Pele de Homem_texto_cópia Final

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PELE DE HOMEM E A DESCONSTRUÇÃO DOS PAPÉIS DE GÊNERO NOS QUADRINHOS Natania Aparecida da Silva Nogueira

Introdução "Pele de Homem"(2020) é uma história em quadrinhos, doravante HQ, francobelga, que conquistou o público europeu e foi traduzida em 2021 para o português. A narrativa é ambientada na Itália do período renascentista e gira em torno de Bianca, uma jovem que se prepara para o casamento, mas que deseja conhecer o futuro marido. Seu desejo se realiza quando ela descobre um artefato místico que é passado de geração em geração para as mulheres da sua família, uma pele de homem. Trata-se de uma HQ que fala, com muita sensibilidade, sobre a condição feminina numa sociedade patriarcalista, que discute questões relativas aos papéis de gênero, a sexualidade e a homoafetividade, ambientado naquele contexto italiano. O roteirista Hubert Boulard e o ilustrador Frédéric Leutelier constroem uma história que mistura elementos históricos e ficção que dialogam com o presente. Nessa narrativa escrita e visual, o leitor(a) pode se encontrar representado(a) em vários momentos. A obra parte da ficcionalização do passado, utilizando de elementos da ficção para construção de uma narrativa que dialoga com a história e com questões do presente. Esse recurso da ficcionalização do passado utilizada pela literatura e por diversas mídias como o cinema e a televisão, criando dentro de narrativas históricas ambiente para trabalhar temas que são debatidos no presente. Entretanto esses temas, anteriormente, se concentravam em questões relacionadas principalmente à política, mas, atualmente, temos visto emergir debates em torno de questões como gênero e diversidade. A história é que demorou um pouco a tomar esse material como fonte de análise legítima. Tais narrativas cumprem um papel pedagógico ao estimular reflexões, levantar questionamentos e mesmo instigar um conhecimento maior sobre o contexto histórico, no qual elas se desenvolvem. Para o presente estudo, iremos partir da análise do conteúdo dessa HQ para analisar algumas dessas questões e estabelecer um diálogo entre ficção e história. Para tanto, dividimos o texto em duas partes. Na primeira, reservamos espaço para um apresentar alguns apontamentos acerca do uso de novas fontes de pesquisa para o estudo

da história, em especial, das mulheres, e sobre o uso de obras de ficção, como romances e HQs como fonte para a construção de uma narrativa, na qual o presente dialoga com o passado. Trabalharemos com a ideia de ficionalização do passado, na qual o passado é utilizado como pano de fundo para tratar de questões do presente. Nessa parte do nosso texto teremos como como base teórica Michelle Perrot (2005), David Lowenthal (1998), Roger Chartier (2010) e Umberto Eco (1994). Num segundo momento, mais longo, iremos analisar a obra “Pele de Homem”. Nesta parte buscarmos estabelecer um diálogo entre essa obra de ficção e a história, abrindo debate para questões relacionadas a papéis de gênero, representações do feminino e a questão da história e da memória das mulheres. Parta tanto, além de buscar apoio em textos historiográficos sobre questões do casamento e do corpo, recorrendo a autores como Georges Duby (1990), Jacques Le Goff (2018) e Michelle Perrot (2007), trabalharemos, também, com o conceito de gênero de Joan Scott (1990). Um passado que dialoga com o presente: a história das mulheres e a ficcionalização do passado A história das mulheres é um campo que vem crescendo desde seu surgimento nas décadas finais do século XX. Ela está ligada às demandas do movimento feminista, que nos anos 1970 ganhou novas dimensões a aprofundou o debate acerca do papel da mulher na sociedade. Uma história que busca romper não apenas com preconceitos, mas, principalmente com os silêncios impostos às mulheres por uma historiografia androcêntrica. Sem memória e sem história, as mulheres por muito tempo foram ignoradas e seu protagonismo deliberadamente negado. Michelle Perrot (2005) chama a atenção para as formas como a sociedade silenciou as mulheres. Se elas falavam, não eram ouvidas, se escreviam, não eram lidas, se desejavam contar suas histórias, eram desestimuladas. Poucas foram aquelas mulheres que romperam com a barreira do silêncio. As “excepcionais” se destacam por serem “tão boas quanto” os homens, quase que comparadas a animais exóticos ou objetos raros, cuja existência é limitada. Em via de regra, as mulheres deveriam permanecer em silêncio, pois falar, opinar, questionar ou mesmo reclamar não faz parte do papel que a sociedade patriarcalista estabeleceu para elas. Uma mulher conveniente não se queixa, não faz confidências, exceto, para as católicas, ao seu confessor, não se entrega. O pudor é sua

