiona seus conceitos fundamentais, isso é o que chamam “crise científica”, ou seja, a atividade normal da ciência prossegue na base de não questionar estes conceitos, que muitas vezes são puramente convencionais. Isso quer dizer que o exame crítico dos fundamentos da ciência não faz parte da própria ciência. Aliás, a prática diária exige que isto seja até proibido, pois têm certas coisas que você não discute, você parte de um ponto e vai adiante. (04) Como a prática científica está geralmente separada do exame dos seus fundamentos, quando começam a tentar fazer o exame dos fundamentos, até mudam de faculdade, mas dizem já não ser assunto deles e indicam a faculdade de filosofia ou outra, isso significa que a prática científica está geralmente separada da consciência dos fundamentos da própria ciência, e, se for para espremer, pelo

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menos noventa por cento dos profissionais de qualquer ciência, se verá que eles têm muito pouco conhecimento disso. Portanto, no fundo, toda esta atividade é baseada na pura fé, não que seus resultados sejam de fé, pois são empiricamente verificados, mas os conceitos explicativos, os conceitos fundamentais, em geral são altamente duvidosos: todos podem ser postos em dúvida à qualquer momento. Porém, no decorrer da atividade prática não convém fazer isto, e as pessoas não o fazem normalmente. (05) Antes se tinha um conjunto de relações não regulamentadas, portanto, difícil de se abarcar. Se pegarmos, por exemplo, o comércio como era antes da Revolução Francesa: existiam milhões de regulamentos não escritos, ou tradicionais, ou para cada cidade, ou para cada bairro ou distrito; milhares de sistemas de medidas diferentes; moedas diferentes, etc. Então vem a Revolução e unifica tudo isto, cria uma legislação. Acontece que a legislação é crescente. O número de detalhes que em seguida precisam ser regulamentados é enorme. Tão logo foi feita uma legislação principal, por exemplo, um código comercial, parece que unificou. Porém, em seguida, os princípios desse código terão de ser aplicados a novos e novos fenômenos. Acontece, então, um processo de crescimento da lei, ao ponto de que certos poderes legislativos votam vinte mil leis por ano. E quando se chega a cem mil leis, quem conhece cem mil leis? No Brasil é caracteristicamente assim: a lei, não só o código penal, o civil, o comercial, etc., tudo é feito de tal maneira que as exigências legais estejam acima da possibilidade real do cidadão, de maneira que, em princípio, a população inteira está na ilegalidade. Se a população inteira está na ilegalidade, então o governo tem em suas mãos um instrumento para destruir quem quer que ele precise destruir em certo momento, ou que lhe pareça conveniente destruir. (06) Este é um processo pelo qual o próprio impulso de ordenação, organização e racionalização, cria um caos. Esta é, sem dúvida, uma constante da modernidade. Quando a gente vai pegando estas várias constantes, acho que temos um grau de certeza suficiente em todas elas. Podemos dizer que, em linhas gerais, e com exceções locais ou temporárias, as coisas foram realmente assim. Podemos traçar uma curva de evolução da modernidade. Em certos momentos há um salto, o processo acelera, de modo que o número de controles aumenta e vai penetrando em sectores da vida que antes eram regrados pela lei natural ou por hábitos tradicionalmente consolidados. Não deixa de ser curioso que o chamado império da lei seja uma das características fundamentais da democracia. Com a expectativa de que aquilo que está sob o domínio da lei assegura os direitos e liberdades dos cidadão. Mas isto é só nominalmente. Materialmente falando, isto é impossível! É impossível dizer que quanto mais regulamentada está uma coisa, mais a liberdade estará assegurada. Isto é absolutamente auto-contraditório. Como esta contradição é um dos elementos fundamentais da democracia moderna, é aí que começa a valer aquela regra do Georges Bernanos, de que a democracia não é o contrário da ditadura: é a causa dela. É o mesmo que dizer que onde há uma democracia haverá uma ditadura necessariamente, ou porque a democracia será derrubada, ou porque, por sua própria evolução interna, ela se transmutará numa ditadura, não posso dizer imperceptivelmente, mas quase que inconscientemente. Ou seja, a população não se dará conta de que o processo da normatização legal da sua conduta constituirá numa rede de amarras que vai restringir tremendamente a sua liberdade. (07) Quando se vê a fronteira que existe entre o mundo das leis e o mundo da política, essa fronteira é bastante nebulosa. Então é sempre possível que um grupo de pressão faça valer sempre a sua vontade, se ele tiver os meios para isto. Suponhamos que você tem os meios de comprar um congresso inteiro. Vamos tomar o exemplo do Mensalão, pois tão bonito quanto o Mensalão, ninguém fez. O Mensalão comprou o parlamento inteiro. Nunca ninguém precisou fazer isso, pois contentavam-se em comprar meia dúzia de senadores, mas ali compraram todos. Bom, depois disso, o que quer que este grupo pretenda, será lei. Então qual a diferença entre o império da lei e o império da arbitrariedade? Materialmente falando, nenhum. A lei se tornará apenas a arbitrariedade com o carimbo. Este fato