virtude, o silêncio, sua honra, a ponto de se tornar uma segunda natureza. A impossibilidade de falar de si acaba por abolir o seu próprio ser, ou ao menos, o que pode saber dele. Como aquelas velhas mulheres fechadas em um mutismo de além-túmulo, que não se pode discernir se ele é uma vontade de se calar, uma incapacidade de comunicar-se ou uma ausência de um pensamento que foi destruído de tanta impossibilidade de se expressar.1

As mulheres, assim como outros grupos marginalizados, começaram a ser valorizados com o surgimento de novos campos de pesquisa historiográfica, graça à Escola dos Annales, que não apenas abriu caminho para novas abordagens como, também, ampliou o conceito de fonte. Essa mudança possibilitou o uso de produtos culturais diversos, agora vistos como vestígios/documentos. Segundo Roger Chartier, rompia-se com uma história oficial e seletiva que “[...] se organiza segundo hierarquias e convenções que traçam fronteiras entre objetos históricos legítimos e os que não são e, portanto, são excluídos ou censurados”.2 Em meio a isso, a história das mulheres vem se desenvolvendo, e encontrando formas de contar essa história, trazendo um olhar diferente acerca das relações sociais, políticas e culturais que se desenvolveram ao longo do tempo. Uma reescrita da história que não deseja necessariamente afastar os homens, mas, sim, incluir as mulheres. Mas a construção de um novo campo de estudos não foi e ainda não é um processo fácil. Segundo Joan Scott, A emergência da história das mulheres como um campo de estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história. Mas não foi uma operação direta ou linear, não foi simplesmente uma questão de adicionar algo que estava anteriormente faltando.3

Essa ausência da memória das mulheres vem sendo superada a partir do uso de novas fontes e da valoração, como mencionamos, de fontes que trazem relatos e testemunhos das mulheres. Seus escritos pessoais, quando recuperados, tornam-se fontes importantes para se entender o cotidiano familiar, por exemplo. Seus diários nos trazem elementos importantes sobre as relações sociais e afetivas em determinado período. A história tem se apropriado de novas fontes, que trazem representações de mulheres e que 1

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005, p.10-11. CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010, p. 18. 3 SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org). A Escrita e a História: novas perspectivas. – São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1992, 73. 2

as colocam na cena da história, possibilitado compreender como elas eram vistas pela sociedade em dado período ou mesmo como desejavam ser vistas. Neste sentido, fontes imagéticas como caricaturas, charges e histórias em quadrinhos vêm se transformando em um recurso para pesquisadores não apenas da história como de outras ciências. Obras de ficção, como romances, também têm ajudado na contextualização de determinas épocas, preenchendo lacunas que, os ditos documentos oficiais, não conseguem. Essas fontes se complementam e juntas colaboram para compor um quadro mais amplo, dando à história uma dimensão maior, seja ela da história das mulheres ou de quaisquer outros campos da historiografia que podem ser beneficiados a partir da adoção de novas informações. No caso das histórias em quadrinhos, seu uso como fonte justifica-se pelo fato de as HQs serem um produto da cultura material que carrega uma série de elementos e representações que permitem ao historiador refletir, por exemplo, sobre práticas e fazeres. Longe de ser um modismo passageiro, o uso das HQs vem ganhando reconhecimento dentro da historiografia. Michel Vovelle descreveu as histórias em quadrinhos como sendo “uma fonte da cultura popular indispensável ao historiador”.4 As informações contidas em uma obra de ficção são representações da realidade que são apropriadas pelo autor, transpostas para as páginas de um livro e reapropriadas pelo leitor. Esse processo de apropriação é, segundo Chartier,5 a liberdade de se desviar e reformular as significações, processo que ocorre durante a leitura de um texto, e que pode ser aplicado, também para outras formas de narrativas. Nesse processo, o receptor se apropria do discurso dando a eles novos significados. Assim, temos a possibilidade da reconstrução da narrativa a partir do presente. Esse processo permite que o historiador que trabalha, por exemplo, em campos como a história social, a história cultural e a história das mulheres, possa ter uma visão mais abrangente de determinado contexto. Segundo Lowenthal, As pérolas mais translúcidas da narrativa histórica são, com frequência, encontradas na ficção que é, há muito tempo, componente importante para a compreensão histórica. Um número maior de indivíduos apreende mais o passado por intermédio de romances históricos, de 4

VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ed. Ática, 1997, p 371. 5 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrum. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 77.

Walter Scott a Jean Plaidy, do que por intermédio de qualquer história formal.6

A narrativa histórica ficcional aproxima o leitor do passado, de uma forma que a história nem sempre consegue, isso porque ela traz para as páginas dos livros personagens comuns fazendo coisas extraordinárias, enfrentando desafios e lidando com situação que muitas vezes estão presentes no cotidiano. O leitor se reconhece na narrativa ou encontra nela certa familiaridade. Além disso, ao descrever ambientes, formas de comportamento, vestuário ou mesmo edificações, o romancista ajuda transporta o leitor para o passado, para o futuro ou mesmo promove reflexões sobre o tempo presente, fundamentadas sem suas experiências. e/ou observações. Segundo Umberto Eco, os “mundos ficcionais são parasitas do mundo real”7. Vai ser na realidade vivida, do passado recente ou mais remoto, que o narrador vai buscar os elementos que necessidade para compor uma obra ficcional. Veremos isso, mais adiante, a partir da análise da HQ “Pele de Homem”.

Pele de homem, espírito de mulher “Pele de Homem” é uma HQ singular de várias formas. Para começar, podemos destacar a questão do protagonismo absoluto da personagem Bianca, que além de ser a personagem principal da trama é, também, a narradora. Na primeira página, Bianca abre a história afirmando seu protagonismo, apresentando-se como testemunha de fatos que não podem ser confirmados, e ainda brinca “para a minha felicidade.” Em “Pele de Homem” temos uma mulher que conta a sua história porque ela sabe que a história das mulheres não é contada. Diz-se que o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções. Já o que leva à lucidez, por vezes toma rumos curiosos. Este é o relato verídico de acontecimentos dos quais fui testemunha e protagonista ao mesmo tempo, ainda que na verdade ninguém possa confirmá-lo, para minha felicidade.8

Bianca introduz a narrativa com o uso da primeira pessoa, estando desde o início com poder de contar sua própria história. Ela representa a mulher que toma para si a palavra, que rompe com o silêncio, que faz uma escrita de si, na qual ela tem total controle LOWENTHAL, David. Como conhecer o passado. Projeto História – Revista do Programa de Estudos de Pós-Graduados em História, São Paulo, vol. 17, nov. 1998, 126. 7 ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 89. 8 HUBERT, ZANZIM. Pele de homem. – São Paulo: Nemo, 2021, p. 04. 6

sobre os caminhos que serão tomados ao longo da narrativa. “Pele de Homem” reivindica para as mulheres o poder de narrador presente nas autobiografias. A personagem se coloca no papel daquela que vai revisitar o passado, analisando e criticando sua própria história, afinal, ela é a testemunha do fato. O uso da palavra testemunho, numa obra de ficção chama a atenção, pois remete à ideia de que os autores desejam validade, legitimar o conteúdo, mesmo que ficcional. Em termos historiográficos, testemunho assume o papel de prova, juntamente com o documento. O testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo “das coisas do passado” (praeterita), das condições de possibilidade do processo efetivo da operação historiográfica. Com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental.9

Bianca vai contar sua história, rememorando os seus 18 anos de idade, quando a moça está prestes a ser apresentada ao seu futuro marido. Oriunda de uma família rica, Bianca deve se casar com um jovem escolhido pelo pai, Giovanni. Bianca questiona o fato de não saber mais sobre seu futuro esposo, e coloca suas dúvidas para suas duas amigas mais próximas, que vão ter papel importante ao longo da narrativa. São elas Agostina, a conformista, que tenta abrandar as dúvidas de Bianca, afinal tratava-se do destino inevitável de toda mulher, e Rubina, a rebelde, que se mostra insatisfeita com o casamento, representa a mulher inconformada, mas impossibilitada de fugir da sua realidade. Pelo acordo nupcial, a família oferece um dote à família do noivo. O dote é uma forma de mostrar a importância da família da noiva e fortalece as alianças entre as famílias envolvidas. A questão do dote, do valor da noiva, aparece nas primeiras páginas da HQ, em um diálogo entre as três amigas A questão é levantada. Agostina pergunta a Bianca: “Você sabe qual é o seu valor, Bianca?”. Em seguida, Rubina comenta: “Espero que seu pai consiga um bom valor, seria vergonhoso ceder por pouco. Uma moça como você custa caro”.10 Uma típica história de casamento acordado entre famílias, bem de acordo com o momento histórico, no qual a obra se desenvolve, a Itália renascentista. Neste contexto, as mulheres de famílias ricas, burguesas ou nobres, são consideradas um bem a ser