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acontece, faz parte de nosso quotidiano. E quando se rastreia a origem, os conceitos do Estado moderno, os direitos humanos, etc., quando a coisa começou, já dava para prever que seria assim. Porque ninguém avisou? Porque isso não despertou o caráter auto-contraditório do sistema legal e não chamou a atenção de ninguém? Pois para que o elemento de contradição se tornasse importante na análise disso foi preciso esperar chegar um sujeito chamado Hegel. Acho que Hegel foi o primeiro a perceber que os conceitos às vezes significam o contrário do que eles dizem. Na hora em que um conceito abstrato se torna prática política, ou seja, que abandona o céu das idéias puras, e entra na história, entra no fio do tempo. Com muita freqüência se torna o seu contrário. Ele disse que sempre se torna seu contrário. Não sei se é sempre. Antes de Hegel, para encontrar uma compreensão aguda do fenômeno da contradição, é preciso remontar até Aristóteles. Podemos dizer, que boa parte destas discussões se travaram entre pessoas que tinham uma noção um pouco ingênua da função das idéias na história. Acreditavam que, ao se fazer um projeto, assim ou assado, e ao implantá-lo, as coisas se passariam linearmente, de acordo com aquilo que você planejou. E Hegel disse que isso nunca acontece — Bom! não precisa concordar, mas ao menos quase nunca. (08) Por exemplo, se você dá uma martelada no dedo, a dor que você sente é uma certeza objetiva muito mais forte do que qualquer lei científica! E a credibilidade, a certeza maior ou menor no conhecimento não depende do número de pessoas que a comprovam. Ao contrário, se precisar de muitas pessoas para comprovar, é justamente porque não é tão certo. Vamos supor que você é a testemunha de um homicídio: você vê o sujeito puxar uma faca e enfiar na barriga do outro. Só que é o seguinte: só você viu. O assassino sumiu, a arma do crime desapareceu, e não há mais nenhuma pista para o assassino, e você está com a certeza absoluta de seu testemunho. Só que você é o único pilar onde se assenta a prova. A falta de outros testemunhos e a falta de outros elementos de prova, podem liberar o assassino. Isto acontece com uma freqüência muito grande, onde a certeza máxima corresponde a um indivíduo isolado que foi testemunha direta. O testemunho direto passa a valer menos do que um simples consenso de opiniões. É claro que isto é uma confusão entre o grau de certeza [00:40] objetivo e o valor da autoridade. Isso são coisas que podem se somar ou se subtrair, mas não são jamais a mesma. Isso quer dizer que, para todos os efeitos, o argumento de autoridade do consenso vale mais do que o testemunho direto. Isto vai contra toda racionalidade humana e contra o método científico, mas esta é a prática diária na sociedade moderna. Nós queremos alcançar um conhecimento válido mesmo que não possamos impô-lo como consenso para ninguém – não quero saber se vão acreditar em mim ou não, eu só quero descobrir como as coisas realmente aconteceram. Este era o ideal do Leopold Von Ranke, o grande fundador da história moderna. Ele diz que a finalidade da história é de saber como as coisas efetivamente se passaram. Bom, se é isto que você quer, em primeiro lugar, terá de desistir de fazer com que suas conclusões se imponham a uma coletividade. Ou você quer a verdade, ou você quer a credibilidade. Às vezes as duas coisas vêm juntas, mas às vezes não vêm. Isto para mim é uma decisão que eu já tomei trinta ou quarenta anos atrás: eu quero saber as coisas como elas realmente são, ainda que ninguém vá acreditar em mim. Eu quero saber para minha orientação. (10) Ainda tem um outro estudo mais antigo, que é sobre a vida de Lutero, de um autor alemão chamado Friedrich Heinrich Suso Denifle, Luther et le luthéranisme; étude faite d'après les sources (Luther und Luthertum in der ersten Entwickelung). Só tenho aqui, o primeiro volume, mas são quatro. É extremamente meticuloso. Em primeiro lugar se vê que Lutero não queria fundar religião nenhuma, ele queria ficar dentro da Igreja e ser apenas um monge como os outros, só que com umas idéias estranhas. Em segundo lugar, ao longo da vida ele foi passando a afirmar tudo aquilo que ele negava, e negava tudo aquilo que ele afirmava, de maneira que, com relação ao Lutero, não sabemos exatamente o que ele pensava. Terceiro, embora o protestantismo criasse todo este culto do texto bíblico, Lutero não tinha nenhum respeito pelo texto bíblico. Tanto que, quando mostraram um trecho do evangelho de Marcos, onde ele tinha simplesmente pulado algumas frases, o pessoal apontou para ele e disse que estava errado, ele respondeu que ficaria assim mesmo. O que? Quer dizer que então ele decide o texto da bíblia, ao mesmo tempo que diz este texto ser a única autoridade? Então, o pessoal evangélico que me desculpe, mas essa coisa