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RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007, 170. HUBERT, ZANZIM. Op. Cit., 2021, p.6

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negociado e o casamento, para além de seu significado religioso, envolvia relações de poder. Com a monetarização da sociedade europeia ao final da Idade Média, essa característica comercial do casamento fica mais acentuada. Segundo Georges Duby, o papel do casamento era, [...] assegurar sem prejuízo a transmissão de um capital de bens, de glória, de honra, e de garantir à descendência uma condição, uma “posição” pelo menos igual àquela de que se beneficiaram os ancestrais. Todos os responsáveis pelo destino familiar, isto é, todos os homens que detém algum direto sobre o patrimônio e, à frente deles, o mais velho, a quem aconselham e que falam em nome deles, consideram consequentemente como seu direito principal casar os jovens e casá-los bem. Ou sejam por um lado ceder as moças, negociar da melhor maneira possível seu poder de procriação e as vantagens que elas podem levar á sua prole; por outro lado, ajudar os rapazes a encontrar uma esposa.11

Mas Bianca não representa necessariamente uma mulher típica do Renascimento. Muito pelo contrário. Ela está inserida na trama para questionar o papel da mulher naquele período, que apesar de tantas mudanças permanecia quase que completamente inalterado. A princípio, Bianca não rejeita completamente o casamento que lhe é imposto, mas deseja a oportunidade de ao menos conhecer e estabelecer laços com o homem que lhe é destinado a esposo. Daí teremos a inserção do elemento de fantasia da HQ.

Imagem 01 – Bianca aprendendo a vestir a pele de homem. HUBERT, ZANZIM. Pele de homem. – São Paulo: Nemo, 2021, p. 13.

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DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 15.

A angustiada Bianca, vai passar alguns dias na casa da tia e madrinha antes do casamento e é apresentada ao um segredo das mulheres de sua família, uma pele de homem (imagem 01). Trata-se de um artefato mágico que é de uso apenas das mulheres e que lhes permite, literalmente, se transformarem num homem, de nome Lorenzo. Ao vestir a pele de homem, Bianca vai se introduzir no mundo masculino e se aproximar do futuro marido e, ao mesmo tempo, experimentar uma liberdade que nem mesmo sabia que existia. A protagonista vai ter sua iniciação sexual como homem, depois como mulher e quebrar mitos e tabus com relação ao sexo e a sexualidade. Bianca vai aos poucos construindo um discurso de empoderamento e identificando as formas de dominação masculina e se posicionando enquanto pessoa e mulher. Ela passa a questionar não apenas os homens como, também, as mulheres que reproduzem o discurso machista e sexista do patriarcalismo. Numa passagem (Imagem 02), ela discute com mãe e critica o discurso moralista que persegue as mulheres e as obriga a se submeteram a humilhações. Termina dizendo “Desculpe se aprendi a pensar por mim mesma, mãe”. Um discurso feminista e contemporâneo, num quadrinho ambientado na Renascença, que serve de exemplo de como a ficção permite debater temas do presente mesmo que o contexto histórico não seja o atual. Nessa direção, Bianca começa a questionar o papel da mulher na sociedade e os papeis de gênero estabelecidos por ela a homens e mulheres. Segundo Scott, a categoria gênero se estabelece sobre uma relação de poder que envolve e se estrutura sobre hierarquias sociais, valores culturais, em símbolos e significados.12 Um jogo de poder no qual papéis sociais são impostos arbitrariamente e o significado de “ser mulher” e “ser homem” é construído historicamente, a partir de regras estabelecidas pelo patriarcalismo. Ao vestir a pele de homem, Bianca está não apenas desafiando esses papéis, mas também os subvertendo. O que é ser homem? O que é ser mulher? Essa é uma questão que vai permear quase toda a narrativa e que vai fazer com que a personagem construa e solidifique sua própria identidade de gênero, a partir da sua própria experiência, afinal, Bianca aprendeu a pensar por si mesma.

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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, v.lS, n.2, jul./dez. 1990 p. 71 - 99 Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/71721/40667. Acesso em: 27 set. 2021, p. 86.

Imagem 02 – Bianca discutindo com a mãe sobre os limites impostos às mulheres pelos homens. HUBERT, ZANZIM. Pele de homem. – São Paulo: Nemo, 2021, p. 91.

A originalidade da narrativa não está no fato de Bianca se disfarçar de homem, uma vez que esse tipo de recurso está presente na história e na ficção já há muito tempo. Da antiguidade aos tempos modernos, mulheres vestiram-se de homem para participar de guerras, fugir de casamentos forçados, explorar os prazeres da noite ou simplesmente desfrutar de mais liberdade. Entre ficção, mito e realidade, elas ficaram conhecidas por sua ousadia. Carlos Drummond de Andrade chegou a escrever um poema cujo título é “Mulher vestida de Homem”. Dizem que a noite Márgara passeia vestida de homem da cabeça aos pés. Vai de terno preto, de chapéu de lebre Na cabeça enterrado, assume o ser diverso que nela se esconde,

Ser poderoso: compensa a fragilidade de Márgara na cama. Márgara vai em busca de quê? de quem? De ninguém, de nada, senão de si mesma, Farta de ser mulher. A roupa veste-lhe outra existência por algumas horas. Em seu terno preto, foge das lâmpadas denunciadoras; foge das persianas abertas; a tudo foge Márgara homem só quando noite.13

Ao contrário de Márgara, do poema de Drummond de Andrade, Bianca/Lorenzo caminha pelas ruas durante o dia e a noite sem se preocupar em ser descoberto(a). Isso porque a pele de homem tem propriedades mágicas. Uma vez que ela é vestida a mulher por baixo dela realmente se torna um homem. Quando Bianca experimenta a pele de homem pela primeira vez, fica intrigada com o corpo masculino que agora é seu corpo. Ela o explora com suas mãos até provocar uma ereção, e acaba acidentalmente se masturbando.14 Sua primeira experiência como homem vai ser a descoberta da sexualidade masculina. Ao longo da narrativa o corpo do homem e o corpo da mulher, assim como sua sexualidade estiveram constantemente em cena. Neste ponto, a HQ rompe em muitos momentos com o passado histórico para dialogar com o presente. Bianca começa a desenvolver um discurso cada vez mais questionador acerca do seu corpo e da sua sexualidade. A moça vai perdendo gradativamente o pudor que possuía e embarca em uma relacionamento afetivo-sexual no mínimo excêntrico. Como Lorenzo, ela se torna amante do marido, numa relação homoafetiva. Como esposa, ela é parceira sexual de um relutante Giovanni que encara o casamento e o sexo com esposa como uma obrigação que lhe é imposta pela sociedade, embora, com o tempo sua esposa se torne sua amiga e confidente, permitindo-lhe abraçar com mais segurança sua homoafetividade. Tanto na Idade Média quanto na Idade Moderna, o ato sexual estará constantemente sendo cerceado pela Igreja e pela própria família, sendo que a cópula deve ter apenas a função de procriação. A busca do prazer sexual era considerada degradante e pecaminosa e o corpo, tanto do homem como a mulher, era apenas um

GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela-guerreira – um estudo de gênero. São Paulo: editora SENAC, 1998, p.21. 14 HUBERT, ZANZIM. Op. Cit., 2021, p. 14. 13

instrumento para perpetuação da espécie. O prazer gerado pelo sexo era profano e o corpo da mulher uma tentação que deve ser evitada a qualquer custo. No ato sexual, a mulher deveria desempenhar um papel submisso, passivo, no qual não era permitido sentir ou expressar prazer, não deveria, também, esperar carinho ou ternura do parceiro. [...] o corpo sexualizado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos. O próprio casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. A cópula é só compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar. “O adúltero é também aquele apaixonado ardente por sua mulher”, repetiam os clérigos da Igreja. Prescreve-se, desse modo, o domínio do corpo; as práticas “desviantes” são proibidas.15