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começou com uma palhaçada, com uma mentira. O que não quer dizer que tudo o que Lutero disse a respeito da Igreja estivesse falso. Não, ao contrário, ele tinha razão em muita coisa, mas aonde que um indivíduo tem razão em certas críticas que faz a uma autoridade não o autoriza a fazer uma monstruosidade como esta, ou seja, mutilar o próprio texto ao qual ele atribui autoridade absoluta! Nesse caso é como dizia Stanislaw Ponte Preta: “entrou no perigoso campo da galhofa!” Não se pode levar um negócio desse a sério! (11) Outro ponto importantíssimo da modernidade, e que é reconhecido pelos historiadores, mas é dificilmente ressaltado pelos intérpretes gerais do período, é o fato de que os séculos XVI e XVII são a era de ouro da astrologia, da alquimia e da magia. Ou seja, foi uma enxurrada de ocultismo como nunca tinha vindo antes na história, e acho como que não houve em civilização nenhuma. Justamente no período que é tido como aquele que inaugura a era da razão e soterra, então, as crendices. E, pior: a época do Iluminismo foi outra enxurrada. O Iluminismo é a época onde vai aparecer o Mesmerismo, o hipnotismo, o espiritismo, etc. Ora, como é possível que você caracterize como império da razão e das ciências o período de máximo florescimento do ocultismo e da magia? Ora, qualquer historiador profissional hoje em dia sabe disso, e a quantidade de livros que existe sobre isso é monstruosa. Mas a imagem mitológica continua intacta, ou seja, os fatos não alteram a crença. É aquele negócio: “eu já formei minha opinião, não me venham incomodar com fatos”. Isto vigora. Existe, então, um abismo enorme entre o que é pesquisa historiográfica e o que é a imagem cultural consolidada. Mas, se toda pesquisa historiográfica está provando que as coisas não foram assim, nós não temos mais de ter tolerância nenhuma com esta imagem! Sobretudo quando é um historiador profissional que a subscreve! Na História Universal, de Will Durant, ele tem um volume que se chama A era da crença, e, depois, A era das luzes, é uma imagem, e esta imagem é absolutamente falsa, ela chega a ser o contrário da realidade. No entanto, ainda quando você sabe que as coisas não foram assim, você continua raciocinando como se fosse, ou seja, você tira conclusões práticas de premissas que você sabe serem falsas. Por exemplo, como avaliar uma opinião qualquer, ou a discussão de uma lei, etc. Você vê que insistentemente, as mesmas figuras de retórica voltam, são recorrentes: “essa lei é obscurantista”, “isto é um retorno à Idade Média”, não tem esse argumento? Ora, a validade destas figuras de linguagem se apóiam numa interpretação histórica que é o contrário da realidade! Se você quer saber no que as pessoas realmente acreditam, não adianta você perguntar para elas, você tem de ver as figuras de linguagem e os instrumentos lógicos que elas usam para provar os seus pontos, pois ali é que está a verdadeira estrutura do seu sistema de crenças, e não só no conteúdo desta ou daquela crença em particular. Por exemplo, outro dia alguém me falou da entrevista que houve com o cabo Anselmo, no programa Roda Viva, em que disse que foi um tribunal da inquisição. Eu mesmo repeti esta figura de linguagem, depois me perguntei o que eu estava falando! O Tribunal da Inquisição não era assim! O Tribunal da Inquisição botava um sujeito no meio e ficava quinze camaradas descendo o cacete nele? Se fossem sugerir isso ao inquisidor ele ficaria escandalizado! Ele diria que isso não se faz, que primeiro é preciso conversar com o sujeito e ouvir o que ele tem a dizer antes de fazer a sessão do tribunal, de modo que, ao encontrá-lo, já se saberá o que ele vai dizer e o que o inquisidor irá dizer. Ou seja, é um procedimento brutal que não pode ser chamado inquisitorial, pois a inquisição, em primeiro lugar, ela inquire. Vejam que existia o sistema inquisitorial como oposição ao sistema acusatorial. Se é inquisitório, não pode ser acusatório. Portanto, em certas épocas, bastava reunir algumas pessoas que faziam a acusação do sujeito e o condenavam pelo simples fato de estarem sendo acusados. E quando aparece a Inquisição, já possuíam um conceito um pouco mais civilizado, levando em conta a necessidade de fazer uma investigação, descobrir a verdade, e por isso mesmo se chama inquisição. Hoje vemos a volta do sistema acusatorial, onde o simples fato de tentar se defender já é a prova do crime. Por exemplo, se você é acusado de homofobia, e tenta provar que não é homofóbico, o simples fato de você tentar provar já prova que você é homofóbico. E isto vigora! No caso brasileiro, por exemplo, se você quer criar uma lei para punir o crime de homofobia, se você argumenta contra a lei, é

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prova de que você já está incurso na mesma lei, e portanto, já pode ser punido por esta lei antes de ela entrar em vigor. Isso já tem acontecido no Brasil. Se você sugerisse isto ao mais feroz dos inquisidores, ele acharia um absurdo. Talvez até nos processos de Moscou achassem isso, talvez até Stálin achasse isso absurdo, pois quando Stálin mandava condenar um sujeito por um crime que ele não cometeu, ele sabia perfeitamente o que estava fazendo, e o acusado concordava em confessar um crime inexistente para o bem da república socialista, o bem do partido. Então, se auto-sacrificavam pelo bem do partido. Mas agora não é isso que está acontecendo, não é um sacrifício voluntário que as pessoas estão fazendo. Aluno: Por que as sociedades secretas começaram na Inglaterra? Na China, os intelectuais não ambicionavam o poder por estar numa cultura que respeite os mais velhos? Olavo: Em primeiro lugar, havia muitas sociedades secretas na China também. Mas tinham um caráter mais defensivo, e você vê ao longo do tempo uma espécie de estabilidade do poder imperial, isso você vê. Durou muito tempo. Eu acho que nada durou tanto quanto o Império Chinês. Eu acho que uma das explicações para isso é o sistema de ensino chinês, que era baseado na repetição, na cópia servil. O sujeito educar-se na china significava ele se tornar igualzinho à geração passada. Agora você pensa bem, o sujeito aprender a escrever em chinês não é brincadeira. Leva uma vida. Então quer dizer, se o sujeito conseguir escrever igualzinho ao seu antecessor, isso é uma vitória intelectual formidável. Agora ele decide inventar alguma coisa! Não dá tempo meu filho. Você acabou de aprender e você já está para morrer. Então existe este fato: a própria dificuldade inerente da língua favorece um ensino de tipo tradicionalista, baseado na obediência e na cópia. Por outro lado, você não pode esquecer que toda esta coisa de liberdades individuais, diretos humanos, isso aí só surge com o cristianismo. Se não fosse com o cristianismo ninguém teria essa idéia. Se você não aprende a encarar os outros indivíduos como almas imortais, então eles jamais vão ter uma importância em si mesmos. Isso é o que a gente observa em várias culturas do oriente onde o indivíduo não tem valor nenhuma, você pode trocar uma pessoa pela outra, não faz a mais mínima diferença. (24) Esta tensão entre razão e experiência começa no dia em que você nasce e termina no dia que você morre. Nunca uma coisa vai estar perfeitamente ajustada à outra. Então isso quer dizer que ao invés da razão ser uma solução, não, ela é um dos dados do problema. A razão no sentido integral só pode ser exercida por quem conheça todos os dados, ou seja, tenha o conhecimento universal. Então, por isso que a Bíblia diz que em Deus está tudo contado, pesado e medido. Eu digo, sim, na cabeça de Deus. Ele sabe exatamente as quantidades, as proporções, as relações, etc., e nós só conhecemos certos pedaços. Esse pedaço para nós forma um sistema, e esse sistema às vezes é tão grande que nós acreditamos que ele é o universo. Por exemplo, quando o pessoal fala de concepção científica do cosmos. Eu digo, isso jamais vai existir. Quem quer que diga que criou uma concepção científica do cosmos está mentindo. Isto é auto-contraditório. Você não pode dizer que a sua ciência segue um método experimental e que ao mesmo tempo você tem uma concepção científica do todo. A ciência só lida com partes, por definição. E quando ela soma partes e diz: “ah cheguei a uma concepção do todo”, não, você chegou a uma concepção de certos aspectos que você acha que são universais, mas que foram tirados de certas linhas factuais muito determinadas, muito precisas e muito limitadas. Então, só quem tem uma concepção científica do universo é Deus. É ao mesmo tempo uma concepção total e exata em todas as suas partes. Então, nós só temos concepções mitológicas ou imaginativas do universo. Isso é o máximo que nós podemos ter, e isso é o máximo que um cientista também pode ter.