Bianca vai experimentar as vantagens de ter um corpo masculino e, à medida que a personagem ganha consciência da grande desigualdade imposta a homens e mulheres, ela passa a assumir uma postura antimachista que causa espanto principalmente às pessoas mais próximas. Bianca passa a militar contra o preconceito e o sexismo, como homem, nos momentos em que está vestida com a pele de Lorenzo, e como mulher, que não quer mais aceitar seu papel de subordinação aos homens, seja no casamento, na família ou na sociedade de um modo geral. Se a personagem está criticando o papel de subordinação da mulher ao homem, dentro de uma sociedade patriarcalista, ela também está reivindicando direitos sexuais para homens e mulheres e protestando contra a perseguição tanto da homoafetividade quanto do corpo e da sexualidade das mulheres. Esse diálogo com o presente a partir da ficcionalização do passado é bem claro e pode ser facilmente apropriado pelo leitor. O corpo das mulheres vai ser considerado profano e sua própria visão incitaria os homens ao pecado. Esse, em resumo, será o discurso enunciado pelo irmão de Bianca, Ângelo, que acabaria se tornando seu grande antagonista. Ângelo é um clérigo que leva para a cidade suas ideias radicais acerca do corpo, especialmente do corpo das mulheres. Esse discurso é carregado de estereótipos que dialogam com os discursos conservadores da atualidade, projetando no passado um mundo que nunca existiu. Avesso ao toque do corpo feminino, que considera pecaminoso, Ângelo começa uma verdadeira cruzada contra tudo o que considera como comportamento antinatural, tanto fora quanto dentro do casamento.

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Ângelo é a

LE GOFF, Jacques, TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p.41

radicalização do pensamento monástico padrão, possivelmente inspirado em Girolamo Savonarola, reformador dominicano que viveu no século XV, cuja pregação girava em torno do combate à imoralidade e ao paganismo e que acabou morto, condenado pela Inquisição. Ângelo considera a beleza um pecado e para ele, tanto homens quanto mulheres deveriam esconder seus corpos e rostos, para não provocarem a tentação alheia. O religioso é claramente descrito como um homem que nega e reprime seus próprios impulsos sexuais. Nesse contexto, as mulheres e as práticas homoafetiva foram seu principal alvo.

Imagem 03 – Rubina sendo tosquiada e humilhada publicamente após cometer adultério. HUBERT, ZANZIM. Pele de homem. – São Paulo: Nemo, 2021, p.105.

Em “Pele de Homem”, como resultado das ações de Ângelo, as mulheres são obrigadas a cobrir seus corpos. Aquelas que eram acusadas de adultério foram perseguidas e tiveram seus cabelos tosquiados, sendo expostas à humilhação pública

(Imagem 03). Segundo Perrot, tosquiar os cabelos é uma forma de dominação imposta na antiguidade aos vencidos e uma forma de punição às mulheres, como as bruxas, que durante a Idade Média tinha seus cabelos tosquiados.16 O cabelo das mulheres está relacionado à sedução, ao sexo e ao pecado. Eles eram um instrumento de sedução das mulheres, portanto, cortar os cabelos de uma mulher faz parte de uma relação de dominação no qual o homem subjuga mulher tirado dela um elemento de poder. A tosquia do cabelo de mulheres não ficou no passado distantes. Após a Segunda Guerra Mundial, houve na França uma perseguição a mulheres acusadas de” colaboração horizontal” com nazistas, durante a ocupação. Era entendido como colaborar ter tido qualquer relação sexual ou afetiva com soldados alemães. Para essas mulheres, a punição variava da tosquia dos cabelos à prisão. Elas eram condenadas a um completo ostracismo social, submetidas a agressões físicas e verbais constantes. O corte dos cabelos era a prova da sua “vergonha”. Essa prática atingiu cerca de vinte mil mulheres na França.17 Cabelos cortados ou escondidos, “Pele de homem” denuncia diversas formas como as mulheres são tratadas pela sociedade patriarcalista e de como seus corpos e sua sexualidade são considerados perigosos. Daí a necessidade da mulher submissa, obediente e que não interfere nos assuntos do homem. Bianca rompe com esse estado de coisas e abre caminho, nessa utopia, para que tanto mulheres e homens possam expressar seus desejos e sentimentos uns pelos outros, sem amarras e pudores. Bianca é diferente da donzela-guerreira, personagem presente na ficção e na história, representada por mulheres que se vestem como homens ou que assumem papéis masculinos, corta os cabelos, abre mão de características femininas e invariavelmente acaba morta. A donzela guerreira, nas palavras de Walnice Nogueira Galvão “destina-se à morte real e simbólica”18, Bianca segue um caminho contrário. Ela mata Lorenzo para continuar vivendo. A protagonista assume a direção da sua vida, a vive como deseja viver, sem se submeter ao papel de gênero a ela imposto pela sociedade.