Eu acho que a Igreja está muito certa quando diz que o exercício da razão só funciona quando está condicionado a essas virtudes. Em primeiro lugar, a Fé. A Fé - como eu já expliquei milhões de vezes -, não é crença numa doutrina, é a confiança numa pessoa, numa pessoa divina. É a confiança como um bebê confia na sua mãe quando se deposita no colo dela. Quer dizer, você não está sendo enganado, não é uma força maligna que está mandando em tudo. Se você não tem isso de cara, se você acredita que pode ser uma força maligna, uma força impessoal louca, então você já está na defensiva contra o universo, e naturalmente você vai perder. Agora, você imagina o tamanho, a complexidade e a rigidez do esquema defensivo que você tem de montar na sua cabeça para se defender do universo, Junto com

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isso naturalmente vem os projetos megalômanos de controle do fluxo dos acontecimentos, projetos de poder. Se vigora o sentimento gnóstico de que o universo é um lugar hostil, criado por uma divindade maligna, então nós estamos num mato sem cachorro, e nós temos que criar uma ciência e uma técnica universal que nos proteja contra tudo. Esta inspiração está no fundo de muitas teorias filosóficas e científicas modernas, mas são todas malucas evidentemente. Em segundo lugar, se você acredita nisto, o próprio funcionamento da sua razão começa a operar de uma outra maneira, onde a sua subjetividade tem de ter o controle de tudo. Então, daí o sonho recorrente da ciência universal, que aparece em Francis Bacon, aparece em René Descartes: “agora descobri o segredo de tudo”’. Não descobriu o segredo de nada. No máximo você descobriu uma coisinha ou outra, como todo mundo. Nós temos de entender: o senso do [2:00] todo nos transcende, nós não temos o controle do todo, nós estamos dentro do todo. Nós só conhecemos partes, e não precisamos conhecer o todo, porque ele está às nossas costas, e ele nos leva. E nos leva de uma maneira benévola, senão não poderíamos entender nada. Então nós temos de ter esta confiança no todo. E o que é o todo? É o conjunto da vontade de Deus. Se você perdeu isso, você já entrou no domínio da loucura, da paranóia e da autodefesa gnóstica. Tanto o homem que tem fé quanto o que não tem, os dois estão usando a razão, só que um está abusando, porque está esperando dela o que ela não pode dar: criar uma ciência universal que te dê o controle, pelo menos, intelectual de tudo, e que te defenda contra a própria estrutura da realidade. Isso é maluquice. Embora o procedimento interno seja racional, a finalidade é irracional. Agora, se nós temos a fé, note bem, não é crença numa doutrina. É confiança na bondade de Deus. É confiança no amor divino. Se nós temos isso, então, primeiro: nós sabemos que não precisamos controlar tudo, e que se a gente agir com uma certa prudência e honestidade, Deus fará com que aquela parte que nós enxergamos, aquela parte ínfima que nós enxergamos, seja harmônica com o todo, tal como ele conhece. Então nós não vamos errar muito. Nós não precisamos conhecer o todo, e muito menos precisamos controlá-lo. Não é concebível que uma criatura finita conheça quantitativamente o infinito, não tem sentido. Então também que uma criatura que vive na relatividade, no engano, em todo esse vai-e-vem da vida humana, em toda esta incerteza da vida humana, alcance um controle intelectual da realidade universal, isto é absurdo. Mas daí as pessoas dizem que “então você está defendendo o ceticismo, a limitação do conhecimento humano”. Não! Eu estou mostrando que esta limitação do conhecimento humano corresponde a limitação da estrutura da existência humana. Quando o limite do conhecimento coincide com o limite do ser, então isto é um conhecimento estritamente válido, objetivo, e universalmente válido, ainda que seja limitado. É como você conhecer, por exemplo, uma figura geométrica e saber as propriedades dela, ainda que você não conheça as outras. Você não precisa ter estudado um tetraedro para saber que um quadrado tem quatro lados iguais com quatro ângulos retos. Quer dizer, isso é uma certeza universal, universalmente válida ainda que o seu objeto seja limitado. Então é isso que nós devemos buscar. O máximo de certeza dentro dos objetos limitados, mas de tal modo que entre esse conhecimento limitado e o conhecimento divino não exista antagonismo. Então esta é a função da fé no conhecimento. Sem essa fé não existe conhecimento nenhum, só existe loucura.

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