Considerações finais Pele de homem é uma história em quadrinhos que dialoga com o presente e com a própria história. Como obra de ficção, ela possui a liberdade de misturar elementos do PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. — São Paulo: Contexto, 2007, p. 61 PERROT, Op. Cit, 2007, p. 61. 18 GALVÃO, Op. Cit., 1998. p. 12. 16 17

passado com o presente e de oferecer ao leitor a possibilidade de reflexão acerca de temas que, tanto ontem quanto hoje, são importantes para delimitarmos o papel de cada um de nós na sociedade na qual vivemos e naquela que desejamos construir. Este é também o papel da história, o de fazer e provocar reflexões, de criar expectativas acerca do futuro, de oferecer elementos teóricos para que possamos evoluir enquanto coletividade. Nesse sentido, história e ficção caminham juntas. É preciso apontar o fato de que “Pele de Homem” é também um quadrinho que possui elemento autobiográficos. Boa parte da narrativa vem da vivência do autor, Hubert Boulard. Nascido em uma família católica conservadora, Hubert sentiu na sua pele de homem toda a repressão e preconceito à homoafetividade. Pele de Homem, para além de um quadrinho que trata de questões relacionadas a gênero é, também um manifesto conta a homofobia. Hubert faleceu em 12 fevereiro de 2020, após uma longa luta contra a depressão. Enquanto objeto de estudo, “Pele de Homem” nos possibilita conhecer a forma como pensam os próprios homens acerca dos papéis de gênero e dos limites impostos a nós por eles pelo patriarcalismo. Os homens assim como as mulheres devem ser vistos a partir de um olhar plural. Os autores dessa HQ, homens, demostraram uma grande sensibilidade ao identificar e analisar as formas pelas quais as mulheres são submetidas à dominação masculina e deixam claro, por meio da protagonista, que não concordam com esse estado de coisas. Os papéis de gênero são colocados em questão a todo momento, e não apenas em relação às mulheres. O machismo também vitima os homens, particularmente aqueles que são perseguidos e discriminados por manterem relações homoafetivas. Como fonte para um estudo da História das Mulheres, “Pele de Homem” oferece a oportunidade de se analisar temas como a memória, o corpo, a sexualidade e liberdade de pensamento, assim como muitos outros. Ele traz um retrato do papel da mulher na história e na sociedade, tanto durante a Renascença, quanto nos dias atuais, uma vez que, apesar de todas a mudanças pelas quais a humanidade passou no último milênio, ainda estamos reproduzindo muitos preconceitos e práticas com relação às formas que encaramos a práxis social, num círculo vicioso marcado por poucos avanços e (infelizmente) muitos retrocessos.

Referências CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. - São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo> Editora UNESO, 1998. DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos homens: do amor e outros ensaios. – São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 15. ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FARIA, Ângela. Séries sul-coreanas conquistam espaço no Brasil com tramas leves e românticas. Publicado em 16 de jun. 2019. Disponível em: Acesso em 29 out. 2021. GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela-guerreira – um estudo de gênero. – São Paulo: editora SENAC, 1998 HUBERT, ZANZIM. Pele de homem. – São Paulo: Nemo, 2021. LE GOFF, Jacques, TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. LOWENTHAL, David. Como conhecer o passado. Projeto História – Revista do Programa de Estudos de Pós-Graduados em História, São Paulo, vol. 17, nov. 1998. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005. ___. Minha história das mulheres. — São Paulo: Contexto, 2007. SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org). A Escrita e a História: novas perspectivas. – São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1992, 73. ___. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, v.l, n.2, jul./dez. 1990 p. 71 - 99 Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/71721/40667. Acesso em: 27 set. 2021. VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idades Média até o século XX. São Paulo: Ed. Ática, 1997.

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